ENCONTRANDO SAÚDE EM INSTITUIÇÃO PARA DOENTES MENTAIS. Ana Celina Pires de Campos Guimarães Resumo Este trabalho apresenta o caso de um paciente cronificado e institucionalizado, que através da interação com o estagiário de psicologia foi retomando a saúde e desconstruindo o conceito que o estagiário tinham sobre a saúde e a doença. A queixa central da instituição era de que o paciente era agressivo e usava uma “sacola-trouxa” que ocasionava problemas devido ao odor e tentativas de apropriação por outros pacientes. Através dos contatos semanais do paciente com o estagiário foi desenvolvendo vínculo entre eles, ficando a problemática da “sacola-trouxa” secundária. Foram realizados em dois anos setenta encontros. No vigésimo quarto encontro, espontaneamente o paciente mostrou o que havia na “sacola-trouxa. Uma camiseta que foi presente da professora; uma garrafa de café para tomar a noite com os companheiros de quarto; um boné, presente de um enfermeiro; papéis para desenhar, todos os objetos que estavam guardados ali possuíam um significado. Ali havia centenas de pacientes cronificados, todos passivos e UM era diferente, mas estava incomodando, precisava ser igual aos outros. Diferente porque tinha noção de seus pertences, sabia que era tudo o que tinha e preservava sua história. Ele conseguiu manter sua identidade, em um sistema institucional que desapropriava o indivíduo de sua singularidade. Frente a essa revelação foi possível, ao invés de retirar a “sacola- trouxa”, valorizar a identidade desse paciente e buscar junto à instituição sua promoção para outro setor, onde teve o direito a um armário com chave, onde pode preservar de maneira mais digna sua história. Foi após um ano promovido para o lar abrigado e recebeu um premio de pintura em tela. Concluiu-se, através desse caso, que o contato humano e o respeito à saúde pode operar mudanças significativas. Palavras-chave: doença mental, exclusão, saúde 1 INTRODUÇÃO Eu queria sair hoje, porque eu estou bem, quero abrir minha oficina para trabalhar, mas quem sou eu? A.V. (P.B in Guimarães, 2001) Ainda hoje, século XXI, observa-se que apesar de todos os avanços da ciência , o preconceito ao doente mental permanece paralelo a este progresso. Os Manicômios tornaram-se verdadeiros “depósitos de gente“. Pessoas que até poderiam levar uma vida digna dentro de casa com a própria família foram esquecidas nesses lugares, passando a receberem o título de “cronificados”. Os séculos passam, o progresso é visível e tudo se desenvolve, porém o estigma da “loucura” ainda se faz forte e presente em nosso meio. O indivíduo estigmatizado sente-se inseguro em relação à maneira como os “normais” o identificarão e o receberão ( Goffman, 1988) As tentativas de recuperação da identidade psíquica e social dos pacientes crônicos dos asilos psiquiátricos fazem emergir uma indagação importante: até que ponto o estatuto de “crônico”, com as características comportamentais que lhe são próprias (embotamento afetivo, isolacionismo, hábitos grotescos, dificuldade de realizar ações práticas), é decorrente de uma perda gradual determinada pela patologia ou pela vida asilar ? ( Tundis & Costa, 1992). Barton (1974), descreve uma “neurose instituicional” como uma enfermidade que se caracterizaria por apatia, ausência de iniciativa, e de interesse, relativo às coisas e acontecimentos, incapacidade de formular projetos pessoais, mesmo os mais simples, etc. Ao apontar os “fatores etiológicos recrimina as mesmas características funcionais das instituições totalitárias, identificadas por Goffmann (1974) em seu clássico estudo sobre os asilos: - perda do contato com a realidade externa; - ócio forçado; - submissão a atitudes autoritárias de médicos e restante do pessoal técnico; - perda de amigos e propriedades; - sedação medicamentosa; - perda da perspectiva de vida fora da instituição; - desqualificação permanente dos gestos e da fala dos internos; 2 - relações ambíguas e subservientes próprias à socialização dos asilos; - violência consentida. São esses os “dispositivos institucionais de cronificação”, sendo sua desmontagem a primeira tarefa que se deve enfrentar numa estratégia de “ressocialização” (Tundis & Costa, 1992). Desde que se viu liberto dos grilhões, por Felipe Pinel, no final do século XVIII, o paciente psicótico vem sendo objeto de diferentes tratamentos. Os recursos atuais, embora ainda não sejam ideais, já permitem que tenham uma perspectiva de vida e de satisfação bem superiores às que lhe eram reservadas durante a maior parte da história da humanidade. Um desses recursos é o tratamento psicoterápico, que, ao lado da farmacoterapia e do acompanhamento familiar, constitui o eixo central do que pode ser oferecido ( Roudinesco,1994). A análise da experiência patológica não se reduzirá a uma tentativa de explicação causal pura e simples, mas procurará interpretar o significado dos sintomas para compreender as causas e o desenvolvimento do quadro mórbido. O tratamento consiste basicamente no esforço de recomposição da história psíquica do indivíduo, cuja continuidade sofreu interrupções e apresenta lacunas que se expressam nos sintomas. A psicoterapia, além de procurar o sentido que se perdeu e que torna estranhos ao sujeito certas experiências pessoais, opera uma contínua possibilidade de criar novos sentidos os quais, apropriados pelo sujeito, lhe permitem reescrever sua própria história e elaborar projetos. Todo esse processo de reordenamento simbólico está centrado no recurso à biografia do sujeito como palco privilegiado de seus conflitos e aspirações. A noção de biografia embutida no projeto psicoterápico tem duas vertentes igualmente importantes: uma voltada para o passado e outra para o futuro. No primeiro caso aceita-se a idéia de que a procura de sentido vai se desenvolver a partir da reconstrução das experiências vitais mais marcantes e da repercussão emocional peculiar que provocaram. Ele precisa estar habituado à idéia de vasculhar os próprios sentimentos, e a pensar que é neste mundo interiorizado e pessoal que reside o seu verdadeiro eu, a sua identidade. Quanto à dimensão do futuro, o terapeuta o vê (e imagina que o paciente também) como um campo de possibilidades ou horizonte de perspectivas abertas ao sujeito que, de posse de novos instrumentos, poderá examinar opções e fazer escolhas que lhe tragam mais prazer. Um último item a ser considerado: toda psicoterapia se baseia na crença de que se pode tratar da doença através de um processo em que a experiência pessoal de sofrimento é explicitada verbalmente e assim exposta à decifração e reordenação. Esta crença 3 pressupõe ainda que o paciente tenha todo o equipamento lingüístico voltado para a comunicação de experiências, sensações, motivações de comportamento e para o estabelecimento de relações entre elas e o sofrimento atual. Porém um paciente que não consegue traduzir verbalmente com fluidez o que sente, nem sempre está resistente ou com problemas transferenciais. É possível que as palavras que possui para designar experiências íntimas seja restrito, daí o recurso a expressões genéricas como nervoso, zonzeira, agonia e a localização corporal dos sintomas. Logo, com ouvido atento e olho aberto o terapeuta poderá realizar uma pesquisa séria em busca do código específico de descrição dos estados subjetivos utilizado pelo paciente e aí encontrar terreno fértil, visto que as restrições lingüísticas dão lugar a uma riquíssima profusão de designações e outros qualificativos simbólicos ( Tundis & costa, 1992). Esta experiência teve como objetivo principal, proporcionar aos estagiários e pacientes um espaço relacional gerador de condições para a reabilitação e auto gestão, assim como trabalhar noções de limites, respeito, companheirismo para melhorar o relacionamento interpessoal e a integração social. Inicialmente foi oferecido ao estagiário, um acompanhamento geral da rotina do hospital, bem como observar os trabalhos de grupo de expressão, onde foi possível perceber o método de trabalho e como tratar cada paciente; logo após foi indicado pela equipe, um paciente para trabalhá-lo em seu processo de ressocialização. O ENCONTRO COM UM PACIENTE CRONIFICADO O paciente crônico, que será denominado de João, estava internado desde 1991 era do sexo masculino, 49 anos, cor branca. Diagnosticado, de acordo com a CID 10 (1993), como F-06.8 – “Psicose de Base Orgânica (Epilética)”. Apresentava comportamento agressivo e gritava muito, ocasionando um mau relacionamento com os demais pacientes. Mesmo assim, participava de forma satisfatória nas atividades de Terapia Ocupacional e nas aulas oferecidas pela própria entidade. Carregava sempre pendurado em seu pescoço uma “sacola trouxa” na qual carregava seus pertences. Isto incomodava, visto que, às vezes também colocava alimentos, que estragavam e cheiravam mal. Foi pedido ao estagiário, pela instituição, que deveria tentar fazer com que o paciente deixasse de utilizar tal sacola e melhorasse em seu comportamento agressivo. 4 Os atendimentos foram semanais, com encontros de uma hora. O estagiário teve toda liberdade e apoio para realizar o trabalho. É de grande importância ressaltar que, em todo o período em que ocorreu o atendimento, o estagiário nunca observou no paciente sintomas psicóticos (alucinações, delírios, distúrbios motores) nem epiléptico. Constatou-se, em função disso, que os “Neurolépticos” estavam sendo usados corretamente e que seu quadro estava controlado. O primeiro contato com o paciente, que objetivou formar vínculo, aconteceu no pátio do hospital onde ambos foram apresentados, sendo muito utilizada a técnica da observação, para definir meios ideais em busca de um bom processo interacional. Após esse contato, iniciou-se um longo processo de dois anos de acompanhamento, totalizando 70 encontros. Todos individuais, dentro do hospital e com uma hora de duração. Como o paciente demostrou muito interesse e satisfação em desenhar, foi-lhe dado uma caixa de lápis de cor e um caderno de desenho que, paralelo com outras atividades, foi de grande importância durante todo o processo. No décimo encontro já foi possível através do desenho, identificar a formação do vínculo, quando o paciente desenhou vários corações e disse que “um” era do Estagiário. O caminho estava aberto para que a primeira queixa fosse trabalhada: “a sacola trouxa”. No início, o paciente não tirava a trouxa do pescoço. Com o decorrer das sessões, ele já tirava a trouxa do pescoço, porém, deixava-a bem próxima, não permitindo qualquer toque do estagiário. Num desses atendimentos o paciente apresentando-se muito feliz cantou algumas músicas sertanejas. Foi então proposto pela dupla a possibilidade de utilizar também um radio de pilha durante as atividades. Foi permitido e enquanto ele trabalhava, o rádio ficava ligado lhe trazendo grande contentamento. O paciente mostrou entender que aquela pessoa (estagiário) estava ali para ajudar e deixou de ser tão resistente a ponto de realizar várias tarefas, antes protestadas. Já não era mais preciso chamá-lo para qualquer atividade, pois ele se apresentava sempre com algum assunto para conversar ou alguma figura para desenhar. Gostava muito de crianças, animais e da natureza, as quais eram temas de vários desenhos significativos. Quando gritava, era explicado que aquele não era um comportamento adequado e então imediatamente abaixava a voz, perguntando se estava melhor . Passou também a respeitar a equipe hospitalar e os outros pacientes. Gostava muito de participar das atividades da Terapia Ocupacional, fazendo tapetes, montando objetos e pintando quadros. 5 Apesar de tantas conquistas, o paciente ainda usava sua “sacola-trouxa” e sendo a queixa central trazida pela instituição, havia um certo descontentamento do estagiário pelo fato de não conseguir mudar esse comportamento. As tentativas continuavam, até que finalmente em um encontro o paciente compartilhou tudo o que havia na “sacolatrouxa” com o estagiário. Foi surpreendente perceber que todos os objetos que estavam guardados ali possuía um significado: uma camiseta, presente de uma professora; uma garrafa de café para tomar a noite com os companheiros de quarto; um boné, presente de um enfermeiro; papéis para desenhar, etc. Um espanto! Como entender a “loucura”? Ali havia centenas de pacientes cronificados, todos passivos e UM era diferente, mas precisava ser igual aos outros. Diferente porque tinha noção de seus pertences, sabia que era tudo o que tinha e preservava. Ele conseguiu manter sua identidade, em um sistema institucional que desapropriava o indivíduo de sua singularidade! As vezes é preciso mudar de paradigma. “Ele estava certo” e não precisava mudar, apenas ser orientado nas questões de higiene e valorizá-lo naquilo que ele ainda tinha de especial: Sua capacidade de escolha! Muitas mudanças ocorreram em sua vida: Desde o começo do estágio tinha uma namorada, que segundo ele não gostava de trabalhar e fumava. Rompeu essa relação e iniciou outro relacionamento com uma que não fumava e participava das atividades da Terapia Ocupacional. Foi promovido duas vezes e ganhou condições de morar num lar abrigado, da entidade, que tem o propósito de readaptar o paciente na sociedade. Não quis ficar, alegando que lá não havia mulheres. Continuou indo à escola da entidade e participava ativamente das atividades de Terapia Ocupacional. Sempre ajudando os profissionais nos afazeres. Não utiliza mais a “sacola-trouxa”, pois ganhou um armário com cadeado onde pode deixar seus pertences. Toma muito cuidado para não perder a chave. Diminuiu significativamente seu comportamento agressivo e melhorou seu relacionamento com os demais. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Notou-se um grande crescimento no paciente e um dia ao ser elogiado pela melhora em sua socialização disse que estava assim porque gostava da presença do estagiário. Foi uma surpresa, porque até então o estagiário não havia significado emocionalmente sua importância e nem acreditado totalmente em como a valorização do doente mental, mesmo com uma psicopatologia orgânica, pode ser potencialmente transformadora reduzindo significativamente os sintomas da cronificação. Deste modo a teoria foi comprovada através da prática, e proporcionou uma vivência inter relacional intensa entre estagiário e paciente a qual promoveu crescimento para ambos. Concluiu-se, através desse caso, que muitos comportamentos indicativos de “cronificação”, são resultantes de décadas de isolamento e exclusão social e que um contato humano real e de respeito à saúde mental do indivíduo pode operar mudanças significativas e desconstruir a “loucura”. BIBLIOGRAFIA BARTON, R. – La neurosis institucional. Madrid : Paz Montalvo, 1974 GOFFMAN, E. – Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. GOFFMAN, E. Estigma. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. GUIMARÃES, ACPC. Grupoterapia em hospital-dia: uma análise temática de quinze sessões; orientador: José Onildo Betioli Contel. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo, 2001. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da Cid-10. descrições clínicas e diagnósticas. trad. Caetano,D. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. ROUDINESCO, E. et al. Foucault: leituras da história da loucura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. TUNDIS,S.A.; COSTA, N.R. Cidadania e loucura – Políticas de saúde Mental No Brasil . 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 1992. 7 8