Notas sobre a crise de 2008: o modelo do narrow banking

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Notas sobre a crise de 2008: o modelo do narrow banking
Nestes tempos de crise, cresce a idéia de que é necessário maior (e melhor)
regulação para o sistema financeiro mundial. "Nos últimos 20 anos as pessoas
estavam, na verdade, expressando a idéia de que o governo deveria tirar as
mãos" do mercado, diz Richard Sylla, um proeminente historiador financeiro da
Universidade de Nova York. "Tínhamos essa crença do livre mercado: 'o
governo não é uma solução, o governo é o problema', dizia Reagan. Agora as
pessoas estão dizendo: 'O mercado é o problema. O governo é a solução'". Em
outras palavras, com o maior choque financeiro desde a Grande Depressão de
1929, a solução proposta para a crise é a maior intervenção estatal, numa
tentativa de impedir uma devastação econômica maior e mais grave. E essa
maior intervenção se dará por meio da regulação. O amplo ataque ao que o
Secretário do Tesouro americano, Henry Paulson, chama de "raiz dos
problemas de nosso sistema financeiro: os créditos podres nos balanços dos
bancos do país" faz com que o caminho para a prosperidade de liberar os
mercados financeiros para alocar capital, assumir riscos, desfrutar de lucros e
absorver prejuízos se dê por meio de mais regras. Como disse o editorial do
Financial Times, "sumiu a esperança de que os mercados se corrigem quando
exageram. Também foi destruída a idéia de que o papel do governo é ficar de
fora, limitando-se a proteger consumidores e pequenos investidores, definindo
as regras do jogo e interferindo - apenas raramente - para proteger a economia
de choques como a quebra das bolsas de 1987 ou o colapso do fundo de
hedge Long-Term Capital Management. Esses dois episódios envolveram a
ação do governo americano para acalmar os mercados e inundá-los de
dinheiro. Em contraste com a situação atual, em nenhuma das vezes os
Estados Unidos usaram quantias significativas de dinheiro do contribuinte ou
qualquer coisa que se aproximasse da estatização de uma grande firma. Há
pouco mais de um ano, Paulson, entre outros, argumentava que as
regulamentações onerosas estavam aleijando o setor financeiro americano
diante da concorrência internacional mais acirrada. Esse discurso foi
silenciado".
Uma das concepções que vem sendo debatida já há alguns anos como uma
teoria preventiva das crises bancárias é a teoria do narrow banking. Em
síntese, divide-se o sistema financeiro em dois grupos: bancos inteiramente
garantidos (por meio de mecanismos de seguro-garantia, geralmente estatais)
e bancos sem nenhum tipo de cobertura. Do ponto de vista regulamentar,
estende-se o seguro-garantia para uma parte do sistema financeiro que estaria
menos vulnerável ao risco e à volatilidade, com a contrapartida de maior
fiscalização e controle por parte do Banco Central. Obriga-se a instituição a
comprar somente títulos públicos, nos quais os ativos são líquidos e certos e o
passivo, portanto, absolutamente garantido.
Mesmo que tal teoria seja uma concepção engenhosa, críticos afirmam que há
suspeita de que as operações de crédito bancário se limitariam àquelas
sabidamente sólidas e não seriam suficientes para assegurar a procura por
depósitos garantidos. Outros ainda alegam que, numa situação limite, o Estado
também acabaria por ser arrastado para o lado desregulado do sistema. Não
há no mundo recente país que adote o modelo.
No entanto, há aspectos do narrow banking que precisam ser considerados e
podem ser adotados. Mesmo que apenas o lado 'regulado' tenha obrigações
muito específicas, o setor desregulado teria supervisão prudencial. O
provimento das informações para a superação da assimetria informacional se
daria com base num sistema de examinação e fiscalização bancária rigorosa.
Envolveria auditorias semestrais severas, com duas particularidades
importantes: diretores do Banco Central deveriam ratificar esses relatórios de
fiscalização e eles mesmos poderiam ser responsabilizados ilimitadamente na
eventualidade da quebra do banco se houver má-fé ou má-gestão. Ou, em
outras palavras, o setor desregulado também teria supervisão prudencial para
que houvesse ampla transparência no sistema, ao mesmo tempo que se
permitiria liberdade de operações. Este aspecto é um dos mais importantes e
interessantes do modelo: a obrigatoriedade da transparência de informações.
Os bancos seriam obrigados a fornecer uma quantidade detalhada de
informações sobre suas atividades, suas operações, seus ativos e seus
passivos. Cooper e Fraser tecem duas observações valiosas quanto à questão
da transparência: muitos bancos podem preferir a discrição à luz pública,
historicamente os bancos centrais ocuparam o papel de frade-confessor, visto
que problemas de várias naturezas e origens são mais bem resolvidos
reservadamente.
A teoria do narrow banking é interessante por algumas razões óbvias. Alguns
entendem que a atividade bancária é um "acidente pronto a acontecer" (Martin
Wolf, Financial Times, 27/11/07), já que os bancos adoram o risco (os
banqueiros têm incentivos de remuneração para arriscarem mais e mais, já
que, no final das contas, não arriscam capital próprio), mas também sabem que
são considerados como uma indústria de utilidade pública, e salvos no final.
Como a atual crise está ensinando, os efeitos para a economia real são
verdadeiramente muito devastadores, e, como sempre, o Estado está
assumindo os prejuízos gerados. Ora, o narrow banking resolve ao menos a
questão do controle do risco, sem prejudicar a inovação e os agentes que
querem assumir maiores riscos, mesmo que estejam sujeitos à supervisão. O
problema ainda não solucionado é a hipótese do contágio do lado regulado
com o lado desregulado, mas, de resto, esse aspecto pode ser mitigado com
uma simples análise dos fatos atuais: será que não seria mais barato para o
consumidor americano um sistema no qual parte dos ativos fosse
absolutamente segura?
Jairo Saddi- Doutor em Direito Econômico (USP). Pós-doutorado pela
Universidade de Oxford. Diretor do Ibmec Direito - Ibmec São Paulo. Artigo
publicado no jornal Valor Econômico em 06/11/08.
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