Revista Filosofia 30

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RESENHAS PUBLICADAS PELA REVISTA FILOSOFIA - EDITORA ESCALA
PROFA. DRA. ANA MARIA HADDAD BAPTISTA
REVISTA FILOSOFIA 30
Henri Bergson e a filosofia grega
Bergson foi um filósofo que até os dias de hoje provoca muitas
discussões. Por quê? Na verdade porque Bergson, como todo
pensador,realmente, original, não se curvou diante do estabelecido
e legitimado pela academia em sua época. Nessa perspectiva, a
literatura de um modo geral, assim como a crítica literária, sustentou
inúmeras teorias a respeito do tempo subjetivo a partir do conceito
de duração do filósofo. A literatura, em sua essência, trabalha
apenas e, de maneira eficaz, com a verdade. Bergson buscou
somente a verdade. Até porque a verdade, diria Deleuze, possui
uma relação essencial com o tempo. Bergson foi profundamente
incomodado com as questões a respeito de temporalidade e
subjetividade.
Cursos sobre a Filosofia Grega,
Martins Fontes, é uma
pequena amostra da capacidade incrível de Bergson. Esta obra
reúne, sob a forma de lições, diversos momentos da carreira do
filósofo, especialmente, enquanto professor. E aí que certos textos,
ao longo da leitura, tomam corpo. Textos escritos com entusiasmo,
profundidade.Um
pesquisador exemplar cujos conhecimentos
nunca forma guardados para si mesmo e muito menos publicados
somente para seus pares.
Muitos pesquisadores, das mais variadas áreas, sem
exceção, pesquisam para si mesmos, ou seja, apenas para
sustentar suas próprias vaidades, fundadas, com certeza, em suas
frustrações mais recôndidas. E, nessa medida, escrevem para seus
pares.
Literatura
altamente
especializada
que
só
poucos
conseguem entender. Geralmente o que escrevem fica restrito a
uma biblioteca específica. O ensino ligado à pesquisa é relegado
completamente e, na maioria das vezes, é somente um canal para
humilhar aqueles que buscam um pouco de conhecimento e que,
ainda, imaturos para tal tipo de especialidade são convencidos de
uma incapacidade irreal e mentirosa.
Bergson foi pesquisador, pensador e, sobretudo, um grande
professor. Suas lições, contidas na obra em referência, conduzem o
leitor, suavemente, a questões importantes, até os dias de hoje,
propostas pela filosofia de Plotino, Platão, Sócrates e outros gregos.
Além do mais, o livro prova o quanto Bergson dominava a língua
grega. Afinal, como pensar a filosofia grega sem o domínio da
língua?
Revista Filosofia 32
O valor de uma descoberta
Descobrir documentos raros, enterrados e empoeirados
numa biblioteca pode ser um trabalho tão inútil, medíocre e
ordinário, para os dias de hoje, como catar folhas secas de um
pomar durante a invasão de um temporal. Nessa perspectiva,
valeria dizer que um trabalho produtivo no sentido de
descoberta seria o da leitura que se faz do documento
encontrado, para ser mais precisa, fossilizado. Não basta
encontrá-lo. Qualquer pessoa que tivesse as mesmas
condições materiais faria o mesmo. Descoberta é investir em
novas estratégias para atrair e seduzir o grande público a ler
mais filosofia, poesia, arte, só para ficar com alguns exemplos.
Allen W. Wood, autor da obra Kant, da Artmed Editora,
apresenta um filósofo pouco estudado no Brasil e no mundo. Esta
obra, que vale a pena ser lida, é uma introdução às teorias de Kant,
muita bem feita e cheia de importantes reflexões.
Deve-se destacar que o autor divide o livro em capítulos
curtos que apresentam criteriosamente as contribuições kantianas
e, no final dos mesmos, sugestões bibliográficas para quem busca
um aprofundamento específico naquele ponto desenvolvido.
A estratégia do autor não é nova. Entretanto, vale
lembrar que é uma forma louvável para tornar a filosofia, de uma
vez por todas, ser mais lida, especialmente, para os não filósofos.
Kant, como se sabe, é apresentado, via de regra, enquanto um
pensador “difícil” e quase inacessível. Nada, absolutamente nada, é
incompreensível, em termos de filosofia (isto vale para outras áreas
também) desde que se tenha um repertório mínimo de linguagem e
vontade de aprender.
Uma das maiores contribuições kantianas são as
questões ligadas ao tempo e ao espaço. Tempo e espaço, para o
filósofo, são categorias a priori.Desta forma, o tempo, que em sua
época, fora pensado predominantemente como uma categoria
exterior ao homem e submetida ao movimento dos astros, passa a
ter uma perspectiva diferente. Parafraseando o nosso querido
Deleuze: a partir de Kant nós é que somos interiores ao tempo.
Estamos mergulhados numa temporalidade, subjetividade, tão
infinita que seria impossível não repensá-la. Eis um dos maiores
legados deixado por Kant para a humanidade. Eis uma verdadeira
descoberta, incontestável e, absolutamente, singular.
Revista Filosofia 33
Passeios pela Filosofia
A Ilha Deserta, Gilles Deleuze, da Editora Iluminuras, proporciona,
de forma agradável, um longo passeio pelas principais idéias do
grande filósofo em referência. Deleuze foi obsessivo, marginal,
irônico, sério.
Esta obra é uma leitura obrigatória para quem gosta de temas como
liberdade, subversão e de discussões que envolvam as malhas que
obscurecem a criatividade, inventividade e novas possibilidades, em
todas as esferas.
Integram-se, em ordem cronológica, vários ensaios de Deleuze,
além das entrevistas. Uma das questões centrais da obra: formas
de pensamento. O filósofo francês sempre teve tal tipo de
preocupação. “Hume, Bergson, Proust me interessam tanto porque
neles existem elementos profundos para uma nova imagem do
pensamento. Há alguma coisa de extraordinária na maneira pela
qual eles nos dizem: pensar não significa o que vocês acreditam
que seja. Vivemos numa certa imagem do pensamento, ou seja,
antes de pensar, temos uma vaga idéia do que significa pensar, dos
meios e dos fins. E eis que eles nos propõem toda uma outra idéia ,
toda uma outra imagem.” Veja-se que um dos pontos fundamentais
do próprio Deleuze, as diversas maneiras pelas quais se pode
pensar, não estão restritas somente aos filósofos e aos cientistas.
Proust, um artista da palavra, também possibilita novas maneiras de
reflexão. A arte em geral para o filósofo francês possui uma
importância que poucos conseguiram enxergar tão de perto.
A importância de todas as áreas do conhecimento, sem hierarquia,
é um dos pressupostos básicos de Deleuze. Um filósofo aberto e
preocupado, sobretudo, com a liberdade humana, naturalmente,
com todo o peso que é acarretado por ela. Por isso Deleuze faz
leituras espetaculares de Bergson, Espinosa, Nietzsche e outros
que, nunca, jamais, deixaram de questionar as manobras invisíveis
que tiram a vitalidade e a potencialidade da liberdade de criação.
“Gerações sem ‘mestres’ são uma tristeza. Nossos mestres não são
apenas os professores públicos, ainda que tenhamos uma grande
necessidade de professores. No momento em que atingimos a
idade adulta, nossos mestres são aqueles que nos tocam com uma
novidade radical, aqueles que sabem inventar uma técnica artística
ou literária e encontrar as maneiras de pensar que correspondam à
nossa modernidade.” Desta forma, uma vez mais, o nosso grande
mestre nos deixa mais uma de suas grandes lições.
Revista Filosofia 30
DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA
As formas e estratégias de se manter e exercer o poder,
tiranicamente, passaram e passam por várias transformações.
Infelizmente, muitas vezes, o poder reorganiza-se de forma velada
e perversa, sob a capa de uma inocência capaz de levar às
lágrimas.
Discurso sobre a servidão voluntária, de Étienne de la Boétie,
deveria ser uma leitura obrigatória e habitual de todos aqueles que
primam pela liberdade de pensamento, expressão e que, realmente,
almejam a liberdade humana. Multiplicam-se os mecanismos de
vigilância e opressão sociais. Salvo algumas atitudes isoladas de
protesto, o que se vê é um verdadeiro marasmo por parte dos
prejudicados. Há uma incapacidade geral de luta por direitos e,
sobretudo, pela liberdade. O que se passa?
Um dos grandes méritos da obra em referência é o questionamento
a respeito dos submissos que rodeiam o tirano. A submissão dos
covardes e daqueles que sustentam o tirano em seus poderes
pretensamente
legítimos. “O camponês e o artesão, embora
servos, limitam-se a fazer o que lhes mandam e, feito isso, ficam
quites. Os que giram à volta do tirano e mendigam os seus favores
não se poderão limitar a fazer o que ele diz, têm de pensar o que
ele deseja e, muitas vezes, para ele se dar por satisfeito, têm de lhe
adivinhar os pensamentos. Não basta que lhe obedeçam, têm de se
matar a trabalhar nos negócios dele, de ter os gostos que ele tem,
de renunciar à sua própria pessoa e de despojar do que a natureza
lhes deu. Têm de se acautelar com o que dizem, com as mínimas
palavras, os mínimos gestos, com o modo como olham; não têm
olhos, nem pés, nem mãos, têm de consagrar tudo ao trabalho de
espiar a vontade e descobrir os pensamentos do tirano. (...) Haverá
condição mais miserável do que viver assim, sem se ter nada de
seu, sujeitando a outrem a liberdade, o corpo, a vida?”
O importante é que Discurso sobre a servidão voluntária, embora
escrito há muitos
séculos, ainda fascina grandes pensadores
porque consegue desvelar de maneira aguda e fundamentada as
sutis relações entre o domínio e a servidão, assim como faz
reflexões a respeito da categoria mental e íntima da figura cruel e,
aparentemente, sedutora do tirano. A verdade é que tiranos e
urubus alimentam-se da mesma comida.
urubus
consiste
em
potencializar
a
despotencializam a liberdade do pensamento.
REVISTA FILOSOFIA 47
Texto, Interpretação e Dilemas
A superioridade dos
natureza.
Tiranos
Paul Ricoeur, conforme se sabe, é considerado um dos maiores
filósofos da contemporaneidade. Suas abordagens, em todas as
suas obras publicadas, são sempre sérias, fecundas e profundas
como é peculiar aos pensadores que tiveram grande empenho em
estabelecer uma autonomia intelectual.
Do Texto à Acção, do pensador em referência, RÉS-Editora, Porto,
Portugal, é um belo exemplo de quem não possui medo em revolver
e buscar resolver velhos dilemas da Filosofia (e outras áreas), ou
seja, as famosas questões relacionadas com interpretação que até
hoje levantam sérios conflitos, quer na área da Filosofia, das
Ciências em geral, quer na área da Literatura.
Nesta obra, Ricoeur , entre outros tópicos, declara que somente a
partir da escrita, da fixação material dos enunciados, é que surge a
interpretação. Por quê? Porque a partir da escrita a relação do
homem com os enunciados se coloca num nível totalmente distinto.
As sociedades sem escrita, e anteriores à escrita, estão presentes
(corporalmente) no ato da comunicação. A escrita, acima de
qualquer coisa, distancia o autor de seus interlocutores. Tal
condição é inelutável. Nas palavras de Ricoeur: “Acima de tudo, a
escrita torna o texto autônomo em relação à intenção do autor. O
que o texto significa já não coincide com aquilo que o autor quis
dizer. Significação verbal, quer dizer, textual, e significação mental,
quer dizer, psicológica, tem, doravante, destinos diferentes”.
Com o exposto, Ricoeur, de forma alguma, está autorizando a
interpretação livre de quaisquer amarras. Se houve um tempo que o
conceito de “obra aberta” reinou, na linha hermenêutica do
pensador
francês
nunca
houve
brecha
para
tal
postura
interpretativa.
Ricoeur
propõe,
entre
outras
coisas,
uma
interpretação, no caso da textual, a partir da materialidade
linguística do texto, ou seja, a partir dos aspectos referenciais, seja
ela acadêmico, literário ou de qualquer outro gênero.
A grande questão já postulada, basicamente, por diversos
estudiosos do assunto é uma das mais cruciais: jamais o universo
do leitor vai coincidir com o universo do autor.
Impossibilidade
humana. Desta forma, a intencionalidade do autor, embora seja
real, deixa de ser relevante no processo interpretativo.Um texto
atravessa leitores, épocas. Para agravar mais ainda: a cada leitura
textual realizada pelo mesmo leitor, em momentos diferentes,
provocará novas indagações...Afinal, nunca somos os mesmos,
parafraseando o bom e velho Heráclito: Nunca nos banhamos duas
vezes nos mesmos mares...
REVISTA FILOSOFIA 44
Mitos gregos: lições de vida
Mitos, lendas, poesias e romances, num primeiro momento, sempre
remetem ao impossível ou a fantasias e sonhos descabidos. Há
uma espécie de acordo tácito, implícito, próprio do ficcional, de que
tais tipos de literatura são baseados em fatos e acontecimentos
totalmente irreais.
Contudo, a maioria ignora, por exemplo, se pensarmos nos contos
orientais, quando em muitas lendas os pássaros falam, entre tantos
outros aparentes absurdos, que a mainá é uma espécie de pássaro
(coloração escura), de biquinho amarelo, que imita a fala humana,
tal como o papagaio, inclusive, possui uma tonalidade de “voz” mais
adequada ao seu tamanho (é bem menor que um papagaio), assim
como a maioria ignora que a tão falada guerra de Troia não é uma
ficção. Desde o século XIX já foi comprovado, “cientificamente”, de
que ela existiu, não foi um absurdo de Homero.
A sabedoria dos mitos gregos, de Luc Ferry, tradução de Jorge
Bastos, editora Objetiva, busca resgatar os valores existenciais e
filosóficos dos mitos gregos. Os mitos, não somente os gregos,
carregam consigo verdades e dramas universais, por isso, dentre
outros motivos, integram a realidade humana em todos os níveis,
não somente o onírico.
O autor, filósofo, amplamente conhecido na França, assim como em
outros países, enfatiza a dimensão cultural dos mitos gregos. Ódio,
inveja, paixão e amor são exemplificados por Luc Ferry de forma
profunda e fluida. Não é necessário ser um especialista em
mitologia para entender a complexidade de suas manifestações
mais profundas. “No começo do mundo, foi uma divindade bem
estranha a primeira a emergir do nada. Os gregos a chamam de
‘Caos’. Não é uma pessoa, nem mesmo uma personagem. Imagine
que essa divindade primordial nada tem de humano: não tem corpo,
nem rosto, nem traços de personalidade. Na verdade, é um abismo,
um buraco negro, no meio do qual ser algum se encontra que se
possa identificar.” Dessa maneira, o autor percorre uma trajetória
desde o início do Universo até aqueles deuses que representam a
eterna complexidade entre finitude e infinitude, lealdade e
deslealdade e outros dramas.
Esta obra proporciona, além de muitas outras, uma perspectiva
lúcida da mitologia grega, ou seja, de que uma vida sem temores, a
partir do momento que se tenha clareza dos fatos, possibilita à
humanidade uma existência mais plena e o direito ao sonho.
Somos, acima de qualquer coisa, também, grandes responsáveis
pelo nosso destino.
REVISTA FILOSOFIA 45
Filosofia, paixão e potência
O ser humano nasceu para o conhecimento? Haveria uma
busca
pela
verdade
intrínseca
ao
homem?
Caminha-se
naturalmente para a verdade? Esta e outras questões são
postulados basilares na obra O mais potente dos afetos: Spinoza e
Nietzche, organização de André Martins, publicado pela Martins
Fontes, em 2009.
Dá imenso prazer, além da esfera do conhecimento, ler uma
obra que trate de um assunto tão caro e singular. Talvez, como
muitos estudiosos de filosofia já declararam, nunca houve,
pensadores como Spinoza (1632-1677) e Nietzche (1844-1900) que
tivessem pensado na liberdade do homem de maneira mais
profunda; de forma, realmente, a concretizar um projeto que
pusesse ao alcance de todos a tão aclamada liberdade. Liberdade
de existir na plenitude da expressão. Conforme se sabe, não basta
a liberdade. É preciso saber o que fazer com ela. Muitas vezes a tal
sonhada liberdade só serve de embuste para os grandes
reacionários e autoritários, eis um grande problema.
A obra em questão contém vários ensaios entrecruzando
os
principais conceitos dos filósofos em referência. Spinoza é famoso
por ser o filósofo das paixões. Para ele, entre outras coisas, as
paixões alegres potencializam o ser humano. Portanto, paixões
tristes, segundo ele, como a ira, inveja, opressão e outras, são
dispositivos usados pelos tiranos (no amplo sentido da expressão)
para submeter a natureza humana. Paixões alegres alimentam a
essência da humanidade. Potência é uma das palavras de ordem
de Nietzche. Quais seriam as potências humanas? Como turbinálas?
Para
usar
uma
expressão
mais
atual,
moderna.
O
conhecimento seria um caminho possível. Entretanto, de acordo
com Scarlett Marton, Nietzsche, ao destacar o que ele teria em
comum com Spinoza, ressalta que “entendem que o conhecimento
não resulta de uma atitude neutra, objetiva e desinteressada;
acreditam que não existe um instinto de conhecimento que se volte
de forma ascética para a verdade. Ao contrário, considerando-o ‘o
mais potente dos afetos’, ambos julgam que o conhecimento se
acha intimamente relacionado com os impulsos que se fazem
presentes no ser humano.”
Todos os ensaios da obra vão buscar um ângulo na obra dos
dois pensadores que cumprem sua função: potencializam o leitor ao
demonstrar que o conhecimento conduz, sem dúvida alguma, a um
crescimento
interior,
entre
outras
coisas,
porque
viabiliza
concretamente uma nova imagem de pensamento, novas formas de
existir, especialmente se lembrarmos que tanto Nietzsche como
Spinoza foram amaldiçoados pelos poderes estabelecidos. É
preciso argumento mais convincente do que este? Banidos dos
sistemas sempre possuem um pensamento que livra a humanidade
das amargas amarras da servidão, submissão, indignidade e
penúria.
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