P60 - Encontrando Saúde Em Instituição Para Doentes

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ENCONTRANDO SAÚDE EM INSTITUIÇÃO PARA DOENTES MENTAIS.
Ana Celina Pires de Campos Guimarães
Resumo
Este trabalho apresenta o caso de um paciente cronificado e institucionalizado,
que através da interação com o estagiário de psicologia foi retomando a saúde e
desconstruindo o conceito que o estagiário tinham sobre a saúde e a doença. A queixa
central da instituição era de que o paciente era agressivo e usava uma “sacola-trouxa”
que ocasionava problemas devido ao odor e tentativas de apropriação por outros
pacientes. Através dos contatos semanais do paciente com o estagiário foi desenvolvendo
vínculo entre eles, ficando a problemática da “sacola-trouxa” secundária. Foram
realizados
em
dois
anos
setenta
encontros.
No
vigésimo
quarto
encontro,
espontaneamente o paciente mostrou o que havia na “sacola-trouxa. Uma camiseta que
foi presente da professora; uma garrafa de café para tomar a noite com os companheiros
de quarto; um boné, presente de um enfermeiro; papéis para desenhar, todos os objetos
que estavam guardados ali possuíam um significado. Ali havia centenas de pacientes
cronificados, todos passivos e UM era diferente, mas estava incomodando, precisava ser
igual aos outros. Diferente porque tinha noção de seus pertences, sabia que era tudo o
que tinha e preservava sua história. Ele conseguiu manter sua identidade, em um sistema
institucional que desapropriava o indivíduo de sua singularidade. Frente a essa revelação
foi possível, ao invés de retirar a “sacola- trouxa”, valorizar a identidade desse paciente e
buscar junto à instituição sua promoção para outro setor, onde teve o direito a um armário
com chave, onde pode preservar de maneira mais digna sua história. Foi após um ano
promovido para o lar abrigado e recebeu um premio de pintura em tela. Concluiu-se,
através desse caso, que o contato humano e o respeito à saúde pode operar mudanças
significativas.
Palavras-chave: doença mental, exclusão, saúde
1
INTRODUÇÃO
Eu queria sair hoje, porque eu estou bem,
quero abrir minha oficina para trabalhar,
mas quem sou eu? A.V. (P.B in Guimarães, 2001)
Ainda hoje, século XXI, observa-se que apesar de todos os avanços da ciência , o
preconceito ao doente mental permanece paralelo a este progresso. Os Manicômios
tornaram-se verdadeiros “depósitos de gente“. Pessoas que até poderiam levar uma vida
digna dentro de casa com a própria família foram esquecidas nesses lugares, passando a
receberem o título de “cronificados”. Os séculos passam, o progresso é visível e tudo se
desenvolve, porém o estigma da “loucura” ainda se faz forte e presente em nosso meio. O
indivíduo estigmatizado sente-se inseguro em relação à maneira como os “normais” o
identificarão e o receberão ( Goffman, 1988)
As tentativas de recuperação da identidade psíquica e social dos pacientes
crônicos dos asilos psiquiátricos fazem emergir uma indagação importante: até que ponto
o estatuto de “crônico”, com as características comportamentais que lhe são próprias
(embotamento afetivo, isolacionismo, hábitos grotescos, dificuldade de realizar ações
práticas), é decorrente de uma perda gradual determinada pela patologia ou pela vida
asilar ? ( Tundis & Costa, 1992).
Barton (1974), descreve uma “neurose instituicional” como uma enfermidade que
se caracterizaria por apatia, ausência de iniciativa, e de interesse, relativo às coisas e
acontecimentos, incapacidade de formular projetos pessoais, mesmo os mais simples,
etc. Ao apontar os “fatores etiológicos recrimina as mesmas características funcionais das
instituições totalitárias, identificadas por Goffmann (1974) em seu clássico estudo sobre
os asilos:
-
perda do contato com a realidade externa;
-
ócio forçado;
-
submissão a atitudes autoritárias de médicos e restante do pessoal técnico;
-
perda de amigos e propriedades;
-
sedação medicamentosa;
-
perda da perspectiva de vida fora da instituição;
-
desqualificação permanente dos gestos e da fala dos internos;
2
-
relações ambíguas e subservientes próprias à socialização dos asilos;
-
violência consentida.
São esses os “dispositivos institucionais de cronificação”, sendo sua desmontagem a
primeira tarefa que se deve enfrentar numa estratégia de “ressocialização” (Tundis &
Costa, 1992).
Desde que se viu liberto dos grilhões, por Felipe Pinel, no final do século XVIII, o
paciente psicótico vem sendo objeto de diferentes tratamentos. Os recursos atuais,
embora ainda não sejam ideais, já permitem que tenham uma perspectiva de vida e de
satisfação bem superiores às que lhe eram reservadas durante a maior parte da história
da humanidade. Um desses recursos é o tratamento psicoterápico, que, ao lado da
farmacoterapia e do acompanhamento familiar, constitui o eixo central do que pode ser
oferecido ( Roudinesco,1994).
A análise da experiência patológica não se reduzirá a uma tentativa de explicação
causal pura e simples, mas procurará
interpretar o significado dos sintomas para
compreender as causas e o desenvolvimento do quadro mórbido. O tratamento consiste
basicamente no esforço de recomposição da história psíquica do indivíduo, cuja
continuidade sofreu interrupções e apresenta lacunas que se expressam nos sintomas. A
psicoterapia, além de procurar o sentido que se perdeu e que torna estranhos ao sujeito
certas experiências pessoais, opera uma contínua possibilidade de criar novos sentidos
os quais, apropriados pelo sujeito, lhe permitem reescrever sua própria história e elaborar
projetos. Todo esse processo de reordenamento simbólico está centrado no recurso à
biografia do sujeito como palco privilegiado de seus conflitos e aspirações. A noção de
biografia embutida no projeto psicoterápico tem duas vertentes igualmente importantes:
uma voltada para o passado e outra para o futuro. No primeiro caso aceita-se a idéia de
que a procura de sentido vai se desenvolver a partir da reconstrução das experiências
vitais mais marcantes e da repercussão emocional peculiar que provocaram. Ele precisa
estar habituado à idéia de vasculhar os próprios sentimentos, e a pensar que é neste
mundo interiorizado e pessoal que reside o seu verdadeiro eu, a sua identidade. Quanto à
dimensão do futuro, o terapeuta o vê (e imagina que o paciente também) como um campo
de possibilidades ou horizonte de perspectivas abertas ao sujeito que, de posse de novos
instrumentos, poderá examinar opções e fazer escolhas que lhe tragam mais prazer. Um
último item a ser considerado: toda psicoterapia se baseia na crença de que se pode
tratar da doença através de um processo em que a experiência pessoal de sofrimento é
explicitada verbalmente e assim exposta à decifração e reordenação. Esta crença
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pressupõe ainda que o paciente tenha todo o equipamento lingüístico voltado para a
comunicação de experiências, sensações, motivações de comportamento e para o
estabelecimento de relações entre elas e o sofrimento atual. Porém um paciente que não
consegue traduzir verbalmente com fluidez o que sente, nem sempre está resistente ou
com problemas transferenciais. É possível que as palavras que possui para designar
experiências íntimas seja restrito, daí o recurso a expressões genéricas como nervoso,
zonzeira, agonia e a localização corporal dos sintomas. Logo, com ouvido atento e olho
aberto o terapeuta poderá realizar uma pesquisa séria em busca do código específico de
descrição dos estados subjetivos utilizado pelo paciente e aí encontrar terreno fértil, visto
que as restrições lingüísticas dão lugar a uma riquíssima profusão de designações e
outros qualificativos simbólicos
( Tundis & costa, 1992).
Esta experiência teve como objetivo principal, proporcionar aos estagiários
e pacientes um espaço relacional gerador de condições para a reabilitação e auto gestão,
assim como trabalhar noções de limites, respeito, companheirismo para melhorar o
relacionamento interpessoal e a integração social.
Inicialmente foi oferecido ao estagiário, um acompanhamento geral da rotina do
hospital, bem como observar os trabalhos de grupo de expressão, onde foi possível
perceber o método de trabalho e como tratar cada paciente; logo após foi indicado pela
equipe, um paciente para trabalhá-lo em seu processo de ressocialização.
O ENCONTRO COM UM PACIENTE CRONIFICADO
O paciente crônico, que será denominado de João, estava internado desde 1991
era do sexo masculino, 49 anos, cor branca. Diagnosticado, de acordo com a CID 10
(1993), como F-06.8 – “Psicose de Base Orgânica (Epilética)”.
Apresentava
comportamento agressivo e gritava muito, ocasionando um mau relacionamento com os
demais pacientes. Mesmo assim, participava de forma satisfatória nas atividades de
Terapia Ocupacional e nas aulas oferecidas pela própria entidade.
Carregava sempre pendurado em seu pescoço uma “sacola trouxa” na qual
carregava seus pertences. Isto incomodava, visto que, às vezes
também colocava
alimentos, que estragavam e cheiravam mal.
Foi pedido ao estagiário, pela instituição, que deveria tentar fazer com que o
paciente deixasse de utilizar tal sacola e melhorasse em seu comportamento agressivo.
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Os atendimentos foram semanais, com encontros de uma hora. O estagiário teve toda
liberdade e apoio para realizar o trabalho.
É de grande importância ressaltar que, em todo o período em que ocorreu o
atendimento, o estagiário nunca observou no paciente sintomas psicóticos (alucinações,
delírios, distúrbios motores) nem epiléptico. Constatou-se, em função disso,
que os
“Neurolépticos” estavam sendo usados corretamente e que seu quadro estava controlado.
O primeiro contato com o paciente, que objetivou formar vínculo, aconteceu no
pátio do hospital onde ambos foram apresentados, sendo muito utilizada a técnica da
observação, para definir meios ideais em busca de um bom processo interacional.
Após esse contato, iniciou-se um longo processo
de dois anos de
acompanhamento, totalizando 70 encontros. Todos individuais, dentro do hospital e com
uma hora de duração.
Como o paciente demostrou muito interesse e satisfação em desenhar, foi-lhe
dado uma caixa de lápis de cor e um caderno de desenho que, paralelo com outras
atividades, foi de grande importância durante todo o processo.
No décimo encontro já foi possível através do desenho, identificar a formação do
vínculo, quando o paciente desenhou vários corações e disse que “um” era do Estagiário.
O caminho estava aberto para que a primeira queixa fosse trabalhada: “a sacola trouxa”.
No início, o paciente não tirava a trouxa do pescoço. Com o decorrer das sessões, ele já
tirava a trouxa do pescoço, porém, deixava-a bem próxima, não permitindo qualquer
toque do estagiário. Num desses atendimentos o paciente apresentando-se muito feliz
cantou algumas músicas sertanejas. Foi então proposto pela dupla a possibilidade de
utilizar também um radio de pilha durante as atividades. Foi permitido e enquanto ele
trabalhava, o rádio ficava ligado lhe trazendo grande contentamento. O paciente mostrou
entender que aquela pessoa (estagiário)
estava ali para ajudar e deixou de ser tão
resistente a ponto de realizar várias tarefas, antes protestadas. Já não era mais preciso
chamá-lo para qualquer atividade, pois ele se apresentava sempre com algum assunto
para conversar ou alguma figura para desenhar. Gostava muito de crianças, animais e da
natureza, as quais eram temas de vários desenhos significativos. Quando gritava, era
explicado que aquele não era um comportamento adequado e então imediatamente
abaixava a voz, perguntando se estava melhor . Passou também a respeitar a equipe
hospitalar e os outros pacientes. Gostava muito de participar das atividades da Terapia
Ocupacional, fazendo tapetes, montando objetos e pintando quadros.
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Apesar de tantas conquistas, o paciente ainda usava sua “sacola-trouxa” e sendo
a queixa central trazida pela instituição, havia um certo descontentamento do estagiário
pelo fato de não conseguir mudar esse comportamento. As tentativas continuavam, até
que finalmente em um encontro o paciente compartilhou tudo o que havia na “sacolatrouxa” com o estagiário. Foi surpreendente perceber que todos os objetos que estavam
guardados ali possuía um significado: uma camiseta, presente de uma professora; uma
garrafa de café para tomar a noite com os companheiros de quarto; um boné, presente de
um enfermeiro; papéis para desenhar, etc. Um espanto! Como entender a “loucura”? Ali
havia centenas de pacientes cronificados, todos passivos e
UM era diferente, mas
precisava ser igual aos outros. Diferente porque tinha noção de seus pertences, sabia que
era tudo o que tinha e preservava. Ele conseguiu manter sua identidade, em um sistema
institucional que desapropriava o indivíduo de sua singularidade!
As vezes é preciso mudar de paradigma. “Ele estava certo” e não precisava
mudar, apenas ser orientado nas questões de higiene e valorizá-lo naquilo que ele ainda
tinha de especial: Sua capacidade de escolha!
Muitas mudanças ocorreram em sua vida:

Desde o começo do estágio tinha uma namorada, que segundo ele não gostava de
trabalhar e fumava. Rompeu essa relação e iniciou outro relacionamento com uma
que não fumava e participava das atividades da Terapia Ocupacional.

Foi
promovido duas vezes e ganhou condições de morar num lar abrigado, da
entidade, que tem o propósito de readaptar o paciente na sociedade. Não quis ficar,
alegando que lá não havia mulheres.

Continuou indo à escola da entidade e participava ativamente das atividades de
Terapia Ocupacional. Sempre ajudando os profissionais nos afazeres.

Não utiliza mais a “sacola-trouxa”, pois ganhou um armário com cadeado onde pode
deixar seus pertences. Toma muito cuidado para não perder a chave.

Diminuiu
significativamente
seu
comportamento
agressivo
e
melhorou
seu
relacionamento com os demais.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Notou-se um grande crescimento no paciente e um dia ao ser elogiado pela
melhora em sua socialização disse que estava assim porque gostava da presença do
estagiário. Foi uma surpresa, porque até então o estagiário não havia significado
emocionalmente sua importância e nem acreditado totalmente em como a valorização do
doente mental, mesmo com uma psicopatologia orgânica, pode ser potencialmente
transformadora reduzindo significativamente os sintomas da cronificação. Deste modo a
teoria foi comprovada através da prática, e proporcionou uma vivência inter relacional
intensa entre estagiário e paciente a qual promoveu crescimento para ambos.
Concluiu-se, através desse caso, que muitos comportamentos indicativos de
“cronificação”, são resultantes de décadas de isolamento e exclusão social e que um
contato humano real e de respeito à saúde mental do indivíduo pode operar mudanças
significativas e desconstruir a “loucura”.
BIBLIOGRAFIA
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3ª edição. Petrópolis: Vozes, 1992.
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