Shutterstock MEIO AMBIENTE A seca Lei paulista recém-aprovada diminui áreas de vegetação em propriedades rurais e pode colocar em risco o já frágil equilíbrio do ciclo da água, agravando a crise hídrica no Estado 22 • Abril 2015 • REVISTA DO IDEC fabricada D e onde vem a água que abastece São Paulo? A resposta mais fácil é pensar nas represas, como a Cantareira. Mas a história começa bem antes: até encher as represas, ela percorre um longo caminho. Entre os mecanismos fundamentais nesse processo estão as áreas cobertas com vegetação nativa, que funcionam como uma “fábrica de água”. “A vegetação e o tipo de cobertura vegetal determinam o quanto [da água da chuva] infiltra e o quanto escorre pela superfície do solo”, explica o engenheiro agrônomo Luís Fernando Guedes Pinto, gerente do Instituto de Manejo e Certificação Florestal (Imaflora). Outra personagem importante nesse enredo é a mata ciliar, a vegetação que ocupa as margens dos rios. Ela atua como um filtro, que barra a poluição e impede que a água barrenta que vem das encostas desmatadas encontre o curso d’água. Essa barreira evita o assoreamento do rio (acúmulo de sedimentos) e mantém a água mais limpa. Veja na página 24 como funciona o processo. Apesar do papel fundamental das matas para o ciclo da água, em janeiro deste ano o Governo do Estado de São Paulo aprovou a Lei Estadual no 15684/2015, apelidada de “Código Florestal Paulista”, que desprotege es- Shutterstock sas áreas: ela reduz a extensão de vegetação nativa e de mata ciliar que deve ser mantida por proprietários rurais e, além disso, perdoa propriedades que estavam irregulares de acordo com a legislação anterior. A lei paulista é parte do Plano de Readequação Ambiental do Estado e regulamenta a aplicação do Novo Código Florestal Brasileiro, lei federal aprovada em 2012. A partir do Código, ficou sob responsabilidade dos estados regulamentar como ele seria implementado em cada local. “A lei paulista é praticamente uma cópia da nacional, e pouco adiciona em proteção”, critica Guedes Pinto. “As áreas de proteção permanente (APPs) diminuíram: uma área que antes tinha de ter 30 metros de cada lado, agora pode ter 15 metros, assim como as faixas de recuperação de nascentes. Também foi reduzida a área total de uma fazenda que deveria ter floresta”, exemplifica. A medida causa preocupação sobretudo porque pode agravar a crise de falta d’água já instalada em São Paulo. Ao lado de organizações ambientalistas, o Idec pediu o veto total do projeto de lei, mas o governador Geraldo Alckimin baniu apenas alguns artigos. “Os vetos melhoram o PL aprovado pela Assembleia [Legislativa], mas ainda assim, a lei contém diversos pontos controversos”, afirma Renata Amaral, engenheira ambiental e pesquisadora do Idec. Assim como São Paulo, a maioria dos Estados está alinhando a sua regulamentação aos parâmetros do Código Florestal Nacional; nenhum adotou medidas mais rígidas. Em alguns, como Santa Catarina, a legislação está sendo ainda mais flexibilizada para não interferir nas atividades econômicas imediatas. LEI MUDOU PARA PIOR O novo Código Florestal Brasileiro, de 2012, mudou para pior vários dispositivos do Código anterior, de 1965. “A lei anterior estabelecia metragens para reserva legal e mata ciliar fundamentadas na segurança das populações e na preservação dos ecossistemas. Encostas, topo de morro e fundo de vale eram consideradas áreas de preservação permanente, porque são áreas de risco se ocupadas. Rios e nascentes eram preservados com 50 metros de vegetação nativa no entorno para possibilitar o reabastecimento dos aquíferos e a perenidade das nascentes”, explica Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da ONG SOS Mata Atlântica. A lei paulista seguiu a mesma lógica de retrocesso. Assim como no Código Florestal Nacional, uma das perdas do ponto de vista ambiental foi regularizar as chamadas “áreas consolidadas”: os locais em que já havia desmatamento, pastos, agricultura e atividades humanas receberam anistia – ou seja, foram regularizadas. Para tanto, a propriedade tem apenas que se adequar a requisitos mínimos, muito mais flexíveis do que a legislação anterior exigia. Os ambientalistas criticam que o código deixou de ser florestal e passou a funcionar como um código rural. “O anterior protegia a floresta como reserva legal, enquanto a nova lei passa a estabelecer usos permissivos, sem levar em conta a dinâmica da natureza”, diz Ribeiro. “O foco se tornou a regularização de atividades rurais. Contudo, sem impor nem sugerir técnicas agrícolas mais sustentáveis como forma de compensar as perdas”, complementa. Para minimizar o problema, algumas medidas mais exigentes devem Um dos problemas da lei paulista é a regularização de áreas consolidadas: proprietários de locais onde havia desmatamento irregular podem ser perdoados REVISTA DO IDEC • Abril 2015 • 23 MEIO AMBIENTE passar a ser aplicadas em regiões consideradas estratégicas, como a bacia do Cantareira e do Alto Tietê. Nesses locais, as normas de reflorestamento vão seguir padrões diferenciados, com extensão de mata nativa maior. “Na Cantareira, as áreas de proteção permanente terão de 30 a 60 metros. O DAEE [Departamento de Águas e Energia Elétrica] e a Sabesp têm termos de compromisso de ajuste e de recuperação ambiental para cada obra que fazem”, conta Malu Ribeiro. Uma vez iniciado o reflorestamento, é possível colher resultados em três a cinco anos. “[O reflorestamento] segura a encosta, melhora infiltração da água no lençol freático e mantém o solo úmido, evitando o processo de aridez”, explica a ambientalista. Mas ela alerta: “Precisamos ficar atentos para que a Assembleia não derrube os vetos [à atual lei paulista] e para que os Comitês de Bacia [órgãos colegiados que atuam na gestão de recursos hídricos] definam como áreas prioritárias para os reflorestamentos o Alto Tietê, Piracicaba e Ribeira”. ALTERNATIVAS Para evitar “zerar” matas, uma ferramenta existente no Estado de São Paulo é o Cadastro Ambiental Rural (CRA), que pode ser usado para “forçar” o proprietário rural a reflorestar o local, delimitando as áreas de proteção permanente e as de reserva legal a serem cumpridas em um prazo de 20 anos. Segundo a coordenadora da SOS Mata Atlântica, no entanto, houve pouca adesão ao CRA, mesmo com a proposta de anistiar quem estava irregular. Ambientalistas apostam que associar os financiamentos rurais ao cadastramento é a melhor maneira de comprometê-los com as metas mínimas de reflorestamento. Cissa Wey, secretária geral da WWF Brasil, aposta em ferramentas que restrinjam o acesso a crédito como medida eficaz para resgatar a função O ciclo da água e o abastecimento urbano 1 Entenda o caminho percorrido pela água até chegar às torneiras e porque desproteger a vegetação compromete o equilíbrio desse ciclo 2 7 5 3 8 9 4 A chuva se infiltra nas áreas de mata nativa, forma o lençol freático, brota em nascentes, forma rios e chega nas represas 6 Cidade 11 pública da água. “A água é um bem público que passa por terras privadas. O agricultor que precisar pedir dinheiro para o governo deve estar em dia com a lei”, disse durante o seminário Crise da água em São Paulo: contexto e responsabilidades, promovido pelo Sesc-SP e pela Aliança Pela Água, em março, do qual o Idec participou (saiba mais sobre o evento na página 30). Essa noção de que a água é um bem público em terras particulares foi bem-sucedida em muitos lugares, como em Nova York. A cidade norte-americana investiu US$ 1 bilhão na recuperação de mananciais, remunerando o proprietário que cuidasse de suas nascentes. A economia estimada dessa medida é de cerca de US$ 7 bilhões, segundo afirmou Samuel Barreto, especialista em recursos hídricos e gerente da organização The Nature Conservancy no Brasil, durante o seminário do mês passado. “Temos um exemplo similar na cidade de Extrema, Minas Gerais, em que a recuperação de nascentes por meio da remuneração de seus proprietários teve ótimos resultados”, contou. PROBLEMA DE DÉCADAS Há muitas leis que deveriam ter preservado matas ciliares e definido reserva legal no Estado, mas algumas nunca foram sequer regulamentadas. Outras simplesmente não foram cumpridas pela dificuldade de fiscalização. “Estaríamos em uma situação mais cômoda se tivéssemos, a partir de 1997, feito todas as leis de mananciais serem cumpridas”, diz o ambientalista Fabio Feldmann. Quando secretário do Meio Ambiente, Feldman propôs uma regulamentação que impedia a ocupação de áreas estratégicas para o abastecimento hídrico. Ele defende uma legislação mais rígida para a Billings e a Guarapiranga – localizadas em áreas urbanas e povoadas, de onde é quase impossível remover a população instalada –, a fim de coletar todo o esgoto, reduzir a ocupação clandestina e manter a vegetação local. “Uma das lições da crise hídrica é que temos de conservar melhor esses mananciais. É preciso estimular atividades que mantenham a vegetação e garantir que não seja lançada poluição doméstica e industrial clandestina”, diz. Precipitação 1 Com as mudanças climáticas, o regime de chuvas fica mais extremo, com precipitação intensa em alguns períodos e secas prolongadas em outros 2 Topos de morros e encostas A mata nativa ajuda a chuva a se infiltrar lentamente no solo e formar o lençol freático, que armazena a água Nascentes 3 São o afloramento natural de água subterrânea localizada em áreas onde o terreno se fragmenta. As nascentes dão origem aos cursos d’água, como ribeirões, rios e riachos Reserva legal 4 A reserva legal é a área mínima da propriedade que deve ser mantida com mata nativa. No estado de São Paulo, corresponde a 20% da propriedade Mata ciliar 5 Sua função é proteger o rio de assoreamento 10 Roberto Bezerra e manter a água limpa. Junto com a vegetação nativa ao redor de nascentes, compõe as áreas de preservação permanente (APPs) Pasto 6 Áreas sem vegetação nativa, como os pastos ou lavouras, não favorecem a infiltração da água da chuva e, durante enxurradas, ficam mais suscetíveis à erosão Assoreamento 7 Encostas desmatadas ficam mais vulneráveis ao assoreamento. A chuva carrega o sedimento, sujando a água dos rios e destruindo o solo Represas 8 As represas são formadas pela contenção de rios e, quanto melhor a qualidade da água e mais protegidas as bacias que as alimentam, mais estável e barato é o fornecimento de água na região que depende do sistema Estação de tratamento de água 9 Se o ciclo da água é bem mantido, ela passa por uma estação de tratamento e é distribuída com boa qualidade para a população 10 Estação de tratamento de esgoto O ideal é que 100% do esgoto seja tratado antes de ser devolvido aos cursos d’água. No entanto, a rede é incompleta e boa parte das residências despeja esgoto em cursos d’água, comprometendo a qualidade do recurso para consumo humano e tornando seu tratamento mais caro Captação de água dos rios 11 No Brasil, a maior parte das cidades é abastecida diretamente de rios, sem ajuda de reservatórios. Por isso é fundamental manter rios despoluídos e não interferir no sistema de nascentes que os alimenta Fontes: Luciana Travassos (especialista em planejamento hídrico) e Renata Amaral (Idec) REVISTA DO IDEC • Abril 2015 • 25