A REFLEXÃO DE UMA ESTÉTICA FEMINISTA NO CINEMA BRASILEIRO Aline Ariana Alcântara Anacleto ([email protected]) Universidade Tecnológica Federal do Paraná Campus Dois Vizinhos/PR (UTFPR) Fernando Silva Teixeira Filho ([email protected]) Universidade Estadual Paulista, Assis/SP (UNESP) Resumo: A imagem da mulher é encarada pela sociedade como reflexo da família patriarcal, a qual a hegemonia masculina, permeada por dominações e formas de poder, atravessa a subjetividade da mulher, marcando sua vida, suas ações e seus pensamentos. Devido a isso, aceitam os estereótipos dados a si mesma, que são carregados por uma cultura patriarcal. A arte não se exime dessa condição. Ao buscar uma produção artística feminina, capaz de denotar uma estética feminista, encontra-se um movimento cultural dominado pelos homens e por suas formas de construir arte, baseados no modelo patriarcal, que normatiza as vivências sociais. A arte tem sido produzida pelos homens e eles têm definido os critérios normativos para valorizá-la. Cabe as mulheres que entram neste contexto artístico, aceitar este sistema de valores. O objetivo deste estudo é uma reflexão sobre a produção feminina do cinema brasileiro, construindo um resgate teórico sobre a articulação entre os estudos feministas e o cinema brasileiro. Palavras-chaves: cinema; feminismo; gênero. A atual produção de conhecimento faz com que seja possível questionar uma realidade cercada por certezas, que convencionam e instituem aparentes verdades, que regulam a vida humana. Este questionamento amplia horizontes e revela um mundo de múltiplas realidades, com contornos plurais, (re)construídos a cada instante, a cada movimento. Trânsito este capaz de dinamizar as demarcações realizadas por uma sociedade carregada de definições estereotipadas. Pode-se pensar então na presença de outra caracterização de mulher, descolada da tradicional e única imagem de feminino que a sociedade apresenta. Uma mulher mais empoderada de direitos, que dá a ela mais possibilidade de ser protagonista de sua própria história e de viver suas próprias nuances cotidianas. Uma mulher que se constrói em oposição à opressão patriarcal da sociedade, que demarca as desigualdades de gênero e a supremacia do homem perante a mulher. Segundo D’Ávila Neto (1994) o corpo das mulheres é o ponto principal de convergência das estratégias de poder, de uma sociedade patriarcal, assim como a brasileira. Nesta perspectiva, ampliam-se os estudos das relações de gênero, que apontam para uma maior complexidade teórica das análises discursivas do que é ser homem e/ou mulher no também complexo contexto atual. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.572 Em cenário brasileiro, os estudos de gênero se consolidam no final da década de 70, com fortalecimento dos movimentos feministas que possuíam reivindicações específicas do universo feminino, no que tange o jurídico, cultural e social (MONTORO, 2009). Ao longo dos anos, esta luta por direitos de igualdade, construiu uma significativa representação da imagem da mulher na sociedade, que busca ultrapassar a imagem tradicional e estereotipada, advinda de forças patriarcais e machistas (RODRIGUES, 2009). Em certo sentido, essa mudança é o resultado de muitas elaborações críticas e teóricas por parte da comunidade acadêmica que, interessada nos estudos culturais, começou a pensar criticamente sobre as questões de gênero, e mais especificamente sobre a posição e representação da mulher no contexto sócio-cultural (RODRIGUES, 2009, p. 1926). A mulher constrói sua emancipação e busca a posição de um sujeito político, conquistando maior notoriedade e visibilidade no contexto da sociedade. O impacto do feminismo na modernidade foi então um dos movimentos que contribuiu para o debate da posição da mulher, transformando sua figura cartesiana. O autor Stuart Hall (2006) aponta que o movimento feminista, em uma relação direta com descentramento do conceito de sujeito, foi capaz de questionar a distinção consolidada da divisão entre as instâncias dentro e fora, público e privado. Abriu-se o espaço para discussão de família, sexualidade, trabalho, divisão do trabalho, representação da mulher, entre outros temas que nunca antes haviam sido colocados em pauta para reflexão, trazendo a isso a problematização da constituição da subjetividade, da identidade, do processo de subjetivação como algo generificado, questionando a posição de homens e mulheres e a construção das identidades sexuais e de gênero (HALL, 2006). Em uma perspectiva pós estruturalista, este movimento feminista questiona o conceito de identidade como descrição da realidade e a entende como um conceito capaz de possibilitar uma imposição que normatiza a categoria mulher e a categoria homem, com o objetivo de ser um mecanismo importante e responsável por garantir a perpetuação da estabilidade do conceito de sexo e de gênero, atrelados a questão da identidade (BADINTER, 2005). Neste contexto, a figura da mulher, mesmo dadas as possibilidades de emancipação, ficou atrelada as práticas que regulamentam o sexo sob uma ótica heterossexual, em uma relação de oposição, de assimetria, entre o homem e a mulher, que configuram as características do macho e da fêmea, determinadas como inerentes e naturais a própria condição de masculino e feminino (BADINTER, 2005). O paradigma do feminismo está amarrado ao modelo heterossexual, de modo que a autonomia dada às mulheres por este movimento, ainda é uma autonomia baseada no binômio masculino/feminino. O que vem ao encontro da proposta dos teóricos pós estruturalistas de repensar esta condição masculino/feminino que determina o Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.573 comportamento e as ações dos sujeitos na sociedade, regulando seus desejos, seus prazeres. É uma atual reflexão que levanta a possibilidade de que as teorias de gênero desconstroem a concepção tradicional do conceito de sujeito enquanto entidade unificada e que estas desconstruções são atuações políticas que buscam repensar o papel não só da mulher na sociedade, mas de todos os sujeitos sem distinções que priorizam uma identidade masculina e/ou heteronormativa. Dentro desse contexto de discussão se tem a Teoria Queer, um movimento político e teórico pós identitário, que busca compreender como o corpo biológico adquire identidades sociais de gênero. É uma crítica a categoria homem e mulher, como identidades imutáveis e inevitáveis (MONTEIRO, 2006). O termo queer, sem tradução exata para o português, pode ser pensado como estranho, excêntrico, raro, extraordinário, também usado pejorativamente para denominar homossexuais, foi assumido por movimentos homossexuais para caracterizar a resistência a opressão e a contrariedade a qualquer tipo de normalização (LOURO, 2001). Coloca-se como oposição a política de heteronormatividade da sociedade, colocando-se contrária a ideia da diferença ser somada, assimilada, normalizada. Este movimento queer também se articulou com a produção de um grupo de estudiosos nos anos 90 que passaram a utilizar este termo para denominar sua perspectiva teórica e descrever seus trabalhos. A denominação Teoria Queer, empregada pela primeira vez em 1990, por Teresa de Lauretis, no seu artigo “Queer Theory: Lesbian and Gay Sexualities” publicado em 1991 na revista Differences, congrega então vários pesquisadores que possuíam a ideia de oposição em relação aos estudos sociológicos sobre as questões de gênero e minorias sexuais (MISKOLCI, 2009). Em termos teóricos, teoria queer, surge da articulação entre uma das correntes norte-americanas de estudos culturais e o pos-estruturalismo francês, ambos debatendo e problematizando as tradicionais concepções de sujeito e identidade, partindo da profunda cisão com a concepção cartesiana e positivista de conceituação e compreensão do sujeito (MISKOLCI, 2009). Para Louro (2001) a teoria queer é uma vertente do pensamento ocidental contemporâneo do século XX que problematiza as clássicas noções de sujeito, identidade, agência e identificação. A autora ainda acrescenta que queer é o sujeito excêntrico, da sexualidade desviante, que não quer ser integrado ou tolerado pelos moldes tradicionais da sociedade, com isso assume uma posição ambígua que perturba, incomoda e provoca as normas sociais de regulação impostas (LOURO, 2004). Inicialmente foi nas obras e escritos de Michel Foucault e Jaques Derrida que os teóricos queer encontraram aporte teórico e metodológico para fundamentar suas questões sobre identidade. De acordo com Miskolci (2009), o ponto inicial foi a afirmação de Foucault, em seu livro História da Sexualidade I: A Vontade de Saber (2005), que a sexualidade é um dispositivo de poder. Justifica sua posição assegurando que o sexo está afirmado no discurso, pronunciado pela igreja, pela psiquiatria, pelo direito, entre outros que produzem um tipo de classificação de sexualidades e o modo de controle sobre elas (LOURO, 2001). Para os teóricos queer esta é uma importante afirmação, uma vez que a construção discursiva das sexualidades e esta como um dispositivo de poder faz com que a sociedade esteja engajada em um conjunto de práticas e discursos Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.574 heteronormativos que servem a manutenção de poder de elementos que regulam a vida social. Logo, a figura da mulher também representada e regulada por esta mesma normativa. Somado a isso, se tem o método desconstrutivo de Derrida, essencial para os queer pensarem os processos que criam os sujeitos hegemônicos. Para Derrida a lógica do ocidente trabalha com binarismos e só há a possibilidade de algo hegemônico, se há a possibilidade de seu contrário, como inferiorizado e subordinado (MISKOLCI, 2009). O primeiro termo é sempre entendido como superior e o outro sendo seu derivado, logo inferior. Para Louro (2001), Derrida entende a desconstrução como o único processo que possibilita a desarticulação dessa lógica, de maneira que algo pudesse rever, desestabilizar e desordenar estes pares. “Desconstruir um discurso implicaria em minar, escavar, perturbar e subverter os termos que afirma e sobre os quais o próprio discurso se afirma” (LOURO, 2001, p. 548). Sendo assim, os teóricos queer, começam a compreender que a heterossexualidade só existe em oposição a homossexualidade, negativizada e inferiorizada. A desconstrução, para os teóricos queer, é importante neste caso, já que tornaria manifesto a fragmentação dos pólos e como se constituem como interdependentes, indicando como cada um possui aspectos um do outro e assim depende do outro para fazer seu próprio sentido (LOURO, 2001). É uma reflexão que denuncia que a ordem social contemporânea é baseada em uma ordem sexual, estruturada no dualismo hetero/homo, valorizando a heterossexualidade, por meio do dispositivo de poder enunciado por Foucault (2005), que a torna natural, de modo a não somente referir-se aos sujeitos normalizados, mas sim com a finalidade de constituir a todos os indivíduos sujeitos heterossexuais, modelo supostamente coerente e natural (MISKOLCI, 2009). Este contexto teórico compreende o conceito de gênero como o produto de um discurso de identidade incorporado por relações de poder, de modo que o gênero o qual um sujeito pertence, não é mais que uma mera e superficial ideia registrada em algum corpo. Para autores como Butler (1999), Foucault (2005), Louro (2001), a normativa da sociedade baseada na organização do gênero, serve para regulação da sexualidade, na tentativa de deslocar a posição política deste conceito, para uma posição de essência ao ser humano. O corpo assume essa normativa, por meio dos discursos e dos sinais por ele produzidos, portanto, para Butler (1999), os corpos são performativos, por performarem os sinais criados pela cultura, e assim, produzirem suas realidades. Destarte, o corpo não é constituído, mas pode ser compreendido como uma superfície regulada pelo poder segundo a imposição do gênero, permeado pelo posicionamento da heterossexualidade (BUTLER, 1999). Portanto, a heterossexualidade, entendida como natural e compulsória no ser humano, revela uma sexualidade dual, que conecta sexo, gênero e desejo. A ideia de Butler é justamente propor o gênero como performance, a fim de demonstrar que ele é formado, construído e não um atributo dado naturalmente (BUTLER, 1999). Considerações estas sobre as relações de gênero, que perpassam a mulher na sociedade, e como suas representações e suas imagens são valorizadas como verdades inquestionáveis e delimitadas por uma ótica normativa. A feminista Teresa de Lauretis (1994), ao pensar sobre a questão do feminismo, indica os procedimentos e técnicas Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.575 sociais, como tecnologias de gênero, capazes de produzir subjetividades, em uma realidade atravessada e regulada por discursos e imagens. Neste sentido, a construção das relações de gênero são representativas de veiculações de discursos e de imagens, publicados nos diferentes meios de comunicação. A legitimação do empoderamento dos movimentos feministas, sob a ótica de classe, gênero e raça, é repassado por meio de uma "cultura da mídia" (KELLNER, 2006), que “não aborda apenas grandes momentos da experiência contemporânea, mas também oferece material para fantasia e sonho, modelando pensamento e comportamento, assim como construindo identidades” (KELLNER, 2006, p. 119). Nos últimos anos, se tem a indústria cultural como a possibilidade de multiplicação da vida cotidiana, como princípio que organiza as relações políticas e econômicas da sociedade. A formação de ideias e a construção de conceitos acabam sendo intermediados pela "sociedade do espetáculo" (DEBORD, 1967), termo desenvolvido pelo teórico francês Guy Debord, ao afirmar que o espetáculo "unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes" (DEBORD, 1967, p. 10). Descreve, então, uma sociedade organizada pela mídia, em torno de produções e consumo de imagens e mercadorias, incorporando valores básicos dos sujeitos, doutrinando seus estilos de vida (KELLNER, 2003). Segundo o autor Kellner (2006) a cultura da mídia possui forte influencia sobre o pensamento e a ação dos sujeitos da sociedade de consumo, uma vez que os envolvem em semióticas do mundo do entretenimento, da informação e do consumo. O autor afirma também que a lógica do espetáculo regula e controla as questões políticas e econômicas presentes no contexto social. Entre outros, para Kellner, o cinema é um dos instrumentos da cultura de mídia, em uma perspectiva de entretenimento, capaz de insinuar um "mundo de glamour, publicidade, moda e excessos" (KELLNER, 2006, p. 129). Como espetáculo, o cinema contemporâneo é a expressão de imagens, ressaltando o estilo e a aparência, que se tornam características cada vez mais importantes na construção da identidade e na representação do próprio eu dos sujeitos, ao trazer no bojo de sua apresentação os espetáculos midiáticos como norma de comportamento (KELLNER, 2006). As produções cinematográficas, maquiadas pela ideia de máquina que obedece a leis, ocultam seu caráter ideológico, pelo efeito que converte a realidade da representação cinematográfica e a construção de um sujeito espectador que transcede ao apreciar o enredo como uma experiência real (CASSETI, 1999). A linguagem cinematográfica, como a iluminação, a movimentação da câmera, o enquadramento, a composição das imagens, servem à indústria cultural como instrumentos importantes para construção de significados, somado a isso, a maquiagem, os atores, os cenários, os figurinos, aproximam este significado à realidade do enredo, da história contada para atingir e significar o público (GUBERNIKOFF, 2009). São elementos cinematográficos, utilizados como artifícios contundentes para a representação de um mundo coerente, com uma realidade possível e passível de ser alcançada. O cinema é particularmente propenso a dar essa aparência de “naturalidade”, devido às suas qualidades significantes específicas, em especial pelo fato de que a Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.576 imagem fílmica, ao fundamentar-se no registro potencial da fotografia unido à projeção de uma imagem aparentemente móvel, apresenta toda a aparência de ser “uma mensagem sem código”, uma duplicação não mediatizada do “mundo real”(KUHN, 1991, p. 99). O cinema, portanto, por meio destes elementos, possui importante papel no que se refere a forma como a sociedade encara determinadas imagens, atitudes, comportamentos, ações, representações. As produções cinematográficas, como integrantes da sociedade do espetáculo, podem denunciar papéis e construir conceitos. Nesta perspectiva, o conceito de mulher e seus desdobramentos, são construídos também pela influencia da sétima arte e suas produções de imagens, na vida cotidiana dos sujeitos. Afirma-se que o cultural é uma área de intervenção da ideologia, e se a imagem representada da mulher é uma imagem estereotipada, pode-se dizer que a construção social da mulher, aquela trabalhada pelas diferentes mídias (seja por revistas e anúncios, seja por cinema e televisão) é baseada em critérios preestabelecidos socialmente e impõe uma imagem idealizada da mulher. (LAURETIS, 1978, p. 28). A afirmação da autora Teresa de Lauretis ressalta a discussão sobre o papel da mulher, representado pela cultura de mídia, especialmente o cinema, de forma que esta imagem pode ser enviesada por estereótipos que oprimem e anulam o papel da mulher na sociedade, mascarando sua possibilidade de atuação política e empoderamento (GUBERNIKOFF, 2009). A pluralidade de discursos, apresentados pelo cinema, resulta em uma pluralidade de significados que circulam no contexto social, sendo então, incorporados pela construção social dos sujeitos. A autora Lauretis (1978) ressalta esta questão, colocando em emergência a produção e reprodução de significados do cinema no que se refere a sociabilidade e subjetividade dos sujeitos, portanto, deve ser encarado como um "processo semiótico no qual o sujeito é continuamente engajado, representado e inscrito na ideologia" (LAURETIS, 1978, p. 37). O cinema, ao produzir imagens, marca posições e papéis sociais, exprimindo e impondo crenças em um quadro imaginário da coletividade. Neste sentido, a imagem é categoria fundamental para compreender a potencialidade do cinema, ao conferir sentido e significado de valor, as próprias imagens produzidas. O autor Guiles Deleuze (1992) questiona o conceito de imagem ao falar sobre cinema. Para o autor, a imagem, no cinema, está além do que se vê, compondo a possibilidade de ser algo legível, passível de leitura do que se observa. Isso se explica pelo fato de se poder ver na imagem e também por trás dela, portanto, o cinema se constitui como produtor de realidade (DELEUZE, 1992). Se assim o cinema imagens de entretenimento, significado que posicionam o novos conceitos, portanto, é se constrói, ele é responsável por produzir mais que produz também imagens que convergem em afeto e espectador diante da formação e construção de antigos e possível considerar a forte relação entre o cinema e a Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.577 construção de papéis sociais, nos comportamentos, pensamentos, ações e representações da vida cotidiana. Assim, compreende-se que o cinema ao produzir imagens, confere-se em um dispositivo de processos de subjetivação, uma vez que, as imagens são bases fundamentais para a construção de gêneros. O gênero é a representação da qual não se pode negar as implicações reais e concretas no social e o subjetivo compondo a vida material dos indivíduos. Ao contrário. A representação de gênero é sua construção e em um certo sentido podese dizer que a cultura e a arte no ocidente são a marca da história desta construção (LAURETIS, 1994, p. 3). A compreensão de que o cinema, por meio das imagens, é produtor de gêneros, remete a mulher, encarada pela sociedade como reflexo da família patriarcal, a qual a hegemonia masculina, permeada por dominações e formas de poder, atravessa a subjetividade da mulher, marcando sua vida, suas ações e seus pensamentos. Devido a isso, aceitam os estereótipos dados a si mesma, que são carregados por uma cultura patriarcal. A arte não se exime dessa condição. Ao buscar uma produção artística feminina, capaz de denotar uma estética feminista, encontra-se um movimento cultural dominado pelos homens e por suas formas de construir arte, baseados no modelo patriarcal, que normatiza as vivências sociais. A autora Silvia Bovenschen, em seu texto “Existe Uma Estética Feminista”? (1985) aponta que a arte tem sido produzida pelos homens e que eles têm definido os critérios normativos para valorizá-la, acrescenta que as mulheres que entram neste contexto artístico, aceitam este sistema de valores, uma vez que, desde muito cedo, são forçadas a aceitar a perspectiva masculina como verdade. A proposta deste texto traz no bojo da discussão a reflexão de uma estética feminina no contexto do cinema brasileiro, possibilitando a relação com os apontamentos realizados por Bovenschen (1985) no que se referem à demarcação masculina atravessada nas escassas produções femininas. O ano de 2002 refere-se a um marco do cinema brasileiro, por apresentar a característica da nacionalidade, confirmando uma estética brasileira (BRASIL, 2013). Este marco é inaugurado pelo filme Cidade de Deus, de direção de Fernando Meirelles, porque apresenta o início de grandes produções nacionais, com altos investimentos de recursos. Neste contexto, de 2002 até o ano de 2012, de acordo com a Agência Nacional de Cinema - ANCINE (2013) foi lançado um total de 453 filmes brasileiros, de longas metragens, caracterizados no gênero ficção e animação. Destes, apenas 63 são assinados por pelo menos uma mulher na direção geral. Números estes que expressam a pouca incidência de mulheres na direção do cinema nacional, apresentando um cenário dominado por homens e, em sua maioria, por suas perspectivas masculinas. Números que vão ao encontro da afirmação de Bovenschen (1985), de que é rara a presença das mulheres no campo da arte, sendo o cinema nacional aqui entendido como produção artística: “E incluso esa rareza se mide siempre em términos de las normas de produción que opera dentro del marco estabelecido de la división del trabajo artístico, marco que no abarca formas de Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.578 creatividad social” (BOVENSCHEN, 1985, p. 28). A afirmação da autora aponta a arte como sendo produzida principalmente por homens e por suas normas de produção de trabalho artístico. O homem domina e controla este setor, definindo seus critérios e as poucas mulheres que se inserem, ainda o fazem de forma que aceita o sistema de valores normatizados pela perspectiva masculina. O fato é que a cultura patriarcal, faz com que as mulheres se conformem com a imagem masculina delas mesmas, de modo que, aspectos femininos verdadeiros, instâncias de resistências e de unidade feminina, têm sido contidas e forjadas nas produções artísticas (BOVENSCHEN, 1985). Las mujeres artistas pasan por la historia como meras sombras, aisladas unas de otras. Dado que suas hazañas quedaron em su mayoría sin efecto y sus creaciones fueron, com escasas excepciones absorbidas em la tradición masculina, no esposible construir retrospectivamente uma contra-tradición independiente (BOVENSCHEN, 1985, p. 32). Analisar a produção cinematográfica de mulheres no período de uma década é a busca da compreensão de novas fronteiras das relações de gênero e suas formas atuais de expressão, pelo fato de que com a intensificação do movimento feminista, criaram-se uma gama de expectativas sobre a possibilidade de autonomia e empoderamento das mulheres. Empoderamento este ainda muito reticente no campo da produção do cinema nacional, por encontrarem-se presas ao processo de produção masculino de pensar e de sentir a composição cinematográfica. Percebe-se que a relação das mulheres na sociedade acaba construindo interações e novas formas de sociabilidade da mulher com seu próprio enredo social. Entretanto, ao se apresentar números de filmes brasileiros feitos por mulheres, não se pode compreender se estas novas relações estabelecidas realmente exprimem igualdade de oportunidades em relação aos homens e se são capazes de eliminar marcas históricas e culturais da segregação, entre homens e mulheres, tão conhecida no âmbito das discussões das relações de gênero. Apresentar a pouca quantidade de filmes nacionais produzidos por mulheres é a tentativa de demonstrar como a produção artística das mulheres está forjada pelo poder de uma sociedade masculina, heteronormativa e como o campo do cinema brasileiro, importante mídia, altamente em desenvolvimento, é atravessado por este pensamento patriarcal. Ao pensar em mulheres como cineastas, espera-se que estas criem e expressem uma estética feminista e que esta seja uma expressão do ver e do sentir, das dificuldades em representar um sentido tão abstrato e que tem sido objetivado ao extremo (BRÜCKNER, 1985). Isto porque, para Silvia Bovenschen (1985), as mulheres não podem também polarizar a sociedade a favor do feminino, abandonando uma dualidade em função de outra, elas precisam desenvolver uma nova forma de produtividade e de racionalidade, a fim de representar o princípio da feminilidade, abrangendo as atividades estéticas que constituem um importante aspecto da realidade. A exploração da possibilidade de se pensar uma estética feminista no contexto do cinema brasileiro revela a urgente feminização da produção do cinema nacional, pensando o cinema como expressão artística, capaz de relacionar arte como movimento Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.579 político, para que este seja veículo de expressão feminina, de ocupação de espaços comuns aos homens. Algo que poderá ensejar a autonomia feminina e revelar-se em importante instrumento de empoderamento das mulheres na sociedade. Referências: ANCINE, Agência Nacional do Cinema. Observatório Brasileiro de Cinema e Audiovisual. Listagem de Filmes Brasileiros Lançados de 1995 a 2012. In http://oca.ancine.gov.br/filmes_bilheterias.htm, acesso em 15 de março de 2013. BADINTER, Elisabeth. Rumo equivocado: o feminismo e alguns destinos, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity, New York: Routledge, 1999. BRASIL, Ministério da Cultura. Cinema Brasileiro. Disponível em http://www.brasil.gov.br/sobre/cultura/cinema, acessado em 07 de abril de 2013. BRUCKNER, Jutta. Mujeres Tras La Camara. In. In. Estetica Feminista, ECKER, Gisela (org.), Icara Editora, 1985. BOVENSCHEN, Silvia. Existe uma estética feminista? In. Estetica Feminista, ECKER, Gisela (org.), Icara Editora, 1985. CASSETI, Francesco. Teorias do Cinema: 1945-1995. Austin: University of Texas, 1999. D’ÁVILA NETO, Maria Inácia. O autoritarismo e a mulher: o jogo da dominação macho-fêmea no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Artes & Contos, 1994. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1967. DELEUZE, Gilles. Dúvidas sobre o imaginário. In DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005. GUBERNIKOFF, Giselle. A imagem: representação da mulher no cinema. Conexão Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 8, n. 15, jan./jun. 2009 KELLNER, Douglas. Media spectacle. London: Routledge, 2003. KELLNER, Douglas. “Cultura da mídia e triunfo do espetáculo” In: MORAES, Dênis de (org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. KUHN, Annette. Cinema de mulheres: feminismo e cinema. Madri: Cátedra Signo e Imagem, 1991. HALL, Stuart.; A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LAURETIS, Tereza De. Alice doesn’t: feminism, semiotics, cinema: an introduction. London: the mainillan press, 1978. LAURETIS, Teresa De. Technologies of Gender: Essays on Theory, Film and Fiction. Bloomington:Indiana University Press, 1989. IN: HOLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro, Rocco, 1994. LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: ______ (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2 ed. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2001. LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. MISKOLCI, R. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.580 normalização. Sociologias. Porto Alegre, ano 11, v. 1, n. 29, 2009. MONTEIRO, Marko Synésio Alves. Sujeito e Fragmentação: Uma Visão de Gênero, Rev. Linhas, Vol. 7, No 1, 2006. MONTORO, Tania. Velhices e envelhecimentos: dispersas memórias na cinematografia mundial. In: MENDONÇA, M. L .M.(Org). Mídia e Diversidade Cultural: experiências e reflexões. Brasília: Casa das Musas, 2009. RODRIGUES, Fabiana. O papel da mulher no cinema brasileiro contemporâneo. 8º Congresso Lusocom: Comunicação, Espaço Global e Lusofonia, 2009. Disponível em http://conferencias.ulusofona.pt/index.php/lusocom/index/about, acesso dia 11 de fevereiro de 2013. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.581