Câncer do Fígado

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Câncer do
Fígado
Dr. Stéfano Gonçalves Jorge
INTRODUÇÃO
Uma das primeiras representações da anatomia e
fisiologia do fígado foi encontrada em papiros egípcios, em
cerca de 1550 a.C. Na Ilíada e na Odisséia, (no oitavo
século a.C.), Homero descrevia a anatomia do fígado e o
definia como um órgão vital, pois quando ferido levava à
morte. O estudo do fígado (denominado hepatologia)
progrediu na antiguidade com os filósofos pré -socráticos, a
escola hipocrática e os romanos (principalmente Aulus
Cornelius Celsus e Aretaeus de Cappadocia), alcançando seu
máximo desenvolvimento com Galeno.
Durante a Idade Médi a, a hepatologia estagnou como
praticamente todas as áreas da ciência. Os conhecimentos
adquiridos por Galeno foram transmitidos integralmente até
o Renascimento, sem qualquer avanço. Como em tantas
outras áreas da ciência, foi a vez de Leonardo da Vinci
(1452-1519) exercer sua genialidade. Da Vinci é
considerado o pai da hepatologia moderna, descrevendo a
anatomia do fígado no homem, com a veia porta, veias
hepáticas, vasos intra -hepáticos e as vias biliares. Uma das
doenças que descreveu foi a cirrose.
Leonardo da Vinci (1452-1519)
Desde então, a hepatologia se desenvolveu rapidamente.
Se na antiguidade suspeit ava-se que o fígado era o órgão
responsável pela formação do sangue (e como a sede da
alma e dos sentimentos), hoje temos uma idéia mais
precisa da sua importância.
O fígado é responsável, entre muitas outras coisas, pela
formação da bile (e, portanto i ndispensável à digestão dos
alimentos); pela transformação e retirada de substâncias
nocivas ao organismo (inclusive o álcool); pela coagulação
do sangue; pelo depósito de energia em casos de
necessidade; pela utilização das gorduras; pela defesa do
organismo contra bactérias; pela formação da maioria das
proteínas e, claro, auxilia a medula óssea na formação do
sangue.
O FÍGADO
O fígado é um órgão relativamente sólido e pesado
(1.200 a 1.500 g), localizado no quadrante superior direito
do abdome. Fica estrategicamente localizado de modo que
praticamente todo o sangue que provém dos intestinos
passa por ele. Desse modo, as substâncias que ingerimos
passam por uma "inspeção" antes de serem encaminhadas
ao restante do organismo. Se forem consideradas
indesejadas, são transformadas em outras e descartadas na
bile ou levadas pelo sangue para serem retiradas pelos rins
na urina. Os remédios que ingerimos seguiriam o mesmo
caminho, se não fossem engenhosamente feitos de modo a
burlar essa defesa. O álcool passa pelo mesmo processo e é
transformado para ser eliminado. O grande problema é que,
se ingerido em grande quantidades, ao ser transformado
torna-se ainda mais tóxico ao fígado, levan do à destruição
celular.
Estudando -se minuciosamente o fígado, descobrimos que
ele é constituído principalmente por vasos sanguíneos
especiais denominados sinusóides, tornando -o parecido com
uma esponja onde o sangue corre lentamente para que o
fígado cumpra suas tarefas. Apesar das suas diversas
funções, ele apresenta uma variedade muito pequena de
células, sendo que duas são responsáveis por grande parte
do funcionamento do órg ão: os hepatócitos e as células
biliares. São essas células que podem sofrer alterações na
sua estrutura genética levando a uma multiplicação
desenfreada e freqüentemente fatal – o câncer.
O HEPATOCARCINOMA
O hepatocarcinoma é o câncer de fígado que sur giu de
hepatócitos. A primeira descrição científica foi feita por
Eggel em 1901, mostrando o resultado de mais de 200
autópsias. Hoje, 100 anos após, sabemos mais sobre o
processo que leva ao seu surgimento, como ele cresce, as
pessoas que tem maior risco de desenvolvê-lo, como fazer o
diagnóstico precoce e – o mais importante – como tratá -lo.
Apesar de raramente ocorrer em pessoas sadias expostas
a certas toxinas, como a aflatoxina (encontrada em
amendoins contaminados, por exemplo) em suas grande
maioria o hepatocarcinoma acomete uma população bem
definida: os portadores de cirrose hepática .
A cirrose hepática é o processo final de diversas doenças
do fígado: as hepatites, as lesões pelo álcool, o uso de
certas medicações, a hemocromatose (acúmulo de ferro) e
as colangites, entre outras. Todas essas doenças provocam
a destruição dos hepatócitos, lentamente, com a formação
de cicatrizes no interior do fígado, determinando a cirrose.
Ao contrário do que se pensa, a maioria das cirroses
atualmente são causadas pelas hepatites B e C. O
alcoolismo ainda é um fator importante, mas não
necessariamente naquelas pessoas que ingerem altas doses
de álcool. Mesmo doses mais modestas (três a quatro
garrafas de cerveja por semana) podem levar à cirrose.
No início, mesmo a cirrose pode ser silenciosa (cerca de
40% dos casos). Os sintomas mais comuns são fraqueza,
fadiga, perda do apetite, emagrecimento, hematomas e
sangramentos espontâneos, irregularidade menstrual,
icterícia (pele e olhos amarelados, pelo acúmulo de bile no
sangue) e dificuldade de manter a concentração. Também
podem ser mais graves, como o coma, vômitos com sangue
e acúmulo de líquido no abdome .
Pessoas com maior risco de cirrose
Fatores de Risco
Doenças Hepáticas Associadas
História familiar
Hemocromatose, doença de
Wilson, deficiência de a 1 antitripsina , fibrose cística,
talassemia
Etilismo (geralmente >
50g/dia)
Lesões hepáticas causadas pelo
álcool (cirrose, esteatose,
hepatite alcoólica)
Hiperlipidemia, diabetes,
obesidade
Esteatose hepática
Transfusão sangüínea
Hepatites B e C
Doenças autoimunes
Hepatite autoimune , cirrose
biliar primária
Medicações
Hepatopatias induzidas por
drogas
Exposições paren terais
(drogadição, profissionais
de saúde)
Hepatites B e C
Homossexualismo
masculino
Hepatite B
Colite ulcerativa
Colangite esclerosante primária
História de icterícia ou
hepatite
Hepatites virais crônicas ou
autoimune , cirrose
Cirurgia hepatobiliar
Estenose dos ductos biliares
O hepatocarcinoma surge do mesmo processo de
destruição e multiplicação de células que leva à cirrose,
através de mecanismos ainda não bem esclarecidos. De um
modo geral, considera -se que uma pessoa portadora de
cirrose silenciosa ou pouco sintomática tenha um risco de
5% ao ano de desenvolver um hepatocar cinoma.
Sintomas mais freqüentes
no hepatocarcinoma
(Japão)
Sintoma
%
Mal-estar geral
60,5
Dor abdominal
46,2
Sensação de abdome
cheio
44,9
Perda do apetite
44,7
Perda de peso
28,9
Ascite (acúmulo de
líquido no abdome)
26,5
Tumor palpável
23,3
Inchaço nas pernas
16,8
Icterícia (pele e olhos
amarelados)
16,7
Febre
16,7
Náusea e vômitos
15,6
Vômitos ou fezes com
sangue
7,6
O hepatocarcinoma é um tumor altamente maligno, que
dobra o seu vo lume a cada 180 dias em média. Mesmo em
seu estágio inicial, ou seja, um tumor pequeno, localizado
em um fígado com bom funcionamento, dá ao seu portador
apenas cerca de oito meses de vida após ser encontrado, se
não for realizado nenhum tratamento. No est ágio mais
avançado, a previsão média é de menos de três semanas de
vida após o diagnóstico. Daí a necessidade do diagnóstico
precoce do hepatocarcinoma, quando este ainda tem boas
opções de tratamento e chance de cura.
Hepatocarcinoma avançado (setas), ocupando o lobo
esquerdo do fígado, em imagem produzida por tomografia
computadorizada.
Como ocorre na grande maioria das vezes em uma
população bem definida, os portad ores de cirrose, é de
fundamental importância que essas pessoas sejam
acompanhadas rotineiramente por um especialista
habituado ao diagnóstico deste tipo de câncer ainda em
suas fases iniciais. O método mais recomendado para isso é
a ultrassonografia abdom inal periódica, realizada por
médico experiente e de exames de sangue, onde são
procuradas substâncias que costumam ser produzidas pelas
células cancerosas. As mais utilizadas são a alfa fetoproteína e o PIVKA II.
A mesma lesão demonstrada por angiografia digital (setas)
Uma vez diagnosticado um hepatocarcinoma precoce
(menor que 2 cm de diâmetro e sem sinais de acometer
outros órgãos), há várias opções de tratamento. A melhor
opção, apesar de muito agressiva, ainda é o transplante do
fígado, onde o órgão doente é substituído por outro sadio.
Outra opção é a hepatectomia, cirurgia onde é retirada a
porção do fígado onde está localizado o tumor.
Hepatocarcinoma demonstrado ao ultra -som (cortesia do
Prof. Dr. Jazon Romilson de Souza Almeida)
Uma terceira opção, muito utilizada pelos japoneses e
que aos poucos vem se tornando difundi da pelo mundo é o
tratamento percutâneo (pela pele) do tumor. Nessa
modalidade terapêutica, o tumor é destruído sem a
necessidade de cirurgia. A injeção percutânea de etanol
(PEI) é um método simples, realizado sob anestesia local e
com raras complicações. Com o auxílio do ultra -som, é
introduzida uma agulha especial no centro do tumor,
através da pele, onde é administrado álcool absoluto (a
100%), provocando a destruição do câncer. Outro método é
a introdução de uma agulha que emite microondas ou
radiofrequência no centro da lesão, com efeito semelhante.
Apesar de simples, rápido e seguro, o tratamento
percutâneo não é tão eficaz quanto o cirúrgico, podendo ser
utilizado antes da cirurgia ou em pessoas que não possam
ou não aceitem a cirurgia. Um outro trat amento cada vez
mais utilizado como paliativo é a quimioembolização da
lesão.
Hepatocarcinoma demonstr ado por ultra -som e aspecto
característico dos vasos nutridores ao power doppler
(cortesia de Prof. Dr. Jazon Romilson de Souza Almeida)
Outras possibilidades são a arteriografia com
embolização, onde os vasos que nutrem o tumor são
obstruídos e a quimioterapia, com resultados muito ruins,
não sendo mais utilizada.
Hepatocarcinoma pequeno ao ultra -som (cortesia de Prof.
Dr. Jazon Romilson de Souza Almeida)
O COLANGIOCARCINOMA
O colangiocarcinoma é o câncer derivado das células
biliares, tanto no interior quanto no exterior do fígado
(vesícula e ductos biliares). Surge principalmente em
homens (3 homens para cada mulher), geralmente entre os
70 e 80 anos. A incidência dessa doença é de 2 a 2,8 casos
a cada 100.000 pessoas. As pessoas de maior risco são
aquelas portadoras de parasitas das vias biliares (raros no
Brasil), colangite esclerosante primária (outra doença que
pode levar à cirrose),colite ulcerativa (doença que leva a
diarréia crônica, com episódios de sangramento, em adultos
jovens) e cálculos biliares.
Aspecto do colangiocarcinoma, obstruindo vias biliares (
setas ) em exame de colangiografia endoscópica.
Esse tipo de câncer cresce silenciosamente nos canais
biliares até que estes sej am obstruídos, levando aos
sintomas de icterícia, fezes claras e urina escura, além de
perda do apetite e emagrecimento. O diagnóstico
freqüentemente só é feito após o início dos sintomas,
quando as possibilidades de tratamento são poucas e
geralmente inef icazes. Quando descoberto em tempo, o
tratamento é cirúrgico. Quando este não pode mais ser
realizado, são utilizados outros métodos de desobstrução
dos canais biliares, para melhorar a qualidade de vida e
dignidade do paciente.
TUMORES METASTÁTICOS
Pela sua posição estratégica e para cumprir suas funções,
o fígado recebe sangue diretamente de diversos órgão e
indiretamente de todo o organismo. Por esse e outros
motivos, é nele que a grande parte das células cancerosas
de outras partes do organismo, que caem na circulação
sanguínea, acaba se alojando e produzindo um novo tumor.
Esse novo tumor é chamado de metástase.
Localização original de tumores metastáticos no
fígado
Local
%
Vesícula
78
Pâncreas
70
Cólon e reto
56
Seio
53
Pele
50
Estômago
44
Pulmão
42
Bexiga
38
Útero
32
Esôfago
30
Rim
24
Próstata
13
O diagnóstico de uma metástase hepática pode ser
realizado durante a investigação de um tumor em outros
órgãos, ou pode ser a prim eira manifestação de um câncer
de outra localidade. Em alguns casos, apenas a metástase
hepática é descoberta e a localização inicial do tumor
permanece desconhecida.
As metástases ocorrem de tumores altamente malignos,
podendo acometer vários órgãos concomitantemente. No
fígado, as lesões tendem a ser maiores e múltiplas, levando
à destruição hepática. Por esse motivo, os sintomas iniciais
podem ser os mesmos de uma cirrose hepática severa.
O tratamento é muito variado dependendo do tipo de
tumor e a sua origem. De modo geral, o tratamento é
cirúrgico ou quimioterápico, reservando -se outros
procedimentos como os percutâneos apenas para casos
excepcionais.
CONCLUSÃO
O fígado é um órgão de fu ndamental importância ao
organismo e pode ser acometido por muitas doenças
diferentes, a maior parte delas silenciosa. Durante o
desenvolvimento dessas doenças, o fígado sofre um
processo de destruição de células com proliferação de
outras, predispondo -se ao aparecimento de células
geneticamente defeituosas que podem se tornar focos de
câncer. Devido à alta agressividade do câncer do fígado,
pelo fato de que só há bom resultado com o tratamento da
lesão inicial e por ser geralmente assintomático nessa fase,
é fundamental que os indivíduos de risco façam exames
periódicos. Uma vez descoberto o câncer precoce, diversas
formas de terapia estão disponíveis, desde as muito
agressivas até tratamento clínico com anestesia local.
Os cânceres provenientes das vias biliares e de outros
órgãos que metastatizam para o fígado tem um prognóstico
mais reservado, também dependendo do estágio do tumor.
Novamente, é de fundamental importância que o
diagnóstico seja realizado rapidamente para melhorar as
possibilidades de cur a.
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