Simpósio Temático 39: Gênero, Violência e Segurança Pública

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Anais do VII Seminário Fazendo Gênero
28, 29 e 30 de 2006
Simpósio Temático 39: Gênero, Violência e Segurança Pública
Fernanda Pamplona Ramão
Mestranda em Desenvolvimento Regional e Agronegócios – UNIOESTE.
Yonissa Marmitt Wadi
Doutora em História Social. Professora Adjunta – UNIOESTE.
Palavras-chave: padrões de gênero, homicídios, Sistema de Justiça Criminal.
Mudanças nos padrões de gênero e nos julgamentos dos crimes passionais na Comarca de
Toledo/PR (1954-2000): uma abordagem comparativa
Em artigo clássico sobre o conceito de gênero, Joan SCOTT afirma que este é um elemento
constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e um
primeiro modo de significar as relações de poder.1 Neste sentido, a homens e mulheres são
atribuídos – geralmente de forma arbitrária – diferentes papéis. Estes papéis de gênero são “modos
de ser e de interagir como mulheres e homens (...) moldados pela história, ideologia, cultura,
religião e pelo desenvolvimento econômico” e são “aprendidos”2, no entanto, diferem de acordo
com o lugar e com a época histórica.
Como administrador de conflitos sociais o Sistema de Justiça, particularmente na sociedade
brasileira, manobra com estes papéis de gênero e com os valores sociais ainda de forma muito
tradicional, especialmente contra as mulheres3, o que é bastante visível – mesmo em períodos
recentes – no âmbito do julgamento de crimes que envolvem parceiros em relações afetivas e/ou
sexuais. Assim, considerando informações coletadas em processos criminais referentes a homicídios
tentados ou consumados entre tais parceiros – chamados crimes da paixão –, ocorridos na jurisdição
da Comarca de Toledo/PR, entre os anos 1954 e 2000, pretende-se neste artigo examinar as
transformações ocorridas nos papéis de gênero socialmente construídos e os desdobramentos dessas
modificações nos julgamentos destes crimes.
Um cenário em transformação
Na organização social de gênero vigente na sociedade brasileira até o final da década de
1970, da qual pouco diferiam as sociedades constituídas na área de abrangência da Comarca de
Toledo / Oeste do Paraná – apesar das especificidades do processo histórico de sua formação –,
ainda estavam arraigados, tanto no imaginário coletivo como nas práticas sociais, padrões fixos de
comportamento para homens e mulheres. A imagem masculina ideal era geralmente construída em
função das expectativas de proteção e assistência à família, função que era possibilitada pelo
trabalho. Essa posição na relação de gênero concedia ao homem um status de superioridade, uma
certa ‘autoridade’ legitimada socialmente. O espaço feminino por excelência era o da casa – numa
sociedade eminentemente rural com a do Oeste paranaense, envolvia os cuidados com seu entorno
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(a roça, o pomar, a horta...) – e os papéis femininos estavam ligados aos cuidados relacionados a
este espaço e a família (filhos e marido).4
A partir de meados da década de 1970, a região pertencente à Comarca de Toledo/PR passou
por um processo amplo de mudança estrutural. Com uma economia baseada na pequena
propriedade familiar, foi marcada por um intenso êxodo rural decorrente, entre outros fatores, de
uma política de modernização agrícola expulsora. Muitas famílias vítima do êxodo acabaram se
instalando de modo precário nas periferias urbanas. Este deslocamento do campo para as cidades,
além de consideráveis mudanças no espaço geográfico da região, desencadeou certa ruptura nas
relações familiares tradicionais, enfraquecendo-as e complexificando os laços interpessoais. Para
SCHREINER, “junto à emergência de um novo contexto sócio-econômico no (...) Oeste do Paraná,
forja-se a reconstrução do sistema simbólico pelo qual os atores sociais, diante das novas relações
sócio-culturais produtivas, movimentar-se-ão”.5 Esta movimentação dos sujeitos sociais atinge as
mulheres, que se deslocam do ambiente exclusivamente doméstico, adquirindo maior projeção
social e participação na vida pública, especialmente no mundo do trabalho extradoméstico.
Segundo LYPOVETSKY, na contemporaneidade, há um processo de ampliação das
exigências de liberdade e de igualdade das mulheres, no qual a divisão social dos sexos é
reatualizada. Porém, se as disjunções de gênero se tornam menos visíveis, menos exclusivas, elas
não periclitam: “Em vez de pré-concepções inscritas em letras maiúsculas, temos representações
fracas que já não fecham de forma anuladora o acesso das mulheres aos setores e aos postos
tradicionalmente masculinos”.6 Assim, modificações nos papéis de gênero – como o acesso ao
mundo do trabalho extradoméstico –, não significa o desaparecimento das desigualdades entre os
sexos, mas apenas a não diretividade dos modelos sociais de gênero ou pelo menos seu
enfraquecimento.7
Crimes passionais na Comarca de Toledo/PR: ocorrência e julgamento
O período em estudo foi dividido em dois – de 1954 (data de fundação da Comarca de
Toledo) a 1979 e de 1980 a 2000 –, a partir da verificação de que cada um desses agrupamentos
possui certa uniformidade, tanto no que concerne aos padrões de gênero vigentes, quanto à
ocorrência e julgamento dos crimes em análise. No primeiro período estudado (1954-1979)8
encontrou-se 19 processos do tipo de crime em análise. A maioria dos homicidas (15) era do sexo
masculino. Cerca de 84% dos crimes ocorreram entre parceiros estáveis (casados ou amasiados),
que compartilhavam a mesma residência e mantinham relações duradouras: 57% dos protagonistas
conviviam a mais de cinco anos.Verificou-se também que 74% dos parceiros afetivos e/ou sexuais
possuíam filhos em comum. Dentre os 19 casos, 10 envolveram parceiros de baixa situação
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econômica, oito parceiros de situação econômica média e apenas um caso envolveu parceiros de
situação econômica considerada alta.9
Delimitar quais foram os agentes desencadeadores, o chamado tema do crime, é essencial,
na medida em que é “indicativa das normas sociais de comportamento vigentes, das expectativas de
conduta que estabelecem uma gradação do ato homicida, considerado ‘torpe’ em um extremo e
‘justificado’, no outro”.10 Por meio dos dados referentes ao tema do homicídio entre parceiros
afetivos e/ou sexuais é possível visualizar, em alguma medida, os valores morais de uma dada
sociedade, assim como os pretextos que podem servir de justificativa para a consumação desse tipo
de crime. Na região da Comarca de Toledo, no período 1954-79, os ‘temas’ justificadores do ato
extremo de tentar contra a vida do ‘suposto’ ser amado, foram em ordem de ocorrência: “ciúmes”
(37%), “brigas” (21%), “traição” (16%) e “maus tratos” (11%).
Aproximadamente 78% dos crimes ocorreram no espaço de vida em comum (a casa) ou
muito próximo a ele. Confirmando a literatura de referência11, os dados comprovam que a maioria
(42%) dos acontecimentos violentos ocorreu em finais de semana (sábados e domingos), quando se
supõe que os protagonistas passavam mais tempo juntos. O período do dia em que ocorreu a
maioria dos crimes (26%) foi a madrugada, isto é, a partir da meia-noite. Talvez pelo fato da região
abrangida pela Comarca de Toledo, nesta época, possuir características fortemente rurais, destacouse a utilização de armas brancas (47%) – facas, punhais, foices e machados – na consumação dos
crimes. Para FAUSTO12, os instrumentos utilizados na prática de crimes podem ser considerados
reflexos dos padrões da atividade cultural, econômica, de uma política de Estado ou do estágio de
desenvolvimento tecnológico de uma dada sociedade.
Em apenas sete casos (37%), dos 19 que compõem o universo estudado nesse período, os
acusados (três mulheres e quatro homens) foram presos imediatamente após a consumação do
crime. Dentre estes, apenas 12 foram levados a julgamento, pois uma parcela dos acusados faleceu
antes do julgamento e outra nunca foi encontrada pela justiça. Dentre os casos julgados, pelo Juiz
ou pelo Tribunal do Júri, 50% dos réus foram absolvidos, sendo cinco do sexo masculino e um do
sexo feminino. Verificou-se 25% de condenações (3 casos), sendo todos os acusados homens. Em
três casos (25%) os réus – duas mulheres e um homem, identificado como indígena – foram
absolvidos, mas internados em instituições de custódia e tratamento como medida de segurança.
Nos casos levados à julgamento, sete acusados (seis homens e uma mulher) contaram com
defensores próprios e outros cinco (duas mulheres e três homens), com defensores dativos. Nos
processos onde atuaram advogados dativos ocorreu uma proporção maior de condenações (40%),
em oposição aos casos onde a defesa foi realizada por um defensor próprio (14%). Também nos
primeiros processos não houve absolvições “totais”, apenas absolvições com internamento como
medida de segurança (60%). Já em julgamentos onde a defesa foi realizada por um defensor
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constituído pelo próprio acusado, o índice de absolvição foi de 86%. Dessa forma, é possível
afirmar que a natureza da defesa foi decisiva no desenlace do processo, pois em casos onde a defesa
foi conduzida por um advogado próprio, a diversificação da sentença se restringiu há apenas duas
situações diferentes e inversamente opostas: absolvição ou condenação. Em processos onde atuaram
advogados designados pelo juiz percebe-se uma outra realidade, na qual existe uma tendência
diferenciada: a condenação ou a absolvição com internamento como medida de segurança. Infere-se
que a alta incidência de impunidade, constatada pelo índice de 75% de absolvições (total ou com
internamento como medida de segurança) dos réus no período 1954-79, está relacionada a
existência de um modelo de comportamento moral, cristalizado no imaginário coletivo e nas
práticas da sociedade local, cujos representantes compõe o Júri Popular responsável pelo
julgamento de crimes contra a vida. Este é composto, em regra, por membros da pequena burguesia,
por funcionários públicos, por pessoas que tem conhecimento da lei. Porém, nem sempre os casos
chegam a Júri Popular, havendo absolvições sumárias decretadas pelos próprios juízes togados.
Entretanto estes, tanto quanto os representantes da comunidade, julgavam e ainda julgam, a partir
de sua visão de mundo e da posição que ocupam dentro da sociedade. A decisão depende muito da
formação cultural dos julgadores, que pertencendo em geral as classes médias, julgam a partir de
idéias e valores muito arraigados sobre os papéis de gênero. Neste primeiro período – o que não é
de todo diferente no segundo – havia papéis sociais/sexuais de gênero dominantes, os réus –
especialmente homens – foram absolvidos em grande parte das vezes pela identificação do corpo de
jurados com os valores sociais e morais usados para construir imagens ‘ideais’ de réus e imagens
‘quebradas’ das vítimas. Para BARSTED, “a mulher assassinada é tratada como alguém que deve
estar adequada a um certo papel para ser considerada vítima. Há nos processos de homicídios contra
mulheres uma verdadeira investigação sobre a vida da vítima para tentar explicar como o
comportamento da vítima foi capaz de levar seu marido ou companheiro a mata-la”. Assim, os
defensores tentam provar que elas transgrediram, “procurando despertar no júri os seus sentimentos
mais conservadores sobre os papéis socialmente construídos para homens e mulheres”.13
Já nos casos em que as mulheres são rés em crimes de homicídio, os defensores também
tentam adequar suas clientes aos papéis tradicionais – mães, esposas e donas-de-casa – mostrando
que elas não transgrediram estes papéis. Assim, as mulheres são facilmente absolvidas quando
‘mostram-se’ adequadas a estes papéis, sendo vítimas de homens não ‘adequados’ aos quais
reagiram. Mas também, outra estratégia bastante utilizada, quando ‘prova-se’ que ‘sofriam das
faculdades mentais’. Tal perspectiva é bastante visível no julgamento de duas das mulheres
acusadas no período que, assim como um homem identificado como ‘indígena’, foram absolvidas e
internadas em manicômios judiciários como medida de segurança. Pode-se verificar claramente
que, nestes casos, a argumentação girou em torno de demonstrar que tratava-se de indivíduos
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incapazes de discernir entre certo e errado – portanto inimputáveis –, em razão de seu próprio
aparato biológico. Mulheres ‘nervosas’ – pois sujeitas aos fluxos e refluxos do sangue menstrual –,
como os indígenas – “...o homo sylvestre, inteiramente desprovido das aquisições éticas do
civilizado homo medius que a lei penal declara responsável”14 – eram seres menores,
necessariamente irresponsáveis por seus atos perante os detentores de saberes acadêmicos – como
os agentes do direito – que, em grande medida, compartilhavam preconceitos com os homens
comuns, responsáveis pelos julgamentos nos Tribunais do Júri.
Por outro lado, é importante destacar que, no julgamento da violência entre parceiros
afetivos e/ou sexuais – violência em geral doméstica – imperou, neste momento histórico em
especial, a lógica do justiçamento privado. Ou seja, a velha máxima de que em ‘briga de marido e
mulher ninguém mete a colher’. Mesmo levados às barras dos tribunais, homicidas de parceiros
afetivo/sexuais foram comumente identificados – e por isto julgados – como ‘zeladores’ da ordem
familiar que ameaçava desabar. Difundiu-se assim um modelo perigoso à ordem pública, o de que
existe uma justiça privada na qual o Estado ‘não deve se meter’. Consagrou-se – até mesmo entre os
agentes da justiça – o “entendimento de que existe uma lei privada, uma lei interna as famílias que
permite que pais castiguem os filhos até brutalmente e que maridos e companheiros castiguem suas
mulheres porque elas não corresponderam ao papel de esposas ou mães tradicionais.”15
No segundo momento histórico estudado (1980-2000), encontrou-se 20 processos criminais
referentes ao crime em análise. Entretanto, por se tratar de um período recente, grande parte desses
autos ainda encontrava-se em trâmite, no momento da pesquisa, o que impediu o acesso a eles.
Sendo assim, foram considerados para a análise qualitativa – como uma amostra que poderia
apontar possíveis transformações – apenas os processos que já se encontravam arquivados. Assim, o
universo da pesquisa reduziu-se a nove casos, referentes a oito homens homicidas e uma mulher.
Diferentemente do período anterior, não há um tipo de relacionamento predominante entre
os envolvidos, sendo que casados, amantes e amásios representam cada uma 33%. O tempo de
relacionamento entre os protagonistas dos crimes também diminuiu, sendo que apenas 22% dos
envolvidos conviviam a mais de cinco anos. Apesar do curto período de relacionamento na maioria
dos casos estudados, aproximadamente 66% dos envolvidos possuíam filhos em comum. Dentre os
casos analisados, a maioria das ocorrências (55%) envolveu parceiros de baixa situação econômica.
Os ‘temas’ justificadores dos conflitos neste período foram em ordem percentual
“abandono” (33%), “brigas”(33%) e “maus tratos” (11%). Representando uma mudança
significativa em relação ao primeiro período, 66% dos crimes ocorreram fora do ambiente
doméstico (na zona do meretrício, na via pública, em lotes baldios), contra 33% ocorridos no
ambiente doméstico. Importante destacar que, neste momento histórico, 77% dos envolvidos
residiam na zona urbana e não mais na zona rural dos municípios pertencentes à Comarca. Também
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neste segundo momento histórico estudado (1980-2000), os crimes ocorreram majoritariamente nos
finais de semana (33% no sábado e 33% no domingo). A maior incidência de homicídios ou
tentativas ocorreu à noite (33%) ou na madrugada (33%), sendo utilizadas tanto armas brancas,
quanto de fogo (33% cada).
Através de algumas variáveis coletadas pode-se perceber que há uma ação mais efetiva por
parte do Sistema de Justiça no sentido de diminuir a impunidade. Um número maior de acusados
(44%) foi preso em flagrante delito, sendo três homens e a única mulher. É fundamental ressaltar
que, nesse período, todos os réus dos processos analisados foram julgados, em oposição ao período
anterior quando em 37% dos casos os acusados entraram em óbito antes do julgamento. Também o
percentual de condenações, que no primeiro período era de 16%, subiu para 56% neste. Em outros
33% dos julgamentos, os réus foram absolvidos e, por fim, em um caso (11%) o homicida foi
absolvido, mas internado como medida de segurança, tendo sido considerado um doente mental.
Em 55% dos processos os acusados contaram com o apoio de um defensor próprio, enquanto
45% dos acusados foram defendidos por advogados dativos. Nestes casos (4) a sentença foi
desfavorável ao réu em dois deles. Nos dois outros processos, os defensores conseguiram a
absolvição dos réus, ainda que, em um desses o juiz tenha decretado internamento como medida de
segurança. Já nos casos defendidos por advogados contratados pelos próprios homicidas, em três
houve sentença condenatória e em dois, absolutória. O status do advogado (próprio ou dativo) não
parece assim, ter influenciado decisivamente nos desfechos processuais, neste momento histórico.
Dentre os casos de absolvição do réu encontra-se o único caso feminino analisado. Neste, a
ré foi absolvida pela legítima defesa, pois foi comprovado que a mesma sofria agressões de
diferentes naturezas, há certo tempo, por parte de seu parceiro. Tradicionalmente o Sistema de
Justiça Brasileiro, não considerava legítimo uma mulher agredir seu parceiro em uma relação
amorosa e/ou sexual, em razão de uma reivindicação que rompesse com os papéis idealmente
construídos para o feminino, como viu-se anteriormente. Apesar das mudanças no cenário das leis,
ainda vigoram representações fracas dos papéis ideais de homens e mulheres, como afirma
LIPOVESTKI16. Assim, manteve-se uma menor propensão punitiva para mulheres que agridem e
até matam companheiros violentos e espancadores contumazes, delas ou de seus filhos, desde é
claro que estas consigam – como afirma CORRÊA17 – manter sua imagem de mulher adequada.
Ainda que as penas imputadas aos réus condenados tenham sido de médias a altas, o regime
de cumprimento das mesmas foi abrandado, em grande parte dos casos, pois dos cinco réus
condenados, três cumpriram a pena em regime semi-aberto.O Código Penal prevê que “a pena de
um crime de homicídio ou de lesão corporal (...) é agravada quando esta pessoa privar da intimidade
da vítima ou ter autoridade sobre a vítima”18, o que ocorria na maioria dos casos analisados neste e
no período anterior, porém percebe-se claramente que tal agravante – mesmo tendo sido
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considerado na denúncia e na pronúncia de um réu – não se converteu, de fato, numa maior
punição. Percebeu-se ainda, nos discursos – de promotores, advogados e juízes – constantes nos
autos criminais do período, que não houve intensas solicitações do cumprimento de papéis
tradicionais de homens e mulheres para definir a culpa ou a inocência de um acusado. O
enfraquecimento dos estereótipos de gênero e o estabelecimento de diferenças mais tênues, menos
anuladoras entre os sexos, especialmente do sexo feminino, gerou uma grande dificuldade de
justificação do ato pelo agente do crime, e talvez a isto se deva um maior número de condenações.
Apesar destas mudanças – perceptíveis na amostra referente ao período 1980-2000 – permanece
atual a reflexão de BARSTED sobre o funcionamento do Sistema de Justiça brasileiro:
Não há uma distinção de qualidade entre a maneira que um leigo avalia um caso de homicídio e a maneira
como um juiz togado, um advogado, um defensor, um promotor de justiça, vão avaliar esse caso de homicídio.
Estão todos imersos nessa mesma cultura, onde foram naturalizados determinados papéis; são todos cúmplices
dessa violência simbólica, num certo sentido. Cúmplices porque através dessas decisões eles passam uma
mensagem política, estão fazendo política. Uma política que representa um jogo perigoso, porque é um jogo
que incentiva implicitamente a violência. Considero que a política do judiciário, apesar de grandes avanços
positivos nos últimos tempos ainda tem sido uma política estimuladora da violência de gênero nos casos em
que vítimas e réus são cônjuges ou companheiros.19
Notas
1
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 522, jul./dez. 1990.
2
INSTRAW. Conceitos de gênero no planejamento do desenvolvimento. Uma abordagem básica. DF: Conselho dos
Direitos da Mulher do Distrito Federal – GDF, 1995, p. 15.
3
BARSTED, Leila Linhares. Metade vítimas, metade cúmplices? A violência contra as mulheres nas relações
conjugais. In: DORA, Denise Dourado (org.). Feminino Masculino: igualdade e diferença da justiça. Porto Alegre:
Sulina, 1997.
4
Cf. CORRÊA, Mariza. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
5
SCHREINER, Davi Félix. Cotidiano, trabalho e poder: a formação da cultura do trabalho no Extremo Oeste do
Paraná. 2. ed. Toledo: Editora Toledo, 1997, p. 100.
6
LYPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. Tradução: Maria Lúcia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 274.
7
LYPOVETSKY, op. cit.
8
Cf. RAMÃO, Fernanda P. “Crimes da paixão”: crimes contra a vida, papéis sexuais e sistema de justiça na
Comarca de Toledo/PR (1954/1979). Toledo, 2004. Monografia (Curso de Ciências Sociais) – Centro de Ciências
Humanas e Sociais, Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Orientadora: Yonissa M. Wadi.
9
A informação sobre a situação econômica dos envolvidos foi de difícil aferição, pois os processos não a trazem de
modo objetivo. Assim, ela foi coletada de modo indireto, através de pistas e indícios presentes nos autos, como a
contratação de advogado próprio ou dativo (defensor designado pelo Juiz em vista da ausência de condições financeiras
de um acusado para contratar defensor próprio), a profissão dos envolvidos, através do documento de qualificação dos
indiciados onde aparece menção a sua condição econômica, etc. As categorias baixa, média e alta foram uma opção
metodológica para agrupar as informações.
10
FAUSTO, Bóris. Crime e Cotidiano: A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984, p.
103.
11
IZUMINO, Wania Pazinato. Justiça e violência contra a mulher: o papel do sistema judiciário na solução de
conflitos de gênero. São Paulo: Anna Blume / FAPESP, 1998.
12
FAUSTO, op.cit.
13
BARSTED, op.cit., p.82.
14
JUÍZO DE DIREITO DA COMARCA DE TOLEDO. Processo Crime n. 176/57, p. 73.
15
BARSTED, op.cit., p.80.
16
LYPOVETSKY, op. cit.
17
CORRÊA, op.cit.
18
BARSTED, op.cit., p.77.
19
BARSTED, op.cit., p.84.
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