Introdução
Em abril de 1941, Al Bowlly, um dos mais aclamados cantores britâni‑
cos, gravou uma nova canção da autoria de Irving Berlin, nos estúdios de
Abbey Road, em Londres. «When that man is dead and gone» (Quando
aquele homem estiver morto e enterrado) acabaria por se tornar uma das
canções mais populares durante a guerra. A canção dizia que Al Bowlly
ansiava pelo dia em que «chega a notícia/que o Satanás de bigode» era en‑
terrado «no quintal». A canção, embora composta pelo americano Irving
Berlin, resumia o estado de espírito do povo britânico em 1941, que via
Hitler como uma figura ridícula, mas perigosa, cuja morte seria celebra‑
da. Mas nem sempre fora esse o caso.
Mesmo por altura da «Guerra Falsa», ou aquilo a que alguns cha‑
maram «Guerra Aborrecida», do inverno de 1939‑40, havia um número
considerável de pessoas a defender que se chegasse a um acordo com o di‑
tador alemão. Dentro de um ano, isso mudaria. As atitudes exaltaram‑se
devido à humilhação da evacuação de Dunquerque em maio de 1940 e à
Batalha da Grã‑Bretanha que ocorreu no verão e outono seguintes, mas
principalmente devido ao Blitz, que aterrorizou cidades como Bristol,
Coventry, Glasgow, Liverpool e Londres.
O próprio Al Bowlly foi uma vítima. Uma semana depois de gravar
«When that man is dead and gone», explodiu uma bomba no exterior do
seu apartamento, em Piccadilly. Deitado na cama a ler um livro de cobóis,
Bowlly teve morte instantânea.
O público britânico ouviu falar de Adolf Hitler pela primeira vez em no‑
vembro de 1923, quando este tentou assumir o controlo do governo da
Baviera, como primeiro passo para derrubar a República de Weimar. Mas
o seu despertar político começou na Primeira Guerra Mundial.
A ideia de combate é tão antiga quanto a própria vida,
pois a vida só pode ser preservada se outros seres vivos
perecerem.
Adolf Hitler, 1928
23
A 1 de agosto de 1914, Hitler foi fotografado no meio de uma multi‑
dão que se tinha reunido para comemorar o rebentar da Primeira Guerra
Mundial na praça Odeonsplatz, em Munique. Mais tarde, escreveu no
Mein Kampf que «agradecia aos céus, do fundo do coração, a bênção de
ter podido viver numa época como aquela». A guerra era uma «salvação
da angústia que me afligia durante a juventude».
Essa angústia começou nos primórdios da infância. Adolf Hitler
nasceu em 1889, na cidade de Branau am Inn, na Áustria. O seu pai,
Alois, era um homem de mau temperamento, autoritário e imprevisível,
frequentemente embriagado. De acordo com a sua irmã mais nova, Pau‑
la, Adolf era espancado diariamente. A sua mãe, Klara, era muito mais
nova do que o marido, e ambos eram parentes próximos. Klara tratava‑o
por «tio». Mais tarde, Hitler revelaria que ela se sentava à porta da sala,
à espera que terminassem os espancamentos para poder reconfortar o
filho. Nas palavras de Paula, Klara era «uma pessoa muito afável e cari‑
nhosa» e Adolf adorava‑a. O pai faleceu quando Hitler tinha 14 anos e
a mãe, quando tinha 18. O médico de Klara, que tinha atestado muitos
óbitos, recordou mais tarde: «Nunca vi ninguém tão destroçado como
Adolf Hitler.»
Hitler já tinha sofrido um desgosto, ao não conseguir uma vaga
como estudante de Arquitetura na Academia de Belas‑Artes de Viena,
pouco antes da morte da mãe. Depois do seu funeral, em 1907, Hitler re‑
gressou à capital austríaca. Viveu em hospedagens baratas e, após algum
tempo a dormir em bancos de jardim, mudou‑se para uma pousada mas‑
culina. Requereu apoio financeiro de forma fraudulenta — fazendo‑se
passar por estudante — e complementou esses ganhos com a venda de pe‑
quenos quadros e desenhos, mas levava uma vida indolente. Levantava‑se
ao meio‑dia e ficava a pé até tarde, a trabalhar em grandiosos projetos
de arquitetura: projetando castelos, teatros e salas de concertos. Escreveu
óperas e peças de teatro. Cada projeto começava com uma euforia maní‑
aca, mas nenhum chegava a ser terminado. Os seus sonhos ambiciosos
eram alternados por períodos de depressão.
Houve algum empreendimento duvidoso, algum tipo de
obscenidade, especialmente na vida cultural, em que não
tenha participado, pelo menos, um judeu? Ao espetar a
faca da investigação nesse tipo de abcesso, descobria‑se
imediatamente, como o verme num corpo putrefacto, um
pequeno judeu que frequentemente ficava encandeado
pela luz súbita.
Adolf Hitler, Mein Kampf
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Hitler envolvia‑se com frequência em discussões acaloradas nas co‑
zinhas noturnas onde ia comer pão e sopa. De acordo com um dos seus
primeiros colegas de quarto em Viena, o judeu‑checo August Kubizek,
aos 19 anos, Hitler discutia com todos e tinha ataques de ódio. O an‑
tissemitismo de Viena, exprimido grosseiramente em infinitos panfletos
baratos, deu‑lhe uma oportunidade de concentrar os seus sentimentos
de fúria e ressentimento. Quando escreveu Mein Kampf, 15 anos depois,
afirmou que esse tinha sido o período que dera forma à sua perspetiva
da vida: «Desde então, alarguei muito pouco esse fundamento e nunca o
alterei.»
Esta agressividade supurante encontrou um novo escape na
Primeira Guerra Mundial. Hitler foi aceite no exército alemão como
moço de recados do regimento e, subitamente, a sua vida sem objetivos
passou a ter uma estrutura e um propósito. Nos quatro anos seguintes,
foi ferido duas vezes e duas vezes condecorado, mas nunca foi promo‑
vido acima de cabo. De acordo com um dos seus colegas do exército,
sentava‑se a um canto «de capacete na cabeça, pensativo, e nenhum de
nós o conseguia tirar daquela apatia». Era visto como um solitário, um
sonhador. O seu único amigo era um cão, um terrier branco a quem
chamou Foxl e que tinha vindo das trincheiras inglesas. De acordo com
o seu superior militar, Fritz Wiedemann, Hitler era corajoso mas estra‑
nho e não pôde ser promovido pois era evidente que não sabia impor
respeito.
Nessas noites, o meu ódio cresceu — ódio por quem
originou este crime ignóbil.
Adolf Hitler, Mein Kampf
A 10 de novembro de 1918, na véspera do Dia do Armistício, Hi‑
tler estava num hospital no Nordeste da Alemanha, a convalescer após
o seu segundo ferimento. Como referiu em Mein Kampf, um pastor en‑
trou para se dirigir aos doentes. Com pesar, disse‑lhes que a Alemanha
se tinha tornado uma república; a monarquia tinha caído; a guerra estava
perdida. Para Hitler, esta notícia tinha sido insuportável:
«Já não aguentava. Para mim, tornou‑se impossível ficar quieto por
mais um minuto. Mais uma vez, tudo ficou negro diante dos meus olhos.
Voltei para o dormitório, a cambalear e às apalpadelas, e depois atirei‑me
para o meu beliche e enfiei a cabeça no cobertor e na almofada; tinha a
cabeça a latejar.
Não chorava desde o dia em que tinha estado na sepultura da mi‑
nha mãe… mas agora não conseguia evitar…
25
Então, tinha sido tudo em vão… Teria tudo isto acontecido para que
um gangue de criminosos miseráveis pudesse deitar a mão à terra pátria?
Eu, pela minha parte, decidi ir para a política.»
Um homem — ouvi dizer que um homem… Um
desconhecido, esqueci‑me do seu nome. Mas se alguém
nos pode libertar de Versalhes, é este homem. Este
desconhecido vai restituir a nossa honra!
Rudolf Hess, maio de 1920
Depois de sair do hospital, Hitler foi viver para Munique e começou
a frequentar reuniões políticas. Fez o seu primeiro discurso em público
a 16 de outubro de 1919, numa cervejaria, num subúrbio de Munique,
para um público de 111 pessoas. Falou até ficar exausto e a suar, soltando
uma torrente de ódio contra o sistema político, frustração perante a hu‑
milhação da derrota da guerra de 1914‑18 e determinação para derrubar
os traidores que tinham assinado o Tratado de Versalhes, em junho. Hi‑
tler ficou em êxtase ao descobrir que «o que sempre sentira, do fundo do
coração… provou ser verdade. Sabia fazer um bom discurso». O público
ficava extático com a sua intensidade rude. Estava a dar voz ao sofrimento
de pessoas que se sentiam indefesas e a oferecer a esperança de um futu‑
ro glorioso a pessoas que se sentiam derrotadas. No espaço de semanas,
começou a atrair grupos de 400 pessoas; no mês de fevereiro seguinte,
dirigiu‑se a 2000 pessoas, enfiadas numa enorme cervejaria, no centro da
cidade. As pessoas subiam para cima das mesas e rugiam enquanto Hitler
gritava injúrias aos judeus. Houve aplausos tumultuosos quando decla‑
rou: «O nosso lema é simplesmente a luta! Avançamos determinados em
direção ao nosso objetivo!»
Em julho de 1921, Hitler já tinha assumido a liderança do Natio‑
nalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, NSDAP, mais tarde conhecido
como Partido Nazi. No outono de 1923, Hitler já tinha reunido mais de
55.000 seguidores, mil vezes mais do que o partido tinha quando este
aderiu, como 55º membro. Inebriado por este sucesso e inspirado pela
bem‑sucedida «Marcha sobre Roma» de Mussolini no anterior mês de
outubro, Hitler decidiu tentar um golpe — conhecido mais tarde como
o Putsch da Cervejaria — e afirmar a sua posição como líder de todos os
grupos de protesto antirrepublicanos de Munique. O putsch foi planeado
num dia e executado no seguinte.
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Um homem de pequena estatura… com a barba
por fazer, o cabelo despenteado e tão rouco que mal
conseguia falar.
Descrição de Hitler numa reportagem do Times
sobre o Putsch da Cervejaria de Munique
Na noite de 8 de novembro, Hitler entrou de rompante numa cerve‑
jaria de Munique, onde 3000 pessoas estavam a ouvir discursos de polí‑
ticos bávaros. Estava acompanhado de um dos seus seguidores mais gla‑
morosos — o herói de guerra e incrível piloto de caças, Hermann Göring
— e uma equipa de tropas de assalto de capacete, que empurravam uma
pesada metralhadora. Hitler saltou para cima de uma cadeira, sacudindo
um chicote para cães e empunhando uma pistola. Para se fazer ouvir, dis‑
parou um tiro para o teto e depois gritou para toda a sala: «A revolução
nacional rebentou em Munique! Neste momento, toda a cidade está ocu‑
pada pelas nossas tropas. A adega está cercada por 600 homens. Ninguém
pode sair!»
A cidade não estava ocupada pelas tropas nazis e o putsch extin‑
guiu‑se ao fim de uma troca de tiros que durou 30 segundos, nos quais
morreram quatro polícias e 14 nazis. Um dos ativistas era um jovem cria‑
dor de galinhas, de rosto suave e rechonchudo e óculos. Andava de ca‑
beça erguida e carregava um estandarte com uma suástica. Chamava‑se
Heinrich Himmler.
Hermann Göring foi baleado na perna. Adolf Hitler tropeçou e des‑
locou o ombro. Ambos fugiram do local. Göring conseguiu fugir para
a Áustria, onde lhe trataram os ferimentos e lhe deram morfina para a
dor. Foi o início de um vício que duraria toda a vida. Hitler só conseguiu
chegar a casa de um amigo nos arredores de Munique e foi preso dois dias
depois. Foi julgado por traição, juntamente com outros organizadores da
marcha. Atribuíram‑lhe a pena mínima de cinco anos e, em abril de 1924,
foi enviado para a Prisão de Landsberg.
Em Landsberg, Hitler tinha um quarto espaçoso, com janelas vira‑
das para a bela paisagem campestre. Muitos dos guardas prisionais eram
membros do Partido Nazi e mostravam secretamente o seu respeito,
com saudações de «Heil Hitler». Hitler estava autorizado a receber flores
e prendas e tinha tantos visitantes que, quando atingiu os 500, decidiu
proibi‑los. Passou a maior parte do tempo a escrever, ou melhor, a ditar,
Mein Kampf, definindo uma ideologia política que nunca chegou a rever.
Argumentava que o sucesso futuro da nação alemã exigia o triunfo sobre
as conspirações malignas dos Judeus e comunistas e a expansão do terri‑
tório para Leste.
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Depois da confusão do putsch de 1923, Hitler passou dez anos a
aperfeiçoar o Partido Nazi e, com o apoio do antigo criador de gali‑
nhas Heinrich Himmler, desenvolveu as SS como uma elite militar efi‑
caz. O foco da sua ambição passou da política bávara para a liderança
nacional.
É esse o milagre da nossa era, que vocês me tenham
encontrado, que me tenham encontrado entre tantos
milhões! E o facto de eu vos ter encontrado, essa é a sorte
da Alemanha!
Adolf Hitler, 13 de setembro de 1936
A nomeação de Hitler como Chanceler da Alemanha a 30 de janeiro
de 1933 foi celebrada com enormes procissões de archotes orquestradas.
A realidade é que o Partido Nazi tinha chegado ao poder com apoio mi‑
noritário, depois de uma eleição que não conseguira formar um governo
com maioria. A Alemanha estava a padecer de uma inflação catastrófica
e alto nível de desemprego, que Hitler combateu através de um enorme
programa de construção de estradas, construção civil e rearmamento mi‑
litar. A expansão foi financiada através de enormes empréstimos, apreen‑
são de bens e impressão de moeda.
Ao mesmo tempo, Hitler introduziu políticas destinadas a destruir
a oposição. Os sindicatos e todos os outros partidos políticos foram bani‑
dos. Os opositores foram assassinados ou enviados para os recém‑criados
campos de concentração. Na busca de uma noção de perfeição racial, fo‑
ram aprovadas leis de «Higiene Racial». As relações sexuais eram proibi‑
das entre os chamados Arianos e os Judeus ou «ciganos, pretos ou a sua
prole bastarda». Foi estabelecido um programa de eugenia em segredo,
para o assassinato médico de pessoas com deficiência.
As alterações eram impostas através da violência, distribuída pelas
SS e pela recém‑criada Gestapo, e através de propaganda extravagante.
Um jovem jornalista com um doutoramento em Literatura Romântica,
Joseph Goebbels, ficou responsável por controlar os meios de comunica‑
ção. Um jovem arquiteto, Albert Speer, foi chamado para projetar o im‑
pacto visual das marchas e comícios de massas.
Minha querida esposa.
Isto é um inferno. Os Russos não querem abandonar
Moscovo. Está tanto frio, que até a alma me congela.
Imploro‑te: para de escrever sobre as sedas e botas que
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devia levar‑te de Moscovo. Não compreendes que estou a
morrer?
Adolf Fortheimer, soldado alemão, dezembro de 1941
Em 1939, Hitler refletiu sobre os feitos dos seus primeiros seis anos de
liderança, num discurso exposto no parlamento alemão, o «Reichstag»:
«Devolvi ao Reich as províncias que nos foram retiradas em 1919;
trouxe milhões de alemães profundamente insatisfeitos, que nos tinham
sido roubados, de volta à Terra Pátria; restituí a unidade histórica de mil
anos do espaço habitacional alemão; e tentei fazer tudo isto sem derra‑
mar sangue e sem infligir os males da guerra ao meu povo ou a qualquer
outro. Consegui tudo isto, sendo que há 21 anos era ainda um trabalha‑
dor desconhecido e um soldado ao serviço do meu povo, através do meu
próprio esforço…»
No final de 1938, a Renânia, a Áustria e a área da Sudetenland,
na Checoslováquia, tinham sido anexadas pela Alemanha, sem qualquer
oposição internacional. Mas a invasão da Polónia levou a que a França
e a Grã‑Bretanha declarassem guerra à Alemanha, a 3 de setembro de
1939. Sem se deixar intimidar, Hitler invadiu a Dinamarca e a Noruega
em abril de 1940, mais uma vez sem encontrar grande oposição. Então,
na primavera de 1941, as tropas alemãs foram enviadas para os Balcãs,
Jugoslávia, Grécia, Norte de África e para o Médio Oriente, e mais tar‑
de para o Iraque e Creta. O princípio do fim desta expansão gigantesca
chegou em junho de 1941, quando Hitler lançou um ataque massivo à
Rússia Soviética, infringindo um pacto de não‑agressão de 1939. Seis
meses mais tarde, declarava guerra aos Estados Unidos. No Natal de
1944, a Alemanha estava encurralada entre estas duas superpotências
em desenvolvimento.
A 15 de janeiro de 1945, Hitler fugiu à horrenda realidade da der‑
rota. Voltou rapidamente para Berlim e refugiou‑se no seu Führerbunker,
dando instruções a Albert Speer para que toda a indústria e infraestrutu‑
ra alemãs fossem destruídas. Não haveria rendição. A vitória ou a destrui‑
ção eram as únicas opções.
Havia dois bunkers por baixo do edifício da Chancelaria do Reich,
em Berlim. O mais antigo, o do piso superior, tinha sido concebido por
Albert Speer, como um abrigo antiaéreo no início nos anos 30. Foi cons‑
truído sob as caves da antiga Chancelaria do Reich e estava pronto para
ser utilizado em 1936. Um bunker inferior, que acabou por ficar conhe‑
cido como Führerbunker, foi construído em 1944. Estava localizado a 8,5
metros de profundidade, sob o jardim, e era protegido por um telhado de
betão com 3 metros de espessura.
29
Em janeiro de 1945, Hitler dormia no Führerbunker, mas trabalha‑
va nas restantes divisões da Chancelaria do Reich. No início da tarde de
3 de fevereiro de 1945, a Força Aérea dos Estados Unidos bombardeou
violentamente Berlim, criando uma bola de fogo que ardeu durante cinco
dias e infligiu os piores danos que a capital já tinha sofrido. A partir deste
momento, Hitler manteve‑se no subterrâneo.
A maioria dos membros seniores do Partido Nazi tinha levado a
família para locais seguros e saíra da capital. Apenas Joseph Goebbels
permaneceu em Berlim, a dormir num bunker luxuoso, construído sob
a sua casa de família. O líder das SS, Heinrich Himmler, tinha estado a
viver num sanatório, na bela estância de Hohenlychen, desde janeiro, a
ser tratado por stress e dores de estômago agudas. Himmler tinha‑se em
grande conta como figura de estatuto internacional e convencera-se de
que era a pessoa indicada para negociar a paz e liderar a Alemanha do
futuro. Seguindo a sugestão do seu massagista sueco, Felix Kersten, que
se tinha aproveitado da sua relação com o líder das SS para tentar libertar
prisioneiros dos campos de concentração, Himmler teve duas reuniões
secretas: uma com o Conde Folke Bernadotte, um diplomata sueco, e ou‑
tra com Norbert Masur, o representante sueco do World Jewish Congress.
O pretexto de ambas as reuniões era discutir a libertação de prisioneiros,
mas a intenção de Himmler era abrir uma via de comunicação com os
Aliados do Ocidente. Esperava que Masur acabasse com o problema da
Solução Final.
Sabem de que gostava? Gostava que tivessem
assassinado Hitler; então, haveria uma hipótese
de acabar com a guerra!
Albine Paul, apoiante do Partido Nazi, primavera de 1945
A 11 de março de 1945 houve uma cerimónia em memória das víti‑
mas da guerra, na vila de Markt Schellenberg, perto do refúgio nas mon‑
tanhas de Hitler, em Obersalzberg. No final do seu discurso, o coman‑
dante do exército local ordenou um «Sieg Heil» para o Führer. Fez‑se um
silêncio tenebroso. Nenhum dos civis, membros da Home Guard (milícia
popular) ou soldados reagiu. Naquela manhã fria, todos ficaram calados
e mantiveram o braço direito ao lado do corpo. Em centenas de comí‑
cios feitos nos 12 anos anteriores, aquelas pessoas e milhões de outras
tinham‑se levantado de um salto, hipnotizadas, para fazer «Sieg Heil» no
final dos discursos estimulantes de Hitler. O feitiço tinha‑se quebrado.
Hitler saiu à rua pela última vez no seu 56º aniversário, a 20 de abril
de 1945. Arrastou‑se pelos degraus de betão acima, do Führerbunker para
30
o jardim da Chancelaria do Reich para inspecionar um grupo de jovens,
membros da Juventude Hitleriana. Os rapazes tinham recebido ordens
para olhar em frente, por isso Armin Lehmann, de 16 anos, ficou em cho‑
que perante a aparência decrépita do Führer quando finalmente chegou
a sua vez e o líder se pôs exatamente à sua frente. Tinha as mãos a tremer
quando agarrou o braço de Lehmann e lhe puxou a manga, antes de lhe
envolver a mão com as suas. Mais tarde, Lehmann escreveu: «Não podia
crer que aquele velho decrépito que estava à minha frente era o visionário
que tinha levado a nossa nação à grandiosidade.»
Se o povo alemão não consegue arrancar a vitória ao
inimigo, então será destruído… Os Alemães merecem
perecer, pois os melhores homens da Alemanha terão
morrido em combate. O fim da Alemanha será horrível,
e o povo alemão tê‑lo‑á merecido.
Adolf Hitler, verão de 1944
Nos dias seguintes, o exército russo cercou Berlim e entrou nos su‑
búrbios. A tentativa de Göring de definir a sua posição como sucessor de
Hitler despoletou um dos piores acessos de fúria do Führer e o despedi‑
mento de Göring como líder da Força Aérea. Hitler sentia‑se traído por
todos os lados. Atribuía o desastre da guerra à incompetência dos seus
generais e, em última instância, era um fracasso do povo alemão. Quando
soube das tentativas de Himmler de negociar com o Ocidente, ficou roxo
de fúria e ordenou a sua detenção e execução.
Naquela noite, a 28 de abril de 1945, Hitler começou a tratar dos
seus assuntos pessoais. Deu ordens a Joseph Goebbels para encontrar um
oficial com autoridade para realizar um casamento civil e para procurar
alianças de casamento. Depois de Eva Braun ter insistido durante anos a
fio — «para mim, o casamento teria sido um desastre… é melhor ter uma
amante» —, Hitler tinha decidido casar com ela, a mulher que tinha sido
a sua amante secreta durante 14 anos. Depois pediu à sua secretária Trau‑
dl Junge para anotar o seu testamento final. Adolf Hitler, que durante os
12 anos anteriores tinha enfeitiçado a Alemanha, que tinha engendrado
algumas das batalhas mais extraordinárias da História moderna, estava a
preparar‑se para pôr termo à própria vida.
Este livro conta a história de segunda‑feira, dia 30 de abril, o dia que Hi‑
tler comete suicídio e também do dia anterior, em que acontecem coisas
extraordinárias, tanto no interior do bunker, como por todo o mundo, e
que ajudam a contextualizar esse dia.
31
No dia D, 6 de junho de 1944, centenas de soldados dos Aliados
escreveram sobre os acontecimentos de vida e morte que ocorreram ao
seu redor. Por vezes, assim que trepavam até ao cimo da praia, tendo‑se
desviado de balas e morteiros, sacavam um lápis e um diário. Esses
diários proporcionaram a matéria‑prima perfeita para o livro D‑Day:
Minute by Minute. Por outro lado, esperávamos que fosse difícil encon‑
trar relatos em primeira mão do final de abril de 1945 — poucas pessoas
faziam ideia de que estes seriam dias históricos. No entanto, encontrá‑
mos inúmeros diários e memórias. Era como se no meio do caos, uma
das formas de lidar com tal experiência fosse manter um diário — algu‑
mas pessoas atualizavam os seus diários quatro ou cinco vezes por dia.
Contudo, esse caos significava também que os envolvidos não
tinham uma noção exata do tempo. Armin Lehmann, ao descrever a
sua primeira visita ao bunker de Hitler, escreveu: «Estava desorientado;
não sabia se era dia ou noite. O tempo tinha‑se tornado um conceito
insignificante.» Por vezes, tivemos de fazer uma estimativa de quando
se deram os acontecimentos ou basearmo‑nos em declarações como
«mesmo antes do pôr do sol». Quando encontrámos acontecimentos
interessantes com poucas indicações exatas acerca de quando se deram,
indicámos uma data aproximada, acrescentando a expressão «aproxi‑
madamente» antes da data indicada no texto. Mas conseguimos fre‑
quentemente dar datas exatas aos acontecimentos, visto que o pessoal
militar gosta de manter um registo de tais coisas — mesmo num campo
de prisioneiros de guerra.
Para os acontecimentos decorridos no bunker de Hitler, consegui‑
mos reunir bastantes memórias e entrevistas dadas por sobreviventes. Al‑
gumas destas testemunhas oculares são mais fiáveis do que outras, mas ao
ler os seus diferentes pontos de vista e compará‑las, em busca de discre‑
pâncias, delineámos a sequência dos acontecimentos. A não ser quando
indicado em contrário, as horas assinaladas referem‑se ao fuso‑horário
alemão.
Al Bowlly cantou sobre o inferno que era o mundo de 1941, mas
que «paraíso será/Quando aquele homem estiver morto e enterrado».
É quase impossível acreditar que um só homem pudesse ser a causa de
tamanho sofrimento. Enquanto Hitler punha termo à própria vida, cen‑
tenas de milhares de pessoas por todo o mundo estavam a tentar sobre‑
viver. O mundo, para todos os envolvidos, era de facto o inferno. Esta é a
história dessas pessoas.
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© Bundesarchiv, Bild 183‑V04744
Entrada do Führerbunker pelo jardim da Chancelaria do Reich, julho de
1947.
Domingo, 29 de abril de 1945
Agora, todos têm a oportunidade de escolher o papel que
irão desempenhar no filme dos próximos cem anos.
Joseph Goebbels, 17 de abril de 1945
Hora local: meia‑noite/8:00 em Tóquio
Eva Braun está no seu quarto, a ser penteada pela criada, Liesl Ostertag.
Braun mantém o cabelo ligeiramente oxidado, curto e encaracolado, com
a longa franja presa por ganchos do lado direito. O seu rosto está cuida‑
dosamente maquilhado para parecer natural, como Adolf Hitler gosta. Já
escolheu a roupa: um vestido preto e comprido de tafetá, que vai usar com
o seu relógio de diamantes favorito, uma pulseira de ouro com pedras de
turmalina cor‑de‑rosa e um colar de topázio. Optou por sapatos pretos de
camurça Ferragamo, um dos inúmeros pares que trouxe do designer ita‑
liano exclusivo, desde a sua primeira visita a Itália, em 1936. Braun quer
estar com a melhor aparência possível. Esta noite, vai casar com o homem
que ama desde os 17 anos. Ambos têm um caso secreto há 14 anos.
O quarto de Braun é o mais confortável no complexo do bunker.
Mobilou‑o totalmente com peças desenhadas para si própria, pelo ar‑
quiteto do bunker, Albert Speer. Para além do toucador e da cadeira,
há um sofá de costas direitas, estofado com um tecido floral, um guar‑
da‑roupa e uma cama de solteira. Tudo tem a marca do seu monogra‑
ma, o trevo de quatro folhas, também desenhado por Speer: os dois
lados do trevo resultam de um «E» curvado, virado para um «B» tam‑
bém curvado. O seu monograma está estampado na mobília, bordado
na sua roupa e gravado nas escovas e pentes de prata, nas suas joias e no
gancho que Liesl lhe está a pôr no cabelo.
35
O arquiteto favorito de Hitler, Albert Speer, concebeu
a nova e gigantesca Chancelaria do Reich, um palácio
rococó na Williamstrasse de Berlim, que tinha servido
como edifício oficial da Chancelaria desde 1875, assim
como o complexo do bunker, abaixo de ambos os edifí‑
cios. Os dois edifícios da Chancelaria sofreram bom‑
bardeamentos e estão praticamente abandonados, mas
nas caves há um hospital de emergência e uma cozinha
de campanha, garagens e uma rede de salas para secre‑
tárias, oficiais e funcionários públicos. As caves estão
ligadas ao Führerbunker através de um longo corredor
que foi bombardeado nos últimos dias, mas por onde
ainda é possível passar.
Oito metros e meio acima da cabeça de Eva Braun, o corpo do seu cunha‑
do, Hermann Fegelein, está a ser colocado numa cova rasa, no jardim da
Chancelaria do Reich. Os coveiros trabalham à luz das tempestades de
fogo que iluminam o céu de Berlim. A artilharia russa está a bombardear
violentamente a cidade, visto que as forças soviéticas conseguiram final‑
mente atravessar o rio Spree e as suas armas estão a proteger a torrente
de tanques que entram no centro de Berlim. O cunhado de Braun foi
executado ao serão, segundo as ordens do homem com quem está prestes
a casar. Eva implorou pela sua vida, a bem da irmã mais nova, Gretl, que
espera o filho de Fegelein a qualquer momento, mas Hitler rejeitou‑a fu‑
riosamente, obrigando‑a a admitir que «tu é que és o Führer».
Hermann Fegelein, um obediente oficial da cavalaria,
tinha vindo a trabalhar no bunker como oficial de li‑
gação de Himmler. Tentara fortalecer a sua posição no
círculo privado de Hitler, ao casar com Gretl Braun no
verão anterior. Contudo, não tinha qualquer intenção
de morrer ao lado do Führer, por isso tinha desapareci‑
do do bunker na semana anterior. Fora apanhado com
uma mulher — que não a sua esposa — no seu apar‑
tamento de Berlim. Aparentemente a preparar‑se para
fugir da capital, foi encontrado a enfiar joias e marcos
alemães numa mala. Desde então, tinha estado detido
pela Gestapo e quando chegou ao bunker a notícia de
que Himmler tentara negociar com os Aliados, Hitler
não hesitou em ordenar a execução do representante do
líder das SS.
36
...
Na Base Aérea Naval de Kanoya, no Sul do Japão, Yasuo Ichijima está no
quarto a atualizar o seu diário. Tem de voar dali a umas horas e sabe que
não vai voltar. No ano passado, a maioria dos voos de Kanoya foram mis‑
sões kamikaze. Há uns dias, disseram a Ichijima que a sua missão suicida
estava iminente, e este passou o seu tempo a nadar, a fazer caminhadas e a
despedir‑se de amigos. Na terça‑feira passada, não conseguiu dormir por
causa do barulho dos pilotos kamikaze bêbados no quarto ao lado. Ichi‑
jima escreveu no seu diário: «Provavelmente, têm razão. Pessoalmente,
prefiro esperar pela morte em silêncio. Estou ansioso por me comportar
até ao último instante… Sinto‑me honrado e orgulhoso por ter a opor‑
tunidade de oferecer ao meu país, pelo qual sinto um amor indescritível,
uma vida pura.»
A missão de Ichijima consiste em pilotar um avião carregado de ex‑
plosivos e combustível contra a frota americana, que faz parte das forças
invasoras que lentamente tomam conta da ilha japonesa de Okinawa, a
800 quilómetros a sul. Os americanos avançaram sem parar pelo Pacífi‑
co e, se tomarem Okinawa, seguir‑se‑á brevemente a invasão do Japão.
Ichijima tem de voar a baixa altitude e, evitando armas antiaéreas, des‑
penhar‑se contra um navio de guerra — de preferência perto ou dentro
de uma das suas chaminés. Sabe que não pode fechar os olhos no último
instante, por muito que queira, visto que perderá precisão. É um cristão
devoto e está a escrever aquela que será a última entrada do seu diário —
palavras do evangelho de Mateus: «Então Jesus disse aos seus discípulos:
“Quem quiser ser meu discípulo, tem de renunciar a si mesmo, pegar na
sua cruz e seguir‑me”.»
Até agora, em abril, houve mais de 1000 missões kamikaze contra a Marinha dos EUA e Britânica, sen‑
do que 20 navios afundaram e perderam‑se centenas
de vidas do lado dos Aliados. Os pilotos kamikaze têm
uma formação básica, visto que só fazem um voo. São
escoltados por pilotos experientes que voltam à base para
apanhar a próxima vaga de jovens voluntários.
Joseph McNamara, um marinheiro a bordo do USS
Anthony, ao largo da costa de Okinawa, descreveu no
seu diário como era estar sob o ataque contínuo dos kamikaze. A 27 de maio de 1945, escreveu:
«Um dia de horror — inacreditável… um japo‑
nês atingiu a água tão perto de nós, que o seu corpo
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foi projetado contra os lança‑torpedos dianteiros. Os
homens encontraram‑no, coberto de bonecas de trapos,
amuletos, etc. Foi atirado à água imediatamente. Os
tubarões em bando despedaçaram‑no. Estão sempre por
perto.»
Yasuo Ichijima faz parte de uma pequena comunida‑
de cristã no Japão. Os missionários católicos chegaram
pela primeira vez em meados do século XVI e inicial‑
mente foram perseguidos pela sua fé. Em 1873, foi le‑
vantada a proibição sobre o Cristianismo, mas este con‑
tinua a ser praticado apenas por uma minoria; Yasuo
Ichijima é visto pelos seus colegas pilotos como uma
pessoa invulgar, por ter tais crenças.
No escritório central do Führerbunker, o telefonista Rochus Misch está a
ver Hans Hofbeck do Serviço de Segurança do Reich a descrever o assas‑
sinato de Hermann Fegelein. Hofbeck testemunhou a execução no corre‑
dor da cave da Chancelaria do Reich, há cerca de meia hora. Representa
aquilo que viu: levanta os braços, como quem segura uma metralhadora
imaginária, e aponta à altura dos ombros, gritando os efeitos sonoros,
«Ratatatata!».
«Se resultar, muito bem; se falhar, enforcamo-nos!»
00:10
Adolf Hitler está de pé na sala de conferências do Führerbunker, com
as mãos apoiadas no lado mais largo da mesa do mapa, vazia. Traudl
Junge, uma das duas secretárias que restam no bunker, está sentada do
outro lado da mesa, a anotar as suas palavras em estenografia. O Führer
quase terminou de ditar o seu «Testamento Político». Junge estava
muito entusiasmada quando ele começou. Pensou que ia ser a primeira
pessoa a saber porque é que a guerra se tinha tornado tão catastrófica.
Mais tarde, contou aos realizadores do documentário «The World at
War»: «Tinha o coração a disparar (sic) enquanto escrevia o que Hitler
dizia.» Mas à medida que Hitler prossegue num tom monótono, Junge
começa a ficar cada vez mais desiludida. Não há revelações nem de‑
monstrações de culpa, nem justificações; apenas as mesmas acusações
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recicladas que a secretária já ouviu inúmeras vezes: «Não é verdade
que eu, ou qualquer outra pessoa na Alemanha, quisesse a guerra em
1939. Foi desejada e provocada exclusivamente por aqueles políticos
internacionais que ou são de origem judia ou trabalham em prol dos
interesses dos Judeus…»
Gaba‑se de ter obrigado os Judeus a pagar por todo o sofrimen‑
to que causaram: «Eu… não deixei quaisquer dúvidas de que, desta vez,
não haveria milhões de crianças dos povos arianos da Europa a morrer à
fome; não haveria milhões de homens adultos a morrer, nem centenas e
milhares de mulheres e crianças a serem bombardeadas e queimadas até
à morte nas cidades, sem que os verdadeiros culpados tivessem de pagar
pelos seus delitos, mesmo que através de meios mais humanos.»
Hitler continua, explicando o seu suicídio planeado: «Não vou cair
nas mãos de um inimigo que quer criar um novo espetáculo, organizado
pelos Judeus, para entreter as massas histéricas. Como tal, decidi perma‑
necer em Berlim e aí escolher a morte de forma voluntária, no momento
em que acreditar que a residência do Führer e do Chanceler já não possa
ser mantida…»
Traudl Junge escreveu as suas memórias do bunker em
1947‑8, mas nos anos seguintes sentiu‑se envergonhada
do manuscrito e de não ter conseguido avaliar os acon‑
tecimentos de forma imparcial. Durante muitos anos,
tentou não pensar nesta fase da sua vida. Convenceu‑se
de que era demasiado jovem — tinha 25 anos, em 1945
— para ser responsável pelo seu envolvimento no regi‑
me assassino. Contudo, um dia, quando já tinha mais
de quarenta anos, passou por uma placa em memória de
Sophie Scholl, em Munique. Sophie Scholl tinha sido
membro do grupo Rosa Branca, que distribuía panfletos
antinazis. Junge reparou que Scholl tinha nascido em
1920, tal como ela, mas em 1942 — o ano em que Junge
tinha começado a trabalhar para Hitler — Scholl fora
executada pelas suas atividades antinazis. Mais tarde,
afirmou: «Naquele momento, percebi realmente que o
facto de ser tão nova não era desculpa.» Reescreveu e
publicou as suas memórias em 2002.
Hitler mal levanta o olhar enquanto dita. Nomeia um governo su‑
cessor com o Grande Almirante Dönitz — o líder da Marinha — à cabeça.
Hermann Göring, líder da Luftwaffe, e Heinrich Himmler, líder das SS,
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são formalmente expulsos do partido e destituídos dos seus cargos por
negociarem com o inimigo «sem o meu conhecimento e contra a minha
vontade». A lista de novas nomeações é longa. Enquanto Junge anota os
nomes em estenografia, não consegue compreender o objetivo de todas
aquelas nomeações se, como Hitler insiste, tudo está perdido.
O Führer para por instantes e depois começa a ditar o seu testamen‑
to pessoal.
Enumera várias heranças e depois explica que decidiu «tomar como
minha esposa a jovem que ao fim de muitos anos de amizade veio de
livre vontade para esta cidade praticamente cercada, para partilhar o seu
destino comigo». A notícia choca Junge. Hitler sempre insistiu que nun‑
ca casaria, pois as mulheres têm uma influência destrutiva nos homens
importantes. Hitler considerava que era importante para a sua imagem
pública ser um homem solteiro, dedicado ao seu país e sem uma mulher
a intrometer‑se nas fantasias das mulheres alemãs.
Continua: «Eu e a minha esposa escolhemos a morte, para escapar
à vergonha da destituição e da rendição. É da nossa vontade que os nos‑
sos corpos sejam incinerados imediatamente no lugar onde levei a cabo
a maior parte do meu trabalho diário nos 12 anos em que servi o meu
povo.»
Na cabeça de Hitler, o suicídio sempre foi uma opção. Mesmo antes
do Putsch da Cervejaria de 1923, disse aos seus apoiantes: «Se resultar,
muito bem; se falhar, enforcamo‑nos!» Sempre achou que as alternativas
eram o sucesso absoluto e a derrota absoluta. Não há meio‑termo.
Hitler para por instantes e depois afasta‑se da mesa. «Faz‑me três
cópias datilografadas disso e depois traz‑mas.» Nunca pediu cópias em
triplicado sem verificar primeiro um rascunho.
No início desse serão, enquanto Hitler ordenava a
execução de Fegelein, Traudl Junge tinha adorme‑
cido numa cama portátil, na sala de conferências do
Führerbunker. Desde o bombardeamento do corredor
que liga o bunker às caves da Chancelaria do Reich,
Hitler insistiu que as duas secretárias que restam,
Traudl Junge e Gerda Christian, viessem dormir no
Führerbunker. Têm descansado quando podem e dor‑
mem vestidas.
Traudl Junge acha que o Führer a deve ter chamado
e deixado descansar, pois quando esta foi ao seu gabi‑
nete por volta das 23:30 para tomar um chá, como as
secretárias fazem todas as noites, este perguntou‑lhe:
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«Tiveste um bom descansozinho, minha filha?» De
seguida, perguntou‑lhe se podia apontar um ditado.
Hitler chama‑lhe muitas vezes «filha» e ela considera‑o
uma «figura paternal e gentil», que lhe proporciona
«uma sensação de proteção, solicitude, segurança».
Cresceu sem pai e a atitude protetora de Hitler é algo
por que sempre ansiou.
Traudl Junge tira a cobertura da máquina de escrever. Parece um
fim tão indigno, «as mesmas frases, o mesmo tom apagado e depois…
aquelas palavras terríveis sobre os Judeus. Depois de todo o desespero,
todo o sofrimento, nem uma palavra de pesar, de compaixão». Pensa:
Deixou‑nos sem nada. Um vazio.
«Amanhã vão todos para um hotel nas montanhas,
que será incinerado depois de todos terem sido
executados.»
Na cozinha do hotel Bachmann, no centro de Villabassa — uma pequena
cidade nos Alpes italianos — dois guardas das SS estão a embebedar‑se
com um agente secreto britânico. Um dos guardas já ficou inconsciente.
O outro, chamado Fritz, tira um pedaço de papel do bolso e mostra‑o ao
inglês.
— Aqui está a ordem da tua execução; depois de amanhã já não
estarás vivo.
O Capitão do SIS (Secret Intelligence Service — Serviços Secretos
—, também conhecido como MI6), com o nome extravagante de Sigis‑
mund Payne‑Best, recebe a notícia calmamente.
— Que parvoíce… Estou certo de que ninguém será tonto ao ponto
de abater qualquer um de nós nesta fase da guerra. Ora, todos vocês serão
feitos prisioneiros dentro de um ou dois dias.
Payne‑Best conhece bem as SS. Durante cinco anos e
meio, o agente de 59 anos tem estado encarcerado por
eles, principalmente na solitária, no campo de concen‑
tração de Sachsenhausen. Em novembro de 1939, foi
capturado na fronteira da Holanda com a Alemanha,
a meio do que pensava serem negociações de paz en‑
tre o governo alemão e o governo britânico de Neville
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Chamberlain. A Grã‑Bretanha e a Alemanha estavam
em guerra há dois meses, e Chamberlain ainda estava
ansioso por encontrar uma solução pacífica. Churchill,
na altura Primeiro Lorde do Almirantado, estava cético
em relação às conversações, e deram‑lhe razão quando
os alemães interromperam as negociações e prenderam
Payne‑Best e o seu colega, o Major Richard Stevens,
para investigar as redes de Serviços Secretos britânicos
na Europa.
Payne‑Best é um homem notável e, nas palavras de
um colega de prisão, «a caricatura do homem inglês.
Muito alto, muito magro e até um pouco curvado de
tão macilento, com as bochechas chupadas e rugosas, os
dentes salientes, monóculo, calças de flanela, blusão ao
xadrez e um cigarro». Na verdade, os seus dentes são
uma dentadura; os originais foram substituídos por um
dentista de Sachsenhausen, por estarem podres devi‑
do à péssima alimentação do campo de concentração.
Payne‑Best não ficou incomodado pelo processo, apesar
da falta de anestesia, porque pôde sair da cela. Fala ale‑
mão fluente, já que foi um agente dos Serviços Secretos
na Primeira Guerra Mundial, e aproveitou todas as
oportunidades que teve em Sachsenhausen para conhe‑
cer melhor os seus guardas das SS. Fala com tamanha
confiança e autoridade, que os colegas com quem bebe
partem do princípio que este tem conhecimentos dentro
das SS e, como tal, tentam ser seus amigos.
Enquanto Payne‑Best tenta ler o pedaço de papel que Fritz agita no ar,
Fritz assegura‑lhe que todos os agentes das SS irão lutar até ao fim e nunca se‑
rão tomados prisioneiros. O que Payne‑Best consegue distinguir é uma longa
lista de nomes e a ordem de que devem ser executados, caso haja o risco de
caírem nas mãos dos Aliados. O outro guarda resmunga embriagado, à pro‑
cura da pistola: «Fuzila‑os a todos — é melhor tirar a tosse a todos.»
Os nomes constantes da lista são os colegas de prisão mais famosos
de Payne‑Best — 120 deles — que dormem agora lá em cima, no Bach‑
mann e noutros hotéis e casas em redor de Villabassa. São todos consi‑
derados pelos Alemães como Prominente — prisioneiros que têm bons
contactos a nível político ou social e que podem ser usados como moeda
de troca em negociações com os Aliados. O intervalo de idades dos 120
prisioneiros vai dos 3 aos 73. Durante as últimas semanas, foram desloca‑
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dos pelos alemães para longe dos russos, que se aproximam. Na passada
quarta‑feira, saíram do campo de concentração de Dachau, onde tinham
estado durante oito dias.
Os prisioneiros da lista de Fritz incluem Léon Blum, antigo Pri‑
meiro‑ministro francês e a sua esposa; o Pastor Martin Niemoller, um
crítico sem reservas de Hitler e fundador da Igreja Confessional — um
movimento protestante, fundado para fazer frente ao Nazismo — e cole‑
ga de prisão de Payne‑Best em Dachau, há algumas semanas, e Kurt von
Schuschnigg, o antigo Chanceler da Áustria, a sua esposa e a filha de três
anos. Uma parte do castigo de Schuschnigg por ter tentado defender a
independência da Áustria antes de Hitler a anexar foi limpar as casas de
banho dos seus guardas das SS com a própria toalha e escova de dentes.
Depois obrigaram‑no a lavar os dentes.
— Ora, Fritz — diz Payne‑Best. — Certamente não quer contribuir
para o meu assassinato?
— Ja, Herr Best. Mas que posso eu fazer? Vocês amanhã vão todos
para um hotel nas montanhas que será incinerado, depois de todos terem
sido executados.
Então Fritz tem uma ideia.
— Vou dizer‑lhe o que vou fazer. Faço‑lhe sinal antes de começarem
a disparar e você pode vir para a minha beira para eu poder dar‑lhe um
tiro na nuca… Não vai dar conta de nada.
Saca da sua pistola.
— Vire‑se, que eu mostro‑lhe.
— Não seja parvo! Como é que posso ver o que está a fazer atrás das
minhas costas? Ainda se engana e mata‑me agora!
Fritz vira‑se para o seu colega embriagado.
— Vira tu a cabeça, para eu poder mostrar ao Herr como se faz o
Nackenschuss.
Mas o homem das SS limita‑se a murmurar algo sobre «tirar a tosse
a todos», derruba tudo o que está em cima da mesa e desmaia sobre a
mesma.
Fritz começa então a contar a Payne‑Best que a sua esposa e filhos,
que estão na sua terra, não fazem ideia de todas as atrocidades que já
cometeu, que matou «centenas; não, milhares de pessoas» e que a guerra
é uma coisa horrível, mas a culpa é dos Judeus e dos plutocratas em In‑
glaterra e nos Estados Unidos. Hitler é um bom homem e só quer a paz.
Payne‑Best já ouviu o suficiente. Pede licença e vai para o quarto.
A 22 de abril de 1945, ao aperceber‑se de que a situa‑
ção da Alemanha era um caso perdido, Hitler gritou
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aos seus generais que todos os Prominente deviam ser
abatidos. Já não tinham qualquer valor como moeda
de troca, e queria ferir os Aliados de qualquer maneira
que ainda lhe restasse. Aos olhos do Führer, o valor da
troca de reféns diminuiu depois da captura do filho de
Estaline, Yakov Dzhugashvili. Hitler ofereceu‑se para
o trocar pelo Marechal de Campo alemão Friedrich
Paulus, que tinha sido capturado em Estalinegrado.
Estaline rejeitou a oferta: «Não vou trocar um mare‑
chal por um tenente», respondeu. Yakov Dzhugashvili
morreu num campo de concentração.
O nome verdadeiro de Estaline é Iosif Vissarionovich
Dzhugashvili. «Estaline» é um pseudónimo. Vem da
palavra russa para «aço».
Os Prominente incluíam também prisioneiros bri‑
tânicos, alguns dos quais encarcerados no Castelo de
Colditz, como o sobrinho de Churchill — Giles Romilly,
John Elphinstone — um sobrinho da Rainha, e Michael
Alexander que, ao ser capturado no Norte de África,
fingiu ser parente do Marechal de Campo britânico, Sir
Harold Alexander.
No Führerbunker, a sala de conferências está a ser preparada para
a cerimónia de casamento. São postas cinco cadeiras à volta da enorme
mesa do mapa. Traudl Junge teve de pegar na sua máquina de escrever
e ir trabalhar para a sala comum, do lado de fora do quarto de Joseph
Goebbels.
O magistrado e voluntário da Home Guard, Walther Wagner, chega
ao bunker a segurar um documento datilografado, de duas páginas. Chegou
ao bunker ao início do serão, chamado por Joseph Goebbels. Quando des‑
cobriu que tinha de realizar um casamento civil, insistiu em regressar ao
seu escritório para preparar a papelada adequada. Wagner está a usar o seu
uniforme nazi, com a braçadeira da Home Guard. O criado de quarto de
Hitler, Heinz Linge, acha que Wagner está tão entusiasmado quanto a noiva.
Aproximadamente 00:15
O novo Comandante da Luftwaffe, Robert Ritter von Greim, apoia‑se nas
muletas com dificuldade, enquanto sobe os degraus de betão do bunker.
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Von Greim acabou de passar dois dias com o Führer, tendo sido chamado
para que Hitler pudesse nomeá‑lo pessoalmente para substituir o líder da
Luftwaffe caído em desgraça, Hermann Göring.
A queda de Göring foi provocada por um telegrama
que este enviou para Hitler, a 23 de abril. No briefing
militar da tarde anterior, Hitler ficara a saber que os
Russos tinham quebrado o cordão de defesa interno e
estavam nos subúrbios do Norte de Berlim. Não havia
notícias de um contra‑ataque alemão. Hitler começou a
gritar. Disparatou durante meia hora, sem parar. Falou
de fracasso, mentiras, corrupção e traição até finalmen‑
te tombar, aos soluços, numa poltrona. Declarou que a
guerra estava perdida. Era a primeira vez que o dizia.
Murmurou que todos eram livres de se irem embora,
mas ele ficaria em Berlim até ao fim. O único dever que
lhe restava era morrer.
— Não há muito mais pelo que lutar — concluiu —
e se é uma questão de negociações, o Marechal do Reich
pode sair‑se melhor que eu.
O Marechal do Reich era Hermann Göring, que ti‑
nha sido nomeado sucessor de Hitler em 1941. O co‑
mentário era apenas para mudar de assunto, mas o re‑
presentante de Göring no bunker, Karl Koller, levou‑o
a sério e partiu imediatamente para a Baviera, para
informar o seu chefe.
Quando Göring soube da notícia, ficou surpreen‑
dido e entusiasmado. Tentou escrever um telegrama
ao Führer, para esclarecer e confirmar a situação.
Contudo, foi demasiado loquaz para escrever um rascu‑
nho suficientemente curto para um telegrama, por isso
a sua mensagem foi reescrita por Koller:
«FÜHRER! — Tendo em conta a sua decisão de
permanecer no seu posto na fortaleza de Berlim, concor‑
da que eu assuma, imediatamente, a liderança total do
Reich, com total liberdade de atuação a nível nacional e
internacional, como seu substituto, de acordo com o seu
decreto de 29 de junho de 1941? Se não receber qualquer
resposta até às 22:00 de hoje, assumirei que perdeu a
sua liberdade de atuação e considerarei como cumpridas
as condições do seu decreto e agirei no melhor interesse
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do nosso país e do nosso povo. Sabe a estima que lhe
tenho nesta hora mais tenebrosa da minha vida. Não
tenho palavras para me exprimir. Que Deus o proteja
e que o faça chegar aqui rapidamente, apesar de tudo.
Lealmente ao seu serviço, HERMANN GÖRING.»
Quando o telegrama chegou ao bunker na noite de
23 de abril, despoletou outro ataque de fúria do Führer,
acerca de corrupção e traição. O secretário pessoal de
Hitler, Martin Bormann, um inimigo pessoal de
Göring, fez o rascunho da resposta, que o destituía da
sua posição de sucessor e exigia a demissão imediata
por motivos de saúde, para evitar medidas mais graves.
Göring demitiu‑se no espaço de meia hora. Hitler orde‑
nou então que Bormann convocasse Robert Ritter von
Greim, um dos pilotos mais condecorados da Alemanha.
Von Greim fez um voo quase impossível para Berlim,
chegando a 26 de abril. Por esta altura, os Russos con‑
trolavam o espaço aéreo da capital germânica, e a base
do avião de von Greim foi destruída por armas antiaére‑
as. Sofreu um ferimento grave na perna e a sua compa‑
nheira, a pequena aviadora Hanna Reitsch, teve de se
inclinar por cima dos seus ombros para aterrar o avião
em segurança na pista temporária junto ao Portão de
Brandemburgo: uma extensão de 400 metros de estrada
sem buracos que passava pelo parque central de Berlim,
o Tiergarten.
À medida que Reitsch tenta agora ajudar von Greim a subir a es‑
cadaria do bunker, protesta inconsolavelmente — quer ficar no bunker e
«morrer ao lado do nosso Führer». Contudo, von Greim parece absolu‑
tamente feliz — seja por ter sido nomeado, ou pelo facto de estar a sair
do bunker. O telefonista Misch sente‑se doente ao vê‑los partir. Tinha
esperança de que pedissem a von Greim para tirar o Führer de Berlim, e
então todos poderiam fugir.
Misch é um dos gigantes delicados da comitiva de
Hitler. Tem 1,80 m de altura, mas por sua própria ini‑
ciativa foi escolhido para trabalhar para o Führer como
«alguém que não causa problemas». Tendo sido grave‑
mente ferido durante a invasão da Polónia em 1939, fi‑
cou determinado a não fazer nada que pusesse em causa
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o seu trabalho para o Führer. «Botas montanhesas pe‑
sadas, a enterrar‑se na lama e na imundície, em vez de
umas fantásticas botas extraleves e feitas à medida a
pisar uma alcatifa grossa — não, obrigado.» No entan‑
to, aqui no bunker, sente‑se claustrofóbico. Pensa cons‑
tantemente na sua esposa Gerda e na bebé de ambos.
Passaram‑se seis dias, desde que conseguiu contactá‑la
por telefone. Está constantemente a bebericar conhaque
e mantém a arma à mão de semear.
Hitler vai enviar von Greim, como líder da Luftwaffe, em duas mis‑
sões. Primeiro, tem de mobilizar a Luftwaffe a penetrar o cerco russo:
«Todos os aviões disponíveis devem ser chamados até ao nascer do dia!»
Depois, terá de prender e tratar da execução do chefe de Fegelein, o líder
das SS, Heinrich Himmler.
No dia anterior, quando soube da notícia das negociações de Himm‑
ler com os Aliados, Hitler gritou para von Greim: «Um traidor nunca
poderá suceder‑me como Führer! Tens de sair para garantir que isso não
acontecerá.»
«Não é melhor viver uma vida agradável, honrada
e arrojada, mas curta, do que arrastar uma longa
vida de humilhação?»
Ao sair do bunker, a aviadora Hanna Reitsch leva consigo várias cartas
pessoais e oficiais. Eva Braun deu‑lhe uma carta de despedida para a sua
irmã Gretl, que vai ficar com os pais na casa das montanhas de Hitler, em
Obersalzberg. A carta não menciona a morte de Fegelein. O Ministro da
Propaganda, Joseph Goebbels e a esposa, Magda, deram‑lhe cartas para o
seu filho mais velho, Harald, que está detido como prisioneiro de guerra
na Grã‑Bretanha.
Magda Goebbels está a vestir‑se no quarto, no bunker superior. Este
bunker mais antigo é menos ornamentado do que o Führerbunker e o
seu pequeno quarto é bastante comum, com paredes de betão e pouco
mobiliário: uma cama de solteira, uma cómoda e apenas uma lâmpada a
servir de iluminação. Com orgulho, Magda prende o crachá dourado do
partido, que Hitler lhe deu há dois dias, à parte da frente do vestido. É o
crachá pessoal de Hitler, marcado com o número «1»; o crachá da figura
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principal do Partido Nazi. Magda sente que é a maior honra da sua vida.
Hitler usou aquele crachá no uniforme ao longo de doze anos. Duran‑
te as suas funções de Chanceler, Magda interveio frequentemente como
primeira‑dama oficiosa, acompanhando o Führer em ocasiões formais,
assumindo a posição mais importante em jantares oficiais enquanto Eva
Braun está escondida, confinada ao seu quarto. O crachá confirma o seu
estatuto na hierarquia.
Magda Goebbels nasceu em Berlim, filha de uma cria‑
da de quarto solteira. A mãe acabou por ter uma re‑
lação longa com um gerente de hotel judeu, Richard
Friedlander. Viviam em família no bairro judeu de
Berlim; Magda frequentava uma escola judia e celebra‑
va festivais judeus. Enquanto adolescente, optou por
adotar o apelido do padrasto. O seu primeiro amor foi
um jovem chamado Victor Arlosoroff, líder carismático
do Movimento Sionista de Berlim. Magda tornou‑se
uma apoiante ávida e frequentava as reuniões sionis‑
tas. Quando tinha 19 anos e ele 20, Magda e Victor
ficaram noivos, mas a relação terminou subitamente no
21º aniversário de Victor e, meses depois, Magda esta‑
va noiva de um homem que tinha conhecido no comboio,
um dia depois da separação.
O homem do comboio era Günther Quandt, um in‑
dustrial abastado. Günther tinha 38 anos, o dobro da
idade de Magda, quando ambos casaram, em 1921.
Como condição do seu casamento, Magda voltou ao
seu apelido original, pois Günther não queria passar
a imagem de estar a casar com uma judia. A mãe de
Magda separou‑se de Richard Friedlander ao mesmo
tempo. Este não foi convidado para o casamento. Nesse
ano, Günther e Magda tiveram um filho, Harald, que
em 1939 tinha 18 anos e se juntou imediatamente à
Luftwaffe. O casal teve um divórcio amigável ao fim de
sete anos, e Magda recebeu uma compensação generosa.
Pouco depois do divórcio, Magda foi levada por
um amigo a um comício nazi, onde ouviu o discurso
de Joseph Goebbels. Ficou arrebatada pela sua ora‑
tória dinâmica e abordou‑o de seguida, oferecendo‑se
para trabalhar para ele como voluntária. Deram início
a uma relação e, em 1931, a rapariga que cresceu no
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bairro judeu de Berlim casou com o homem que lide‑
rou a exclusão de todos os Judeus da cidade e instituiu
a estrela amarela obrigatória, que identificava todos os
Judeus. Adolf Hitler foi o padrinho de casamento.
Magda nunca mais voltou a ver o padrasto, Richard
Friedlander. O seu nome está na lista dos que morreram
em Buchenwald.
Os seis filhos dos Goebbels, Helga, Hilde, Helmut, Holde, Hedda e
Heide, cujas idades vão dos quatro aos doze anos, estão a dormir em três
beliches, no quarto ao lado do da mãe. O quarto de Joseph Goebbels fica
mais afastado, descendo a escadaria principal até ao fundo do Führer‑
bunker, ao lado da suite de Adolf Hitler e Eva Braun. Há uma semana,
quando as crianças chegaram, disseram‑lhes que a Alemanha estava pres‑
tes a vencer a guerra e que tinham de vir para o bunker para estarem pron‑
tos para se juntar às comemorações de vitória, com o Führer. Na verdade,
Joseph e Magda decidiram juntar‑se ao seu líder quando perceberam que
a derrota estava iminente. Querem enfrentar a morte ao seu lado. Vieram
para pôr fim à própria vida e à das crianças.
Magda passou grande parte da semana de cama. Sofre de angina. Só
consegue ver os filhos por breves instantes. A responsabilidade de tomar con‑
ta das crianças passou em grande parte para as secretárias e pessoal da cozi‑
nha. Magda contou em confidência às outras mulheres do bunker que tem
medo de ser demasiado fraca para matar os filhos, quando chegar a altura.
Nesta noite, Magda escreveu ao seu filho mais velho, Harald. Quan‑
do o seu avião foi abatido sobre Itália em 1944, este esteve desaparecido
durante vários meses. Os Goebbels ficaram encantados quando final‑
mente descobriram que Harald tinha sido capturado pelos Britânicos,
que consideram ser o desfecho mais seguro, embora não saibam onde
está detido. Na verdade, está no campo de prisioneiros de guerra de Lati‑
mer House, em Buckinghamshire, onde é muito popular entre os jovens
oficiais da RAF que o interrogam. Latimer House é um campo para ale‑
mães de alta patente; visto que Harald está lá devido aos contactos da sua
família e não devido ao seu cargo, é muito mais jovem e mais afável do
que a maioria dos seus colegas de prisão.
Magda Goebbels tenta explicar a Harald porque é que trouxe as suas
irmãs e o irmão mais novos para o bunker:
«O mundo que sucederá ao Nacional‑Socialismo não é um lugar
digno de se viver e, por este motivo, trouxe também as crianças para cá.
São boas de mais para a vida que virá depois de nós; um Deus misericor‑
dioso irá compreender se eu própria as libertar dela…
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Tem orgulho de nós… Todos temos de morrer um dia; não é me‑
lhor viver uma vida agradável, honrada e arrojada, mas curta, do que ar‑
rastar uma longa vida de humilhação?
Meu querido filho
Vive, pela Alemanha!
A tua mãe.»
Joseph Goebbels também escreveu ao enteado. Diz‑lhe que devia
ter orgulho da mãe. Também o avisa:
«Não te deixes perturbar pelo clamor mundial que começará agora.
Um dia, as mentiras irão desmoronar e a verdade voltará a triunfar. Esse
será o momento em que nos ergueremos sobre todos, limpos e imacula‑
dos, como sempre nos esforçámos por ser e acreditámos ser…
Que tenhas sempre orgulho de ter pertencido a uma família que,
mesmo no infortúnio, continuou leal ao Führer e à sua causa pura e sa‑
grada, até ao fim.»
Assina com as palavras: «Tudo de bom e saudações calorosas. O teu
papá.»
Magda e Joseph confiam estas cartas a Hanna Reitsch, e Magda
também lhe dá um anel de diamantes. O presente de despedida de Hitler
para Reitsch é uma cápsula de cianeto.
«Não podia ter um amo melhor.»
No seu escritório, Hitler está a falar com Heinz Linge, o seu criado de
quarto.
— Gostaria de te deixar voltar para a tua família.
— Mein Führer, estive consigo nos tempos bons e quero ficar consi‑
go nos maus — responde Linge.
Linge, de trinta e dois anos, era um assentador de ti‑
jolos em Bremen quando o prestígio das Waffen SS o
inspirou a alistar‑se. Tendo sido enviado para proteger
a residência nas montanhas de Hitler, a Berghof, foi
escolhido para ser seu criado de quarto pouco depois do
rebentar da guerra, em 1939. Linge é um homem sub‑
jugado e leal, de rosto redondo e olhos azuis‑claros. É
devotado ao Führer e diz a toda a gente: «Não podia ter
um amo melhor.»
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Hitler observa‑o calmamente.
— Não esperava outra coisa de ti.
Faz uma pausa e apoia‑se na secretária.
— Tenho outra tarefa pessoal para ti. O que tenho de fazer agora é
aquilo que ordenei a todos os comandantes: aguentar até à morte. Esta
ordem também se aplica a mim, visto que sinto que estou aqui como o
Comandante de Berlim…
Linge tem a cabeça em água.
— Tens de pôr dois cobertores no meu quarto e arranjar gasolina
suficiente para duas cremações. Vou suicidar‑me aqui, juntamente com
Eva Braun. Irás embrulhar os nossos corpos em cobertores de lã, levá‑los
lá para cima, para o jardim, e queimá‑los.
Linge está a tremer. Responde a gaguejar:
— Jawohl, Mein Führer! — e sai da sala.
Durante estas últimas semanas, Hitler tem passado a
maior parte do tempo no seu escritório do Führerbunker.
É uma divisão pequena, com um teto opressivamente
baixo. Há uma secretária e um sofá rígido de costas
direitas, semelhante a um banco de madeira, estofado
com linho branco e azul. Há uma pequena mesa retan‑
gular, onde faz as suas refeições com as secretárias, e
uma mesa lateral com um rádio. Tem um retrato de
Frederico, o Grande, na parede. Na parede do corredor
exterior estão também pendurados quadros valiosos, que
foram trazidos da Chancelaria do Reich, por questões de
segurança. O chão de betão do corredor está forrado com
uma alcatifa vermelha e há poltronas confortáveis, onde
os generais de Hitler bebem e dormem frequentemente.
O gerador a diesel do bunker fica do outro lado do corre‑
dor e preenche o Führerbunker com o murmúrio do seu
motor e o fedor do seu combustível.
Em Londres, milhares de pessoas estão a dormir nas plataformas do me‑
tropolitano. Ao longo dos últimos cinco anos, cresceu um verdadeiro es‑
pírito de comunidade — há beliches, sanitas e até bibliotecas. Acabou a
ameaça das bombas voadoras V1 (Vergeltungswaffe‑1, Arma de Retalia‑
ção 1) e mísseis V2. O próprio Churchill o disse na Câmara dos Comuns,
a 26 de abril.
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