Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 Revista Brasileira de Geografia Física ISSN:1984-2295 Homepage: www.ufpe.br/rbgfe Influência do Enos (El Niño-Oscilação Sul) no Regime Hidrológico do Rio São Francisco: uma Análise em Regiões com Fortes Pressões Antrópicas Carlos Diego de Sousa Gurjão1, Magaly de Fatima Correia2, José Batista Chaves Filho3 Maria Regina da Silva Aragão2 1 Meteorologista da Fundação de Ciências Aplicadas e Tecnologia Espacial. Av. Doutor João Guilhermino, 429, Sala 43. CEP: 12210-907. São Jose dos Campos, SP, Brasil. Telefone: 012 30292919, e-mail: [email protected]; 2 Profa. Doutora, Departamento de Ciências Atmosféricas da UFCG; Rua Aprígio Veloso, 882. Bairro Universitário, Campina Grande - PB, Brasil. CEP: 58429-140; Telefone: 55 083 21011379; e-mail: [email protected] ; [email protected] ; 3Bolsista de Iniciação Científica da UFCG; e-mail: [email protected] Artigo recebido em 04/05/2012 e aceito em 29/06/2012 RESUMO O objetivo deste estudo foi analisar o controle de mecanismos dinâmicos da atmosfera e influências antrópicas na variabilidade de eventos extremos de chuva em regiões de clima semiárido. Enfoque especial foi dado à quantificação da relação entre a chuva-vazão observada no trecho entre os reservatórios das hidrelétricas de Sobradinho e Itaparica. O índice RAI (Rainfall Anomaly Index) foi utilizado para avaliar a intensidade e extensão da área afetada por eventos extremos de chuvas. Os resultados mostram que o regime hidrológico da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco foi fortemente afetado por atividades antrópicas particularmente vinculadas à construção de barragens para geração de energia elétrica e desenvolvimento da agricultura irrigada. A relação entre a atuação do ENOS (El Niño-Oscilação Sul) e a variabilidade no volume das chuvas é evidente. No entanto, a atuação de vórtices ciclônicos de altos níveis (VCAN) pode alterar substancialmente o grau de impacto deste fenômeno favorecendo ou inibindo o desenvolvimento de sistemas precipitantes. Palavras-chave: Índices RAI, VCAN, ENOS, atividades antrópicas. Influence of Enso (El Niño-Southern Oscillation) in the Hydrological Regime São Francisco River: an Analysis in Regions with Strong Pressure Anthropogenic ABSTRACT The objective in this study was to analyze the control of atmospheric dynamical mechanisms and anthropogenic influences upon the variability of extreme rainfall events in semiarid climate regions. Special emphasis was given to quantification of the relationship between rainfall-flow observed in the area between the reservoirs of the hydroelectric power plants of Sobradinho and Itaparica. The RAI (Rainfall Anomaly Index) Index was used to evaluate the intensity and extension of the area affected by extreme rainfall events. The results show that the hydrological regime of the São Francisco River Hydrographic Basin was strongly affected by anthropogenic activities, particularly those linked with the construction of dams for hydroelectric power production and development of irrigated agriculture. The relationship between ENSO (El Niño-Southern Oscillation) and the variability in precipitation amounts is evident. However, the action of upper level cyclonic vortices (ULCV) may substantially alter the magnitude of the impact caused by this phenomenon by favoring or inhibiting the development of precipitating systems. Keywords: RAI index, VCAN, ENOS, Anthropic activities * E-mail para correspondência: [email protected] (Gurjão, C. D. S). Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. 774 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 tanto de fenômenos climáticos, quanto de 1. Introdução O monitoramento hidrológicos variabilidade espaço-temporal da precipitação sociedade podendo causar elevados prejuízos. são importantes no gerenciamento de recursos No contexto desta pesquisa a palavra prejuízo naturais em regiões com fortes limitações é hídricas como o semiárido brasileiro. A negativas resultantes de chuvas em excesso manutenção irrigação ou da deficiência no fornecimento de água implantados ao longo dos rios principais, do para abastecimento urbano, com perdas na abastecimento d’água nas grandes cidades e agricultura, na indústria e ou na produção de do monitoramento do nível dos reservatórios energia hidroelétrica. projetos hidrelétricas a análise sistemas em escala regional e local. Baixos índices de precipitação afetam diretamente a de e eventos da das extremos de de para denominar consequências aspectos Este trabalho tem como objetivo desenvolvimento analisar o controle de mecanismos dinâmicos regional e requer o uso de indicadores da atmosfera e influências antrópicas na climáticos que auxiliem na conservação variabilidade de eventos extremos de chuva destes empreendimentos de forma sustentável. em regiões de clima semiárido sob a No semiárido brasileiro, a precipitação influência de Vórtices Ciclônicos de Altos é uma variável fundamental na determinação Níveis em períodos de El Nino e La Nina. das condições do clima local, tendo como Enfoque especial é dado à quantificação da base a grande variabilidade e frequência de relação entre a chuva-vazão observada no dias com chuvas intensas pela influência de trecho entre os reservatórios da hidrelétrica de sistemas atmosféricos em diferentes escalas Sobradinho e Itaparica. fundamentais para constitui usada o espacial e temporal. Vários estudos mostram que a irregularidade na distribuição espacial e 2. Material e Métodos temporal da precipitação é uma característica 2.1 A Região de Estudo marcante da região. As chuvas com maior A Bacia Hidrográfica do rio São intensidade são registradas normalmente nos Francisco tem aproximadamente 640.000 km² quatro primeiros meses do ano sendo que o e estende-se por regiões com climas úmido, maior volume de precipitação concentra-se semiárido e árido. É subdividida em quatro nos meses de março e abril (Gonçalves et al., setores: Alto, Médio, Submédio e Baixo São 2006; Santos, et., al., 2010). Francisco. O Rio São Francisco nasce no As secas registradas no Nordeste do Estado de Minas Gerais, na Serra da Canastra, Brasil é uma característica natural do clima e a uma altitude de 1.600 m, e desloca-se 2.700 sua recorrência é inevitável. A durabilidade e km para o nordeste. Com grande parte do seu intensidade deste fenômeno sofre influência percurso situada no semiárido do Nordeste, Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. 775 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 tem importância fundamental do ponto de de comprimento e largura que varia entre 5 e vista ecológico, econômico e social para 50 km. Tem capacidade de armazenar 34 região. São vários os setores da economia que bilhões de metros cúbicos de água. A cota se utilizam dos recursos hídricos como mínima de operação é de 380,50 m. insumo básico para o desenvolvimento de O objetivo inicial da construção de suas atividades. Dentre esses é possível Sobradinho era a regularização plurianual do destacar a irrigação, a produção de energia curso do rio São Francisco, elevando a vazão elétrica, a navegação, o abastecimento urbano, mínima de 700 m³ s-¹ para cerca de 2060 m³ s- e o uso industrial. ¹, garantindo assim, o funcionamento contínuo A descarga São das usinas à jusante, particularmente a de Francisco é de até 94 milhões de m³. O fluxo Paulo Afonso. Entretanto, coma ocorrência de varia de 2.100 a 2.800 m³/s, com cerca de uma grande cheia no rio São Francisco nos 3000 m³/s próximo à foz. Estes fluxos não são primeiros meses de 1979, foi constatada a naturais, ocorrendo atualmente intervenções necessidade de locar 30% do volume útil do por meio dos reservatórios, para regularização reservatório para controle de enchentes de vazões (Correia e Silva Dias, 2003). e anual do controle das Rio cheias. Os reservatórios das hidrelétricas de Sobradinho, O reservatório de Sobradinho regula Itaparica, Paulo Afonso e Xingó produzem essencialmente sozinho a vazão do baixo São energia elétrica e transformam a região em Francisco, sendo a contribuição de Itaparica e grandes a dos demais reservatórios a sua jusante pouco intensificação de usos múltiplos da água expressiva. Em síntese, a operação adequada exigindo de das usinas hidrelétricas visa reter excessos de técnicas avançadas do uso da terra e a água no período chuvoso, para atender a melhoria polos o agroindustriais, aprimoramento contínuo sobre a demanda no período seco, além de atenuar os garantir o efeitos de enchentes a montante. O período gerenciamento adequado dos recursos naturais chuvoso do Alto, Médio e Submedio da bacia da região. hidrográfica do rio São Francisco ocorre entre influência dos com conhecimentos climática para os meses de novembro e abril. 2.1.1 A Usina Hidrelétrica de Sobradinho O Lago de Sobradinho está situado no Submédio do rio São Francisco, a cerca de 40 2.1.2 O Polo Petrolina/Juazeiro Situado no Submédio da bacia km da cidade de Petrolina, PE. A represa em hidrográfica, em área de clima tipicamente sua cota máxima (máxima operativa normal), semiárido, o Polo Petrolina/Juazeiro tem 392,50 apresentado m, forma um lago de aproximadamente 4214,31 km², com 280 km Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. acelerado crescimento da produção agrícola irrigada. É considerado o 776 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 maior e mais dinâmico polo de fruticultura 2.3 Métodos irrigada do Brasil e se destaca frente às Para atingir os objetivos propostos neste condições adversas do semiárido, gerando estudo as análises foram concentradas no empregos e renda na região, além de quadrimestre mais chuvoso da região (janeiro, demonstrar alternativas fevereiro, março e abril) em condições econômicas para o Nordeste. Os efeitos atmosféricas neutras e sob a influência do El danosos de oito meses de estiagem durante o Nino 1997/1998, e do La Nina de 2008/2009, ano são mitigados pelo uso da irrigação, que ambos classificados como eventos de grande proporciona condições ideais para a produção intensidade. agrícola (Oliveira Filho et al., 2008). A fluviométricos iniciativa privada vem mostrando acentuado Juazeiro BA situado a aproximadamente 50 dinamismo na Região destacando-se na km da barragem de Sobradinho e de Floresta produção de manga e uva, em grande parte PE no rio Pajeú, um dos principais afluentes voltada para a exportação. do São Francisco (Figura 3), foram usados a eficácia de Dados pluviométricos coletados nos postos e de conjuntamente para analisar a relação chuva 2.2 Dados vazão sob a atuação do El Nino 97/98 e La Para atingir os objetivos propostos neste Nina 2007/2008. estudo foram utilizados: 1. Dados de vazão das estações fluviométricas de Juazeiro – PE e 2.3.1 Índice de Anomalia de Precipitação Floresta – PE, para os biênios 1997/1998 e (RAI) 2007/2008, obtidos através do Sistema de A avaliação da durabilidade dos períodos Informações da secos e úmidos, grau de severidade e extensão (ANA); da área afetada por eventos extremos de Disponível em < http://www.ana.gov.br>; 2) precipitação foi feita com base no Índice de Totais mensais de precipitação coletados no Anomalia de Precipitação RAI (Rainfall período entre 1961 e 2010 em 37 postos Anomaly Index), desenvolvido por ROOY, pluviométricos situados nos Estados da Bahia, (1965). O RAI foi escolhido como método de Sergipe, Alagoas e Pernambuco pertencentes análise, dada a facilidade no procedimento ao computacional, que consiste simplesmente da Agência Nacional Instituto (INMET); Hidrológicas, Hidroweb, de Nacional 3. Águas de Meteorologia Informações do determinação de anomalias extremas de CLIMANÁLISE e mapas contidos no site do precipitação. Centro de Previsão de Tempo e Estudos segundo as equações (1) e (2). Climáticos NN RAI 3 , para anomalias positivas; M N (CPTEC); Disponíveis em http://www.cptec.inpe.br/products/climanalise /. Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. Os valores foram obtidos (1) 777 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 NN RAI 3 XN , para anomalias negativas, Alagoas e Pernambuco M Média das dez maiores precipitações (2) da série histórica; Em que: X Média das dez menores precipitações N Precipitação medida (anual, mensal, da série histórica. semanal, diária); A localização geográfica dos 37 postos N Precipitação média da série histórica; pluviométricos nos Estados da Bahia, Sergipe, M Média das dez maiores precipitações Alagoas e Pernambuco são apresentados na da série histórica; Figura 1. O número de postos selecionados X Média das dez menores precipitações permitiu analisar a distribuição espacial e da série histórica. A localização geográfica dos 37 postos pluviométricos nos Estados da Bahia, Sergipe, temporal de anomalias extremas de chuva no Submedio e em parte do Médio São Francisco onde se localiza a represa de Sobradinho. Figura 1. Localização geográfica dos postos pluviométricos nos Estados da Bahia (BA), Sergipe (SE), Alagoas (AL) e Pernambuco (PE). 3. Resultados e Discussão de anomalias positivas e negativas da 3.1 O El Nino 97/98 precipitação para os meses de janeiro, A configuração espacial do RAI apresentada na Figura 2 mostra a distribuição Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. fevereiro, março e abril de 1997 na região de estudo. 778 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 Figura 2. Configuração espacial do índice RAI para: (a) janeiro de 1997, (b) fevereiro de 1997, (c) março de 1997 e (d) abril de 1997. O regime de chuvas em janeiro e fevereiro praticamente não foi intensa foi causada pela entrada de dois alterado sistemas frontais no sul da Bahia, que se apresentando características típicas do período acoplaram à ZCAS, aumentando o volume de úmido. No entanto, em março e abril chuvas no interior e no sul da Região. praticamente todo o Estado da Bahia foi Comportamento inverso é observado na afetado com chuvas acima da média. Nota-se configuração espacial do RAI, para janeiro, que o índice RAI atinge valores da ordem de fevereiro, março e abril de 1998, fase mais 9,5 no mês de março de de 6,0 no mês de ativa do fenômeno El Nino apresentado na abril. Estes valores indicam que a precipitação Figura 3. foi bem acima da média climatológica. Além da influência do El Nino, a De acordo com dados do CPTEC atuação de vórtices ciclônicos de altos níveis desvios positivos de até 500 acima da normal inibiu o desenvolvimento de nuvens na região foram registrados no período e a precipitação e contribuiu ainda mais com a redução das Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. 779 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 chuvas na maioria das localidades analisadas. observados em todos os Estados do Nordeste. Esse observado Valores positivos do RAI são observados normalmente em áreas sob a influência do somente no extremo sul da Bahia. Esses centro do VCAN. resultados estão de acordo com informações comportamento é Valores negativos do RAI distribuídos apresentadas em outros estudos desenvolvidos em praticamente toda a área de estudo na região (Cavalcanti E Kousky, 2009; indicam redução significativa das chuvas. Carvalho E Jones, 2009). Desvios negativos de precipitação foram Figura 3. Índice RAI: (a) janeiro 1998, (b) fevereiro 1998, (c) março 1998 e (d) abril 1998. 3.2 O Evento de 2007/2008 Sob o ponto de vista hidrológico a mudança O biênio 2007/2008 foi caracterizado nas condições atmosféricas produziu impactos pela influência do fenômeno La Nina significativos na intensidade e distribuição classificado pelo CPTEC como um episódio espacial das chuvas e afetou o volume de de forte intensidade <www.cptec.inpe.br>. água dos reservatórios das hidrelétricas Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. 780 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 situadas na região. (Figura 4b) os valores negativos do RAI A configuração espacial do RAI para indicam precipitação abaixo da média os meses de janeiro, fevereiro, março e abril climatológica em quase toda a área da região de de estudo. 2007 é apresentada na Figura 4. Nitidamente com exceção do mês de fevereiro Figura 4. Configuração espacial do índice RAI para: (a) janeiro 2007, (b) fevereiro 2007, (c) março 2007 e (d) abril 2007. Neste período o fenômeno La Nina período. Segundo dados do CPTEC apesar de ainda não se encontrava em sua fase mais chuvas intensas isoladas o posicionamento ativa e anomalias negativas de chuva são destes sistemas contribuiu com o aumento da observadas em grande parte da região. O RAI subsidência e redução da precipitação em atinge valores da ordem de -3,5. A atuação de grande parte da Região Nordeste nos meses vórtices de janeiro, março e abril. ciclônicos de altos níveis foi responsável pelas anomalias observadas neste Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. No mês de fevereiro, entretanto, a 781 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 atuação da zona de convergência intertropical apresentadas na Figura 5 ilustram a atividade (ZCIT) em associação com o posicionamento convectiva associada com a atuação do dos centros dos vórtices de altos níveis na VCAN, nos dias 04 e 30 de janeiro de 2007 as área oceânica favoreceu o aumento das 21 TMG (Figura 5a,b) e nos dias 03 e 22 de chuvas na região. Núcleos máximos do RAI fevereiro de 2007 as 21:00 TMG, (Figura 5 com valores acima de 5,0 indicam anomalias c,d). O deslocamento para leste do último positivas de chuva em localidades próximas episódio do VCAN foi responsável pelo ao município de Lençóis na Bahia (12º33´S; aumento significativo da nebulosidade e 41º23´W). Segundo dados do CPTEC chuvas desenvolvimento de convecção profunda diárias excederam 100 mm. observada na imagem do dia 03 de fevereiro Imagens do satélite GOES 10 (Figura 5c). Figura 5. Imagens do satélite GOES 10 no canal infravermelho para os dias: (a) 04/01/2007, (b) 31/01/2007, (c) 03/02/2007 e (d) 22/02/2007, às 21:00 TMG. Fonte: Modificada do CPTEC (www.cptec.inpe.br) A configuração espacial do RAI para os meses de janeiro, fevereiro, março e abril de 2008 é apresentada na Figura 6. Conforme dados do National Oceanic and Atmospheric Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. Administration este período coincide com a fase mais ativa do La Nina 2007/2008. Valores negativos do RAI em praticamente toda área de estudo no mês de 782 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 janeiro e em alguns setores da região nos negativas de chuva e, portanto, a ocorrência meses de março e abril indicam anomalias de chuvas abaixo da média climatológica. Figura 6. Índice RAI: (a) janeiro 2008, (b) fevereiro 2008, (c) março 2008 e (d) abril 2008. Inúmeros trabalhos na literatura nuvens decorrente da atuação do centro do mostram que existe uma relação direta entre a VCAN ocorrência de eventos de La Nina e chuva subsidência nesta área acentuou as condições acima da média climatológica na região de céu claro na Bahia. Nordeste (Vianello Et Al, 2001; Alves E no interior do continente. A Entre os dias 26 e 29 de fevereiro de Repelli, 1992). Neste contexto, os resultados 2008, obtidos neste estudo estariam aparentemente precipitação, em desacordo. No entanto, como no caso elétricas sobre diversos estados do Nordeste, discutido anteriormente, em janeiro de 2008 principalmente na BA. Segundo informações verificou-se uma alta frequência de VCAN do CPTEC houve registro de alagamentos, com forte influência na distribuição espacial inundação de casas, deslizamentos de terra e das chuvas na área de estudo. Na imagem inúmeros outros prejuízos. Devido à escassez apresentada na Figura 7 nota-se a ausência de de estações meteorológicas na Região, não foi Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. ocorreram volumes ventos fortes elevados e de descargas 783 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 possível quantificar a ocorrência de eventos que o registrado extremos com alta resolução espacial e informações possivelmente em algumas localidades os Meteorologia (INMET). do oficialmente, Instituto segundo Nacional de volumes de chuva podem ter sido maiores do Figura 7. Imagem do satélite GOES-10, ilustrando a atuação do VCAN no dia 04 de janeiro de 2008 as 17:45 TMG. Este padrão atmosférico, associado ao apresentados nesta seção têm como objetivo intenso aquecimento diurno característico da mostrar o impacto dos episódios El Nino região, atmosférico 1997/1998 e La Nina 2007/2008 nos recursos extremamente favorável ao aumento da hídricos do Submedio da bacia hidrográfica. instabilidade convectiva e altos índices Esta região se destaca pela forte influência pluviométricos. As chuvas no mês de março e antrópica (armazenamento/uso da água para abril de 2008, produzidas pela atuação geração de energia elétrica e irrigação) que conjunta da ZCIT e VCAN, contribuíram com levou a mudanças substancias no regime o aumento substancial do teor de umidade na hidrológico local. A jusante da Hidrelétrica de atmosfera. Valores bastante elevados do RAI Sobradinho nos Estados de Pernambuco, Sergipe, Alagoas vulneráveis a situação de eventos extremos de e em localidades situadas a oeste da Bahia chuva e, portanto, sujeitas a ocorrência de indicam ocorrência de chuvas bem acima da inundações. Outras áreas são mais afetadas normal climatológica. por secas severas decorrentes de períodos tornou o ambiente muitas localidades são longos de estiagens. 3.3 Relação Chuva-Vazão Os resultados de análises hidrológicas Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. A evolução da precipitação e vazões observadas nos postos de Juazeiro e Floresta 784 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 entre janeiro de 1997 e dezembro de 1998, período seco independente da localidade sob a influência do fenômeno El Nino são analisada. No entanto, somente em Floresta é apresentados na Figuras 8a e 8b. A análise possível verificar uma relação direta entre a dos histogramas de precipitação (cor azul) chuva e a vazão. Vazões superiores a 100 revela claramente a influência sazonal com m3/s (cor vermelha) são observadas em abril e valores mais altos no período chuvoso maio de 1997 em resposta a vários dias com (novembro a abril) e redução das chuvas no chuva no período. Juazeiro (Chuva-Vazão) 1997-1998 Chuva Vazão 4500 35 4000 30 3000 20 2500 15 2000 1500 10 Vazão (m³/s) Chuva (mm) 3500 25 1000 5 500 0 01/01/1997 01/02/1997 01/03/1997 01/04/1997 01/05/1997 01/06/1997 01/07/1997 01/08/1997 01/09/1997 01/10/1997 01/11/1997 01/12/1997 01/01/1998 01/02/1998 01/03/1998 01/04/1998 01/05/1998 01/06/1998 01/07/1998 01/08/1998 01/09/1998 01/10/1998 01/11/1998 01/12/1998 0 (a) Floresta (Chuva-Vazão) 1997-1998 70 160 60 140 120 50 100 40 80 30 60 20 Vazão (m³/s) Vazão 40 10 20 0 0 01/01/1997 01/02/1997 01/03/1997 01/04/1997 01/05/1997 01/06/1997 01/07/1997 01/08/1997 01/09/1997 01/10/1997 01/11/1997 01/12/1997 01/01/1998 01/02/1998 01/03/1998 01/04/1998 01/05/1998 01/06/1998 01/07/1998 01/08/1998 01/09/1998 01/10/1998 01/11/1998 01/12/1998 Chuva (mm) Chuva (b) Figura 8. Evolução diária da precipitação e vazão medidas nos postos de Juazeiro -BA e Floresta PE, no período de 1997 a 1998. Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. 785 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 No posto de Juazeiro, entretanto, não é 2006). possível observar esta relação direta entre a As chuvas locais tem pouca influência chuva e a vazão. Claramente as vazões na vazão medida nesta localidade. Segundo o matem-se com valores elevados em, torno de OSN (Operador Nacional do Sistema) no 2000 m3/s, para todo o período analisado. No Brasil, a vazão defluente é igual a vazão total mês de abril a vazão atingiu valores da ordem que sai de um reservatório num determinado de 4000 m3/s. Nesta o intervalo de tempo e equivale a soma da comportamento da vazão é definido em vazão turbinada mais a vazão vertida e a função da operação da represa de Sobradinho vazão eventualmente existente e utilizada para construída com o objetivo principal de manter finalidades outras que não a geração de o funcionamento das usinas a jusante do lago. energia elétrica. A evolução conjunta das Chuvas acima da média, no Alto São vazões defluentes de Sobradinho (cor verde) e Francisco defluentes de juazeiro (cor vermelha) apresentada na elevadas em Sobradinho e consequentemente Figura 9 mostra um comportamento idêntico em Juazeiro (Correia, 2001; Correia, et al, sob a influência do El Nino 97/98. determinam localidade vazão Vazões ( Juazeiro - Sobradinho) 1997-1998 Chuva Vazão Juazeiro Vazão Defluência de Sobradinho 4500 35 4000 30 25 3000 2500 20 2000 15 1500 10 Chuva (mm) Vazão (m³/s) 3500 1000 5 500 0 01/01/1997 01/02/1997 01/03/1997 01/04/1997 01/05/1997 01/06/1997 01/07/1997 01/08/1997 01/09/1997 01/10/1997 01/11/1997 01/12/1997 01/01/1998 01/02/1998 01/03/1998 01/04/1998 01/05/1998 01/06/1998 01/07/1998 01/08/1998 01/09/1998 01/10/1998 01/11/1998 01/12/1998 0 Figura 9. Evolução diária da precipitação e vazões defluentes em Sobradinho medidas no posto de Juazeiro - BA no período de 1997 a 1998. A evolução da precipitação e vazões observadas nos postos de Juazeiro e Floresta entre janeiro de 2007 e dezembro de 2008, Sobradinho para Juazeiro também foram incluídas (Figura 10b). Verifica-se que os valores da são apresentadas nas Figuras 10a e 10b. precipitação sob a influência do La Nina Informações sobre vazões defluentes em foram mais altos quando comparados com os Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. 786 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 dados do evento de El Nino, no entanto, o determinadas pela operação da Usina de comportamento sazonal é semelhante com a Sobradinho. A evolução das curvas da ocorrência de chuvas no período úmido e defluência de Sobradinho (verde) e vazões estiagem no período entre maio e outubro. medidas Também é possível observar que para semelhantes. localidade de Juazeiro as vazões em juazeiro (vermelho) são são Floresta (Chuva-Vazão) 2007-2008 Chuva Vazão 90 1400 80 1200 1000 60 50 800 40 600 30 400 Vazão (m³/s) Chuva (mm) 70 20 200 10 0 01/01/2007 01/02/2007 01/03/2007 01/04/2007 01/05/2007 01/06/2007 01/07/2007 01/08/2007 01/09/2007 01/10/2007 01/11/2007 01/12/2007 01/01/2008 01/02/2008 01/03/2008 01/04/2008 01/05/2008 01/06/2008 01/07/2008 01/08/2008 01/09/2008 01/10/2008 01/11/2008 01/12/2008 0 (a) (b) Figura 10. Evolução diária da precipitação e vazão medidas nos postos de Juazeiro - BA e Floresta – PE no período de janeiro de 2007 a dezembro de 2008. Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. 787 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 O biênio 2007-2008 foi considerado na área central do sistema inibiu o bastante significativo sob o ponto de vista desenvolvimento de nuvens convectivas e hidrológico com fortes impactos nos recursos precipitação em várias localidades da região. hídricos da região. Segundo dados da ANA, De acordo com a ANA, (2008) o pico de em março de 2006 e também em março de vazões afluentes, em Sobradinho, foi muito 2007 o reservatório de Sobradinho atingiu maior em 2007 100% de sua capacidade de armazenamento do que em 2008. Esse aumento levou à de água o que garantiu pleno funcionamento necessidade de verter água pelas comportas das atividades econômicas relacionadas com sem gerar energia, já que o reservatório tinha os setores de geração de energia e agricultura atingido 100% de armazenamento. irrigada na região. No entanto, em 2008 o volume acumulado não chegou a 75%. Esses 4. Conclusões resultados mostram que mesmo com o aumento do volume das chuvas nas localidades situadas região de Sobradinho em As análises realizadas neste trabalho permitiram concluir que: 1. O uso do RAI representa um método 2008, o reservatório foi esvaziado num ritmo eficiente muito rápido. intensidade e área afetada por eventos Esse resultado reflete a necessidade de um maior controle do gerenciamento dos na determinação da extremos de chuva; 2. Existe uma relação entre a atuação do recursos hídricos da região. Apesar do La ENOS (El Nino Oscilação Sul) e a Nina contribuir com o aumento na frequência variabilidade no volume das chuvas na e intensidade das chuvas no semiárido, a região semiárida, no entanto, sistemas precipitação é de natureza convectiva e ocorre atmosféricos de escala sinótica como em áreas isoladas. Além do mais, as vazões os vórtices ciclônicos de altos níveis afluentes que definem em grande parte o podem alterar substancialmente o volume são impacto deste fenômeno favorecendo fortemente controladas pelas chuvas no Alto ou inibindo o desenvolvimento de São Francisco onde em episódios da La Nina sistemas precipitantes intensos; de água em Sobradinho observa-se normalmente uma redução do volume das chuvas. 3. O regime hidrológico da zona semiárida da bacia hidrográfica do rio São É importante ressaltar que no início de Francisco foi fortemente afetado pelas 2007 a região ainda não estava sobre a atividades antrópicas (construções de influência do fenômeno La Niña e alguns usinas hidrelétricas). As regras de episódios de VCAN contribuíram ainda mais operação da barragem de Sobradinho com a redução da precipitação. A subsidência são determinantes nas vazões a jusante Gurjão, C. D. S.; Correia, M. F.; Chaves Filho, J. B.; Aragão, M. R. S. 788 Revista Brasileira de Geografia Física 04 (2012) 774-790 da represa e influenciam fortemente nos Carvalho, L. M. V.; Jones, C. (2009). Tempo eventos de cheias e inundações em áreas e Clima no Brasil, São Paulo: Oficina do vulneráveis aos eventos extremos de Texto, cap. 5, p. 95-109. chuva. Correia, Mf, Dias, M.A.F. Silva Aragão, M.R.S. 5. Agradecimentos (2006). Soil Occupation and Os autores agradecem ao Instituto Atmospheric Variations over Sobradinho Nacional de Meteorologia e a Agência Lake Area. Part Two: A Regional Modeling Nacional das Águas pela cessão dos dados Study. meteorológicos Physics. v.94, p.115-128. e ao CNPQ (Conselho Meteorology and Atmospheric Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) pelo apoio financeiro e concessão das bolsas de Iniciação Científica do primeiro e terceiro autores (Processo Correia, M. F. (2001). Impacto das Ações Antrópicas no Clima do Submédio do Rio São Francisco: Um Estudo Numérico e Observacional. Tese de doutorado. IAG-USP. Número 508316/2010-3). São Paulo. 6. Referências Correia, M. F.; Dias, M. A. F. S. (2003). Alves, J. M. B.; Souza, E. B.; Repelli, C. A.; Ferreira, N. S. (1997). Um estudo da variabilidade pluviométrica no setor leste do nordeste brasileiro e a influência do fenômeno E1 Nino/ Oscilação Sul. Revista Brasileira de Variação do Nível do Reservatório de sobradinho e seu Impacto Sobre o Clima da Região. Revista Brasileira de Recursos Hídricos, Porto Alegre / Brasil, v. 8, n. 1, p. 157-168. Meteorologia, v. 12, n.2, p.25-40. ANA. Agência Nacional de Águas, Relatório nº 005/2008/SOF/SUM DOCUMENTO Nº 00000.009630/2008. (Disponível em: www.ana.gov.br). Gonçalves, W. A.; Correia, M. F.; Araújo, L. E.; Da Silva, D. F.; Araújo, H. A. (2006). Vulnerabilidade Climática do Nordeste Brasileiro: Uma análise de eventos extremos na Zona Semi-árida da bacia hidrográfica do CPTEC. Centro de Previsão de Tempo e São Francisco. 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