Autor: Alisson de Bom e Souza 1 APLICAÇÃO DA LEI N. 9.784/1999 NOS ATOS DE COMUNICAÇÃO DO PROCESSO DEMARCATÓRIO DE TERRAS INDÍGENAS Endereço eletrônico: [email protected] [email protected] 1 P r o c ur ad o r d o Es tad o d e Sa nt a C atar i na. E sp e cia li st a e m Dir ei to P ú b lico e e m D ir e it o Co n st it uc io na l. APLICAÇÃO DA LEI N. 9.784/1999 NOS ATOS DE COMUNICAÇÃO DO PROCESSO DEMARCATÓRIO DE TERRAS INDÍGENAS Introdução A tese ora proposta tem como referência conceitual a demarcação de terras indígenas prevista no artigo 231 da Constituição Federal de 1988. A Carta Magna reconheceu aos índios “[...] os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las [...]”. Apesar de a União ser o ente federado responsável pela demarcação de terras indígenas, as demais pessoas federativas têm o dever-poder de participar do processo demarcatório, seja pela relevância dos valores e bens jurídicos envolvidos, seja pela possibilidade de transferência à União de parcelas consideráveis de seus territórios. Ademais, a demarcação de terras indígenas é tema de complexidade peculiar, pois trata de interesses, muitas vezes, estranhos à civilização, tendo as comunidades indígenas usos, tradições e costumes típicos, o que exige maior rigorismo no reconhecimento do direito originário sobre a terra e, ao mesmo tempo, acarreta em maior flexibilidade científica na afirmação desse direito. O Procurador do Estado, tanto na função consultiva, ao orientar o agente público estadual na seara administrativa, quanto no exercício de atividade contenciosa, no caso de processos judiciais que discutam a validade de processos demarcatórios de terras indígenas, tem a missão de garantir a rigorosa aplicação do art. 231 da Constituição Federal. O Estatuto do Índio (lei federal n. 6.001/1973) estabeleceu no art. 19 a competência da FUNAI para o processamento administrativo de demarcação de terras indígenas: Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo. O Decreto Federal n. 1.775/1996 é o instrumento normativo que regula o processo administrativo de demarcação de terras indígenas. Estabelece no seu art. 1º a competência do órgão federal de assistência ao índio para a demarcação administrativa: Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto. Ocorre que a processualidade prevista no Decreto n. 1.775/1996 é precária, parcial e incapaz de harmonizar os valores constitucionais em jogo. A eficácia do art. 231 da Constituição Federal não se dá por meio do processo demarcatório previsto no decreto federal. É tão desproporcional e mal formulado que a União não conseguiu respeitar o mandamento do art. 67 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, cujo teor determina que "A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição". São notórios os casos de demarcações de terras indígenas que perduram até os dias atuais. O que era para ser respeitado se tornou letra morta, pois é penoso concluir demarcações de terras indígenas no Brasil nos moldes previstos na legislação infraconstitucional, especialmente pelo caráter imperial e desproporcional do processo administrativo demarcatório previsto no Decreto n. 1.775/1996. O fato é que na execução da processualidade demarcatória se desconsidera a lei n. 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Especificamente, esta tese analisa a comunicação dos atos do processo demarcatório aos respectivos interessados, assim como propõe a necessidade de aplicação da lei do processo administrativo federal nos processos demarcatórios de terras indígenas, no escopo de garantir a participação efetiva dos Estados da Federação e dos demais interessados. Estados da Federação como interessados diretos no processo administrativo demarcatório de terras indígenas O art. 9º da lei n. 9.784/1999 apresenta o rol de interessados no processo administrativo, verbis: Art. 9o São legitimados como interessados no processo administrativo: I - pessoas físicas ou jurídicas que o iniciem como titulares de direitos ou interesses individuais ou no exercício do direito de representação; II - aqueles que, sem terem iniciado o processo, têm direitos ou interesses que possam ser afetados pela decisão a ser adotada; III - as organizações e associações representativas, no tocante a direitos e interesses coletivos; IV - as pessoas ou as associações legalmente constituídas quanto a direitos ou interesses difusos. O Decreto n. 1.775/1996 informa quem são os interessados quando garante no §3° do art. 2º a participação do grupo indígena envolvido em todas as fases do procedimento. Já no §8° do art. 2º possibilita aos Estados e Municípios em que se localize a área sob demarcação e aos demais interessados a apresentação de manifestação ao estudo de identificação da terra indígena. Os "demais interessados" são, em geral, os ocupantes não-índios da área a ser demarcada, sejam proprietários ou posseiros, além das organizações ligadas à causa indígena e as associações que representem os moradores não-índios da região a ser demarcada ou outros interesses em jogo, tais como meio ambiente, mineração. O Estado da Federação afetado pela pretensão demarcatória é fundamental para o resultado final do processo administrativo, haja vista, inclusive, que a União, por meio da FUNAI, e o Ministério Público, têm como função, respectivamente, a proteção e a defesa judicial dos índios, ou seja, são constitucionalmente parciais. As unidades federadas, na medida em que organizadas autonomamente dentro de um dado território, têm interesse em resguardar os limites e a abrangência espacial para o exercício de suas competências. Como referido, o próprio Decreto n. 1.775/1996 reconhece o interesse direto dos entes federados na demarcação de terras indígenas em seus territórios. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Petição n. 3.388, que tratou da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, consignou a necessidade de ampla e efetiva participação dos entes federados interessados, quais sejam, aqueles em cujo território estão encravadas as terras indígenas objeto da demarcação. O Ministro Menezes Direito afirmou em seu voto a obrigatoriedade de manifestação dos entes federados: A manifestação dos entes federativos cujos territórios forem abrangidos pela terra indígena não pode ser meramente facultativa, porém obrigatória, e deve ocorrer sobre o estudo de identificação, sobre a conclusão da comissão de antropólogos e sobre o relatório circunstanciado do grupo técnico (art. 2º, §6º), sem prejuízo do disposto no §8º do art. 2º do Decreto n. 1.775/96. 2 O Ministro Celso de Mello, por sua vez, alerta para a necessidade de realização até mesmo de audiência pública para se resguardar a autonomia institucional do Estadomembro em face de substancial redução de sua base física, verbis: 2 STF. P e ti ção n. 3 3 8 8 , Re la to r ( a) : M i n. Car lo s Br it to , Tr ib u n al P l eno , j ul g ad a e m 1 9 /0 3 /2 0 0 9 , Acó r d ão no DJ e e m 0 1 -0 7 -2 0 1 0 . Ace s sad o e m 1 8 /0 8 /2 0 1 3 . D i sp o ní ve l e m http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612760. p . 1 87 . O Poder Executivo da União, na realidade, pode, Senhor Presidente, mediante utilização abusiva da demarcação administrativa de terras indígenas, comprometer, gravemente, a incolumidade jurídica do Estado Federal brasileiro, promovendo dramática redução da base geográficoterritorial de certa unidade federada, fazendo-o mediante reconhecimento, como terras indígenas – pertencentes, em conseqüência, ao patrimônio da União Federal -, de extensas áreas localizadas no Estado-membro. Daí a necessidade, Senhor Presidente, de rígido controle jurisdicional, quando regularmente provocado por quem se julgue injustamente lesado, do procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas – sem prejuízo da possibilidade, na fase administrativa do procedimento demarcatório, de prévia audiência pública, com ampla participação das unidades federadas interessadas -, em ordem a impedir que a autonomia institucional do Estado-membro venha a ser afetada em decorrência de substancial redução de sua base física, causada pelo arbitrário reconhecimento, como área indígena, de terras cuja ocupação não se ajuste aos parâmetros definidos no art. 231 da Constituição e, também, no Estatuto do Índio. 3 Desse modo, os Estados da Federação são interessados no processo administrativo demarcatório e a garantia de sua participação efetiva prestigia o pacto federativo, contribuindo para o fiel cumprimento do art. 231 da Constituição Federal, sobrelevando o dever das unidades federadas de defender seu território de infundadas pretensões demarcatórias. Processo administrativo como sinônimo de devido processo legal administrativo O processo administrativo é o meio pelo qual a Administração Pública sintetiza as diversas pretensões em interesse público. Conforme a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o processo administrativo “existe sempre como instrumento indispensável para o exercício de função administrativa; tudo o que a Administração Pública faz, operações materiais ou atos jurídicos, fica documentado em um processo” 4. Nessa linha, José dos Santos Carvalho Filho afirma que o processo administrativo é "o instrumento que formaliza a seqüência ordenada de atos e de atividades do Estado e dos particulares a fim de ser produzida uma vontade final da Administração" 5. A natureza processual desse instrumento referenciado por Carvalho Filho exige a aplicação das garantias constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, traduzindo no chamado devido processo administrativo. É essa a explicação de Alexandre de Moraes quando afirma: 3 ST F. P e tiç ão n. 3 3 8 8 . Op . c it. p . 5 0 6 -5 0 7 d o A có r d ão . DI P I ETR O, M ar i a S y lv ia Za ne lla . Di r ei to A d min is t ra t ivo . 1 7 ª ed . São P a ulo : A tl as , 2004. p. 530. 5 C A RV A LHO FI LH O, J o sé d o s S a nto s. Ma n u a l d e Di re ito Ad min i s t ra t ivo . 2 5 ª ed . r e v., a mp l. e a t ual . a té a le i n . 1 2 .5 8 7 /2 0 1 2 . São P a ul o : A tla s, 2 0 1 2 . p . 9 6 1 . 4 O devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial criminal e civil ou em procedimento administrativo, inclusive nos militares, e aos acusados em geral, conforme o texto constitucional expresso (art. 5º, LV). 6 (grifou-se) As fases do processo administrativo, em geral, são fase inaugural ou de instauração, fase instrutória, fase decisória e fase de comunicação. Em alguns casos há a fase controladora. A fase instauradora versa sobre os atos que iniciam o processo. A lei n. 9.784/1999, em seu capítulo IV, trata do início do processo. A fase instrutória caracteriza-se pelo direito de produzir provas. Está regulada na lei 9.784/1999 no capítulo X. A fase decisória é o momento em que a Administração está apta a decidir. O capítulo XI da lei n. 9.784/1999 cuida do dever de decidir. Já a fase controladora ocorre em alguns tipos de processos, como é o caso do tratado nesta tese, pois é o momento em que a decisão final é controlada por autoridade superior, culminando na aprovação ou reprovação dos atos anteriores. Por fim, a fase de comunicação é o momento em que a Administração providencia a comunicação da decisão final aos interessados, no escopo de permitir a estes sua impugnação administrativa ou judicial. A lei n. 9.784/1999, em seu artigo inaugural, aponta a proteção dos direitos dos administrados e melhor cumprimento dos fins da administração como finalidades do processo administrativo. Nas palavras de Cristiana Fortini: A lei federal em foco, ao estabelecer normas básicas sobre processo administrativo, cumpre o objetivo de guiar o particular na busca da ampla defesa e do contraditório, garantindo-lhe o devido processo legal, além de nortear a atuação administrativa. 7 Nesse sentido, os processos administrativos devem guardar íntima relação com as garantias constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Comunicação dos atos no processo administrativo federal A lei n. 9.784/1999 regula no seu Capítulo IX a comunicação dos atos do processo administrativo. Antes disso, o art. 3º da referida lei prevê dentre os direitos dos administrados: Art. 3o O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados: [...] 6 MO R AES , A le xa nd r e d e. D ir ei to s Hu ma n o s Fu n d a men ta i s. 9 ª ed . São P au lo : At la s, 2 0 1 1 . p. 297. 7 FO RTI NI , Cr i s tia n a; P EREI R A, M ar i a Fer n a nd a P ir es d e C ar va l ho ; C AMA R ÃO , Tat ia n a Mar t i n s d a Co s ta. Pro ce s so Ad min is t ra t ivo : co m en tá rio s à Le i n . 9 .7 8 4 / 1 9 9 9 . 2 ª ed . Be lo Ho r izo n te : Fó r u m, 2 0 1 1 . p . 3 1 . II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas; [...] Tal previsão retrata que “o processo administrativo aberto, visível, participativo, é instrumento seguro de prevenção à arbitrariedade” 8. A busca pela participação efetiva de todos os interessados no processo administrativo está vinculada ao dever de a Administração Pública respeitar o devido processo, o contraditório e a ampla defesa, com matriz no art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal. Nas palavras de Mônica Simões: O processo administrativo é um dos mais efetivos instrumentos de resguardo dos direitos dos administrados, na medida em que obriga a Administração Pública a observar determinados trâmites antes de emitir seus atos, dificultando, com isso, a ocorrência de ampliação ou restrição injustificadas na esfera jurídica dos particulares. Torna-se necessário, para tanto, assegurar a participação dos administrados na formação da vontade estatal, razão pela qual a Lei n. 9.784/1999 congrega inúmeras forma de participação individual e coletiva dos interessados no processo administrativo. Por outro lado, o processo administrativo visa a auxiliar e sistematizar a atuação administrativa, imprimindo-lhe maior eficiência, acerto e correção. 9 Devido a essa relevância da participação dos interessados é que a garantia de comunicação efetiva é fundamental para a validade do processo. O regramento dos artigos 26 e 28 da lei n. 9.784/1999 estabelece o modo e o objeto das intimações nos processos administrativos: Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências. [...] § 3o A intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado. § 4o No caso de interessados indeterminados, desconhecidos ou com domicílio indefinido, a intimação deve ser efetuada por meio de publicação oficial. § 5o As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas o comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade. [...] Art. 28. Devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza, de seu interesse. 8 FER R A Z, S er gio e D A LLA RI , Ad il so n Ab r e u . Pro c es so Ad m in i s tra ti vo . 1 ª ed . São P au lo : Mal h eir o s, 2 0 0 3 . p . 2 4 . 9 SI MÕE S, Mô n ica M ar t in s To sc a no . O p ro ce s s o a d min i st ra tivo e a in va lid a çã o d e a to s vic ia d o s . S ão P a ulo : Ma lh eir o s, 2 0 0 4 . p . 1 9 6 . Consigne-se que “é preciso ter em mente a tríplice finalidade da intimação: fixar prazo para a manifestação ensejada, delimitar a matéria a ser abordada e determinar o local em que se encontram os autos para exame” 10. Processo de demarcatório de terras indígenas e os atos de comunicação Inicialmente, transcrevem-se os artigos do Decreto n. 1.775/1996 relacionados aos atos de participação e comunicação: Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação. [...] § 3° O grupo indígena envolvido, representado segundo suas formas próprias, participará do procedimento em todas as suas fases. § 4° O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo. § 5º No prazo de trinta dias contados da data da publicação do ato que constituir o grupo técnico, os órgãos públicos devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar-lhe informações sobre a área objeto da identificação. § 6° Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada. § 7° Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel. § 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior. § 9° Nos sessenta dias subseqüentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas. § 10. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá: I - declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação; 10 FE R RA Z, Ser g io e DA LLA RI , Ad i l so n Ab r e u. Op . c it. p . 1 5 9 . II - prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias; III - desaprovando a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes. [...] Art. 5° A demarcação das terras indígenas, obedecido o procedimento administrativo deste Decreto, será homologada mediante decreto. A incompatibilidade aqui tratada entre o processo administrativo demarcatório previsto no referido Decreto Federal e o processo administrativo previsto na lei n. 9.784/1999 versa sobre o déficit de garantia de participação dos entes federados e dos demais interessados, especialmente no que tange ao modo de comunicação dos atos do processo. O art. 3º, III, da lei n. 9.784/1999 garante a apreciação pelo órgão decisório das alegações e documentos apresentados pelo interessado, demonstrando fidelidade ao preceito constitucional que determina o respeito ao contraditório nos processos administrativos. Tal preceito foi atendido no Decreto n. 1.775/1996, quando permite aos Estados, Municípios e demais interessados afetados pela demarcação apresentarem razões instruídas pleiteando indenização ou demonstrando vícios nos estudos de identificação. Por outro lado, nos processos administrativos de demarcação de terras indígenas os interessados devem ser comunicados da existência do processo desde o seu início, o que não é garantido pelo Decreto n. 1.775/1996, a fim de que possam participar ativamente dos estudos de identificação da terra indígena previsto no art. 2º do aludido Decreto. Ocorre que o parágrafo 8º do art. 2º do Decreto n. 1.775/1996 prevê uma única hipótese de comunicação, a publicação no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do Estado do resumo do relatório circunstanciado demarcatório da terra indígena. Ora, “a intimação de particulares por edital publicado na imprensa oficial é ineficaz, o que se exige é uma conduta positiva, tanto para atender os pedidos da pessoa interessada, como para comunicação espontânea de todos os atos processuais” 11. No momento inicial de constituição do grupo técnico, coordenado por antropólogo, e de elaboração dos estudos de identificação, aos interessados deve ser franqueada previamente a identificação dos integrantes do referido grupo, para que possam, inclusive, impugná-los. Outrossim, os interessados devem ter a oportunidade de participar dos atos materiais dos estudos, como as perícias e vistorias no local a ser demarcado. 11 FI G UEI RE DO, Lú c ia Va lle ( co o r d .) . Co men tá r io s à l ei fed e ra l a d min is t ra t ivo (9 .7 8 4 /1 9 9 9 ). 2 ª ed . Belo Ho r izo nt e: Fó r u m, 2 0 0 8 . p . 5 2 . de p ro c es so Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da ampla instrução probatório significa "não apenas o direito de oferecer e produzir provas, mas também o de, muitas vezes, fiscalizar a produção das provas da Administração, isto é, o de estar presente, se necessário, a fim de verificar se efetivamente se efetuaram com correção ou adequação técnica devidas" 12. Não é aceitável um processo administrativo em fase avançada sem a presença nas fases iniciais dos elementos do processo, como as partes. As unidades federadas devem ser intimadas na forma do art. 26, §3º, da lei n. 9.784/1999, ou seja, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência. Essa intimação deve se dar no início do processo e se repetir nos atos cruciais do procedimento, tais como indicação dos integrantes do grupo técnico, informação sobre as datas dos atos materiais dos estudos, tais como perícias e vistorias, apresentação do relatório de identificação. A não observância dessas regras de intimação leva à nulidade processual, pois assente o prejuízo causado às unidades federadas. O art. 28 da lei n. 9.784/1999 determina a obrigatoriedade de intimação dos interessados nos atos do processo que resultem “em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades”. Desse modo, os despachos de mera tramitação não exigem intimação do interessado. A lei 9.784/1999, no seu art. 26, §4º, é clara ao permitir a comunicação de atos por publicação oficial somente no caso de interessados indeterminados. Os entes federados não são interessados indeterminados, assim como os ocupantes não-índios que sofrerão as conseqüências diretas da demarcação. Registre-se que é dever do grupo técnico constituído para delimitar a terra indígena efetuar o levantamento fundiário da área, cujo conteúdo deve identificar os eventuais ocupantes não-índios; descrever a(s) área(s) por ele(s) ocupada(s), com a respectiva extensão, a(s) data(s) dessa(s) ocupação(ções) e a descrição da(s) benfeitoria(s) realizada(s); descrever informações sobre a natureza dessa ocupação, com a identificação dos títulos de posse e/ou domínio eventualmente existentes, com qualificação e origem. Se é dever do grupo técnico verificar a existência de ocupantes não-índios, caso se confirme tal presença, há pessoas identificadas e diretamente interessadas na demarcação da terra indígena. 12 DE ME LLO , Ce lso A ntô n io B a nd e ir a. Cu r so d e Di re ito Ad min is t ra tivo . 2 0 ª ed . S ão P au lo : Mal h eir o s, 2 0 0 6 . p . 4 7 1 . Portanto, os ocupantes não-índios devem ser intimados, na forma do citado art. 26, §3º, da lei n. 9.784/1999, após a conclusão do relatório de identificação da terra indígena. Interessante notar que o art. 2º, §3°, do Decreto n. 1.775/1996, garante somente aos grupos indígenas interessados a participação em todas as fases do processo administrativo. A mesma garantia deve ser aplicada também aos entes da federação envolvidos e às pessoas interessadas. O fato é que desde o seu início o processo demarcatório tem como finalidade a imposição potencial de restrição na esfera jurídica dos interessados. Nesse sentido, “deve-se intimar o interessado, portanto, não apenas no momento da decisão final, porém em todo o tipo de decisão que lhe seja relevante” 13. Supremacia da lei 9.784/1999 sobre o decreto n. 1.775/1999 O processo administrativo demarcatório de terras indígenas é externo, pois há relação direta entre Administração e administrados interessados, abrindo-se a possibilidade de ampliação da esfera jurídica do interessado, como é o caso das comunidades indígenas, ou restrição da esfera jurídica do interessado, no caso dos ocupantes não-índios, por exemplo. A lei n. 9.784/1999, como já dito, é decorrência dos mandamentos constitucionais por devido processo legal, ampla defesa e contraditório, sendo compatível, portanto, com processos administrativos externos, ampliativos e restritivos, como é o caso do processo demarcatório. O art. 1º da lei n. 9.784/1999 afirma sua aplicação no âmbito da Administração Federal direta e indireta, verbis: Art. 1º Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração. Nesse sentido, como regra geral, são as normas da lei n. 9.784/1999 que regulam os processos administrativos dos diversos órgãos públicos federais 14. O art. 69 da mesma lei fixa regra relevante para a conclusão desta tese, pois revela a hipótese de não aplicação de seus dispositivos nos casos de processos administrativos especiais, regidos por lei própria: Art. 69. Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei. 13 FI G UEI RE D O, Lú c ia V all e ( co o r d . ) . Op . c it. p . 1 4 0 . A t ít u lo d e r e gi st r o , a j ur i sp r ud ê n ci a d o S TJ , co n t ra l eg em , j á d ec i d iu q ue a le i n. 9 .7 8 4 /1 9 9 9 s e ap l ic a a p r o ce sso s ad mi n i s tr a ti v o s no â mb ito d o s E st ad o s e M u n ic íp io s q ue não te n h a m l ei p r ó p r ia . 14 Não é sem razão que o referido artigo se referiu expressamente ao vocábulo “lei” e não “norma” própria. O Decreto n. 1.775/1996, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, não é lei. A suposta autorização do art. 19 do Estatuto do Índio, para que Decreto regulamente o processo demarcatório, não subsiste à exigência de lei para processo administrativo especial. Além disso, a lei do processo administrativo federal é posterior ao Estatuto do Índio e ao Decreto n. 1.775/1996, aplicando-se o critério cronológico previsto no art. 2º, § 1º, da lei de introdução ao direito brasileiro. Não se está a dizer que o Decreto n. 1.775/1996 foi integralmente revogado ou não pode ser aplicado aos processos demarcatórios. Bem porque o STF já se manifestou por sua constitucionalidade 15. Na verdade, o que aqui se defende é a submissão da norma infralegal à lei que rege os processos administrativos federais e a imperativa necessidade de se observarem os dispositivos da lei n. 9.784/1999 nos processos demarcatórios de terras indígenas. A teoria das fontes ensina que decreto não pode inovar a ordem jurídica, muito menos contrariar lei. Portanto, a lei n. 9.784/1999 deve ser aplicada nos processos administrativos de demarcação de terras indígenas, ao menos, em relação ao atos de comunicação dos interessados. Conclusão O ato demarcatório com fundamento no art. 231 da CF/88 é de conseqüências drásticas, pois retira das terras os ocupantes não índios, na maioria das vezes proprietários de longos anos, e desvincula dos Estados e Municípios seus territórios, transferindo-os à União com afetação ao usufruto exclusivo pelas comunidades indígenas, e isso sem indenização integral aos prejudicados. Como já dito, se há pessoas identificadas e diretamente interessadas, estas devem ser comunicadas da existência do processo administrativo por meio que assegure a certeza da ciência pelo interessado. A publicação oficial não é meio adequado para assegurar a ciência da pessoa diretamente afetada pelo processo administrativo. Pela sistemática adotada no Decreto n. 1.775/1996, o ocupante não-índio tomará ciência inequívoca da demarcação da terra indígena quando já for o momento de sua retirada das terras. 15 ST F. MS 2 4 0 4 5 , Rel ato r ( a) : Mi n . J o aq ui m B ar b o sa . A norma infra-legal, in casu, não garante a participação efetiva em processo administrativo dos diretamente interessados no seu objeto, especialmente os Estados da Federação. Portanto, a lei n. 9.784/1999 é o instrumento adequado para corrigir as distorções do Decreto n. 1.775/1996 em relação aos atos de comunicação do processo de demarcação de terras indígenas, seja porque é compatível com o devido processo legal administrativo, seja porque o referido Decreto não pode colidir com suas disposições. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. rev., ampl. e atual. até a lei n. 12.587/2012. São Paulo: Atlas, 2012. DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord.). Comentários à lei federal de processo administrativo (9.784/1999). 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008. FERRAZ, Sergio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. FORTINI, Cristiana; PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho; CAMARÃO, Tatiana Martins da Costa. Processo Administrativo: comentários à Lei n. 9.784/1999. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011. MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. SIMÕES, Mônica Martins Toscano. O processo administrativo e a invalidação de atos viciados. São Paulo: Malheiros, 2004. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008. STF. Petição n. 3388, Relator(a): Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, publicado no DJe em 01-07-2010. Acessado em 18/08/2013. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612760.