UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO – UMESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO LÉIA ROSA DOS SANTOS MARIA SÍMBOLO DE DEUS E DA MULHER: Estudo das Imagens de Maria na Teologia da Libertação São Bernardo do Campo, março de 2006 2 UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO – UMESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO LÉIA ROSA DOS SANTOS MARIA SÍMBOLO DE DEUS E DA MULHER: Estudo das Imagens de Maria na Teologia da Libertação Orientador: Prof. D r. Etienne Alfred Higuet Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para obtenção do grau de Mestre. São Bernardo do Campo, março de 2006 3 UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO – UMESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO BANCA EXAMINADORA: ___________________________________ Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet UMESP ___________________________________ Prof. Dr. Antônio Carlos de Melo Magalhães UMESP _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Luiza Etsuko Tomita Escola Dominicana de Teologia – EDT 4 DEDICATÓRIA Aos amigos e amigas católicos (as) com os quais tive o prazer de conviver em respeito mútuo e recíproco nas diferenças religiosas. A mulheres e homens que lutam por uma sociedade e igreja com práticas mais igualitárias e que lutam também contra os efeitos da segregação racial, da discriminação social e do preconceito sexual. 5 AGRADECIMENTOS “Chamar o nome de Jesus, o nome de Maria ou de um santo de que se é devoto, é como um bálsamo que faz bem para o corpo todo, para a vida que habita em cada um de nós”. Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer Meu agradecimento, antes de tudo, vai para minha mãe que não hesitou em insistir para que fôssemos alfabetizados e à minha irmã Rita pelo constante incentivo à leitura. À Prof.ª Elizabeth Paiva e aos Profs. Jone Nunes e Jorge Nery, do Seminário Teológico Batista do Nordeste, cuja visão crítica serviu de grande inspiração teológica. Agradeço ao corpo docente da UMESP, pelo constante apoio, especialmente aos Profs. Drs. Lauri Wirth, Antônio Magalhães e Geoval da Silva. À funcionária Ana Fonseca. Minha gratidão ao IEPG pelo apoio financeiro desde o início do curso até à sua conclusão e por ter acreditado em nossa pesquisa. Agradeço a Tânia, prima, irmã e amiga, pela paciência, pelo apoio moral e incentivo nos momentos difíceis, pela compreensão e tolerância de conviver com os livros espalhados pelos dois pequenos cômodos da casa. Agradeço principalmente ao meu orientador, Prof. Dr. Etienne Higuet, pela paciência e pelas importantes observações, as quais foram decisivas para o desenvolvimento da pesquisa. Enfim, meus agradecimentos a todos quantos contribuíram direta ou indiretamente no desenvolvimento desta pesquisa. Obrigada. 6 SIGLAS USADAS AL América Latina NT Novo Testamento TL Teologia da Libertação / Teologia Latino-americana da Libertação VT Velho Testamento 7 SINOPSE A figura de Maria está em processo de emancipação, de uma Maria divinizada e pura, para uma Maria concreta, humana e mulher. Sua emancipação vem em decorrência das conquistas e vitórias que as mulheres de hoje têm buscado e alcançado. Claro que essas mudanças vêm ocorrendo restritamente em uma determinada linha teológica, que a partir de uma hermenêutica libertadora e a partir do feminino como ele se mostra pra nós hoje, pensa Maria como figura (mulher) concreta. Mas, como símbolo religioso, ela será sempre Virgem, Mãe e Esposa, e as novas interpretações serão sempre um esforço de superar o modelo de mulher ideal projetado no simbolismo de Maria, vista com os óculos do patriarcalismo. Parale la a essa nova interpretação do simbolismo religioso mariano, encontra-se a estrutura do feminino como nova chave hermenêutica para se pensar Deus, perspectiva que revela a transcendência divina e sua humanidade presente também na figura da mulher. Deus-Mãe é um termo bastante utilizado nos círculos populares, a partir da leitura bíblica de textos veterotestamentário e também está restrito às academias, acepção que dificilmente se pronunciará no âmbito religioso evangélico e na sociedade, pois a cultura ainda está impregnada de patriarcalismo, onde a supremacia masculina inibe de se pensar o feminino como estrutura que transcende sua natureza humana. Palavras-chave: Maria; hermenêutica; mulher; símbolo; feminino; Deus. 8 ABSTRACT Mary’s figure is going through an emancipation process; from a divine and pure Mary to a concrete, woman and human Mary. Her emancipation is a result of the achievements and victories that women today have sought and pursued. It is evident that these changes have occurred exclusively in one determined theological trend, that using a liberating hermeneutic and the feminine as it is shown to us today, thinks Mary as a concrete figure (woman). However, as a religious symbol, she will always be a Virgin, a Mother and a Wife, and new interpretations will always be an attempt to overcome the model of an ideal woman projected in Mary’s symbolism seen through the lens of a patriarchal structure. Parallel to this new interpretation of the religious symbolism of Mary, is found the structure of the feminine as the new hermeneutic key to think about God, a perspective that reveals the divine transcendence and the humanity present in a woman’s figure as well. God-Mother is a very well used term in popular circles, from a biblical reading of the Old Testament texts and is also restrict to the academy, meaning that will hardly be used in an evangelical religious realm and in society, for the culture is still impregnated with patriarchal structures where man’s supremacy hinders the feminine thought as a structure that transcends its human nature. Key-words : Mary; hermeneutics; woman; symbol; feminine; God. 9 SUMÁRIO Dedicatória .................................................................................................................................... 4 Agradecimentos ............................................................................................................................. 5 Siglas usadas................................................................................................................................... 6 Sinopse ........................................................................................................................................... 7 Abstract .......................................................................................................................................... 8 M ARIA, SÍMBOLO DE DEUS E DA MULHER: INTRODUÇÃO GERAL AO TEMA .................................................................................................................... 18 CAPÍTULO I. A FIGURA DE MARIA NA AMÉRICA LATINA ...................................... 19 1. Maria, a esperança de um povo novo Introdução ........................................................................................................................ 20 1.1. Proposta antropológica de Gebara e Bingemer .................................................... 20-21 1.2. Teologia Marial .................................................................................................... 22-24 1.3. Dogmas ................................................................................................................. 24-26 1.4. Maria no continente latino-americano .................................................................. 26-28 1.5. As autoras concluem .................................................................................................. 28 Considerações pessoais ................................................................................................. 28-29 10 2. O feminino e Maria Introdução .................................................................................................................... 30-31 2.1. O feminino revelador do divino ........................................................................... 31-33 2.2. Jesus, um feminista (?) ......................................................................................... 34-35 2.3. Proposta antropológica de Leonardo Boff ........................................................... 35-36 2.4. Feminino – caminho de Deus para o homem ....................................................... 36-39 2.5. Análise simbólica dos dogmas em Leonardo Boff ............................................... 39-41 2.6. A solidariedade e mediação universal de Maria ................................................... 41-42 2.7. O mito como acesso à realidade ........................................................................... 42-44 Observações a respeito do texto. A união hipostática de Maria: uma hipótese, segundo Boff ........................................................................................ 44-46 3. Mariologia popular Introdução .................................................................................................................... 46-47 3.1. Maria na Teologia da re ligiosidade popular Latino-americana............................ 47-50 3.2. Maternidade popular latino-americana ................................................................. 50-52 3.3. A Maria da América Latina .................................................................................. 53-55 3.4. Conclusões do autor ................................................................................................... 56 Considerações pessoais sobre o texto .......................................................................... 56-58 Síntese do capítulo ....................................................................................................... 58-61 CAPÍTULO II. MARIA, SÍMBOLO DE DEUS ..................................................................... 62 Introdução ....................................................................................................................... 62 1. Manifestação do sagrado Introdução .................................................................................................................... 62-64 1.1. Imagens e símbolos .............................................................................................. 64-66 1.2. Símbolos da fé ...................................................................................................... 66-68 1.3. O símbolo religioso .............................................................................................. 68-71 Considerações a respeito dos textos ............................................................................ 72-74 11 2. Maria, símbolo da fé Introdução .................................................................................................................... 75-77 2.1. Maria, símbolo religioso ....................................................................................... 78-81 2.2. Feminino: imagem e semelhança de Deus ........................................................... 82-84 2.3. Maria, a mulher ícone do mistério ....................................................................... 84-86 2.3.1. Significado teológico da maternidade ................................................. 86-88 2.3.2. Significado antropológico da maternidade .......................................... 88-89 2.4. Considerações a respeito da posição de Bruno Forte ........................................... 89-90 Síntese do capítulo ....................................................................................................... 90-92 CAPÍTULO III. A EMANCIPAÇÃO DA MULHER A PARTIR DA FIGURA DE MARIA ............................................................................................................... 93 Introdução ......................................................................................................................... 93 A. Algumas barreiras para a emancipação da mulher .................................................. 93-96 1. O Magnificat ........................................................................................................... 96-102 2. O Fiat ...................................................................................................................... 102-108 3. A linguagem religiosa ............................................................................................ 108-114 Síntese do capítulo ...................................................................................................... 114-115 Considerações pessoais ............................................................................................... 115-116 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 117-119 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 120-121 12 INTRODUÇÃO As novas formas de pensar Deus e, tudo que está relacionado a ele, têm sido para a hermenêutica um trabalho singular. Olhar para o mundo de hoje sob novas perspectivas teológicas contribui significativamente para novas releituras do próprio pensar teológico: a fé, Deus, o homem e, agora, ainda que timidamente, a mulher. Neste sentido, apontamos para uma perspectiva mais paradigmática como foco de interesse sobre a emancipação da mulher, já que durante séculos e, ainda hoje, o feminino enquanto objeto de análise, ainda habita a periferia do discurso teológico. Pois, a Teologia sempre esteve atrelada à Cristologia e, conseqüentemente, à Teologia da Salvação que é lida única e exclusivamente a partir de um “modelo próprio” – que é Cristo, único mediador entre Deus e nós. Esta nova ênfase possibilitará uma nova experiência mariológica no campo hermenêutico, e Maria poderá ser considerada veículo da revelação e salvação de Deus no mundo como experiência emancipadora da mulher e do indivíduo de forma libertadora. O objetivo desta pesquisa não é divinizar Maria, mas como símbolo de Deus, mostrar que ela, assim como Jesus, desempenhou um papel importante nos desígnios da salvação de Deus para a humanidade, conforme relatos dos textos bíblicos. Tanto Cristo como Maria, ambos se pertencem, um está vinculado ao outro e subsistem reciprocamente. Maria é símbolo de um Deus que se humaniza, se comunica, um Deus que quer ser mãe e mulher. Para mim, falar de Maria é um desafio muito grande, pois nasci em um lar cristão batista embora minha formação escolar primária tenha sido numa escola católica, mesmo sem a aprovação de meu pai, minha mãe, ao contrário, não se importava, para ela o importante era sermos alfabetizados. Contudo, meu pai nos advertia severamente para não cantarmos os hinos ensinados, nem tampouco rezar suas preces, mas lembro-me até hoje da canção entoada todos os dias nas vozes das freiras e dos coleguinhas antes das aulas, que marcou minhas lembranças, eis um trecho da canção: mãezinha do céu, eu não sei rezar, eu só sei dizer que quero te amar (...) 13 Fiz Teologia num seminário confessional e o amor por Maria nasceu há pouco tempo, quando consegui descentralizar a salvação divina no modelo único: Jesus e, em minha concepção, Maria passou a ter um novo significado. Concordo com a afirmação da teóloga protestante presbiteriana,Tina Beattie: todos nós temos o direito de nos relacionar com Maria de uma maneira que nos ajude a aprofundar nossa fé e a expressar nossa humanidade. Ela representa um rico manancial para a espiritualidade da mulher e para a redescoberta dos elementos negligenciados da feminilidade na Igreja (...) Ao encontrar Maria mais uma vez, os homens encontram uma parte de si mesmos que precisam possuir. Ela oferece aos homens a oportunidade de recuperar os aspectos maternais de sua própria natureza, e às mulheres, a oportunidade de resgatar o senso de autonomia e de auto-estima diante de Deus 1 Hoje, como teóloga evangélica e como mulher, percebo que a figura de Maria no discurso teológico e pastoral no âmbito evangélico guarda um profundo silêncio e, para mim, a figura de Maria é uma peça central para nossa salvação em Deus. Acredito que a ausência não só de Maria, mas a ausência de metáforas femininas no discurso teológico e pastoral solidifica as interpretações literais dos textos a respeito das mulheres, os quais lhes foram pejorativamente associados. E compreendendo que nós mulheres estamos rotuladas e estereotipadas como culpadas, sedutoras, impuras, criação inferior ao homem e em conseqüência disso, devemos ser submissas, percebo que a figura de Maria, neste sentido, no âmbito evangélico, também está submissa a Cristo, pois ele é a expressão máxima da revelação de Deus. Penso que a ausência de Maria em nossa comunidade justifica a ideologia controladora desse discurso: a submissão de Maria a Cristo e, conseqüentemente, a submissão da mulher ao homem. Exclui-se Maria, a bemaventurada e assim exclui-se também a mulher – culpada pelo pecado da humanidade. Acredito que as igrejas evangélicas precisam atualizar seu discurso sobre a mulher no que diz respeito à sua dignidade, autonomia e espiritualidade, levando em consideração as conquistas atuais. Penso ainda, que Maria, como símbolo de Deus, nos ajudará a superar essa grande lacuna, pois a salvação divina focada na figura masculina de Jesus fica incompleta, e refletindo a figura de Maria a partir de alguns teólogos e teólogas da Teologia da Libertação, busco argumentos plausíveis para compreender que a figura de Maria também é fonte da reve lação divina para a fé cristã evangélica, há muito banida pela reforma protestante, que considerou qualquer 1 BEATIE, Tina. Redescobrindo Maria a partir dos evangelhos. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 4-5. 14 representação simbólica ou imagem esculpida como idolatria. Ainda hoje se percebe que uma boa parte dos evangélicos tem verdadeira aversão a Maria, pois sua figura está atrelada ao catolicismo e tudo que vem associado ao catolicismo para alguns evangélicos é idolatria. Acredito que a figura de Maria não deveria estar única e exclusivamente ligada ao catolicismo tendo em vista que ela foi chamada de be m-aventurada, disse Fiat ao refletir sobre os planos de Deus e tendo em vista também que ela é Mãe de Jesus Cristo. No entanto, ao ignorar a figura de Maria, anula -se também a presença do feminino como imagem e semelhança de Deus, nega-se à mulher a representação do feminino na divindade e a humanidade divina no corpo da mulher e, inclusive, exclui-se também a presença da mulher na liturgia e na pastoral. Então, é a partir da Teologia Católica que a figura de Maria serviu de fonte de inspiração para pensar nessa figura mais cultuada e adorada de toda a AL. Como fruto da nossa reflexão teórica, observamos que a TL pensa a figura de Maria a partir da emancipação da mulher no contexto atual, pois, o desenvolvimento do pensamento cristão não promoveu por meio da figura de Maria a emancipação da mulher nem como imagem e semelhança de Deus, tal como se apresenta nas Escrituras Sagradas, nem como veículo de salvação divina. Por isso, pensamos junto com os(as) teólogos(as) da libertação o inverso, ou seja, a emancipação da mulher no contexto atual como fator primordial para pensar a figura de Maria e libertá- la do cativeiro da idealização e da marginalização. Assim sendo, estaremos simultaneamente olhando para a figura de Maria e a estrutura do feminino em seus relevantes aspectos emancipadores. Assim, objetivamos também, apresentar uma visão panorâmica de alguns autores da TL, suas principais concepções teológicas e a promoção/libertação das mulheres a partir da figura de Maria, enfatizando seus aspectos libertadores, mas a partir do feminino, tal como se apresenta para nós hoje: em pleno processo de emancipação. A opção pelo tema veio em decorrência do conteúdo estar sempre se referindo à mulher como imagem e semelhança de Deus e a Maria como figura originária desta imagem. Portanto, o tema da pesquisa satisfaz e traduz o seu objetivo. Quanto à opção pelos autores, buscamos aqueles que atendessem ao nosso objetivo. Claro que outros autores poderiam contribuir para o desenvolvimento da nossa pesquisa, mas devido aos nossos critérios: relevância para o tema proposto e objetivo, inclusive a acessibilidade às fontes determinaram sua escolha. Não entraremos nas questões teóricas a respeito de gênero, entretanto, utilizaremos outras correntes do 15 pensamento teológico, como, por exemplo, a Teologia Feminista, por seu conteúdo se prender efetivamente a uma visão emancipadora e libertadora da mulher. Dividida em três capítulos, apresentaremos a seguir as linhas gerais do caminho a percorrer. No primeiro capítulo não faremos uma análise dos textos nem uma exegese meticulosa dos fatos bíblicos associados à Maria, mas a partir de teólogas(os) da TL: Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer (1987), Leonardo Boff (1979) e Antônio González Dorado (1992), faremos uma síntese dos seus pensamentos, apresentando uma visão geral e observando o que eles trazem de novo ao pensarem a figura de Maria a partir do feminino e do contexto latino -americano. Subdividimos este capítulo em três partes. Na primeira parte, intitulada de “Maria a esperança de um povo novo”, sintetizaremos os pensamentos das teólogas Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer. Nesta síntese absorveremos ao máximo os pensamentos dessas teólogas, expondo os grandes eixos dessa sistematização para uma Teologia Marial. Primeiro, suas propostas antropológicas; segundo, a Teologia Marial; terceiro, os dogmas; e quarto, Maria no continente latino-americano. Na segunda parte, intitulada “o feminino e Maria”, sintetizaremos os pensamentos do teólogo Leonardo Boff, subdividindo-os em sete tópicos: primeiro, o feminino revelador do divino; segundo, Jesus um feminista(?); no terceiro, as propostas antropológicas do autor; no quarto, o feminino – caminho de Deus para o homem; no quinto, uma análise simbólica dos dogmas nos pensamentos do autor; no sexto, a solidariedade e mediação universal de Maria; sétimo, o mito como acesso à realidade; e por fim, concluiremos a síntese dos pensamentos de Leonardo Boff sobre a união hipostática de Maria: uma hipótese, segundo Boff. Na terceira parte, intitulada “Mariologia popular”, sintetizaremos os pensamentos de Dorado em três momentos: primeiro, Maria na Teologia da religiosidade popular latino-americana; o segundo, sobre a maternidade popular latino-americana; e por fim, a Maria da AL, indicando como a cultura contribui (negativamente) na Teologia da fé popular. No segundo capítulo, intitulado “Maria símbolo de Deus”, faremos uma abordagem teórica sobre os símbolos religiosos a partir das teorias de Haight (2003), Tillich (1985) e Eliade (1991 e 1992). Ao analisarmos teoricamente o símbolo religioso, apontaremos para Maria como símbolo de Deus e conseqüentemente, símbolo da mulher. Este capítulo está subdividido em três partes: primeiro, Maria, símbolo de Deus, pois Deus se manifestou em sua carne; segundo, Maria símbolo da fé, proclamada como bem-aventurada que manifesta o caráter de Deus; e terceiro, 16 Maria, a mulher ícone do mistério, a partir da teoria de Bruno Forte (1991), teólogo europeu, observaremos que Maria está subordinada a Cristo em função de sua maternidade divina. No terceiro capítulo, apresentaremos uma visão geral da figura de Maria a partir dos nossos teólogos básicos da TL em diálogo com outros teólogos e teólogas, especialmente Elizabeth Johnson, que traz uma importante contribuição a respeito de Deus sobre o uso da linguagem, alguns desses autores não falam exclusivamente da figura de Maria, mas teoricamente pensam a mulher como imagem suficiente para revelar o divino. Aqui, falaremos da emancipação da mulher a partir da figura de Maria. Este capítulo está subdividido em três partes: primeiro, a partir da compreensão do Magnificat e sua importância para o contexto da AL e seus efeitos no pensamento dos oprimidos do mundo moderno – Deus está ao lado dos oprimidos; segundo, o Fiat revela a responsabilidade e autonomia de Maria como mulher e mãe diante dos desígnios divinos; e finalmente, a linguagem religiosa revela sua parcialidade ao falar sobre Deus unicamente como Pai, Deus mãe é uma palavra (quase) impronunciável. O predomínio da linguagem cristã sobre o símbolo influencia profundamente o conceito de Deus como Pai, e não valoriza a humanidade plena da mulher, conforme observa Johnson. A transcendência divina pode ser pensada tanto a partir da estrutura masculina, quanto a partir da estrutura feminina, as polarizações ficam por parte dos preconceitos e estereótipos da cultura e da sociedade. Assim, hoje, a Teologia tenta usar a linguagem de maneira menos sexista e exclusivista. Por isso, ao nos referirmos a “Maria como símbolo de Deus e da Mulher”, não queremos fazer uso do pensamento da Teologia atual que agrega ao caráter masculino de Deus “características femininas”, nem nos apropriarmos das teorias a respeito da terceira pessoa da Trindade – o Espírito Santo que é considerado em seu gênero gramatical como feminino: ruah, para justificar a dimensão feminina de Deus. Posições criticadas pela Teologia Feminista, em particular pela teóloga Elizabeth Johnson, que fornece respaldos suficientemente convincentes e compreensíveis de que atribuir características femininas a Deus não promove a humanidade plena da mulher, além do mais são características estereotipadas2 , mas deve -se pensar Deus a partir da própria mulher numa perspectiva inclusiva e libertadora. De um lado, ao examinar esses autores e suas produções teóricas (teológicas) em que aparecem as formulações de crítica ao “tradicional” modo de pensar a figura de Maria, em que se 2 JOHNSON, Elizabeth A. Aquela que é: o mistério de Deus no tratado teológico feminino. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 79s. 17 afirmam de outro lado, a interdependência e autonomia do seu caráter, por outro lado, a recuperação do discurso de emancipação a respeito da mesma questão, no sentido de perceber como aqueles saberes, ao serem vinculados ao sistema patriarcal, inviabilizaram a imagem da mulher como símbolo do divino, e atualmente tornou-se ao mesmo tempo poderoso símbolo de apropriação do feminino para a emancipação da mulher como imagem do divino, já que durante muito tempo a figura de Maria revelava apenas o modelo de mulher idealizada pelo patriarcalismo. A presença/ausência feminina no trabalho teológico (tradicional) vem sendo marcada, no decorrer da história, por idéias relacionadas a uma suposta natureza feminina, que a TL tem procurado romper. A inclusão do feminino na TL como objeto de reflexão teológica tem contribuído significativamente para um questionamento social, eclesial e teológico a partir de uma perspectiva libertadora. Nos autores supracitados encontramos elementos para uma linguagem inovadora a respeito de Maria e do feminino, são teólogos e teólogas que incluem em seus discursos despidos de preconceitos a inserção do feminino como sujeito, parte constitutiva da TL. Este novo rosto que figura Maria a partir do feminino, que também é marginalizado, começa, então, a fazer parte do pensar teológico, não como idealizou a tradição, mas Maria é Mulher com todas as ambigüidades que lhe são inerentes. Contribuem também como fontes inspiradoras para refletir a presença do feminino no trabalho teológico, a partir de uma reflexão desprendida das idéias relacionadas a uma suposta “natureza feminina”, rompendo assim com os conceitos culturais no que diz respeito às “verdades” sobre Maria no contexto da AL. Encontramos pontos de contatos para uma Teologia Marial libertadora e atual acerca das “verdades marianas”, por exemplo, a partir da perspectiva do Reino conforme sugerem Gebara e Bingemer, que é entender que Deus não privilegia um modelo da humanidade que deva salvar a todos, neste caso a figura masculina representada na pessoa de Jesus , mas tanto a realidade masculina quanto a feminina é receptora e integralmente apta para salvar e ouvir a voz de Deus. E na perspectiva do Reino não há lugar para o patriarcalismo que projeta no homem o modelo e caminho para se chegar até Deus, ao contrário, “é afirmar que a salvação e a criação de Deus sempre se mostraram inseparavelmente presentes no homem e na mulher”3 . 3 GEBARA, I. BINGEMER, M.C. Maria, Mãe de Deus e mãe dos pobres: um ensaio a partir da mulher e da América Latina. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 48. 18 Eles comunicam de maneira mais ampla com os diversos ramos da cultura secular, tornando possível o diálogo entre Teologia e cultura, Teologia e sociedade e uma possível práxis teológica efetiva. Portanto, a reflexão mariológica a partir de uma sistematização à luz da nova emergência do feminino e do processo de emancipação do homem/mulher, oprimido/a da AL, contribuirá para uma sociedade mais justa e uma Igreja cuja doutrina seja menos opressora das mulheres e dos marginalizados em geral. A partir deste quadro de reflexões mais libertadoras do feminino e da Mariologia, podemos pensar a figura de Maria como símbolo de Deus e da Mulher. E assim, criando asas para que, livre do domínio do patriarcalismo, dos seus ditames, da sua soberba, do seu império reinante na cultura, possamos também romper com os estereótipos e também com determinados componentes culturais que têm marcado ao longo da sua história. 19 CAPÍTULO I A FIGURA DE MARIA NA AMÉRICA LATINA Neste primeiro capítulo, o objetivo central é sintetizar as obras dos nossos quatro teólogos(as) da TL: Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer (1987), Leonardo Boff (1979) e Antonio González Dorado (1992), e apresentar uma visão panorâmica das suas principais concepções sobre a figura de Maria. Com o intuito de observar o que eles trazem de novo ao pensarem a figura de Maria a partir do feminino e do contexto latino-americano. Este capítulo está subdividido em três partes. Na primeira parte, intitulada de “Maria a esperança de um povo novo”, sintetizaremos a obra das teólogas Gebara e Bingemer, primeiro, suas propostas antropológicas; segundo, a Teologia Marial; terceiro, os dogmas; e quarto, Maria no continente latino-americano. Na segunda parte, intitulada de “O feminino e Maria”, sintetizaremos os pensamentos do teólogo Leonardo Boff, subdividindo-os em sete tópicos: primeiro, o feminino revelador do divino; segundo, Jesus um feminista (?); no terceiro, as propostas antropológicas do autor; no quarto, o feminino – caminho de Deus para o homem; no quinto, uma análise simbólica dos dogmas nos pensamentos do autor; no sexto, a solidariedade e mediação universal de Maria; e por fim, o mito como acesso à realidade. Concluiremos esta síntese fazendo observações pessoais a respeito do texto (A união hipostática de Maria: uma hipótese, segundo Boff). Na terceira parte, sintetizaremos os pensamentos do teólogo Dorado sobre a “Mariologia Popular” em três momentos: primeiro, Maria na Teologia da religiosidade popular LatinoAmericana, que abarca os três primeiros capítulos, salientando a gênese da Teologia popular; no segundo, sobre a maternidade popular Latino Americana, analisaremos os capítulos quatro e cinco, observando como a figura de Maria se incorpora neste continente, e por fim, do capítulo seis ao oitavo, a Maria da AL, que está associada ao contexto de opressão, mas com a finalidade de libertar-se a ponto de ser considerada como Mãe da libertação. 20 1. MARIA, A ESPERANÇA DE UM POVO NOVO Introdução “Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres”, esta é uma obra elaborada por duas teólogas latino-americanas que objetivam superar os modelos antropológicos que há muito “presidiu a elaboração mariológica e teológica”, conforme explicitam as autoras. A temática é tratada a partir de “uma nova perspectiva antropológica”, que é: humanocêntrica, unitária, realista e pluridimensional, para a elaboração da Teologia Marial. O livro está organizado em seis capítulos, precedido de uma introdução, cujo trecho poético lembra sofrimento e escravidão: “Maria dos oprimidos”. Mas, ao mesmo tempo revela a esperança de um “povo” que tem uma mãe sob a imperativa súplica: “Liberta os filhos teus...”4 . Trata-se, então, de uma análise teológica feita a partir da realidade de um povo, tendo em vistas sua emancipação. O subtítulo da obra é bastante significativo: “um ensaio a partir da mulher e da AL”. Temos aí dois discursos: a Mulher e a América Latina, os quais servem de ponto de partida para o desenvolvimento das análises dessas teólogas. Mulher e AL talvez reflitam a mesma realidade expressiva de marginalização, esta por ser um país de terceiro mundo, onde as desigualdades sociais são cada vez mais acentuadas e aquela por representar o grupo dos oprimidos e excluídos neste continente. 1.1. Proposta antropológica de Gebara e Bingemer É neste contexto de marginalização e opressão que as reflexões dessas autoras se situam. Assim, ao analisarem o pensamento da “antropologia tradicional”, propõem uma nova abordagem antropológica já no primeiro capítulo, intitulado “Por uma nova perspectiva antropológica”, com o objetivo, no entanto, de superar os discursos da antropologia androcêntrica, dualista, idealista e 4 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit., p. 7. 21 unidimensional, os quais, segundo elas, conseqüentemente, contribuíram para o contexto atual da nossa sociedade. Destes, destacaremos o idealismo platônico, o qual trouxe sérias conseqüências para a humanidade, dividindo-a em dois mundos, cujo um deles é inalcançável (utópico). Este mundo “desejado e projetado” é paradoxal às nossas realidades existentes, causando uma grave miopia que se esforça em enxergar unicamente: “o outro mundo”, o “outro eu”, a “outra realidade”. Cegueira esta que faz com que as pessoas tornem-se incapazes “de ver, enxergar, sentir a presença interpelante do ‘homem da mão seca’, da ‘mulher sofrendo de fluxo de sangue’ em meio à multidão”5 . Ao romper com essa moldura antropológica idealista, na qual Maria é vista “nas suas qualidades sobre- humanas, nas suas virtudes dignas de imitação, na sua capacidade de ternura ilimitada e no seu amor sem fim” 6 , torna-se em um modelo inalcançável. Gebara e Bingemer pretendem elaborar uma “Teologia Marial” que mine as bases estruturais dessa figura que antecipadamente já está “pronta” e supostamente inquestionável. A proposta dessa perspectiva antropológica é humanocêntrica, unitária, realista e pluridimensional. Ao propor uma antropologia com características humanocêntricas: “homem e mulher como centro da história”, elas apontam, assim, a possibilidade de se elaborar uma “Teologia Marial que recupere a ação histórica das mulheres em favor do Reino de Deus e que, em conseqüência, faça justiça a Maria, às mulheres, aos homens, em fim, à humanidade criada à imagem e semelhança de Deus”7 . Entretanto, seria necessário articular com uma antropologia que “seja capaz de ultrapassar a experiência do “homem” como experiência normativa para todo o comportamento humano”8 . Assim sendo, elas propõem (já que a mulher não é mais “consumidora” da Teologia, mas começa também a “fazer Teologia” e ligado a esse momento de consciência e emancipação da mulher) uma “antropologia feminina, ou mais precisamente feminista”9 . Esta antropologia Teológica visa incluir a mulher como parte da revelação divina, que quer reconhecer em Maria a esperança da presença divina para todos homens e mulheres marginalizadas. Deus também se manifesta no mais simples e desprezados de todos os povos, sua presença não é limitada aos poderosos, mas abrange o ser humano em geral. 5 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit., 17. Op. Cit., p. 18. 7 Op. Cit., 14. 8 Op. Cit., p. 22. 9 Op. Cit., p. 25. 6 22 1.2. Teologia Marial No terceiro capítulo, ao falarem sobre Maria na Sagrada Escritura, elas pensam o conceito “Reino de Deus” como “central e fundador de uma nova maneira de abordar o papel de Maria na história de nossa fé”10 . Mostrando que nas expressões do Reino, ambas as imagens masculina e feminina representam um elo que nos liga à figura da nossa salvação: Deus. O Reino de Deus não é um Reino aristocrático em que o outro é excluído, ao contrário, é um Reino participativo e convidativo a todos quantos desejem lutar contra as forças opressoras, estes estarão aptos a participarem desse “movimento”: mulheres e homens quer sejam ricos ou pobres, negros ou brancos, índios e mestiços. Um Reino que rejeita a discriminação social, rejeita a segregação racial e o preconceito sexual (Gl. 3.28). Por isso, segundo essas teólogas, fazer Teologia Marial a partir da perspectiva do Reino é entender que Deus não privilegia um modelo da humanidade que deva salvar a todos, neste caso a figura masculina representada na pessoa de Jesus . Mas, tanto a realidade masculina quanto a feminina é receptora e integralmente apta para salvar e ouvir a voz de Deus. E na perspectiva do Reino não há lugar para o patriarcalismo que projeta no homem o modelo e caminho para se chegar até Deus, ao contrário, “É afirmar que a salvação e a criação de Deus sempre se mostraram inseparavelmente presentes no homem e na mulher”11. Fatos estes presentes nas figuras simbólicas de Adão e Eva, Maria e Jesus. Gebara e Bingemer afirmam, ainda, que “fazer Teologia Marial a partir da perspectiva do Reino não é simplesmente “falar de uma figura feminina contrapondo-a a uma figura masculina”, é muito mais que simplesmente revelar as “excelências” realizadas em Maria, ou falar do seu amor, sua dedicação e entrega a Deus, “mas porque sem ela, sem a dimensão que ela representa, fica faltando uma metade de nós, uma metade da humanidade e, conseqüentemente, uma metade da divindade”12 , ou seja, a divindade estaria revelada pela metade (grifo meu). E este Reino se revela tanto no homem quanto na mulher de maneira complementar e relacional. Em decorrência da extrema valorização do masculino, encobriram-se de várias formas os modelos femininos que contribuíram efetivamente na história e em vários contextos (um exemplo 10 11 12 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit., p. 44. Op. Cit., p. 48. Op. Cit., p. 49. 23 atual desta supervalorização masculina em detrimento da feminina é a hierarquia institucional eclesiástica em alguns segmentos religiosos). Entre essas mulheres, que as autoras denominam de “mulheres geradoras ou portadoras da salvação do povo”, estão: Míriam, Ana, Rute, Judite e Ester. Mostram, então, que elas foram mulheres bíblicas que expressaram os modos de viver coletivos, foram símbolos de um povo que cantou a vitória, que viveu à beira da extinção, povo frágil, estéril, mas esperançoso. Para Gebara e Bingemer, os heróis não vencem sozinhos, mas as lutas são sempre marcadas pela coletividade, pela presença de mulheres e homens e de pessoas oprimidas que não aparecem no cenário. Centralizar a vitória em uma figura é esquecer do outro que deu sua vida em prol dessa coletividade. Por isso, no Reino de Deus não cabe o ego ísmo, a ganância, mas o que é mútuo e ao mesmo tempo recíproco. E é a partir dessas mulheres, “imagens do povo”, que as autoras caracterizam a figura de Maria como “Herdeira da tradição de seu povo e inovadora de suas esperanças”13 . Ao afirmarem que “Deus nasce de uma mulher”, expressão para o mesmo “valor teológico” de que “Deus se faz carne em Jesus”, ambas vêem a “encarnação” como “experiência de cada mulher e de cada homem”14 . Como herdeira da tradição, a figura de Maria revela o rosto de um novo povo que nasce a partir da “experiência presencial do Espírito Santo”. Não mais uma figura em quem se manifestou o poder de Deus, mas a mulher que simboliza “a presença salvífica e criadora de Deus no meio do povo”15 . Ao situar a figura de Maria em seu contexto histórico, tendo em conta que a perspectiva da Teologia neste continente é elaborada a partir do seu contexto “sócio -economico-cultural”, ressaltam que: “sem por isso deixar de lado o componente mistérico e transcendente”16. E ao se referirem à “mulher no tempo de Maria”, as autoras vão afirmar que Maria é uma mulher que existiu em um contexto de condição inferior ao homem “marcada mesmo pela sua corporeidade”17 . É a partir dos dados histórico e contextual da vida de Maria que se faz Teologia na AL, para que se revele e se mostre a presença, a atuação, a solidariedade e coletividade das mulheres efetivamente. Enumeradas as condições que inferiorizam as mulheres vividas na época de Maria, 13 14 15 16 17 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 54. Op. Cit., p. 55. Op. Cit., p. 57. Op. Cit., p. 60. Op. Cit., p. 61. 24 as autoras denominam de “anátema”18. Basta citarmos um desses anátemas, que é “ter seu ciclo biológico mensal considerado como impureza”19. Assim, ao percorrerem pelos evangelhos, Atos dos Apóstolos, Gálatas e o Apocalipse, as autoras vão tecendo fio por fio até chegarem ao ponto em que as possibilidades indiquem para uma Teologia Marial. 1.3. Dogmas Gebara e Bingemer no quarto capítulo fazem uma releitura dos “dogmas mariais e seu novo significado a partir dos pobres e a partir do ‘espírito’ do nosso tempo”, mas lidos a partir do contexto do continente latino -americano. Segundo as autoras, os dogmas constituem-se uma “questão ecumenicamente delicada, moralmente espinhosa e teologicamente desafiante”20 . Em primeiro lugar, definem o que significa para elas o “verdadeiro sentido do dogma”. O significado de dogma não tem o mesmo sentid o que teve na definição do Concílio Vaticano I, o qual ficou reduzido a “proposições dogmáticas”, mas seu conceito e sua significação devem ser buscados nas suas “origens mais remotos, na ‘Igreja Primitiva...’ (At 15.28)”21. Em virtude da abrangência do assunto deste capítulo, passaremos rapidamente pelos demais dogmas e nos deteremos no dogma da “Maternidade”. Em suas reflexões, o primeiro dogma é o da “Maternidade divina”, o qual “possui profundas e sólidas referências escriturísticas”. “O termo grego que sintetiza o mistério de fé contido no dogma – THEOTÓKOS – Mãe de Deus”22 . Mediante o exame do conjunto dos textos neotestamentários, elas reafirmam que a Maternidade de Maria é divina e que muitas vezes são descritos sob os “mais significativos símbolos do AT”, por exemplo, em Lucas, “a nuvem que acompanhava o povo e envolvia a tenda da Aliança (Ex 40.34), significa que seu interior está repleto da glória de Javé (...)”. E, “a maternidade divina de Maria a torna assim, segundo Lucas a nova Arca da Aliança (Lc 1.39-44, 56)”23 . 18 19 20 21 22 23 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. Ibidem. Op. Cit., p. 62. Op. Cit., p. 104. Op. Cit., p. 105s. Op. Cit., p. 110. Op. Cit., p. 112. 25 Esta compreensão, entretanto, ajuda a estabelecer possíveis pontos de contatos com a nova insurgência da mulher na sociedade, já que anteriormente a função da mulher era a procriação, principalmente na cultura judaica na qual a mulher que não fosse mãe era marginalizada. Embora a maternidade de Maria e sua maneira de viver (virgem, santa e mãe), tenham produzido a passividade das mulheres em geral, hoje a maternidade passa a ser uma opção. Mas, não vamos entrar no mérito dessa discussão, falaremos disso mais tarde. As autoras citam também os concílios, em que aparecem as formulações sobre a maternidade: Constantinopolitano I, Éfeso e Calcedônia, e atualmente, “o Concilio Vaticano II”, na elaboração do seu documento: “a Constituição Dogmát ica Lumen Gentium”. Elas ressaltam o significado que o Concílio deu à maternidade, do seu profundo significado “à salvação humana como um todo”24 . Ao contrário do valor explícito que tinha (tem) a maternidade na cultura judaica, a Virgindade não tinha (tem) o mesmo valor significativo, não apresentava (apresenta) um valor singular. A esterilidade era considerada uma humilhação, e a realização da mulher estava no simples fato de ser mãe. E é nesta situação de humilhação e desprezo que o Filho de Deus nasce. A Virgindade, simbolicamente significa um novo ser gerado, para viver as experiências do Reino, possibilidade esta, que se “... abre para homens e mulheres de todos os tempos e de todas as épocas a perspectiva de um novo nascimento”. E assim “a criatura humana é, pois, diante d’Aquele que a criou, como um terreno virgem e inexplorado, onde tudo pode acontecer”25 . O terceiro dogma, que as autoras denominam de a “Cheia de Graça”, é o da “Imaculada Conceição”. A proclamação do dogma da Imaculada Conceição aconteceu em um “contexto sociocultural modernista e contexto eclesial antimodernista”. Fixado em 1854, por Pio IX. Para as autoras, a declaração desse dogma, isentando Maria do pecado original, “vem confirmar de certa forma a postura da Igreja da época, de não querer se imiscuir no modernismo, considerado o grande pecado do momento”26 . E por fim, a “Vitoriosa e Senhora Nossa: A Assunção” que é o dogma mais recente, “definida e proclamada solenemente por Pio XII, a 1º de novembro de 1950”. Assim como esse dogma trouxe esperança para os fiéis na época do seu estabelecimento, época das duas guerras 24 25 26 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 114. Op. Cit., p. 121s. Op. Cit., p. 126. 26 mundiais, assim também como “imagem e início da Igreja do futuro, sinal escatológico de esperança e de consolo...”27 , para o povo de hoje. 1.4. Maria no continente latino-americano O quinto capítulo, intitulado “Algumas tradições de culto a Maria na AL”, é também uma análise do contexto histórico do nosso continente, com o objetivo de mostrar as diferentes relações e os aspectos dessa devoção no período das conquistas. Dividido em sete partes, este capítulo não ressalta unicamente os aspectos negativos da colonização, mas a grande influência que a figura de Maria exerceu, o que significou para os conquistadores e conquistados. Marcado pelo período colonial o continente latino-americano sofreu as conseqüências das conquistas ibero-portuguesas, que conquistou e destruiu os “infiéis” e sua idolatria de culto indígena à deusa-Mãe. Por meio da violência, a imagem de Maria foi usada pelos colonizadores para legitimar suas conquistas e sobrepor sua tradição religiosa, massacrando e destruindo a cultura dos índios e negros, brutalmente conquistados. Embora, ainda com resistência, a cultura espanhola e portuguesa foi se impondo, havendo posteriormente “uma integração sincrética entre as grandes divindades dos índios, e também dos negros com o cristianismo”28 . Veremos mais detalhes dessas conquistas na terceira parte deste capítulo, ao tratarmos da “Mariologia popular”. As devoções a Maria na AL marcam um relacionamento em que o povo espera alcançar as graças. Ao falar das “aparições, curas e milagres”, as autoras destacam duas figuras centrais neste contexto: “A aparição de Nossa Senhora de Guadalupe”, e a “Senhora da Conceição Aparecida: ‘salva’ das águas para salvar o povo”. O tema é tratado dentro da perspectiva teológica. “Maria é “viva em Deus” e, por isso, vive de maneira especial na esperança histórica dos povos crentes”29 . “O maravilhoso, o milagre, a cura acontecem na ordem da materialidade ou corporeidade humana”30 . A aparição de Nossa Senhora de Guadalupe tem “lugar privilegiado na Mariologia Latino-Americana”, ela não é uma imagem “encontrada ou esculpida”, sua 27 28 29 30 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 137. Op. Cit., p. 151. Op. Cit., p. 157. Op. Cit., p. 158. 27 aparição foi “sobrenatural”31. O objetivo das autoras “é lembrar a profundidade da experiência religiosa que se dá em Guadalupe...”32 . Quanto a aparição de Nossa Senhora da Conceição Aparecida , salva das águas do Rio Paraíba pelo pescador João Alves, essa figura envolve “uma tradição popular, segundo a qual ela foi objeto de uma ‘pesca milagrosa’” 33 . “Trazida pelo colonizado r português: uma Virgem branca, mas a Virgem encontrada nas águas é negra”34 . Posteriormente proclamada como Padroeira do Brasil. As autoras concluem esta parte percebendo a impossibilidade de “falar dos múltiplos rostos latino-americanos de Maria”. E que seria necessário fazer uma peregrinação “sobretudo nos ‘lugares santos’ da devoção, visitar “Luján na Argentina, Chiquinquirá na Colômbia”, enfim, Gebara e Bingemer sugerem a leitura da obra de Ruben Ugarte, na qual pode ser encontrada a “síntese histórica das diferentes devoções mariais latino -americanas”35 . No sexto capítulo, sobre a figura de “Maria e as maravilhas de Deus no meio dos pobres”, as autoras ressaltam a importância das CEBs como a “concretização de um projeto de Igreja”. Mas em nota de rodapé justificam que não se trata de colocar “o povo das CEBs ao lado ou à frente do povo simples em geral”. Esse novo modo de ser Igreja constitui-se em vivência “original de tomada de consciência de seu lugar no mundo e sua potencialidade de luta”36 . É pensar a Igreja a partir da perspectiva do Magnificat, o canto de libertação dos pobres de todos os tempos que Lucas colocou na boca de Maria, mulher pobre, marginalizada, excluída, mas escolhida para ser Mãe do Filho de Deus e hoje considerada mãe do povo pobre do continente. As CEBs enfatizam a figura de Maria junto às classes populares na Igreja e na sociedade, a mulher que carregou em seu ventre e deu luz ao “Libertador dos pobres”. Em um continente marcado pela exclusão, opressão, derramamento de sangue, é preciso ouvir a voz de Maria e o que ela continua nos falando hoje: de plenitude de vida e de libertação. A partir do Magnificat, a voz libertadora que soa a favor da vida e de uma sociedade igualitária, não pode “ser entendido como algo que canta por e para si mesma enquanto indivíduo, mas também para o povo messiânico, o povo que suspira e geme pelas promessas do 31 32 33 34 35 36 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 165. Op. Cit., p. 166. Op. Cit., p. 179. Op. Cit., p. 180. Op. Cit., p. 183. Op. Cit., p. 185. 28 Senhor Deus”37 . Por isso, o Magnificat deve permanecer como o canto dos oprimidos que anseiam pela erradicação da estrutura patriarcal que discrimina, que exclui e que explora homens e mulheres pobres, negros, índios, mestiços etc., para incluí- los, também, no projeto do Reino de Deus. O mistério de Maria deve continuar sendo lido dentro “de seu contexto de opressão, luta, resistência e vitória”, afirmam as autoras. Mas com um novo discurso teológico “a partir da experiência e da prática concretas”38 . 1.5. As autoras concluem “Uma nova Teologia Marial, aponta para o ‘mistério de Maria’ com ‘uma nova palavra para o mundo’”. E esse mistério “diz que o mundo não é apenas palco sinistro de uma tragédia absurda, onde vencedores e vencidos são sempre os mesmos, mas lugar da esperança de vitória...”39 . O mistério de Maria também “traz uma nova palavra sobre Deus”, luz que brilha “para todos os oprimidos do continente Latino -Americano”. 40 Considerações pessoais Se na perspectiva do Reino, conforme mostraram Gebara e Bingemer, a salvação está presente tanto no homem quanto na mulher, logo, Maria e Cristo constituem-se veículos da revelação/salvação de Deus no mundo. Elas afirmam que “A Teologia Marial a partir do Reino de Deus não pode ser pensada em função da Cristologia, de forma a diluir aquilo que é próprio à maneira feminina de viver e proclamar o Reino”41 . Com efeito, Maria tem presença participativa no meio dos pobres, ela não se constitui uma mulher completamente passiva, unicamente como “a encantadora Mãe de Jesus, mas ela é, acima de tudo, ‘operária’ na messe do Reino, membro ativo do movimento dos pobres, o mesmo 37 38 39 40 41 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 191. Op. Cit., p. 196. Op. Cit., p. 200. Op. Cit., p. 201. Op. Cit., p. 49. 29 de Jesus de Nazaré”, na qual a divindade também está presente. É nesta perspectiva que essas teólogas rompem com o modelo limitado de “seu passado, ou seja, uma versão de submissão a seu Filho, expressão da submissão da mulher à ordem estabelecida pelo sistema patriarcal vigente”42 , para a elaboração da Teologia Marial. Esta leitura dará uma nova visão a respeito de Maria, tanto para os que só conseguem ver sua humanidade, tanto para os que não conseguem ver sua transcendência. O rosto de Maria é visto nos diferentes contextos da AL, bem como suas aparições, curas e milagres. Maria, a Padroeira latina-americana tem nomes e identidades próprias em cada cultura. Ela é a mulher representativa das diversas marias latino-americanas, é a figura que engloba os injustiçados, os marginalizados, os pobres, os negros, os índios, os quais também são imagens e semelhanças de Deus. A Teologia Marial elaborada por essas mulheres não é pensada única e exclusivamente em função da Cristologia. Elas afirmam também que “Mariologia e Cristologia são formas de exprimir a novidade sempre poética, sempre inédita da ternura e da justiça que acontecem na mulher e no homem que buscam amar para além de seus limites”43 . Incluir a mulher nessa realização e nos ideais do Reino exige que se tenha coragem e força, perseverança e confiança para lutar contra as forças do reino das segregações, dos modelos hierarquizados, dos ideais do patriarcalismo e de todas as forças contrárias à justiça do Reino. “Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres”, ainda, clama hoje em favor de seus filhos contra as injustiças, a discriminação, o preconceito e a dominação racial e sexual. Maria é Mãe, protetora, auxiliadora, intercessora e tantos outros adjetivos carregados de plenos significados revelados neste Continente de maneiras particulares. 42 43 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 50. Op. Cit., p. 49. 30 2. O FEMININO E MARIA Introdução A mulher hoje tem conquistado espaços relevantes na sociedade e desenvolvido suas capacidades emotiva, intelectual e intuitiva não mais de maneira negativa, como lhes foram atribuídas tais características pejorativamente. É interessante notar que as funções que as mulheres têm ocupado em nada as tornam inferiores ou subalternas ao homem, sua capacidade em nada fica devendo à capacidade masculina. E é esse avançar feminino que mina a hierarquia patriarcal e promove sua emancipação. O livro de Leonardo Boff, intitulado “O Rosto Materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas”, analisa a pertinência do feminino na elaboração da Teologia. Para Boff, “quase não se explorou o feminino como acesso a Deus”44 . Convencido de que o feminino não fora ainda assumido como caminho para se pensar a Mariologia, Boff o assume. Sua proposta é a partir de uma nova reflexão sobre as perspectivas tradicionais que a fé nos legou a respeito de Maria, mostrar teo logicamente que o feminino também constitui um caminho do homem para Deus e de Deus para o homem. O feminino também possui igual dignidade que o masculino, baseado na leitura de Gênesis 1. 27. Sendo o masculino e o feminino imagem e semelhança de Deus, tanto um quanto outro, observa Boff, serve de “arquétipo supremo”45 . E no quinto capítulo analisa teologicamente o feminino a partir de algumas perspectivas, para que o próprio feminino manifeste sua pertinência teológica. Portanto, o autor busca a partir do feminino, entender radicalmente, o significado transcendente de Maria. Ao introduzir o assunto, ressalta que mundialmente a cultura, a sociedade está passando por transformações. “De uma sociedade patriarcal, assentada sobre o pré-domínio do varão e da racionalidade, está passando para uma sociedade pessoal, centrada sobre a força nucleadora da 44 BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas Petrópolis, RJ: Vozes, 1979, p. 15. 45 Op. Cit., p. 102. 31 pessoa e do equilíbrio de suas qualidades”46 . Neste contexto, há uma retomada a respeito da “valorização da intuição, o feminino e de tudo o que afeta e concerne à sua subjetividade”, o império da racionalidade agora se vê de frente do ‘arracional’ como realidade própria”47 . E também tem a ver com a “pertinência teológica”. Cabe à Teologia contribuir de maneira “crítica” e não mais “ingênua”, e a partir daí romper com as idéias culturais. 2.1. O feminino revelador do divino Na primeira parte de sua reflexão, Boff coloca a questão do “feminino como princípio organizador da Mariologia”, acerca do qual persiste uma complexa discussão teológica. Boff traça os caminhos teoló gicos que têm presidido essa discussão, no entanto, destacaremos apenas dois desses. Um primeiro caminho dos sete que Boff analisa: “se recusa a perguntar pelo desígnio secreto de Deus”; e um segundo caminho argumenta que é legítimo a unidade de sentido nos acontecimentos marianos, “mas não se deveria, apesar disso, elaborar um tratado específico de Mariologia”48. Segundo Boff, esses caminhos são insuficientes para se chegar a uma análise sistemática da Mariologia, então, um caminho que supera essa insuficiência para Boff seria o “feminino”. Para ele, “importa que a mario-logia seja teo-logia. Em outras palavras: ao se falar de Maria deve-se falar de Deus”49 . Deste modo, o “centro seria Deus e não mais Maria, ou o homem, ou o feminino ou mesmo Cristo”. O autor então questiona: “Que significa Maria para Deus?”. Ou ainda, “que significa o feminino para Deus? Se Maria for considerada a expressão suprema do feminino, não se poderá então dizer que Deus ‘se realizou’ a si mesmo maximamente em Maria?” Dessa forma, se abriria um novo horizonte sobre “a maneira de Deus se autocomunicar e se auto-realizar”50 . Na segunda parte, a qual é composta de quatro capítulos, Boff analisa profundamente o feminino do ponto de vista científico, filosófico e teológico, destaca alguns obstáculos epistemológicos concernentes ao feminino. Citamos apenas três desses, os quais julgamos ser os 46 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 13. Op. Cit., p. 14. 48 Op. Cit., p. 24s 49 Op. Cit., p. 31. 50 Op. Cit., p. 32. 47 32 mais interessantes para o desenvolvimento do nosso tema. O primeiro obstáculo é o monismo sexual – a experiência da mulher como indivíduo ainda não se revela independente nem plenamente devido às determinações culturais. Embora teoricamente se afirme a libertação da mulher, de fato aconteceu, mas em muitos setores a mulher ainda permanece marginalizada e sempre associada às atividades domésticas, é sua função cuidar dos filhos e do lar, pois isso é sua competência. Como afirma Boff: “Esta situação infra-estrutural repercutiu no nível supraestrutural, aparecendo uma compreensão da mulher como apêndice do varão ou uma manifestação diminuída dele”, e ainda, “É a partir do varão que se realiza, plenamente, a natureza humana; a mulher na medida em que se associa a ele”51 . O segundo obstáculo tem a ver com a “ontologização de manifestações históricas” – está ligada à dominação do homem sobre a mulher, sua submissão e dedicação doméstica tornam-se “atributos da própria natureza feminina”. Então, “Atribui-se à natureza aquilo que é produto da história, resultado das práticas humanas e do jogo dos interesses”52 . E uma terceira perspectiva é a “exaltação do feminino : a mulher eterna – os estereótipos ligados à mulher, dos quais a figura de Maria é representativa – mulher do sim submisso, resignada, modesta e anônima. Tais “qualidades” ditas femininas, de certa forma, impedem “a mulher de descobrir sua verdadeira vocação e suas possibilidades históricas” 53, ressalta o autor. No terceiro capítulo, partindo de uma compreensão do feminino a partir de uma aproximação analítica, Boff afirma a “diferença varão- mulher”, e ao mesmo tempo sua “reciprocidade”. Analiticamente, ao comparar os cromossomos da mulher e do varão verifica-se que “o sexo-base é o feminino”; “o masculino é induzido a partir daquele feminino, fato que desautoriza o mitológico ‘princípio de Adão’”54 . E mais adiante, hipoteticamente irá dizer que o “feminino surge como uma perfeição”55 . No entanto, o “homem é sempre varão e mulher”. Mas a ciência não consegue captar todo o mistério que envolve o varão e a mulher 56 . No capítulo quatro, o autor faz uma análise do feminino a partir de uma reflexão filosófica. “O humano articulado em varão e mulher revela-se dentro de uma estrutura 51 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 42. Op. Cit., p. 44. 53 Op. Cit., p. 45. 54 Op. Cit., p. 49. 55 Op. Cit., p. 74. 56 Op. Cit., p. 60. 52 33 profundamente dialética”57 . Porquê a ciência não decifra quem é o homem, o pensar filosófico tenta responder sobre o mistério que reside o varão e a mulher. Ou seja, a estrutura ontológica existente em cada ser humano, que segundo Boff consiste no “e”. “Ser ele e mais o diferente dele com o qual comunga”58. Embora diferentes, o masculino e o feminino são realidades recíprocas. No quinto capítulo busca analisar o feminino a partir de uma “meditação teológica”, a partir de cinco perspectivas: 1) pertinência da meditação teológica; 2) o que dizem as escrituras e a tradição da fé sobre o feminino; 3) princípios para uma antropologia teológica do feminino; 4) Deus no feminino – o feminino em Deus; e 5) Maria, antecipação escatológica do feminino em sua absoluta realização: uma hipótese. Qual seria então a pertinência teológica do feminino para revelar o transcendente? O autor, primeiramente, ressalta a responsabilidade da Teologia em refletir sobre a presença do feminino e de Deus. A Teologia, como a palavra o sugere, reflexiona a partir de Deus. Interroga o feminino sob duas modalidades: até que ponto o feminino constitui um caminho do homem para Deus e até que ponto o feminino se apresenta como um caminho de Deus para o homem. Em outros termos: até que ponto o feminino revela Deus e até que ponto Deus se revela no feminino 59 . Tendo em vista que a dimensão feminina é inerente a Deus e que o “feminino possuiria uma profundidade divina” (discurso filosófico), a questão teológica acerca do feminino se daria, então, a partir de uma “ruptura existencial da fé num Deus encarnado em Jesus Cristo (Filho) e ‘espiritualizada’ na vida dos justos (Espírito Santo)”. Isto implicaria “num corte epistemológico instaurando um discurso próprio...” A Teologia, então, colocaria seu discurso no nível da fé, e é a partir deste eixo que Boff apresenta seu discurso, e a pergunta se reformularia: “Como o feminino é revelador da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espír ito Santo? Como a Trindade Santíssima se revela a si mesma no feminino?”60. 57 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 64. Op. Cit., p. 65. 59 Op. Cit., p. 73. 60 Op. Cit., p. 74. 58 34 2.2. Jesus, um feminista (?) Boff considera que nas Escrituras Sagradas existem alguns textos antifeministas, ao fazer uma revisão hermenêutica desses textos, demonstra com clareza como os relatos de Gênesis interpretados de maneira masculinizante atribuíram à mulher um lugar secundário e, conseqüentemente, a rejeição do feminino como acesso a Deus. Por exemplo, o relato da criação de Eva. Para Boff, “o sentido intencionado pelo autor sagrado é mostrar a unidade do varão e da mulher e fundamentar a monogamia. Entretanto, esta doutrina, que em si deveria superar a discriminação da mulher, acabou por secundá- la”. Um outro relato é o da “Queda (Gn 3. 6-7)”. Este quer demonstrar a presença do mal, ou como esclarece Boff: “o relato mítico quer etiologicamente mostrar como o mal está do lado da humanidade e não do lado de Deus” 61 . Mas, ao contrário, o texto contribuiu significativamente para marginalizar a mulher, ou seja, o feminino ficou submetido às idéias masculinizantes do judaísmo cristão. Para Boff, as boas novas de Jesus se situam neste cenário de idéias antifeministas, embora ele (Jesus) tenha sido um “feminista”, suas idéias não proporcionaram alterações significantes para a emancipação da mulher, ainda “social e religiosamente discriminada”. Claro que Jesus, como observa Boff, não fez nenhuma “pregação explicita de libertação da mulher; mas colocou um princípio libertador geral que incidiu sobre a situação de dominação feminina”. Jesus quebra vários tabus, por exemplo: “mantém profunda amizade com Marta e Maria (Lc 10. 38); e contra o ethos do tempo, conversa publicamente e a sós com a mulher samaritana junto ao poço de Jacó, causando admiração até dos discípulos (Jo 4. 27)”62 . E conclui, dizendo que “as atitudes e a mensagem de Jesus significaram uma ruptura com a situação imperante e uma grande novidade nos quadros daquele tempo”. E observa também que “As instâncias econômicas, política e cultural não haviam sofrido ainda aquelas transformações que permitissem a assimilação da revolução antropológica (ideológica) inaugurada por Jesus”63 . Entretanto, Boff observa também que o cristianismo não deu continuidade a esta ruptura, prova disto é que no NT existem as ambigüidades. Ao mesmo tempo em que mostra a igualdade, fala também da submissão ou desigualdade 64 , mostrando também as tensões, ambigüidades, 61 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 77. Op. Cit., p. 78. 63 Op. Cit., p. 79. 64 Op. Cit., p. 79s. 62 35 conflitos e as lacunas da ideologia dos seus sucessores, e Paulo é um exemplo claro: “por um lado assume a novidade introduzida por Jesus acerca da igualdade da mulher, por outro, não consegue fazê- la valer em sua cultura e passa a refletir a submissão da mulher: ‘não há varão, nem mulher, todos são um em Cristo’” (Gl 32. 28)”65 . Ao concluir, afirma que “na história posterior os textos de Paulo que refletem a cultura imperante discriminatória fossem invocados como palavra de revelação e assim legitimassem a dominação do varão sobre a mulher”66. 2.3. Proposta antropológica de Leonardo Boff Tendo em vista essa leitura antifeminista, Boff propõe seis princípios para uma antropologia teológica do feminino. Os três primeiros princípios equilibram paralelamente as relações humanas entre si e a divindade: primeiro, a partir da “igualdade criacional do varão e da mulher”. Este princípio já estava presente na antropologia judaica cristã. Boff resgata o pensamento “original” do autor bíblico. Por exemplo, o texto de Gênesis 1.27 é uma afirmação “contra o espírito antifeminista” em que o escritor sagrado, de forma contundente, afirma: “Deus criou o ser humano (humanidade) à sua imagem (...) criou-os varão e mulher”. “Esta imagem de Deus só é completa quando refletida nos dois sexos”67 . O texto revela a igualdade criacional do varão e da mulher. O segundo princípio tem a ver com a “reciprocidade varão-mulher”. Para Boff “o relato mais arcaico do Gênesis (2. 18-23), apesar de sua conotação masculinizante, deixa claramente entrever a diferença e também a reciprocidade varão- mulher”. “Quando Deus decide criar a mulher diz, num modismo tipicamente hebraico: vou dar ao varão alguém que lhe será um vis-à-vis e semelhante a ele (Gn 2. 18)” 68 . Varão e mulher se complementam e são recíprocos. O terceiro princípio diz respeito ao “feminino: revelação de Deus”. Sendo o feminino também veículo da revelação de Deus , sua presença aparece também na linguagem feminina. “Deus e Cristo são personificados na temática feminina da Sabedoria (Pr 8. 22-26; Si 24. 9; 1Cor 24. 30)”. Mulher e Sabedoria estabelecem entre si uma estreita correlação, ocorrendo uma transmutação simbó lica entre uma e outra. “Ou Deus é comparado com a mãe que consola (Is 66. 13), mãe 65 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 80. Op. Cit., p. 83. 67 Op. Cit., p. 87. 68 Op. Cit., p. 88. 66 36 incapaz de esquecer o filho de suas entranhas; Jesus se compara como a mãe que quer reunir os filhos sob a sua proteção (Lc 13. 34)”69. Estes três últimos princípios mostram a confluência do feminino no plano do mistério divino. No quarto princípio, a iniciativa da fé de mulheres que estiveram presentes na vida de Jesus e que permaneceram fiéis nessa nova aliança, vale ressaltar alguns exemplos: “É pelo Fiat de Maria que o Salvador entra no mundo; são elas que permanecem fiéis ao pé da cruz, quando os discípulos haviam fugido (Mt. 27. 56); são elas as primeiras testemunhas da ressurreição (Mt 28. 19-20). Em João a mulher ocupa uma função constitutiva da salvação: é a mãe de Jesus que introduz o primeiro milagre em Caná (Jo 2.11)”70 . O quinto é o princípio feminino da salvação”, onde é ressaltada a figura de Maria que “representa para a fé cristã não apenas a plenitude de realização do feminino em suas distintas manifestações ligadas ao mistério da vida como a virgem e a mãe, pelo fato de ser a virgem- mãe de Deus encarnado e estar relacionada intimamente ao Espírito Santo”. Mas, por causa da “relação ontológica entre Maria e Jesus. A carne que ela forneceu a Jesus é carne do próprio Deus. Há, pois, algo do feminino de Maria assumido hipostaticamente por Deus mesmo”71 . O sexto e último princípio mostra que “a plenitude da mulher não está no varão, mas em Deus ”. A mulher e o homem criados como imagem e semelhança de Deus não pode se furtarem à responsabilidade de ser para Deus pessoas distintas e recíprocas. Deus imbuiu homens e mulheres aptos a serem totalmente realizados como pessoas humanas. E conclui: “A destinação última do varão e da mulher é Deus mesmo”72 . 2.4. Feminino – caminho de Deus para o homem A partir desse quadro de análise dos princípios antropológicos, Boff norteia-se teologicamente a partir dos dados atuais acerca do feminino, não mais do ponto de vista da Sagrada Escritura, mas mediante a aproximação sócio-analítica e da reflexão filosófica. Com 69 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 89. Op. Cit., p. 89s 71 Op. Cit., p. 90. 72 Op. Cit., p. 91s. 70 37 efeito, afirma que masculino e feminino enquanto recíprocos são pertinentes para a reflexão antropológica, a qual “não pode se fechar nem se fundar sobre si mesma; ela se sente reenviada a um movimento mais profundo que coloca uma questão última: que é, finalmente, o homem em sua expressão masculina e feminina”73 . E conclui, dizendo que se o ser humano se constitui imagem e semelhança de Deus, por esta lógica devemos admitir “que Deus é prototipicamente masculino e feminino”74. Ainda, neste contexto, ao discutir sobre “O feminino: caminho de Deus para o ser humano”, Boff é hipotético. Então, se existe um feminino em Deus, ele não afirma se existe, ele interroga: “Podemos falar de um feminino em Deus? É-nos lícito invocar a Deus como minha Mãe, assim como aprendemos do Senhor a invocá- lo como nosso Pai?”75 . Sem desconhecer a complexidade que marca esta questão, busca compreender melhor alguns aspectos das práticas libertadoras das mulheres, do cristianismo e da Teologia. O aprofundamento desta temática é importante, pois, se as “Escrituras e a Tradição da fé comumente não nos apresentam um Deus como Ela, mas como Ele”, um Deus totalmente masculino: Deus Pai e Deus Filho, então, esse possível deslocamento: de se invocar Deus como “Mãe”, como “Ela”, neste contexto de tomada de consciência da própria mulher, ou como é função da teologia refletir a “partir do discurso racional da fé”, que segundo Boff “deve aprofundar e conscientizar os limites de tais afirmações”76 , ou ainda, de uma “correta hermenêutica teológica”, como bem denomina, para despatriarcalizar “nossa representação do mistério trinitário”. “O masculino e o feminino encontram em Deus seu protótipo e sua fonte. Deus- feminino serve de arquétipo supremo para a mulher como Deus- masculino para o varão”77 . Boff observa que nos últimos anos tem surgido no contexto da libertação da mulher: “Deus-Mãe”. E ao descrever “Deus, princípio Último de toda feminilidade” questiona, em que sentido pode-se “falar de um feminino em Deus”? 78 . “Pai, Filho e Espírito Santo exprimem realidades divinas enquanto princípio sem origem, sendo que o Filho é uma realidade autocomunicada como verdade e o Espírito Santo ao comunicar-se a si mesma produz aceitação 73 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 93. Ibidem. 75 Op. Cit., p. 94. 76 Op. Cit., p. 95. 77 Op. Cit., p. 102. 78 Op. Cit., p. 101. 74 38 amorosa no receptor”79 . Termina, afirmando que Deus “pode ser experimentado e invocado como meu Pai e minha Mãe, nosso Pai e nossa Mãe”. E ao questionar: “qual o sentido último do feminino?”, sua primeira resposta é que “o feminino, na ordem da criação, encontra o seu sentido em revelar o Feminino de De us mesmo, porquanto tudo o que existe, naquilo que é e na forma como é revela Deus”80 ; uma segunda resposta apontada é que “afeta Deus diretamente” é que “Deus cria o diferente, na ocorrência o feminino, para ele poder se autocomunicar a este diferente”81 . Boff conclui, dizendo que é tarefa do Espírito Santo “divinizar hipostaticamente o feminino, direta e explicitamente e de forma implícita o masculino”82. A quinta perspectiva, neste quadro de análise, é sobre “Maria, antecipação escatológica do feminino” em sua absoluta realização. A hipótese do autor irá sustentar que “Maria” é essa “antecipação escatológica do feminino em sua absoluta realização”83. Então, para explicitar essa antecipação escatológica, ele parte de sete pressupostos: primeiro, “o ser humano tem a possibilidade ontológica de ser unido hipostaticamente a uma Pessoa divina”; segundo, tem a ver com a plena realização de felicidade humana no céu; terceiro, “a natureza humana assumida pelo Filho Eterno é simultaneamente masculina e feminina (Gn 1. 27)”; quarto, “assim como o masculino foi divinizado diretamente convém que o seja também o feminino de forma direta imediata; quinto, “Deus pode divinizar o feminino, porque tanto em Deus quanto no feminino existe esta possibilidade”; sexto, o fato de ter sido Maria e não qualquer outra mulher a assumida hipostaticamente (...) protótipo feminino realizado de forma absoluta”; sétimo e último, é que “o divinizador do masculino (e feminino) foi o Verbo; o divinizador do feminino (e do masculino) é o Espírito Santo”84. Para finalizar este quadro de análise em que retrata a união hipostática de Maria, ou seja, a encarnação do Espírito Santo em Maria, Boff evita usar o termo “ encarnação” por ser um “termo técnico da cristologia” e utiliza o termo “espiritualizar”. Sustenta “que Maria não só recebeu os efeitos da intervenção do Espírito Santo em sua vida – como qualquer outra pessoa, apenas numa 79 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 102. Op. Cit., p. 103. 81 Op. Cit., p. 104. 82 Op. Cit., p. 105. 83 Op. Cit., p. 106s. 84 Op. Cit., p. 107. 80 39 intensidade única – mas especificamente acolheu a própria Terceira Pessoa divina da Trindade Santa”85 . 2.5. Análise simbólica dos dogmas em Leonardo Boff Na quarta parte, que vai do capítulo sete ao capítulo doze, intitulado de “A Teologia”, Boff analisa nos quatro primeiros capítulos os “dogmas”, e nos capítulos ulteriores a “mediação universal de Maria” e seu “papel libertador”. Primeiramente, distingue a “Mariologia que vem de baixo” de uma “Mariologia que vem de cima”86 . A Mariologia que vem de baixo é voltada para a história, para seus acontecimentos – para a Maria que se considera serva do Senhor (Lc 1.38); a que vem de cima é teológica, é a Maria de quem se diz que é cheia de graça (Lc 1.30). Boff afirma que a “gramática divina” é diferente da nossa, pois sua glória se realiza na “pequenez, se revela na insignificância e se concretiza na marginalidade”87 . A Mariologia da exaltação não se opõe a aquela, mas antes se atém aos acontecimentos “histórico-salvífico”. Por se tratar de um tema bastante amplo, sintetizaremos ao máximo a questão dos dogmas marianos, os quais são analisados numa perspectiva simbólica. Para Boff, o teor do dogma não está em dizer se são verdadeiros, mas como eles se relacionam e o que nos dizem. Por exemplo: a Imaculada Conceição em suas análises é a “culminância da humanidade”88 . A partir da declaração de que “Maria foi preservada e isenta de toda mancha de pecado original”, o autor parte de duas questões iniciais: primeiro, “o que significa estar livre do pecado original? A segunda questão: “que significa estar cheia de graça?”89 . Suas análises contribuíram para afirmar que: todos nascemos dentro do pecado (...) Mas de Maria se diz: ela foi isenta e preservada de toda a mancha do pecado original; ela realiza o homem que Deus sempre quis, ereto para o céu (nós somos pelo pecado 85 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 111. Op. Cit., p. 173s 87 Op. Cit., p. 138. 88 Op. Cit., p. 140. 89 Op. Cit., p. 144. 86 40 encurvados), aberto para o outro (nós nos centramos sobre nós mesmos) e confraternizado com o mundo (nós possuímos egoisticamente a terra) 90 . Sobre “A Virgindade perpétua de Maria”, Boff define como o “começo da humanidade divinizada” e a situa no contexto do AT, onde a virgindade não “possui nenhum valor particular”. Ao contrário, “equivalia à esterilidade que provoca desprezo”91 . A virgindade antes do parto aponta para o novo começo do mundo. Com base nas análises de Boff, podemos concluir que a virgindade de Maria antes do parto está associada ao ministério da encarnação; está a serviço da realização dos desígnios de Deus; e simboliza uma ruptura para o assentamento de uma nova humanidade. A virgindade de Maria no parto: o nascimento foi conforme a natureza humanodivina de Jesus”, não é um testemunho das Sagradas Escrituras, mas trata-se “de uma conclusão teológica derivada da virgindade antes do parto”92 . Há uma “tradição teológica que ensina que se trata de ausência de dor e de inviolabilidade do hímem por ocasião do nascimento do menino Jesus” (para Boff isso deve continuar a ser tratado como especulações). “A virgindade depois do parto : dedicação total a Cristo e ao Espírito Santo”. Este é um dos assuntos que separam católicos e protestantes. De um lado, o “protestantismo moderno, à diferença do antigo, nega este artigo de fé baseado nos textos evangélicos que falam dos irmãos de Jesus (Mc 3. 31; Jo 2. 12; At 1. 14; I Cor 9. 5 ; Gl 1. 19). De outro, os católicos defendem que Maria permaneceu virgem. Segundo estes, “Os assim chamados irmãos e irmãs de Jesus eram seus primos e primas”93 . Para Boff, “O conteúdo da virgindade após o parto não deve ser buscado em qualquer preconceito contra a vida matrimonial e sexual”. Maria e José estavam “a serviço do significado salvífico de Jesus”. E ainda, a virgindade tem um “sentido antropológico” e outro “teológico”. Para tanto, a verdade revelada tende neste sentido a “decifrar dimensões do mistério de Deus, nos ajudam também a decifrar dimensões de nosso próprio mistério”. Então, para ele “a virgindade cristã não é apenas reserva para Deus; é principalmente missão para os homens em nome de Deus”94 . A partir dessas análises, compreendemos que não é a virgindade de Maria o mais importante, mas a sua “maternidade humana e divina ”, devido a seu caráter. Ela está a serviço do desígnio de Deus. “E qual é este desígnio? Querer ser homem. Deus quer ‘realizar-se’ 90 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 141s. Op. Cit., p. 146. 92 Op. Cit., p. 158. 93 Op. Cit., p. 160s. 94 Op. Cit., p. 162. 91 41 fazendo-se homem” 95 . Maria é a “pro-genitora (genitrix)” de Deus. Ao falar da maternidade humana de Maria, Boff afirma que esta teve implicações como qualquer outra maternidade, ou seja, foi uma maternidade humana. Afirma também que “a maternidade não se reduz a uma fase da vida; ser mãe é para toda a vida como também ser filho”96 . E conclui, dizendo que “Ela não é só mãe do homem Jesus. É também mãe do Deus Jesus. Por isso, o que dela nascer será Santo e Filho de Deus, como o diz S. Lucas (1.35)”97 . O outro pólo reside em Jesus verdadeiro Deus, logo, legitima-se sua maternidade divina. No capítulo dez, quanto à “Ressurreição e Assunção de Maria”, ao analisar o texto dogmático: “a imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso de sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à gloria celeste” (DS 3903), Boff vai afirmar que o texto deixa entrever que Maria de fato morreu, pois a morte faz parte da estrutura da vida humana, independentemente do pecado. A Assunção para Maria, significa “o definitivo encontro com seu Filho que a precedeu na glória”. Para nós, a Assunção de Maria “concretiza de modo eminentemente nosso próprio destino na glória especialmente da dimensão femin ina da existência”98 . Para Deus, a Assunção de Maria permite uma relação mais profunda com ela, quer dizer: como se trata de uma relação escatológica, vale dizer, na sua absoluta perfeição, significa que Deus realiza de forma terminal sua união com Maria mediante o Espírito Santo que a partir da Anunciação fez dela templo vivo99 . 2.6. A solidariedade e mediação universal de Maria A mediação de Maria, para o autor, tem como base “o único mistério cristológico e pneumático”. “Maria e Cristo devem ser pensados como momentos de um mesmo Mistério de autocomunicação salvadora de Deus”100. A solidariedade de Maria, então, consiste em toda sua maneira de viver. Boff enumera os fatos históricos como testemunhos da solidariedade Mariana. Seu “Sim” dado livremente a Deus; sua visita a Isabel; o Magnificat mostra a profunda 95 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 166. Op. Cit., p. 169. 97 Op. Cit., p. 170. 98 Op. Cit., p. 182s. 99 Op. Cit., p. 184. 100 Op. Cit., p. 189s. 96 42 solidariedade de Maria pelos oprimidos da terra; o nascimento de Jesus; sua fuga ao Egito – Maria participa da sorte de todos os fugitivos e perseguidos da história, enfim, em Caná ela participa da alegria de um casamento e do constrangimento da falta de vinho101 . Ele entende a mediação como “os vínculos que aproximam e unem as pessoas”102 . O capítulo doze, ressalta a figura de “Maria, mulher profética e libertadora”, Boff ressalta três pontos: 1) a situação opressora atual, como lugar hermenêutico da libertação; 2) Maria, modelo dos anelos de libertação dos oprimidos; e 3) mostra-te como mãe libertadora! A libertação é tema principal na AL, há de se perceber que nos últimos anos a fé centrada em Maria busca uma nova compreensão, principalmente nas comunidades de base onde se apreciam “os traços denunciadores, enunciadores, proféticos e libertadores de Maria, presentes em seu hino de louvor, o Magnificat ”103 . É uma situação que o autor denomina de “catividade e opressão”, esta dualidade nos coloca dentro de um “circulo hermenêutico” que, ao comparar as situações “sócio históricas” vividas por Maria e os seus conterrâneos com a nossa situação atual de cativeiro e opressão social e política, é que se faz também “um lugar hermenêutico privilegiado para lermos o Magnificat de Maria e fazermo-nos ouvintes de sua mensagem” 104. “A dimensão libertadora de Maria foi, solenemente, sublinhada pela encíclica de Paulo VI, O culto à Virgem Maria (1974)”. Boff descreve algumas considerações acerca do Magnificat para ressaltar o modelo de libertação anelado pelos oprimidos: “(...) longe de ser uma mulher passivamente submissa ou de uma religiosidade alienante foi, sim, uma mulher que não duvidou em afirmar que Deus é vingador dos humildes e dos oprimidos e derruba dos seus tronos os poderosos do mundo” (cf. Lc 1. 5153)105. 2.7. O mito como acesso à realidade Na quinta e última parte do seu livro, Boff aborda sobre “a Mitologia”, fazendo, digamos um “retrospecto”, que constitui um panorama rico de informações a respeito da “mariologia simbólica” a partir da mitologia, refletindo sobre o símbolo, o mito (e o arquétipo). Nesta 101 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 193s. Op. Cit., p. 188. 103 Op. Cit., p. 196. 104 Op. Cit., p. 198. 105 Op. Cit., p. 200s. 102 43 reflexão, aponta para “Maria, o templo do Espírito, a nova Eva”. O símbolo, o mito e o arquétipo emerge m do inconsciente, do sentimento afetivo. Entre os grandes estudiosos dos mitos citados pelo autor, estão: Eliade, Bultmann e o antropólogo francês Gilbert Durand. Esta parte está subdividida em três capítulos: o capítulo 13, que fala sobre “o mito no conflito das interpretações; o capítulo 14, fala sobre “Maria na linguagem dos mitos”; e o capítulo 15, sobre o conteúdo simbólico-existencial dos dogmas marianos. No imaginário, a figura de Maria enquanto símbolo: “trata-se de expressar a experiência do valor, do sentido para a vida humana, do entusiasmo pela figura de Maria”, afirma Boff. O autor compreende também que o mito está na esfera do sentimento, numa linguagem que é de “idealização e de escatologização”. A “mariologia simbólica” faz parte do “inconsciente pessoal e coletivo”, é uma força que se traduz em recriar e refazer a realidade106 . A diferença entre as deusas mitológicas e Maria é que Maria existiu de fato, ao contrário, por exemplo, das deusas como Cibele e Hera. Mas, ao fazer uma abordagem da história comparada da religião, deve-se notar a influência da mitologia pagã grega no cristianismo. A deusa Hera expressava o “sentido do ierós gamós, do amor e da fecundidade sagrada”. Este símbolo “pagão” “era o símbolo da verdadeira realidade de Maria”107 . Compreendo, então, que a fusão da Maria histórica com a Maria simbólica “traduz a realidade do sentimento e a experiência do coração”, tendo em vista que o simbólico revela o extraordinário, o fascinante. Buscar sentido, significar, ou seja, “é o universo do símbolo e da mitologia que constituem as peças comunicadoras do sentido e dos valores que conferem significado à vida humana”108 . As “imagens do inconsciente” impõem uma relação com a realidade. Ao comparar os dogmas marianos e seu conteúdo simbólico, Boff explica que “... os grandes mistérios marianos se constituem como pontos de emergência e de intersecção de imagens do inconsciente”. Por exemplo, “a virgindade de Maria, no regime simbólico e na sensibilidade da fé, é muito mais do que um fenômeno miraculoso de biologia humana. Para nossa arqueologia interior, a virgem constitui o arquétipo do inteiro, do completo, do ainda não tocado, do natural, do saído inteiro das mãos do Criador”109. 106 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 216. Op. Cit., p. 227. 108 Op. Cit., p. 251. 109 Op. Cit., p. 252. 107 44 Na sua conclusão final, afirma que “o mistério do feminino não é um mistério aterrador, mas aconchegador e cheio de ternura”110. “O mistério não tem solução. Quanto mais penetramos nele, mais ele se abre como desafio para o entendimento”. Maria é uma antecipação escatológica, símbolo daquilo que irá ocorrer com todo o feminino que se realiza, a seu modo próprio, em todos os seres humanos”111 . “Ela se constitui um ideal humano e não apenas em ideal para a mulher”112. Observações a respeito do texto A união hipostática de Maria: uma hipótese, segundo Boff. Ao assumir o feminino como caminho mariológico de reflexão, Boff, a partir de uma aproximação analítica em que se compreende que o ser humano é sempre varão e mulher, a partir de uma reflexão filosófica, masculino e feminino possuem uma estrutura ontológica na sua existê ncia e a partir de uma meditação teológica, considera o feminino como caminho do ser humano para Deus e de Deus para o ser humano. Mas, sendo Deus princípio último de toda feminilidade: Deus minha Mãe, como observa Boff, logo, podemos expressá-lo também a partir da “despatriarcalização” do mistério trinitário “em terminologia feminina de Mãe, Filha e Espírito Santo”113 . E a figura de Maria, segundo o autor é uma figura “escatológica”, símbolo da destinação última de toda humanidade. Para Boff, as propostas teológicas da união hipostática de Jesus e de Maria se diferenciam em alguns aspectos. Primeiramente, em Jesus essa união hipostática deve ser considerada como humanidade do próprio Deus. “O Filho é esta mesma realidade divina enquanto é autocomunicada como verdade de si mesma, como expressão infinita de si mesma para fora de si mesma”114. Foi a “Segunda Pessoa da SS. Trindade, o Filho, quem assumiu Jesus de Nazaré; não foi o Espírito Santo nem o Pai. Mediante o Verbo Eterno o masculino foi divinizado e 110 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 263. Op. Cit., p. 264. 112 Op. Cit., p. 265. 113 Op. Cit., p. 103. 114 Op. Cit., p. 102. 111 45 eternizado”. E o feminino de uma maneira indireta. Segundo, quanto a Maria, ou seja, quanto ao feminino, Boff questiona: “que Pessoa divina estaria ordenada a assumir diretamente o feminino e divinizá- lo?”115 . Justifica que sua resposta não está baseada na fé nem na doutrina oficial do cristianismo nem na tradição teológica. Mas, “a Teologia com espaço de hipótese que lhe é reconhecido”. Ele acredita, “ser o Espírito Santo a Pessoa divina a quem o feminino é apropriado. Não só porque na mentalidade Hebraica o Espírito Santo seja feminino, mas porque tudo o que é ligado à vida, à criatividade, à geração é atribuído nas fontes da fé ao Espírito”. E ainda, “O Espírito Santo teria, portanto, a missão histórico-salvífica de divinizar hipostaticamente o feminino, direta e explicitamente, e de forma implícita o masculino”116. Em que sentido, então, Boff levanta sua hipótese acerca do feminino? A partir da “antecipação escatológica deste evento”. Para ele, o feminino não ficaria condicionado aos eventos históricos. Então, ele sustenta a seguinte hipótese acerca da união hipostática de Maria: de que a Virgem Maria, Mãe de Deus e dos homens, realiza de forma absoluta e escatológica o feminino porque o Espírito Santo fez dela o Seu templo, Seu santuário e Seu tabernáculo de maneira tão real e verdadeira que ela deve ser considerada como unida hipostaticamente à Terceira Pessoa da SS. Trindade117 . É interessante notar que estudos mais recentes têm insistido sobre a importância de se considerar o feminino como lugar hermenêutico de reflexão, desenvolvendo novas práticas teológicas. São posturas teológicas que contribuirão indelevelmente a futuras práticas hermenêuticas. São teólogas comprometidas em transformar as práticas tradicionais da Teologia a respeito de Maria e do feminino, desenvolvendo então uma Mariologia e uma Teologia com resultados mais satisfatórios. Por exemplo, na Teologia Feminista, Elizabeth Johnson pensa Deus também a partir do feminino e o título da sua obra é bem ousado: (She who is,) “Aquela que é”. Segundo esta teóloga, a própria mulher tem buscado falar de Deus “de formas menos impróprias”118 . E as imagens masculina e feminina, “cada uma delas pode ser muito bem empregadas como metáforas para indicar o mistério divino”119 . Gebara e Bingemer pensam Maria numa perspectiva 115 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 105. Ibidem. 117 Op. Cit., p. 106. 118 Cf. JOHNSON, Elizabeth A., op. cit. p. 39. 119 Op. Cit., p. 90. 116 46 antropológica libertadora, que elas denominam de humanocêntrica – “... homem e mulher como centro da história reveladora do divino”. E a partir da perspectiva do Reino de Deus, que para elas “vai além da pessoa de Jesus”, mas “toca no conjunto de seu movimento, do qual homens e mulheres participam de forma ativa”120 . Portanto, “é afirmar que a salvação e a criação de Deus sempre se mostraram inseparavelmente presentes no homem e na mulher”121 . É consensual o pensamento destas três autoras, que complementam e ampliam questões presentes no pensamento de Boff, que é pensar Deus a partir do feminino, a partir do que ele representa para nós hoje, a partir de uma ruptura com a ideologia cultural. Agora, o olhar hermenêutico mariológico/teológico deve se orientar para uma prática libertadora, deve também se dirigir para o conhecimento que se passa nas ciências auxiliadoras. Neste sentido, a Mariologia deverá se posicionar paralela à Cristologia na efervescência de sua discussão. Isso tem se constituído um exercício árduo de teólogas e teólogos latino-americanos. Os novos olhares constituem-se um desafio à hermenêutica como caminho metodológico mais convenientemente ajustado ao objeto de estudo. 3. MARIOLOGIA POPULAR Introdução A obra de Dorado, para aqueles que se interessam por Mariologia popular, é um livro cheio de informações, relatos e fatos históricos importantes ligados ao momento da inserção da figura de Maria no continente latino-americano. Embora saibamos que a história da AL esteja marcada por um período cruel e sangrento das conquistas e da colonização, entretanto, conforme informa Dorado, Maria “insurge” neste continente no mesmo período. Inclusive, a figura de Maria faz parte dos movimentos das conquistas, que na maioria das vezes impulsionando os conquistadores, concedeu-lhes e legitimou suas vitórias. É nesse quadro de conquistas e vitórias que encontramos várias culturas e a religiosidade destruídas, desrespeitadas, reduzidas às cinzas e 120 121 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 44. Op. Cit., p. 48. 47 subjugadas aos ideais das conquistas e do “evangelismo”. No entanto, não se trata aqui de revisar toda esta história, pois existem obras especializadas neste contexto. Seu livro, intitulado “Mariologia Popular Latino-Americana: de Maria Conquistadora a Maria Libertadora”, é uma reflexão séria e honesta, sobretudo da devoção popular surgida neste contexto. Suas reflexões oferecem bases para a compreensão da devoção popular latinoamericana e destaca a religiosidade popular como ela é concebida pelo povo. Relaciona esta postura com a idéia de “Teologia popular”, a qual para ele é pré-científica, irreflexa e espontânea. A obra caminha no sentido de valorizar a história latino-americana como um conjunto de dados úteis para identificar como se desenvolveu neste contexto a Mariologia popular. Em nota introdutória, o autor esclarece que seu objetivo é “uma aproximação crítica da teologia Mariana que está subjacente no catolicismo popular latino-americano, com a finalidade de alcançar um conhecimento mais ajustado da Virgem Maria em quem o nosso povo crê (...)”. Devido a pluriculturalidade deste continente: asteca, maia, incaica, guarani, afro-americana, Dorado percebe que a própria expressão “a Virgem Maria, é de grande complexidade”122. A obra está dividida em oito capítulos, com a apresentação feita por J. Montero Tirado. 3.1. Maria na Teologia da religiosidade popular latino-americana Os três primeiros capítulos dessa reflexão pretendem estabelecer relações entre a gênese da teologia popular, a Virgem Maria, a devoção mariana dos conquistadores e as ambigüidades teológicas da Maria denominada de “A Conquistadora”. Para Dorado, a Teologia popular é pré-científica, irreflexa e espontânea, diferente da Teologia que se articula reflexa e cientificamente. Em alusão à chamada célebre definição anselmiana: “fides quaerens intellectum ”, Dorado pensa que se “a teologia é fides quaerens intellectum”, ela é pensada por meio da assimilação prévia da revelação através da fé, “mediante a qual o homem se constitui em crente...”. Logo, para o autor a gênese da teologia popular, então, “é o resultado de um processo de assimilação da fé por uma pessoa ou por uma coletividade”, do qual, o centro desta fé é “a aparição, mediante a evangelização de Jesus Cristo morto e 122 Cf. DORADO, Antonio González. Mariologia popular Latino-americana: de Maria Conquistadora a Maria libertadora. São Paulo: Loyola, 1982, p. 13. 48 ressuscitado como salvador do mundo (Jo 4. 42) e de cada pessoa concreta (Lc 1. 47)”. E a assimilação deste universo soteriológico acontece num determinado momento histórico “que adquire na pessoa características de acontecimento com o advento da fé”. É o reconhecimento de Cristo como “meu salvador”123. Entretanto, como indica o autor: quando esta expressão é analisada à luz do Magnificat, meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” (Lc. 1, 47), a expressão adquire profundidades e novidades insuspeitadas. Deus-Salvador é o que se exprime com o nome de Jesus. O Deus Salvador que aparece na fé cristã de Maria, e no qual ela se alegra com esperança, é Jesus. O momento de assimilação histórica entra em simbiose com o universo histórico-sociocultural do mesmo povo, dando origem "a uma religiosidade ou catolicismo popular, como no caso, latino-americano, no qual está subjacente uma autóctone e popular teologia ou ‘cultura teológica’124. “Quem é a Virgem Maria” no contexto latino americano? Primeiramente, Dorado distingue quatro aspectos na Virgem Maria: “A Maria da história ” – que se incorpora à fé da Igreja por ser mãe do Jesus histórico. Ela é uma mulher israelita, pobre, que reside em Nazaré, que cumpre as leis imperiais e convive com as desigualdades sociais; segundo, “A Maria da fé pascal do NT” – para Dorado esta é uma outra dimensão de Maria de maior transcendência e referência de toda a Mariologia. Ela é originária por acontecimento da ressurreição de Cristo, mãe do Jesus histórico, logo, mãe do Cristo ressuscitado. Sem negar, evidentemente, a dimensão biológica e humana que a humanidade supõe, a maternidade fica constituída essencialmente, com relação ao Cristo, em ouvir e amar a palavra de Deus (Lc 11. 28), e em cumprir a vontade de Deus (Mc 3. 35); terceiro, “A Maria da Igreja magisterial e teológica” – esta é a Maria definida por atos do Magistério e refletida pelos teólogos. Está circunscrita no contexto do Cristo ressuscitado e dá origem aos dogmas marianos que aprofundam a maternidade pascal, a qual está vinculada à sua virgindade desde o século IV na confissão de fé de Epifânio e qualifica expressamente Maria como sempre-Virgem (Dz 13). A consciência da concepção Imaculada de Maria foi definida como dogma por Pio IX em 1854, e de sua Assunção corporal na glória celeste solenemente declarada como dogma por Pio XII, em 1950; e por último, “A Maria da piedade da Igreja e das igrejas – diferente da Maria histórica, esta é múltipla e diversificada, com 123 124 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 18. Op. Cit., p. 18s. 49 profundidade de séculos e com capacidade de multiplicar-se sempre de novo com uma nova imagem, com uma nova invocação ou com uma nova devoção”125. Maria chegou ao continente por meio de seus conquistadores, eles dedicavam- lhe profunda devoção, por exemplo, Cristóvão Colombo nutria profunda devoção à Virgem, inclusive “em seu estandarte estavam impressas as imagens de Jesus e de Maria”. Suas vitórias foram atribuídas à Virgem e ao derrotarem os índios impuseram um altar à Maria em substituição aos deuses e altares indígenas. O autor ressalta a parte histórica das conquistas e como a figura de Maria ficou atrelada aos seus empreendimentos e legitimando os interesses ideológicos dos seus conquistadores. Duas questões de Dorado nos chamam a atenção: “Qual era a Virgem Maria que se ocultava na fé dos conquistadores? Como esta Virgem Maria aparecia diante dos olhos indígenas?”126. Temos aí duas faces de uma mesma moeda, de um lado, o empreendimento hispânico pela conquista de novas terras, conquistadores que clamam pela vitória à Virgem Maria e assim se sentem apoiados por Maria “A Conquistadora”. E de outro, o movimento missionário pela conquista “espiritual”127 , que salvaria os índios do inferno. É neste contexto de conquista que se origina o que Dorado denomina de “ambigüidade teológica da Conquistadora”. Relatos da crônica escrita por Fr. Antonio de Tello, encontrada nos escritos de Vargas Ugarte, conforme relata Dorado, mostram em uma inscrição essa ambigüidade teológica da Conquistadora, descrita assim: nesta venci e quem me carregar, com ela vencerá, e de outro lado estava a imagem da conceição puríssima de Nossa Senhora e com outra inscrição que dizia: Maria, Mater Dei, ora pro nobis, e ao descobri-la e levantá-la ao alto, estando de joelhos, com lágrimas e devoção lhe suplicaram os aflitos espanhóis que fossem libertados de tantos inimigos...128 . O resto do relato mostra que o estanda rte se encheu de resplendores, encorajando, assim, os espanhóis a marcharem e a lutarem e, ao chegarem perto dos adversários, puseram à mostra os estandartes, temerosos os índios se prostraram ante o estandarte de Maria e da cruz, colocando aos pés do Padre Frei Juan de Villadiego suas bandeirinhas. Conclui Dorado: “... sem necessidade de luta e de arma, pessoalmente com seus resplendores derrota os índios, concedendo a vitória aos 125 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 28s. Op. Cit., p. 33. 127 Op. Cit., p. 35. 128 Op. Cit., p. 37. 126 50 espanhóis”129 . Em conseqüência disso, os ameríndios e afro-americanos – os ve ncidos, “para eles tratava-se de um mundo de invasores e inimigos protegidos por deuses estranhos”, ressalta Dorado 130 . 3.2. Maternidade popular latino-americana O quarto e quinto capítulos referem-se à incorporação de Maria na AL, ou seja, “o princíp io da maternidade como chave da nova Teologia popular Mariana. Mas também há uma importante transição da figura de Maria como a “Conquistadora” para a Maria do contexto atual “Maria Mãe Libertadora”. Isso acontece em três momentos que o autor considera privilegiados: “Guadalupe, Copacabana e a Virgem ”. Nesta parte, Dorado apóia-se nas pesquisas de Clodomiro Siller e de Salvador Carrillo. “A nova América Latina nasce em Guadalupe”. Não entraremos nos detalhes dos acontecimentos relacionados à sua incorporação, mas vale ressaltar que a figura de Maria foi aclamada pelos índios: Quando em 1531, o bispo do México, Frei Juan de Zumárraga se encaminha em devota procissão desde a cidade do México até o Tepeyac com a manta do índio Juan Diego, em que aparecia impressa a imagem da Virgem de Guadalupe, contam as testemunhas que uma grande multidão de índios a aclamaram como sua mãe e que não se cansavam de repetir: Nobre indiazinha, nobre indiazinha, Mãe de Deus! Nobre indiazinha! Toda nossa!131 . Em Guadalupe é o momento em que os índios assimilaram a figura de Maria aclamando-a como Mãe. É claro que na situação em que se encontravam os índios: “politicamente, indígenas derrotados e humilhados, ameaçados pela varíola e por outras doenças importadas pelo invasor”132, nada mais “justo” que unir-se aos deuses dos conquistadores, já que os seus foram derrotados. Maria aparece ao índio Juan Diego dizendo: “eu sou vossa piedosa mãe”133 . 129 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. Ibidem. Op. Cit., p. 39. 131 Op. Cit., p. 44. 132 Op. Cit., p. 45. 133 Op. Cit., p. 46. 130 51 Um outro momento importante é a Virgem de Copacabana, que é uma imagem trabalhada pelas mãos de um índio, Francisco Tito Yupanqui, pelos anos de 1580. “Pachamama era o princípio materno de identificação do mundo indígena, a mãe telúrica, o seio materno que se deveria tratar com todo o carinho, e do qual dependia sua vida. Pachamama tinha uma representação insigne na pedra sagrada que dominava tudo”. Para o autor, a Virgem de Copacabana é um novo nascimento original de Maria, dentro deste específico contexto ameríndio. O encontro dos indígenas de Copacabana com a imagem da virgem Maria “feita pelas mãos de um filho de seu povo, estabelecem espontaneamente uma conexão entre Maria e a Pachamama, encontrando nela o início de sua salvação”134 . E por último, a devoção à Virgem Maria, “a Mãe libertadora”, esta se desenvolve durante os séculos da colônia, mas como observa Dorado “com uma progressiva matização americana, tanto para os crioulos como para os mestiços e indígenas”135. A fé na Virgem foi se desenvolvendo aos poucos, durante os anos de independência. Na independência do México, por exemplos, “é conhecida a figura do padre Hidalgo com os primeiros insurgentes marchando para o Santuário de Atotonilco e levando da sacristia um pano com a imagem da Virgem de Guadalupe...”136; “Os patriarcas de Quito, antes de lançar o primeiro grito de rebelião, puseram seu empreendimento sob a proteção de Maria”137. A maternidade de Maria na piedade popular, segundo Dorado, é o ponto central de sua incorporação na AL. Há um reconhecimento, de fato, que Maria é Mãe de Deus e de Cristo, e mais ainda: “Maria é minha Mãe e é nossa Mãe”. “Esta relação afetiva e vital é fundamental para a configuração da Teologia Mariana na AL”. A maternidade como lugar privilegiado de Maria marca a devoção popular e, “é nesse lugar privilegiado que vão ficar semeados a devoção e a piedade a Maria e, portanto, em que se vai elaborar pelo povo sua própria Teologia de Maria, com suas grandezas e suas limitações”138. No entanto, devido à complexidade do tema e diante de uma pluriculturalidade existente, Dorado considera três fatores importantes, os quais marcaram os processos históricos deste 134 135 136 137 138 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 53. Op. Cit., p. 54. Op. Cit., ibidem. Op. Cit., p. 55. Op. Cit., p. 57. 52 continente, nos quais a figura da mulher e/ou da mãe fica atrelada aos conceitos e determinações culturais: “o machismo, a opressão e a predominante experiência camponesa”139 . A cultura machista supervalorizou o homem, caracterizando-o pelo seu caráter de “macho”, “estimado por sua dureza e coragem”, “... um modelo de homem que é plenamente aceito e compreendido em seu meio ambiente”, ao qual “se contrapõe dialeticamente a mulher”140. Dorado afirma: “o que o machismo certamente rompe é o equilíbrio e humano binômio homem- mulher”141 . Neste ambiente de cultura machista se supervaloriza a maternidade e o lar. O autor ressalta, ainda, que “a mãe, como valor positivo para os filhos, vai surgir dialeticamente como o negativo-positivo do ‘macho’”142 ; o segundo fator que o autor considera é a maternidade e opressão – para Dorado “a nível de Igreja, conscientizou-se a situação de opressão em que vive o nosso continente”. “A relação da maternidade-filiação entre oprimidaoprimido é, sem dúvida, muito dolorosa e base de muitos sofrimentos...”143 ; o terceiro fator é a maternidade e cultura camponesa – a cultura camponesa é fortemente marcada pela sua “relação entre a mãe e a terra”, com algumas características: trata-se de “uma maternidade virginal, mediante a maternidade da terra se estabelece uma profunda solidariedade entre a terra e o homem; é uma maternidade ritual e quase mágica. Com efeito, o camponês tem de intervir de alguma forma na fecundidade e generosidade da mãe-terra”; é também uma maternidade cíclica, que se manifesta em sua plenitude em determinados tempos privilegiados, tempos em que é possível obter toda espécie de bens” 144. Dorado conclui, dizendo: quando o povo diz ‘minha mãe’ ou ‘nossa Mãe’ está fazendo uma referência concreta a esta original maternidade que, por sua vez, constitui uma peça privilegiada da estrutura cultural a que pertence. Portanto, não se refere a uma maternidade abstrata, mas a uma maternidade em situação e bem pessoal de ‘nossos filhos’ a ‘nossa Mãe145 . 139 140 141 142 143 144 145 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 58. Op. Cit., p. 58. Op. Cit., p. 59. Op. Cit., p. 60. Op. Cit., p. 61. Op. Cit., p. 62. Op. Cit., p. 64. 53 3.2. A Maria da América Latina No capítulo seis, intitulado “A Maria da América Latina”, “a Virgem é exaltada até os limites insuspeitados; é humanizada e aproximada da vida do povo; ela é concretizada e localizada em imagens e espaços determinados”146 . O autor, primeiramente, ressalta a exaltação de Maria na AL, que foi até denunciada como “mariolatria”. As expressões de relacionamento Mãe-Filho são atos que se manifestam nas celebrações, nos dons, nas promessas e nas orações. Neste sentido, o autor considera que a Maria Pascal e Eclesial, neste contexto é uma “Maria simbólica”: ela é a Virgem caracterizada pelo “triunfo de ‘nossa mãe’ diante da agressão machista, tendo o privilégio de ter sido amorosamente fecundada por Deus de uma forma semelhante à mãe-terra”147 ; ela é Imaculada caracterizada pelo ideal de mãe e de lar...”; e ela é “Assunta ao céu que caracteriza a mulher que se encontra com Deus, o que se manifesta também em ser modelo e escola de piedade”. A Maria da história é a Maria sofredora que também tem sua “história de pobreza e de opressão”, essa identificação possibilita ao mesmo tempo humanizá-la e elevá- la até aos limites insuspeitados. Dentro deste contexto de maternidade sofredora e oprimida, a Maria da história reflete bem tais características. A concretização da maternidade de Maria se realiza a partir do relacionamento “filho- minha mãe”. A “Maria da piedade e de nossa história” habita no lar, a presença da imagem, quadro ou estátua, segundo Dorado, é fundamental na Teologia popular latino-americana”, é significativa, pois esta mantém o relacionamento afetivo de “proximidade, visualização e de contato estritamente pessoal ‘individualizado’”148 . A Maria da AL é o ideal de mãe e de lar. A maternidade vivida pelos filhos é projetada na maternidade revelada de Maria. No capítulo sete a partir de uma “análise da teologia Mariana popular”, o autor constata que existe “deformidades e deficiências” nesta religiosidade popular. Conforme sublinha Dorado, essas deformações “não se podem encontrar no dado revelado, pois sua principal causa deve ser encontrada na cultura que recebeu a fé”149 . A Mariologia neste contexto fica reduzida a uma funcionalidade restritamente em aspectos de refúgio, consolo e proteção. 146 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 65. Op. Cit., p. 66. 148 Op. Cit., p. 71. 149 Op. Cit., p. 79. 147 54 O lar e a sociedade são espaços em que se desenvolvem os papéis sociais e, conseqüentemente, as desigualdades. Na ótica do oprimido, principalmente em ambiente machista, a Mariologia se restringe à maternidade centrada no lar. “A cosmovisão da cultura oprimida na AL, por motivos de ordem provavelmente histórica, está qualificada simultaneamente pelo machismo e pela predominante experiência camponesa”150 . Então, o lar e a sociedade são espaços dualistas, a sociedade é o espaço do macho o qual a mulher está excluída, cabendo-lhe o ambiente do lar para desempenho de seu papel “social” ou maternal (grifo meu). O lar constitui-se em ambiente afetivo de compreensão e de perdão para os filhos, ressalta o autor. Essa relação fiducial desemboca nas projeções da mariologia popular, primeiro, porque “é uma Mariologia basicamente afetiva e sentimental”; segundo, pelo perdão e salvação eterna; e terceiro, a maternidade da Virgem como refúgio, auxílio e ajuda diante de qualquer necessidade”151. Dorado destaca também algumas limitações da Mariologia popular: primeiro, “é uma Mariologia que limita a compreensão da personalidade humana de Maria, situando-a na maternidade e no lar, o que dificulta a função soteriológica do Evangelho através de Maria sobre a mulher latino-americana”, que o autor define como ‘a mais oprimida entre os oprimidos’”. A segunda limitação: “a Mariologia popular fica estabelecida sobre uma relação entre a mãe e o homem, na qual o homem fica projetado em duas imagens bem diferentes: a do filho e a do macho”. A terceira limitação “é dada pela não intervenção da mulher e mesmo da mãe no mundo econômico, social e político – a não ser no plano subsidiário da ‘misericórdia’ –, o que tende a limitar a intervenção da mulher e da mãe Maria em tal campo”152 . E por fim, o capítulo oito, intitulado: “Da mãe dos oprimidos à mãe da libertação”, o autor reflete a partir desse novo momento em que se incorpora a mariologia popular sob o contexto de libertação, ou seja, na “perspectiva soteriológica sob o signo da libertação”153 . Neste contexto, a Igreja deve estar consciente da sua responsabilidade no projeto de evangelização e segundo Dorado, o objetivo formulado deve incluir três aspectos complementares: 150 151 152 153 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 81. Op. Cit., p. 84s. Op. Cit., p. 90s Op. Cit., p. 96. 55 o estrutural – que supõe o desaparecimento de estruturas geradoras de injustiças, e devem ser substituídas pelas estruturas geradoras de justiça; o cultural – implica renovação e transformação evangélica de nossa cultura (...) – mudança plena do homem através do evangelho; e o religioso – que é o passo de uma fé débil a uma fé forte, e de uma religiosidade popular ambígua a uma religiosidade popular profundamente evangelizada (...) que é a partir da fé, e a partir da fé em Jesus Cristo, na pureza do dado revelado, que se descobrem toda a profundidade e exigência da dignidade da pessoa humana e sua dimensão transcendente com relação a Deus154. Um outro ponto que Dorado destaca nesse capítulo é “a situação opressão-libertação como novo lugar hermenêutico”. Este lugar hermenêutico pode ser vivenciado tanto pelo povo como pelo teólogo, “mas com uma estreita colaboração entre ambos”. A partir do momento em que o povo “se conscientiza de sua situação de ‘opressão- libertação’, espontaneamente tenderá ao descobrimento da Virgem como Nossa Mãe Libertadora...”155 . Levando em conta que a Mariologia popular corre o risco das limitações, das contradições, dos desequilíbrios e, principalmente, “pelo fator do machismo”, o trabalho teológico científico é significativo pois, “em seu esforço mariológico, levando em conta as ‘opressões culturais’ das quais a Mariologia deve salvar-se, e das quais também Maria quer, evangelizadoramente, libertar seus filhos”156 . Nesse novo lugar hermenêutico em que Maria aparece como nossa Mãe da libertação, essa nova Mariologia deve marcar, segundo Dorado, a continuidade e a descontinuidade com o passado. Essas novas características devem acompanhar Maria, no seu novo lugar hermenêutico: Maria como libertadora da Mulher – primeiro, é preciso “conscientizar bíblica e historicamente Maria, antes de ser mãe, foi mulher...”157 , ressalta o autor; Maria, libertadora do fatalismo e do imanentismo social – “é constituir-se em demolidora do fatalismo típico das culturas cíclicas camponesas, sujeitas inevitavelmente aos condicionamentos ecológicos e atmosféricos nos quais vivem”158 ; Maria, libertadora das cadeias do machismo – esta aponta para Cristo como caminho de salvação e “deve mostrar um novo caminho a seus filhos, dizendo: ‘Fazei o que ele vos disser’ (Jo 2.5)”; Maria, libertação e maternidade universal – deve ser vivida e compartilhada por seus filhos 159 . 154 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 97. Op. Cit., p. 104. 156 Ibidem. 157 Op. Cit., p. 105. 158 Op. Cit., p. 107. 159 Op. Cit., p. 113. 155 56 3.4. Conclusões do autor “Maria deve aparecer como o símbolo que nos oferece a fé da libertação da mulher oprimida no contexto de um pecaminoso universo machista, restituindo-lhe sua dignidade e sua dimensão especificamente social, tanto na comunidade religiosa como na profana”160 . E, finalmente, o autor conclui afirmando da sua convicção de que “a nova Mariologia popular latino-americana tende a desenvolver-se em sua originalidade, autoctonia e audácia, assumindo no mesmo contexto a mariologia da Virgem de Guadalupe. É uma mariologia que se abre energicamente para o futuro, sempre apoiada sobre suas mais legítimas raízes”161 . Considerações pessoais sobre o texto A partir do aprofundamento dos seus estudos sobre a temática da Mariologia popular, o autor constata que há “deficiências” na religiosidade popular e que essas deficiências não são encontradas no dado revelado, mas nos modelos estruturantes da cultura que recebe a fé. A cultura popular, como ressaltou o autor, é marcada pelo triângulo “opressão- machismoexperiência camponesa”, este mesmo fator não suficientemente criticado e denunciado, poderia continuar incidindo perigosamente na gênese da nova Mariologia. Dorado entende que a Teologia científica contribui mais diretamente para a mudança estrutural da cultura, já que o machismo incidiu na Mariologia popular tradicional dos povos latino-americanos. Dessa forma, não estamos pensando no entendimento da Mariologia popular como uma prática subjacente à própria Teologia, mas ao mesmo tempo a piedade popular consciente do seu estado de opressão identifica e busca teologicamente, conferindo aos teólogos competências metodológicas, não para se sobrepor à Mariologia popular, mas para se refletir novas formas que contribuam para extinguir as estruturas geradoras de injustiças, substituindo-as pelas “estruturas geradoras de justiça”. 160 161 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 107. Op. Cit., p. 123. 57 Entendo também que a Mariologia popular consciente do contexto de opressão, vislumbra em Maria proteção, abrigo, ternura e amparo. Ela é uma intercessora entre o devoto e Deus, neste caso, a mediação de Maria é significativa dentro de uma cultura machista, já que esta contribui para a tipificação de Deus como um Pai rigoroso, autoritário e exigente. Sua mediação contribui mais significativamente para conciliar, unir e estabelecer o relacionamento entre Pai, filhos e filhas. Podemos perceber que a devoção popular não se restringe às projeções da cultura sob o simbolismo mariano da maternidade, mas a maternidade de Maria como preservação da vida e amparo nas aflições. A Teologia científica seria pretensiosa no sentido de querer “corrigir” a Teologia popular que vive da fé e da esperança. No entanto, a experiência religiosa vem acompanhada pela fé, que poderá ser, ainda que contraditório, esperança para quem se encontra no desespero, na angústia e no desamparo, e os símbolos vêm marcados pelos momentos de tristeza, perseguição, dor e morte, por exemplo, a paixão de Cristo. Eles nascem em situações de extrema desilusão e tudo o que o povo quer é ser atendido em suas preces, na devoção Mariana o que importa não é a influência da cultura sobre o símbolo, mas a esperança, o conforto, o consolo que Maria evoca. No entanto, o símbolo mariano com toda ambigüidade e contradição, fortalece e nutre a fé do povo. Claro que a Teologia deverá contribuir para conscientizar o povo da situação de opressão, mas isso não significa interferir na piedade popular para obliterar a fé, como se o discurso teológico fosse a única fonte de vida, claro que a teologia popular não deve também se sobrepor à científica mas, como explicita Dorado, ambas devem trabalhar em conjunto. Por outro lado, o tema mulher é encontrado num contexto vinculado ao tema da marginalidade social da própria mulher na AL, em que ela é oprimida, e o homem constitui-se o ideal pela sua agressividade – “atributo do macho”. Alijada do mundo do poder, na sociedade patriarcal o lugar da mulher é o lar. Sendo assim, a figura de Maria apenas contribui para acentuar as diferenças sociais existentes. A cultura serve de instrumento para inserção da fé religiosa em Maria. A exemplo da AL, a figura de Maria é um símbolo conveniente fortíssimo na cultura predominantemente machista, em que a mulher deve reproduzir a figura da “Virgem Maria”: ideal de mulher, de mãe perfeita, submissa, caseira, compreensiva, auxiliadora, sensível. O símbolo mariano é o pretexto da religião, o qual conserva e promove a condição de inferioridade da mulher ao homem. Embora o próprio símbolo da Virgindade de Maria promova não a virgindade ou submissão da mulher, mas sua castração ao poder e renúncia da sua 58 capacidade produtiva, intelectual e social. Maria torna -se símbolo de dominação machista e ao mesmo tempo também símbolo de adoração e louvor. Mas a Maria Mãe da libertação, como ressalta o autor, deve nessa nova perspectiva promover a libertação da mulher. Síntese do capítulo As novas concepções e releituras que têm permeado a elaboração teológica a respeito de Maria e nesta releitura a inclusão do feminino a levar em conta a emancipação da mulher, coloca uma contribuição para a mudança na concepção sobre a própria figura de Maria. As contribuições aqui escolhidas fazem parte dessas novas reflexões, que têm suas teorias voltadas para tais perspectivas. O primeiro capítulo está subdividido em três partes, nas quais estão presentes alguns eixos dos pensamentos que caracterizam a TL: consciência do indivíduo do seu estado de opressão; emancipação; a relação entre teoria e práxis. No contexto da AL a reflexão sobre a figura de Maria é um caminho alternativo para refletir ao mesmo tempo sobre o feminino e romper com os conceitos tradicionais da fé. Começamos, assim, com Gebara e Bingemer, que ousam romper com a Teologia da Salvação que é centrada na figura de Jesus – único mediador. Para elas, “se Deus nos fala e nos salva de muitas maneiras, fala-nos e salva-nos através da realidade masculina e feminina constitutivas do humano”162. Enfatizam a partir da antropologia (feminista ou feminina) novas formas de se pensar a fé numa prática que seja inclusivista e não exclusivista, nem sexista, tampouco patriarcal. Neste sentido, ao falar de “Maria a esperança de um povo novo” se retrata, de um lado, um povo que reza, canta, louva e exalta a Virgem Maria cheia de graça. De outro, apesar das adversidades que o homem contemporâneo tem enfrentado, há de se notar que a esperança é a mola mestra para as situações-limites do cotidiano. Em um país onde o desemprego, os baixos salários e as desigualdades sociais são gritantes, “a esperança nossa de cada dia” é quem nutre a fé desse povo que espera por um país melhor, políticos melhores, principalmente esperançosos de contemplarem o fim das desigualdades sociais. Esse mesmo povo que reza, canta, louva e tem esperança é também um 162 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 48. 59 “povo novo” que surge neste contexto: consciente de seu estado de opressão, que até mesmo em função da esperança “luta” por uma sociedade mais justa, menos opressora e, sobretudo, solidária. Uma terceira contribuição vem do teólogo Leonardo Boff. A espinha dorsal do seu trabalho é a reflexão do feminino como acesso a Deus. A leitura de Gênesis 1. 27 para Boff constitui-se a base que legitima o feminino em igual dignidade que o masculino como acesso ao divino; o feminino também serve de “arquétipo supremo”163 . As análises de Boff nos ajudam a lançar olhares sobre o feminino como imagem e semelhança de Deus que ele é. Sendo assim, Boff analisa a figura de Maria rompendo com os conceitos tradicionais e assume o feminino como caminho mariológico para revelar Deus. Para ele, “importa que a mario-logia seja teologia. E, “(...) ao se falar de Maria deve-se falar de Deus”164. Considera também que a Teologia como responsável por pensar a fé, deve dar respostas de formas mais críticas, rompendo com os conceitos culturais. Suas contribuições também são significativas para o desenvolvimento da nossa temática, já que ele pensa o feminino como caminho mariológico; sua pertinência teológica, indicando que ele também é caminho para se chegar a Deus. Uma quarta contribuição é a do espanhol Dorado, que lança olhares críticos na Teologia da piedade popular, indicando que é necessário “corrigir” a influência da cultura na Teologia da fé popular, para que a figura de Maria não fique atrelada aos conceitos culturais da maternidade, pois a maneira que o povo crê vem carregada de elementos culturais: “opressão- machismoexperiência camponesa”. É, pois, necessário que se compreenda os fenômenos sociais ligados à fé, e com esta compreensão entender o símbolo mariano livre dos conceitos culturais. Isso implicaria em desvincular a figura de Maria dos aspectos associados à cultura, conscientizando o povo das estruturas geradoras de injustiças e dos modelos culturais operantes geradores de opressão. Sendo assim, um olhar crítico sobre a Mariologia popular contribuirá para corrigir os aspectos negativos ligados à figura de Maria. O novo lugar hermenêutico, portanto, poderá originar “um novo momento da Mariologia tanto científica como popular”. No entanto, podendo existir os dois níveis, tanto o espontâneo, irreflexo e vivencial pelo povo, quanto o científico e reflexo pelo teólogo, contanto que haja uma mútua colaboração, como ressalta o autor165. 163 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 102. Op. Cit., p. 31. 165 DORADO, Antonio González, op. cit. p. 104. 164 60 As contribuições desses teólogos e teólogas são significativas, pois apresentam uma ruptura com o tradicional modo de pensar a Bíblia e a aceitação dos dados revelados de maneira passiva e resignada; é também uma ruptura, de certa forma, com a tradicional maneira de pensar a figura de Maria: ou como uma figura inferior a Cristo ou simplesmente como a terna Mãe de Deus. E sugerem que devemos pensar mais a respeito dos textos lidos, tendo em vista que eles são produções culturais, bem como, as suas interpretações, por isso “não deve haver uma transposição simplista daquilo que é dito para um grupo, para um outro mesmo que algumas coisas possam ser perfeitamente aplicáveis”166 . Boff sugere apropriação dos dados novos e da mudança que “se verifica na sociedade no tocante ao feminino” e que cabe à Teologia contribuir de maneira “crítica” e não mais “ingênua”, e a partir daí romper com as idéias culturais167 . Para Dorado, é muito importante o “trabalho teológico científico em seu esforço mariológico, levando em conta as ‘opressões culturais’ das quais a Mariologia deve salvar-se, e das quais também Maria quer, evangelizadoramente, libertar seus filhos”168 . Concluímos, pois, que o que existe de novo nos teólogos a partir da TL, comparando com o que já conhecemos sobre Maria, é propriamente uma ênfase mais acentuada do que uma mudança no conteúdo. Pois, podemos perceber que os nossos autores permanecem na posição teológica previamente definida (conteúdos teológicos do texto bíblico) e que posteriormente foi definida como dogma no decorrer da história do cristianismo – eles são dogmáticos, não se despem totalmente dos dogmas, mas fazem uma releitura dentro de uma perspectiva libertadora. E um dos focos centrais é o Magnificat como referência de libertação do oprimido. Os teólogos da TL colocam Maria de Nazaré numa linha paralela à figura de Jesus de Nazaré, mas o centro é sempre Deus, nunca Jesus ou Maria; masculino ou feminino, mas estes se constituem caminhos até Deus. A TL imprime no sujeito, a partir da figura de Maria, o incentivo para as suas buscas permanentes e constantes de maneira efetiva concreta e não apenas subjetiva, ao contrário, a esperança se concretiza na objetividade da fé prática. O segundo capítulo, intitulado “Maria símbolo de Deus”, está dividido em duas partes, nas quais analisar-se-á primeiro a teoria dos símbolos baseada nos pensamentos de Eliade, Tillich e Haight, enfatizando o significado de símbolo religioso. Em seguida, na segunda parte, analisarse-á a figura de Maria como símbolo de Deus à luz das teorias do símbolo. Na terceira parte, 166 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 39. BOFF. Leonardo, Op. Cit. p. 17. 168 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 104. 167 61 inferiremos a teoria de um teólogo europeu (FORTE: 1991), que servirá de interlocutor para ver se há contrapontos. 62 CAPÍTULO I I MARIA, SÍMBOLO DE DEUS Introdução Propomos neste segundo capítulo apresentar uma visão geral das teorias acerca do “símbolo religioso”, começando por Eliade (1991 e 1992), que faz uma abordagem fenomenológica, depois por Tillich (1985), que faz uma análise a partir da linguagem religiosa e da fé, e por último as análises de Haight (2003), que analisa a figura de Jesus como símbolo de Deus. Para não desviarmo-nos do ponto central do trabalho, não nos deteremos nestas importantes e extensas discussões das teorias, mas a partir da luz de seus significados, para que assim, iluminem nossa compreensão a respeito da figura de Maria como “símbolo de Deus e da Mulher”. Ressaltaremos, no entanto, alguns aspectos relevantes para contextualizar nossa temática. No interior dessa discussão, o símbolo está ligado à linguagem religiosa, ao sentimento, à fé, à transcendência, ao mistério e ao inconsciente. Na segunda parte, inferiremos qual o sentido simbólico da fé e qual o sentido religioso, será analisado também o feminino como imagem e semelhança de Deus. E por fim, concluiremos esta parte com as reflexões da teoria de Bruno Forte sobre “Maria, a mulher ícone do mistério”. 1. MANIFESTAÇÃO DO SAGRADO Eliade ocupa lugar relevante na história da fenomenologia, em rigor, ele representa uma das primeiras tentativas de compreensão sobre os símbolos religiosos. Embora não apresente especificamente o conceito de símbolo, mas aborde o tema a partir da compreensão do próprio 63 simbolismo em seus aspectos e es truturas, comparando-os em seus contextos religiosos. Mas temos em mãos duas obras deste autor, as quais tentaremos captar o significado de símbolo religioso e o valor que o símbolo representa para o indivíduo e a coletividade. A primeira obra, intitulada “O sagrado e o Profano” (Le Sacré et le Profane, 1957), está mais voltada para a manifestação do sagrado no cosmos, nos objetos, no tempo e na natureza. Eliade usa o termo “hierofania” para indicar a manifestação simbólica do sagrado, ou no seu sentido “e timológico: algo de sagrado se nos revela ”. Para ele, “o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano”169 . Para Eliade, assim como para os seus sucessores, Tillich e Haight, porém usando o termo hierofania , ao invés de símbolo religioso, a manifestação do sagrado em “um objeto qualquer se torna outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente”. Por exemplo, “A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere” 170 . Um símbolo religioso é o que é porque nele houve uma hierofania. O valor atribuído a um objeto que o torna sagrado é um valor simbólico da presença sagrada. Por isso, esse valor simbólico se diferencia nas diversas culturas, a adoração a este objeto que se revela e não é mais objeto, mas uma “outra coisa”, mas que “continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente”. Citando o exemplo do próprio Eliade, uma pedra sagrada não se distingue das outras pedras que não são sagradas, mas para aqueles “a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural” 171 . Ou seja, cada cultura possui seus símbolos religiosos sagrados e que ao mesmo tempo não agrega valor sagrado para uma outra cultura. Isso explica a grande variedade de símbolos e simbolismos nos diversos contextos culturais. Uma outra manifestação do sagrado ocorre no “espaço”, que o homem religioso o distingue em “espaço sagrado e não-sagrado”, experiência que segundo Eliade se dá pela não homogeneidade desses espaços e afirma que “a manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo”172 . A idéia do espaço como lugar sagrado faz parte também do pensamento hebraico, 169 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 17. Op. Cit., p. 18. 171 Ibidem. 172 Op. Cit., p. 26. 170 64 por exemplo, a experiência de Moisés no “Monte Horebe” (Ex 3. 5). Ao contrário da experiência profana que “mantém a homogeneidade e portanto a relatividade do espaço”173. 1.1. Imagens e símbolos Na segunda obra de Eliade, intitulada “Imagens e Símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso”, em nota introdutória, ele fala da importância da descoberta da psicanálise para comprovar a existência do subconsciente. Aqui, o autor mostra como o simbolismo está completamente presente no pensamento religioso e nas diversas áreas do pensamento: na literatura, na poesia, na filosofia, na psicanálise. “... o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, que podemos camuflá- los, mutilá-los, degradá- los, mas que jamais podemos extirpá- los”174 . Até mesmo os contextos históricos das conquistas estão cheios de imagens e símbolos, por exemplo, a Europa Ocidental e suas descobertas relacionadas ao “irracional, ao inconsciente, ao simbolismo, às experiências poéticas, às artes exóticas e não figurativas etc (...) serviram indiretamente mais tarde para o diálogo com os povos nãoeuropeus”175 . Por estarem intimamente relacionados, “simbo lismo e psicanálise”, ambos podem ser vistos como meios para desvelar aspectos da realidade que seria impossível por meio de outro conhecimento. Mesmo porque “o pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do desequilibrado: ela é consubstancial ao ser humano”176 . Claro que não iremos abordar aqui as teses da psicanálise a respeito dos simbolismos, mas especificamente para dizer que por meio da psicanálise se consegue desvelar (em partes) o que vai ao íntimo do pensamento humano pelas imagens, símbolos e sonhos. Eliade afirma, ainda, que “cada ser histórico traz em si uma grande parte da humanidade anterior à História”. Ao aludir às transformações do pensamento histórico, mostra como o homem moderno é afetado por eles, mas mesmo que: 173 ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 27. Op. Cit., p. 7. 175 Ibidem. 176 Op. Cit., p. 8. 174 65 escapando à sua historicidade, o homem não abdica da qualidade de ser humano para se perder na ‘animalidade’. Porque ‘reencontra’ a linguagem... Os sonhos, os devaneios, as imagens de suas nostalgias, de seus desejos, de seus entusiasmos etc., tantas forças que projetam o ser humano historicamente condicionado em um mundo espiritual infinitamente mais rico que o mundo fechado do seu ‘momento histórico’177 . Entendemos, então, que mesmo que se o ser humano não seja afetado pela força histórica que o cerca (o que talvez seja improvável) é afetado por outras forças presentes no inconsciente, do qual deriva o simbolismo. Até mesmo o positivismo não conseguiu eliminar as imagens (iconoclastia), nem extirpar o simbolismo, a razão não apagou do imaginário os mitos, ao contrário, legitimou-os a partir das iconografias de suas grandes invenções: o cinema, o teatro, a televisão. “O homem mais ‘realista’ vive de imagens”178, afirma Eliade. Podemos considerar que o ser humano vive das imagens e dos símbolos para seu desenvolvimento e construções sociais, pois o ser humano é também homos socius. Pois o inconsciente não é unicamente assombrado por monstros: ele é também a morada dos deuses, das deusas, dos heróis, das fadas; aliás, os monstros do inconsciente também são mitológicos, uma vez que continuam a preencher as mesmas funções que tiveram em todas as mitologias: em última análise ajudar o homem a libertar-se, aperfeiçoar sua iniciação 179 . Eliade compreende que as imagens servem para captar a realidade profunda das coisas, pois a própria “realidade se manifesta de maneira contraditória”, por isso, os conceitos seriam inadequados para expressá- la. O conceito não revelaria o verdadeiro significado da realidade das imagens mais profundas, porque “ela se revela de maneira contraditória”180. Ao considerar que as imagens são multivalentes, Eliade conclui que: 177 178 179 180 ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 9. Op. Cit., p. 12s. Op. Cit., p. 10. Op. Cit., p. 11. 66 a Imagem em si, enquanto conjunto de significações, que é verdadeira, e não uma única das suas significações ou um único dos seus inúmeros planos de referências. Traduzir uma Imagem na sua terminologia concreta, reduzindo-a a um único dos seus planos referenciais, é pior que mutilá -la, é aniquilála, anulá-la como instrumento de conhecimento181. 1.2. Símbolos da fé Paul Tillich, em “A dinâmica da fé”, no capítulo três, também sugere esse caráter mediático do símbolo religioso ao afirmar que: “o símbolo indica algo que se encontra fora dele”. Para Tillich, embora símbolo e sinal tenham algo em comum (indica algo que se encontra fora dele), no entanto o sinal não tem uma conexão em si. “A luz vermelha e o parar dos carros em si nada tem a ver um com o outro”; mas é uma convenção válida enquanto conveniente. O sinal tem uma função específica, pode ser substituído, enquanto o símbolo não, “ele faz parte daquilo que ele indica”182. É o que Eliade afirma acerca do símbolo, no prefácio de sua obra Imagens e Símbolos, “que podemos camuflá- los, mutilá-los, degradá- los, mas que jamais extirpá- los” poderemos 183 . Neste panorama geral acerca do conceito de símbolo, Tillich destaca seis características e ressalta que: primeiro, o símbolo não pode ser substituído; devido a esse caráter de insubstituível, ele aponta a segunda característica: faz parte da realidade daquilo que indica, por exemplo, a bandeira de uma nação; terceiro, “consiste em que ele nos leva a níveis da realidade que, não fosse ele, nos permaneceriam inacessíveis”; a quarta característica é que “ele abre dimensões e estruturas da nossa alma que correspondem às dimensões e estruturas da realidade”; a quinta característica é que “símbolos não podem ser inventados arbitrariamente. Eles provêm do inconsciente individual ou coletivo e só tomam vida ao se radicarem no inconsciente do nosso próprio ser”184 . E por fim, pelo fato de os símbolos não poderem ser inventados, é que “eles surgem quando a época estiver madura para eles, e desaparecem quando o tempo os tiver 181 ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 12. TILLICH, Paul. A dinâmica da fé. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1985, p. 31. 183 ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 7. 184 TILLICH, Paul, Op. Cit. p. 31. 182 67 ultrapassado”. Por exemplo, “o símbolo de ‘rei’, apareceu numa determinada época da história e se apagou nos tempos atuais em quase todo o mundo”185 . Em Tillich, os símbolos situam-se no âmbito do incondicional, como resultado daquilo que nos toca e que expressamos simbolicamente, ou “o que toca o homem incondicionalmente só pode ser expresso simbolicamente” 186 . Tal processo se dá em tudo aquilo que ocupa, ou se torna objeto da nossa preocupação máxima, seja dinheiro, sucesso, poder (muitas vezes valorizamos tanto um objeto que dizemos que tal objeto é sagrado). Acredito que, ao se referir a aquilo que nos toca incondicionalmente, “o homem faz um “deus”, Tillich quer mostrar que esta linguagem só pode ser simbólica pelo grau de importância que se atribui a um objeto ou pessoa. Podemos perceber em Tillich duas características do simbolismo religioso. Primeiro, é atribuir um caráter sagrado àquilo que nos toca incondicionalmente, pois não existe outra maneira adequada de expressar a fé, senão por meio dos símbolos. Isso ocorre mesmo antes de serem movidos por conceitos religiosos, antes de construir um conhecimento acerca do simbolismo, a pessoa assimila o caráter simbólico já posto sobre o mesmo no cotidiano e “sua raiz está na própria natureza do incondicional e da fé”187 , justifica Tillich. E, segundo “Deus transcende o seu próprio nome ”, ou seja, “se a nossa preocupação suprema, a chamamos de Deus ou não, as nossas afirmações sempre têm significados simbólicos”188 . Tanto a linguagem da fé quanto a linguagem dos símbolos são maneiras “adequadas” de expressar aquilo que nos toca incondicionalmente, entretanto maneiras não suficientes. O símbolo religioso, esse se circunscreve no âmbito da fé, e a fé só se expressa por meio dos símbolos. Diz Tillich: “A linguagem da fé é a linguagem dos símbolos”. Para ele, o símbolo é um elemento intrínseco da estrutura da fé, e ressalta que a fé não é apenas “um acreditar, apenas vontade ou sentime nto”. A fé, afirma ele, é “como estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente...”189 . E Deus é esse “símbolo fundamental para aquilo que nos toca incondicionalmente”. Sendo Deus o centro “em todo o ato de crer, mesmo quando esse ato de crer inclui a negação de Deus”190, logo, é consensual essa a idéia em Haight e em Eliade que os objetos de nossa fé “medeiam a presença de Deus”, e ainda, “não se trata da veneração da pedra 185 TILLICH, Paul, Op. Cit. p. 32. Ibidem. 187 Ibidem. 188 Op. Cit., p. 33. 189 Ibidem. 190 Ibidem. 186 68 como pedra, de um culto da árvore como árvore”, eles não são adorados como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias...”. É o valor sagrado, a experiência vivenciada. Uma questão que nos chama atenção na tese de Tillich é o fato de que não devemos perguntar pela existência de Deus, mas a questão é a seguinte: “qual dentre os inúmeros símbolos corresponde mais profundamente ao sentido da fé?” Ou, “que símbolo do incondicional expressa o absoluto sem estar imbuído de elementos idólatras?”. Primeiro Tillich afirma que “Deus é o símbolo fundamental da fé, mas não é o único”, são as nossas “experiências finitas”, que ao projetar-se “sobre aquilo que se encontra além de finitude e infinitude” revelam Deus191 . Qualidades de poder, amor, justiça “são símbolos retirados de nossa experiências cotidiana (...)” e conclui: “Tudo isso são símbolos retirados de nossa experiência cotidiana, e não afirmações sobre o que Deus fez em tempos antiqüíssimos ou fará em futuro distante”192 , Deus está para além das projeções e dos conceitos. 1.3. O símbolo religioso Roger Haight, em seu mais recente trabalho, “Jesus, symbol of God”, traduzido para o português sob o título Jesus, símbolo de Deus, a partir de uma análise inspirada conseqüentemente nas idéias de Tillich e de Eliade sobre os símbolos religiosos, realizou um estudo que tem por objeto “Jesus”. No capítulo específico sobre “A estrutura da cristologia”, define o símbolo nestes termos: “Pode-se entender símbolo como algo que medeia alguma outra coisa diferente dele próprio. Um símbolo presentifica alguma outra coisa” 193 . Ressalta ainda que “um símbolo desvela algo diferente, alguma coisa que não poderia ser conhecida sem seu concurso”, diferente do “signo” que não tem uma conexão com a realidade, o signo não é “mediacional”, ele revela uma convenção entre as relações. Um sinal vermelho no trânsito é um signo e não um símbolo, exemplifica Haight. O símbolo envolve sentimento, expressa experiência. Por exemplo, “um cristão não pode empregar a palavra ‘cruz’ simplesmente para referir-se à morte de Jesus, sem conotar uma longa 191 TILLICH, Paul, Op. Cit. p. 33. Op. Cit., p. 34. 193 HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulus, 2003, p. 234. 192 69 tradição de profundo sentimento, reflexão e significado”194. Haight distingue entre os símbolos concretos e os símbolos conceituais. “Um símbolo religioso concreto é uma entidade que revela e presentifica alguma outra coisa”. Ele pode ser “alguma coisa, uma pessoa, um objeto, um evento”, e como “objeto físico ou evento, é um ser, ou tem ser, o que o torna possível sujeito de ontologia”195, ressalta Haight. Já o símbolo conceitual, “é um conceito, uma palavra, uma metáfora, uma parábola, um poema, um evangelho ou um relato que revela alguma outra coisa e torna-a presente à imaginação e à mente”. Para esse teólogo, os símbolos conceituais são reveladores, ou seja, eles não são só um conceito, mas pressupõem uma “conexão” (com a realidade?). Como explicita Haight, para que o símbolo conceitual não seja simplesmente “signos convencionais”, “tem de possuir alguma conexão interior com o que é revelado e, assim, presentificado à mente”196 . “O termo símbolo é análogo porque existem diferentes tipos de símbolos. Mas o religiosamente simbólico é sempre aquele que revela alguma outra coisa para além de si mesmo”197. No entanto, Haight atribui aos símbolos religiosos seis características como base para a sistematização da Cristologia. Para fins de transportar esses significados para a figura de Maria como símbolo de Deus, explicitemos cada uma dessas características: 1) Demanda participação – “a comunicação simbólica não é objetiva, no sentido de que pode realizar-se sem o engajamento subjetivo ou existencial daquele sujeito em quem está sendo processada”. Ou seja, o símbolo só faz sentido se existir uma participação interna entre a comunicação subjetiva e um sujeito com predisposição para receber a comunicação. Por exemplo, “Jesus não funcionará como mediação de Deus para uma pessoa na qua l a questão religiosa inexiste”198. 2) Os símbolos medeiam o significado pela ativação da mente – neste sentido, “a mente tem de descobrir o sentido no contra-senso, a verdade na inverdade, o propósito da identidade na diferença”199 . Entendo que este aspecto cognitivo que medeia a participação, esta “realidade” que não está ao alcance dos sentidos, mas que ao mesmo tempo se encontra ao alcance (pois deve ser 194 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 234. Op. Cit., p. 235. 196 Ibidem. 197 Op. Cit., p. 237. 198 Ibidem. 199 Op. Cit., p. 238. 195 70 buscada) e precisa ser buscada para que manifeste o sentido que buscamos para a vida e em outros âmbito s da nossa existência, o próprio mistério não fica alheio à realidade sensível. 3) Os símbolos religiosos participam da transcendência e para ela apontam – “o conhecimento simbólico não abarca nem domina adequadamente a realidade transcendente, mas está profundamente imerso no desconhecido, no não-saber e no agnosticismo”200. É profundamente paradoxal esta afirmação de Haight, pois mesmo “imerso” (entranhado) no desconhecido (e imersão aqui, e a própria palavra o sugere, me parece indicar pleno envolvimento), parece que se está mais imerso no desconhecido do que na transcendência. No entanto, a afirmativa sobre o símbolo é valida: “o conhecimento simbólico não abarca nem domina adequadamente a realidade transcendente”. 4) Os símbolos religiosos revelam a essê ncia da existência humana – levando-se em conta que por meio dos símbolos, temos acesso à realidade e que “o conhecimento simbólico franqueia o acesso ao caráter primordial, ideal e paradisíaco da humanidade, que se acha abaixo ou acima de qualquer atualização histórica particular”201, como afirma Haight. Podemos dizer que estamos intrinsecamente ligados aos símbolos religiosos. 5) Os símbolos são polivalentes em sua estrutura – “a mente humana utiliza símbolos para aprender a realidade última, porque a própria realidade última revela-se de maneiras contraditórias que não se submetem à conceituação”. Por exemplo, “o que significa exatamente dizer que Jesus é Filho de Deus? Quantos significados diferentes essa proposição possui em todo o NT?”. E ainda, “o símbolo exprime os múltiplos aspectos da realidade que não são redutíveis a uma série de proposições”202. Por isso, de um símbolo podemos atribuir várias proposições, pois o símbolo não é algo que já signifique, que já esteja pronto e acabado, que perdure em seu significado. Ou, como o expressa Tillich: “os símbolos surgem e desaparecem”203 . 6) Os símbolos religiosos possuem caráter dialético – o caráter dialético do símbolo permite que se afirmem coisas contrárias a seu respeito porque, embora não seja o simbolizado, presentifica-o”204 . Haight considera que aplicado à Cristologia é difícil exagerar a importância dessa qualidade. Mas cita a explicação de Eliade sobre a dialética de coisas que são sagradas. 200 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 238. Ibidem. 202 Op. Cit., p. 239. 203 TILLICH, Paul, Op. Cit. p. 32. 204 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 239. 201 71 No que diz respeito à estrutura simbólica da Cristologia, Haight atesta que Jesus de Nazaré é o substrato da Cristologia. Mas, a partir da sua estrutura dialética, destaca que Jesus pode ser ou não objeto dela, mediante a “qualidade de mediador histórico de Deus, é um símbolo concreto”205 . Neste sentido, algumas perguntas foram ganhando seus primeiros contornos, como por exemplo: “é se Jesus é objeto da Cristologia?”. Haight entende que uma resposta dialética a esta questão pode ser “sim” como também pode ser “não”. As respostas a esta questão, que pode ser tanto “s im” como também pode ser “não”, não tem a intenção de “apresentar alternativas, nem propor um foco de atenção que oscila entre dois pólos, ainda que isso possa ser inevitável. Pelo contrário, a idéia é sugerir uma estrutura intrínseca e irredutível em um símbolo religioso, que ao mesmo tempo explica Jesus, o encontro de Deus nele e a cristologia como a disciplina que estuda esses fenômenos”206 . Como mediador histórico, Jesus é um símbolo concreto. Jesus é objeto da Cristologia dentro de uma estrutura dialética. Uma segunda questão, que para Haight suscita resposta dialética, é se “Jesus é o objeto da fé cristã?”. Haight entende que “Jesus é e não é objeto da fé cristã”. “Qualquer tentativa de responder simplesmente ou que Jesus é e não é objeto da fé cristã será inevitavelmente inadequada, porque relaxará a tensão incidente sobre Jesus como símbolo de Deus, por negar um dos pólos”207 . Considerando, ainda, uma outra questão: “o que significa dizer que Jesus é consubstancial com Deus, e por conseqüência precisame nte não um ser humano, e consubstancial conosco, e nessa medida distinto de Deus, uma criatura?” Em resposta, Haight chama a atenção para “as questões ontológicas atinentes aos símbolos religiosos”208 . E, partindo da análise da ressurreição, busca compreender as duas dimensões de Jesus Cristo “de uma forma que preserve a integridade de ambos”209 . Ao descrever a gênese da Cristologia, Haight nos faz ver que a sua condição de possibilidade está associada à ressurreição. 205 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 242. Ibidem. 207 Op. Cit., p. 243. 208 Op. Cit., p. 245. 209 Ibidem. 206 72 Considerações a respeito dos textos Nossos referenciais teóricos foram buscados como instrumentos capazes de ajudar na interpretação do símbolo mais conhecido na AL, que é a figura de Maria, mas que ao mesmo tempo demanda desvelamento continuamente, pois esta é a função do símbolo religioso: medeia o significado pela ativação da mente – neste caso, “a mente tem de descobrir o sentido no contrasenso, a verdade na inverdade, o propósito da identidade na diferença”. Para esta análise, apoiamo-nos nos pensamentos de Haight, considerando que a figura de Maria em cada época encontra novas definições, novos valores e que na época atual seu simbolismo é pensado como figura libertadora a partir do seu cântico. Considerando também que a linguagem da fé (ou religiosa) é a linguagem do símbolo e que toda linguagem acerca de Deus é simbólica, temos como referenciais teóricos Haight e Tillich. Ao buscarmos compreender a linguagem religiosa, estamos buscando elementos que permitam compreender na expressiva figura de Maria evidências da manifestação de Deus. Maria como instrumento da manifestação de Deus. Aqui nos servirá de referencial teórico os pensamentos de Eliade. A manifestação da piedade popular Mariana se explica pelo fato da sua maternidade, o Verbo de Deus Encarnado, passa pelo processo maternal do nascimento. A adoração a Maria é adoração ao próprio Deus, pois para o povo Maria é a mediadora, intercessora, a Mãe de Deus e a nossa mãe. Em Maria aconteceu uma hierofania, por isso, a piedade Mariana se explica e se justifica. Nesta questão, teremos como referencial teórico Eliade. Em suma, os símbolos religiosos estão sempre abertos a novas interpretações, à medida que se apresentam à nossa realidade e nos atingem, eles abarcam o mistério que é desconhecido, transcendente, mas ao mesmo tempo presentifica e medeia alguma outra coisa, e a mente tem que descobrir. Os símbolos religiosos só permanecerão alheios para aqueles “cuja questão religiosa inexiste”. Os símbolos religiosos fazem parte da experiência mais profunda da humanidade. Um símbolo religioso concreto é uma entidade que “revela e presentifica alguma outra coisa”210. Jesus é este símbolo concreto que revela e presentifica Deus. Neste sentido, em Haight podemos buscar, a partir desta compreensão, ao nos referirmos a Maria, que ela é um símbo lo 210 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 234. 73 concreto, pois “revela e presentifica alguma outra coisa”, ela medeia o próprio Deus. Pois acreditamos que a compreensão da construção desse conceito contribuirá significativamente para apoiar a nossa tese de que Maria é símbolo de Deus. Portanto, a utilização do conceito de símbolo religioso como chave interpretativa parece- nos ser um procedimento que servirá ao nosso propósito, o de caracterizar a figura de Maria como símbolo de Deus. “Toda linguagem acerca de Deus é simbólica”211 ; “A linguagem da fé é a linguagem dos símbolos”212 ; e “... o homem mais realista vive de imagens”213 . Essas assertivas mostram que o que conhecemos acerca de Deus mesmo, passa primeiro pela experiência de uma linguagem simbólica humana e da experiência de uma realidade material por meio das imagens. Em síntese, os autores possuem algumas características que se aproximam e se diferenciam. Apresentaremos a seguir um quadro sinóptico dos autores acerca do símbolo religioso. 211 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 236. TILLICH , Paul, Op. Cit. p. 33. 213 ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 12s. 212 74 CARACTERISTICAS Caráter mediático Dialético ELIADE TILLICH Um objeto qualquer tornase outra coisa e, contudo, O símbolo indica algo continua a ser ele mesmo, que se encontra fora porque continua a dele. participar o meio cósmico envolvente. A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere. HAIGHT Pode-se entender símbolo como algo que medeia alguma outra coisa diferente dele próprio. Um símbolo presentifica alguma outra coisa. Esse caráter permite que se afirmem coisas contrárias a seu respeito porque, embora não seja o simbolizado, presentifica-o. Deus é o símbolo fundamental da fé, mas não é o único, são as nossas experiência s finitas que ao projetarse sobre aquilo que se encontra além de finitude e infinitude revelam Deus. Ver, julgar e agir. Deus como centro Não conceitual A realidade se manifesta de maneira contraditória, por isso, os conceitos seriam inadequados para expressá-la. Linguagem A linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos retirados dessa mesma experiência natural. Insubstituível Podemos camuflá-los, mutilá -los, degradá -los, mas jamais poderemos extirpá-los Para que o símbolo Deus transcende o seu conceitual não seja próprio nome. simplesmente signos convencionais, tem de possuir alguma conexão interior com o que é revelado e, assim, presentificado à mente. A linguagem da fé é a linguagem dos símbolos. O símbolo não pode ser substituído, devido a esse caráter de insubstituível Toda linguagem acerca de Deus é simbólica. 75 2. MARIA, SÍMBOLO DA FÉ “... todas as nações me chamarão bem-aventurada” (Lc 1. 48) A figura de Maria em sua trajetória histórica tem sido uma das forças vivas no pensamento humano e especificamente no continente latino -americano, que ao longo destes 500 anos, vem sendo portadora da fé de milhões de devotos, claro que a fé em Maria é subjacente ao catolicismo. Nas produções teóricas, ultimamente, um dos focos de interesses dos teólogos e teólogas contemporâneos pela figura de Maria tem sido o Magnificat, tema que tem recebido os mais diversos enfoques, refletindo os fatos históricos e a experiência reveladora de Deus neste contexto e, sobretudo no contexto de opressão da AL. A partir deste enfoque, a história da salvação traz as marcas de um Deus que se revela como Mãe na pessoa de Maria de Nazaré, e a piedade popular a reconhece como Mãe de Deus e assim, “Nossa Mãe”. Por isso que as invocações que a ela se faz, traz sempre esse caráter maternal de consolo, abrigo, proteção e ao mesmo tempo de denúncia. Ao ser invocada como mãe, simbolicamente a figura de Maria para o povo latino -americano evoca a presença de Deus. Embora a figura de Maria tenha sido sempre pensada em subordinação a Cristo, assim como o feminino sempre teve o seu desejo orientado para o homem, nas teorias dos teólogos latino-americanos percebe-se uma ruptura com esses pensamentos, para uma reflexão menos paradigmática, inclusiva e livre dos conceitos tradicionais. E essa reflexão passa a ser inovadora a partir do momento que muda esse eixo e inclui também o feminino e Maria como fontes que revelam o divino. Essa inclusão possibilita uma nova chave hermenêutica de interpretação da revelação divina, em que a mulher como sujeito de reflexão teológica corporifica uma nova linguagem ao se falar dos símbolos religiosos, promovendo uma nova identidade (ou restaurandoa). Essa possibilidade de uma releitura do simbolismo religioso numa visão inclusiva e não mais exclusivista e sexista-patriarcal privilegia a mulher como agente participativo desta revelação. Assim sendo, rompe-se com os estereótipos do passado que foram associados e ditos a respeito da mulher – a queda, a morte, a dor, a serpente e a inferioridade, dimensões que designaram-na e marginalizaram- na. 76 A partir da exigência do nosso tempo, em que o feminino e masculino são estruturas do humano, no que diz respeito especificamente ao feminino, tomando como paradigma a figura de Maria, já que as reflexões sempre giraram em torno do masculino, pode-se indagar: Por que a “Redenção ” é vista unicamente pelo viés da Cristologia? Quais elementos “redentores” estão também presentes na imagem do feminino, representada aqui na figura de Maria e podem ser absortos para revelá- la como símbolo de Deus e da mulher? Considero que, entender a figura de Maria como símbolo de Deus, é fundamental para aqueles que estão envolvidos com a Teologia. O enfrentamento destas questões pode ser uma contribuição para se repensar a figura de Maria em uma nova perspectiva, seja a partir do feminino, ou do contexto de opressão, de marginalização, o importante é que se rompa com os conceitos culturais, como sugere Boff. Sem dúvida, estas questões ainda não possuem respostas consensuais, mas têm sido alvo das preocupações teológicas daqueles que estão envoltos com a emancipação do indivíduo. Por isso, Maria como símbolo da fé, ainda permanece restrita às reflexões de teólogos católicos. Então, Maria como símbolo da fé, tomando por referência Boff, para quem as Escrituras Sagradas revelam o caráter feminino, pois, se o mesmo “constitui uma dimensão estrutural do humanum”, ele deve estar presente nas Escrituras cristãs, apesar de sua ideologia masculinizante. Claro, que para isso, tem que ser feita uma hermenêutica para “despatriarcalizar as Escrituras”214 , já que a revelação se processou dentro da era patriarcal. Apesar das representações sociais masculinizantes, Boff constata que: Maria representa para a fé cristã não apenas a plenitude de realização do feminino em suas distintas manifestações ligadas ao mistério da vida como a virgem e a mãe, pelo fato de ser a virgem-Mãe de Deus encarnado e estar relacionada intimamente ao Espírito Santo. Por causa do mis tério da encarnação (...) vigora uma relação ontológica entre Maria e Jesus215 . Para Boff, Maria foi a escolhida para manifestar algo que Cristo não manifestou na redenção, justificando essa idéia ao fato de Jesus ser varão, ao contrário, Maria pode manifestar: a “ternura maternal”, típica de uma Mãe 214 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 75. Op. Cit., p. 90. 216 Op. Cit., p. 90. 215 216 . Assim, poderíamos dizer que Boff analisa, a partir de 77 uma hermenêutica despatriarcalizada, um princípio feminino na fé cristã baseado na figura de “ternura maternal” de Maria. No entanto, podemos discordar desta idéia pois a ternura não é algo exclusivo da mulher-Maria, mas o próprio Jesus a expressou quando curou, quando repartiu o pão e teve compaixão dos seus seguidores. Para Dorado, é o reconhecimento da maternidade divina que incorpora a fé do povo em Maria no continente latino -americano. Em decorrência dos fatos históricos: por ser “Mãe de Jesus histórico”, mulher israelita que existiu e cumpriu leis, ligados a estes fatos, a Maria da fé pascal que tem a ver com o acontecimento da ressurreição – “A Mãe de Jesus de Nazaré aparece também como a mãe de Cristo”217 . É neste contexto do Cristo Ressuscitado, que Dorado compreende a Maria da fé pascal neste Continente e afirma que: (...) a fé no Cristo ressuscitado faz a comunidade neotestamentária descobrir na Mãe de Jesus a crente Maria, mas não com uma fé justaposta à sua maternidade humana, e sim invadindo-a em sua raiz mais profunda, enchendo-a de um novo significado, constituindo-a mãe de Cristo, em seu mais pleno sentido218. Para Gebara e Bingemer existe uma relação entre os “crentes da história e os “vivos em Deus”, dos quais Maria faz parte e tem um papel principal” 219 . Como símbolo da fé, a figura de Maria para estas teólogas não representa unicamente “a mulher profética ou a mulher libertadora, ou a mãe extraordinária, mas Maria, e ainda Jesus, Deus e os santos, são palavras ‘mágicas’ que pronunciadas assemelham-se a um clamor que brota das entranhas e que produz uma espécie de alívio na aflição”220 . Maria é símbolo da fé por ser Mãe de Deus que participa ativamente da história da redenção e salvação da humanidade. Sua maternidade revela a encarnação ou a espiritualização de Deus no mundo e, ainda, alimenta a esperança de milhares de devotos. 217 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 27. Ibidem. 219 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 31. 220 Op. Cit., p. 35. 218 78 2.1. Maria, símbolo religioso A partir da dialética do símbolo, nas teorias de Eliade e Haight, um objeto não é adorado por ser simplesmente um objeto, ou seja, “não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore (...) não são adorados como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias...” Esse valor sagrado atribuído à árvore e à pedra se justifica, segundo Eliade, porque houve uma manifestação sobrenatural, porque a pedra “já não é nem pedra, nem árvore mas, o sagrado” 221 . Analogamente, pensamos que a figura de Maria revela o divino. Por isso, na piedade popular a veneração a Maria é a veneração do próprio Deus. Maria é venerada porque houve nela uma hierofania (manifestação do sagrado). Como símbolo religioso, Maria participa da transcendência divina e, por isso, pode-se considerá- la símbolo de Deus. É o valor sagrado referente ao simbolismo religioso, que revela sua transcendência e a partir dessa experiência vivenciada, ela se torna não simplesmente uma mulher da cidadezinha de Nazaré, mas a Mãe do próprio Deus. A maternidade de Maria revela em partes aquilo para o que ela aponta: a maternidade divina – um Deus que quer se revelar como Mãe e ao mesmo tempo ela revela também “a essência da existência humana”, a capacidade de doar-se em prol da coletividade. Tal afirmação, de que a manifestação do sagrado está presente no objeto cultuado, não está apenas presente no pensamento de Eliade, mas também aparece com destaque nos estudos de Haight, o qual afirma ter os símbolos religiosos caráter dialético: “o caráter dialético do símbolo permite que se afirmem coisas contrárias a seu respeito porque, embora não seja o simbolizado, presentifica-o”222 . No entanto, numa primeira análise, o símbolo pode ser e não ser aquilo que ele indica (vamos nos deter aqui aos estudos realizados por Eliade, Tillich e Haight, ressaltando alguns aspectos relevantes para contextualizar esta temática de Maria como símbolo que revela Deus). Podemos pensar que o caráter dialético dos símbolos indica que não existe uma verdade absoluta a seu respeito, e por possuírem esse caráter relativo é que não conhecemos profundamente as verdades acerca do divino, “o conhecimento simbólico não abarca nem domina adequadamente a realidade transcendente, mas está profundamente imerso no desconhecido, no 221 222 ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 18. HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 239. 79 não-saber e no agnosticismo”223 . Por isso, conhecemos o que Maria revela do transcendente em partes, porque o mistério se mostra totalmente mistério para não deixar de ser mistério. A partir da simbologia da figura de Maria, conhecemos um Deus que relaciona -se com a humanidade, um Deus que ama e um Deus que é Mãe. Segundo Boff, a “maternidade humana e divina” de Maria está a serviço do desígnio de Deus. “E qual é este desígnio? Querer ser homem. Deus quer ‘realizar-se’, fazendo-se homem” 224. Talvez esse método para alguns seja descartado, pelo fato de que nada se afirme do transcendente, já que o mesmo está submerso em conceitos tradicionais, culturais, enraigado de tal maneira que seria quase impossível dizer outras coisas, como por exemplo, negá-lo. Por isso, a rejeição desse método é cômoda para alguns, mas como insere Haight que o símbolo “demanda participação, a comunicação simbólica não é objetiva, no sentido de que pode realizar-se sem o engajamento subjetivo ou existencial daquele sujeito em quem está sendo processada”225. Em alguns contextos, os símbolos ficaram reduzidos a um encadeamento de conceitos que os sentidos não mais percebem a idéia do transcendente como outra coisa senão nas projeções das qualidades humanas. Eliade compreende que as imagens servem para captar a realidade profunda das coisas, pois a própria “realidade se manifesta de maneira contraditória”, por isso, os conceitos seriam inadequados para expressá- la. O conceito não revelaria o verdadeiro significado da realidade das imagens mais profundas, porque “ela se revela de maneira contraditória”226 . A imagem de Maria revela esse caráter (contraditório), basta pensarmos nos dogmas. Atrelada às projeções das “qualidades humanas” (conceitos morais), aos conceitos culturais e compreendida dentro de uma estrutura que se julga meramente imanente à mulher: Virgem, Mãe e Esposa. Ao invés desses conceitos transcenderem o seu significado cultural e moral, ao contrário, reduz-se o simbolismo religioso aos conceitos, degradando, no entanto, o símbolo. Por isso, as expressões da virgindade e maternidade como meros conceitos culturais ou morais “danificam” o caráter simbólico que ele representa. Sobre isso, em suas análises sobre a “teologia Mariana popular”, Dorado pensa que as deformações existentes não estão no dado revelado, mas na “cultura que recebeu a fé”227 . A religiosidade popular projetada na figura de Maria neste contexto fica reduzida a uma 223 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 236. BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 166. 225 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 237. 226 ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 11. 227 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 79. 224 80 funcionalidade restrita aos aspectos de refúgio, consolo e proteção. E essa projeção sublinhada à maternidade reve lada de Maria, é vivenciada nas expressões das “celebrações, os dons e promessas, e a oração”. Ao descrever como funciona este relacionamento fiducial, Dorado mostra como a maternidade de Maria está intrinsecamente atrelada à cultura, por exemplo: A festividade da padroeira é o equivalente ao aniversário da mamãe, momento em que nenhum dos filhos pode faltar. A celebração da festividade da Virgem para muitos se torna uma peregrinação porque é o momento, com a expressão paraguaia, em que todos os filhos têm de voltar a ‘seu vale’ para encontrar-se com a mãe 228 . A oração é também uma outra forma de relacionar-se com Maria: “Para isto emprega antigas ‘rezas’, entre as quais sobressai o Rosário. Em geral, são orações tecidas numa linguagem solene, marcando especialmente a dimensão de grandeza e autoridade da Virgem”229 . Vale ressaltar o pensamento de Tillich, que a partir das análises daquilo que toca o homem incondicionalmente é expressa pela linguagem da fé, a qual é a linguagem dos símbolos230 . A fé não conhece outro meio de expressar-se a não ser pelos símbolos religiosos. A concepção de símbolo que parece estar presente em seu trabalho é a do “símbolo divino”, que atua “incondicionalmente” no indivíduo, ocupando-o completamente, o divino está presente nos símbolos da fé. Por isso, Maria é uma “palavra mágica”, que ao ser pronunciada assemelha-se “a um clamor que brota das entranhas e que produz uma espécie de alívio na aflição”231 . Mas, se a linguagem da fé é a linguagem dos símbolos, como afirma Tillich, essa linguagem pode e deve ser sempre dialética, sempre buscando novos sentidos para expressá-los, sem que, no entanto, os símbolos se circunscrevam em conceitos formais e fechados. Por isso, o símbolo não pode ser entendido de forma literal, mas compreendido dentro da sua própria dinâmica, pois ele participa da realidade que representa. E Maria é um dos símbolos que expressa a fé religiosa dos primeiros cristãos e se desenvolve na piedade popular ao longo desses dois milênios. Para Haight, os símbolos “são polivalentes em sua estrutura”, considerando que “a mente humana utiliza símbolos para aprender a realidade última, porque a própria realidade última 228 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 75. Op. Cit., p. 76. 230 TILLICH, Paul, Op. Cit. p. 33. 231 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 35. 229 81 revela-se de maneiras contraditórias que não se submetem à conceituação”232 . Maria, no contexto de Virgem, Mãe e Esposa, pode evocar várias interpretações, releituras, resignificações, mas nunca se esgotará completamente seu sentido, ou seus sentidos. Os símbolos sempre apontam para uma nova interpretação que a mente “tem que descobrir”233 , afirma Haight. Por exemplo, entender a maternidade não como função procriadora da mulher, mas como realidade subjacente ao caráter humano capaz de “gerar vida”, e aqui não estamos utilizando o termo maternidade como sinônimo de gestação. Mas gerar a vida nas expressões de ternura, afetuosidade, carinho e proteção, características inerentes à estrutura antropológica de qualquer ser humano que ama. Como afirma Gebara e Bingemer, sobre a maternidade divina de Maria nas perspectivas bíblicas e na tradição da Igreja: “Trata-se de um serviço a todo gênero humano, que implica a entrega da vida e a abertura amorosa e total à vontade de Deus e às necessidades dos outros”234. Nesta perspectiva, a maternidade transcende seu conceito cultural, e estrutural inerente à mulher. Assim, Haight também compartilha com Tillich de que “toda linguagem acerca de Deus é simbólica”235 . Eliade afirma que a linguagem “exprime ingenuamente o tremendum”236. Essas assertivas mostram que o que conhecemos acerca de Deus mesmo, passa primeiro pela experiência de uma linguagem que se restringe àquilo que conhecemos naturalmente, ou como expressa Eliade: da vida “espiritual profana do homem” 237. São as representações simbólicas que fazem mediação entre o conhecimento e a experiência de uma realidade material – a Encarnação do Verbo de Deus no mundo. E essa experiência passa pelo nascimento da experiência virginal. Ao tornar-se carne, o Verbo de Deus dá-se a conhecer e este conhecimento da “realidade” transcendental de Deus se dá mediante a presença da encarnação em Maria: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1. 1-2). Por isso, quando os símbolos da fé são adorados, venerados, cultuados medeiam a presença do transcendente. Em resumo, o conceito de símbolo é tema aberto, à medida que se define um símbolo religioso em uma única explicação hermética e imutável, ele perde sua essência e “deixa de ser símbolo”, deixa de simbolizar. 232 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 239. Op. Cit., p. 238. 234 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 117. 235 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 236. 236 ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 16. 237 Ibidem. 233 82 2.2. Feminino: imagem e semelhança de Deus A Imago Dei está presente na mulher tanto quanto no homem, do mesmo modo, ambos com a capacidade de perceber Deus. Este ensinamento rabínico privilegia o ser humano a uma posição distinguível na natureza ou no universo. Adão e Eva, Maria e Cristo nivelam-se em sua capacidade de percepção do sagrado de modo equivalente, mas de maneiras diferentes. Nessa perspectiva da “imagem e semelhança de Deus”, homens e mulheres capazes de participarem do mesmo projeto de salvação, de re-organização social, de procriação e da necessidade do sagrado é que se fará a análise da figura de Maria a partir da reflexão dos teólogos da TL. Nesta tentativa hermenêutica objetiva-se captar na imanência o conteúdo divino dessa “equivalência” (termo usado pela teóloga feminista Elizabeth Johnson para falar das imagens masculina e feminina de Deus; 1995:90). Uma das características dos teólogos supracitados é a opção que fazem pelo feminino, em suas reflexões enfatizam- no a partir da sua nova emergência como chave de interpretação para compreender a figura de Maria. Boff, por exemplo, assume o feminino como princípio mariológico fundamental para elaborar a Mariologia. Mas, a priori, dá uma explicação das idéias: a) analítica – em que se valoriza a diferença do homem e da mulher em uma dialética de reciprocidade; b) filosófica – o feminino e o masculino constituem os elementos ontológicos de cada existência humana; c) teológica – o feminino também é caminho da revelação de Deus. “A revelação atinge o feminino, manifestando o desígnio do Altíssimo sobre ele”238 . Na perspectiva da criação, o relato do Gênesis não está afirmando que o homem (varão) possui capacidades superiores nem que seja diferente da mulher, ao contrário, afirma que ambos são imagem e semelhança de Deus. As análises de Boff imprimem uma visão interdisciplinar sobre o feminino, e o caráter de reciprocidade é que reflete a imagem e semelhança de Deus em seus aspectos tanto antropológicos, quanto teológicos. Para ele, os textos de Gênesis são antifeministas, que foram sendo interpretados de maneira masculinizante, de tal forma que mascarou o sentido intencionado pelo autor sagrado, por exemplo, o relato da criação de Eva (Gn 2. 18-25); e da queda original (Gn 3. 1-19) 239 . 238 239 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 35s. Op. Cit., p. 77. 83 Como afirmamos anteriormente, os símbolos ficaram reduzidos a um encadeamento de conceitos, e esses conceitos de um lado presos ao idealismo (projeção das coisas perfeitas em um outro mundo), de outro ao dualismo (oposição entre espírito e matéria), como sugerem Gebara e Bingemer. Ao romperem com essas estruturas antropológicas, ambas propõem uma nova releitura a partir de uma antropologia humanocêntrica para que se elabore uma Teologia Marial que faça jus à revelação divina também na figura da mulher criada à imagem e semelhança de Deus. Justificam sua Teologia a partir da transformação antropológica, ou seja, uma antropologia humanocêntrica: “homem e mulher como centro da história”240 . Como princípio básico da Mariologia, o feminino constitui-se nessa reflexão uma relação equivalente com o masculino, representado na figura de Jesus na história da salvação como modelo único de acesso ao divino. Essa equivalênc ia, entre o masculino e feminino, aponta para os símbolos da fé representados pelas figuras de Jesus e Maria, como modelos representativos do divino, não privilegiando um só modelo. A partir desta perspectiva, ambas rompem radicalmente com o modelo único: Cristo, a ponto de afirmarem que ele é um mediador e esclarecem a respeito da “mediação” que no uso do seu termo tem conotação de um esquema hierárquico: A humanidade homem/mulher é que constrói a história, que se relaciona entre si e com a divindade. As palavras ‘mediador’ e ‘mediação’ devem ter seu conteúdo esclarecido nesse esboço antropológico. Não se trata, aqui, de mediação no sentido de termo médio, intermediário entre um ser e outro, ou ainda, de mediador como um sujeito que faria uma espécie de ligação entre os seres. Essa linguagem denuncia um esquema hierárquico, que parece estranho à experiência neotestamentária e à postura que assumimos. Na perspectiva da Encarnação, Deus assume totalmente a carne humana, de forma que, ‘quem me vê, vê o Pai’, ‘quem diz que ama a Deus e odeia seu irmão, é mentiroso’, ‘eu tive fome e me destes de comer’, ‘eu estava nu e me vestistes’. Somos uns para os outros presença de Deus, somos uns para os outros apelo de Deus para a conversão. De forma que a humanidade toda é Templo, Morada de Deus241. A figura do feminino compreendida como imagem e semelhança de Deus, e a figura de Maria como expressiva da revelação divina e também representativa da salvação de Deus no mundo, então associada a esta Imagem, a figura de Maria como símbolo de Deus ajuda “a superar a ausência de metáforas femininas”, fazendo valer a sua própria experiência. Pensamos com Gebara e Bingemer que não se trata unicamente de: “... falar de uma figura feminina 240 241 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 14. Op. Cit., p. 13. 84 contrapondo-a a uma figura masculina, ou explicitar a revelação de Deus na mulher Maria e nas mulheres em geral para mostrar que são também importantes”. E acrescentam que sem Maria, “... sem a dimensão que ela representa, fica faltando uma metade de nós, uma metade da humanidade e, conseqüenteme nte uma metade da divindade”242 . Isso nos faz refletir sobre o elemento transcendente presente no humano enquanto imagem e semelhança de Deus que somos. Como símbolo que participa da transcendência divina e para ela aponta e como símbolo que revela a essência da existência humana243 , isto significa que há uma essência com características antropológica e teológica no símbolo, revelando assim o caráter ontológico da existência humana. Maria, símbolo concreto de Deus, revela e presentifica Deus, como ressalta Haight ao falar sobre o símbolo concreto “... e como objeto físico ou evento, é um ser, ou tem ser, o que o torna possível sujeito de ontologia”244. Portanto, Maria como imagem e semelhança de Deus, revela Deus e presentifica-O. 2.3. Maria, a mulher ícone do mistério O teólogo Bruno Forte, em sua obra intitulada “Maria, A Mulher Ícone do Mistério”, com o qual também intitulamos este ponto de nossa reflexão, objetiva-se, como afirma ele, a “perscrutar o Todo (mistério que se realiza no Filho) no fragmento” – que é a “humilde serva do Senhor, Maria de Nazaré...”245. Aprofundando o tema da figura de Maria como Virgem, Mãe e Esposa dentro do mistério divino que a envolve, o qual está ligado à sua concretude de mulher, para Forte, Maria é a revelação do mistério de Deus para uma nova humanidade eleita a participar da união divina outrora rompida, a quem Ele escolheu. Ao falar da nova emergência do feminino e seus processos de libertação, Forte reconhece que “A usurpação absoluta do masculino pelo homem traz desequilíbrio e dilaceração, relegando a mulher à pura passividade dependente”, o contrário também é verdadeiro, e complementa que “é só na reciprocidade, que não mortifica as diferenças, mas as valoriza uma pela outra, que o homem e a mulher podem ser eles mesmos”246 . 242 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 49. HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 238. 244 Op. Cit., p. 235. 245 FORTE, Bruno. Maria, a mulher ícone do mistério: ensaio de Mariologia simbólico-narrativa. São Paulo: Paulinas, 1991, p. 5. 246 Op. Cit., p. 22. 243 85 Forte considera que a Teologia Feminista tem seu lado negativo e o seu lado positivo, e crítica a hipótese de Boff sobre a união hipostática, chamando de “extremismo mariológico”, e ainda, que esta hipótese é “destituída de qualquer fundamento dogmático, mas carregada de sugestão simbólica – de que a “Virgem Maria, Mãe de Deus e dos homens, realiza o feminino de forma absoluta e escatológica porque o Espírito Santo fez dela seu templo, seu santuário e seu tabernáculo de modo tão real e verdadeiro que ela deva ser considerada como unida hipostaticamente à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade”247 . Sem absorver o que para Forte significa “extremismo mariológico”, ele afirma que pretende sublinhar os aspectos profundamente libertadores da história de Maria, ‘seu consentimento ativo e responsável’ ao desígnio divino, sua ‘escolha corajosa feita para se consagrar totalmente ao amor de Deus’, até afirmar que ela, ‘embora completamente entregue à vontade do Senhor’, foi totalmente diferente de mulher passivamente submissa ou de religiosidade alienante, mas mulher que não duvidou em proclamar que Deus é vingador dos humildes e dos oprimidos... 248. Embora critique as posições da Teologia Feminista da Libertação, Bruno Forte assume algumas posturas emancipadoras no que diz respeito à figura de Maria, entretanto, para ele, o seu mistério está relacionado à encarnação de Cristo. Maria não pode ser desvinculada de sua relação a Cristo, sendo Ele único mediador. Então, os elementos libertadores no que diz respeito à Maria para Forte, estão presentes no fato do seu Fiat consciente, ao contrário de uma resposta passiva e submissa que há muito se desenvolveu a este respeito. Mas quanto à Salvação, Cristo é o único mediador, pois, só a Deus glória, “soli Deo gloria!”249. Diferente de Forte, que pensa a Teologia da Salvação a partir unicamente de Cristo como centro, o Todo revelado no fragmento – Maria, para os teólogos da TL o centro também é Deus, Maria e Cristo são pensados como caminhos que levam até Deus. Por exemplo, para Boff uma Mariologia que seja Teologia o “centro seria Deus e não mais Maria”250. Gebara e Bingemer, a partir da perspectiva do Reino, afirmam que “não há uma parte de Deus que salva. Assim como não há uma parte do humano que salva a outra ou que é instrumento único de salvação, mas é o 247 FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 26. Op. Cit., p. 26. 249 Op. Cit., p. 11. 250 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 31. 248 86 humano total que é salvo, e é instrumento de salvação”251. E, ainda, referente à fé cristã “Deus é nosso único salvador...”252 . Esta perspectiva nos deixa entrever que esta descentralização lança luzes sobre a figura de Maria a ser compreendida também como caminho de salvação. No entanto, para Forte, Jesus é o centro, embora afirme que “nada e ninguém, sequer a mãe do Senhor, deverá tomar o lugar que compete ao Altíssimo na reflexão e na vida dos crentes”. E tomando por referência H. Zwingli, subscreve: “Quanto mais crescem a glória e o amor de Jesus entre os homens, tanto mais crescem também a valorização e a glória de Maria, porque ela nos gerou um Senhor e Redentor tão grande e rico de graças”253 . Forte foca suas análises sobre Maria no modo da Salvação por Jesus. A partir do terceiro capítulo, que tem o mesmo título da sua obra, “Maria, a mulher ícone do mistério”, ele analisa a figura de Maria sob as três perspectivas de Virgem, Mãe e Esposa, dentro do contexto pascal, teológico, eclesiológico e antropológico. Na impossibilidade prática de explorar os quatro contextos, dentro das três perspectivas: Virgem, Mãe e Esposa, nos limitaremos à análise da “maternidade” em seus aspectos teológicos e antropológicos. 2.3.1. Significado teológico da maternidade A figura de Maria faz parte do desenvolvimento de fé do povo que se inicia na comunidade dos primeiros cristãos relatado nos Evangelhos e no livro de Atos dos Apóstolos, e vai se desenvolvendo no seio da devoção popular através dos séculos. “Maria é a Mãe do Senhor (Lc 1.43), segundo o testemunho da Escritura; a Mãe de Deus, como a define a fé da Igreja em Calcedônia (451), em continuidade com a Palavra normativa e fontal do NT...”254. Do ponto de vista teológico, para Forte: As expressões ‘Mãe de Deus’ e ‘Genitora de Deus’ são usadas na tradição da fé de modo mais ou menos equivalente: a primeira é do tipo mais pessoal-relacional, enquanto abrange todo o mundo vital das relações entre Mãe e o Filho, a segunda é mais técnica, mais precisa do ponto de vista estritamente teológico, enquanto afirma que Maria gerou aquele que é o Filho de Deus 255 . 251 GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 48. Op. Cit., p. 49. 253 FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 11. 254 FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 184. 255 Ibidem. 252 87 Ao questionar “qual o aspecto da divindade a se oferecer no mistério da Mãe de Deus?”, Forte sublinha que o título de Mãe e Deus dado a Maria está vinculado à verdade da humanidade de Deus: “Ele veicula, de forma densa e incisiva, a verdade da humanidade de Deus, verdadeiramente Deus (‘vere Deus’), e que o Filho de Deus é o Filho de Maria, verdadeiramente homem (‘vere homo’)...”256 . Primeiro, ancorado a essas afirmações, a maternidade de Maria não tem outra funcionalidade a não ser revelar todo o caráter do “vere Deus” e do “vere homo”. Isso significa que Jesus, como Deus, participa da humanidade – o Verbo Encarnado. O título conferido a Maria de Mãe de Deus “se oferece como compêndio da fé no mistério central do cristianismo”257. Não é um título designado por ela mesma, mas pelo próprio Deus que aprouve escolhê- la. Segundo, a maternidade de Maria “remete também à totalidade do mistério trinitário: se o Filho de Maria, gerado por ela no tempo, é o Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, então o Deus que se revela no mistério da maternidade da Virgem é o Gerado e o Gerante, o Filho e o Pai”258 . O sentido teológico da sua maternidade além, de revelar “a verdade da humanidade de Deus”, inclui Maria “totalmente dentro do movimento descendente da salvação...”259 . Ela “testemunha do divino é a sua transcendência e absoluticidade, e ao mesmo tempo, a sua misericórdia e infinita humildade”260 . Neste contexto, Forte questiona “quem é a Mãe de Deus diante da Trindade, que a envolveu no mistério de suas relações pessoais?”. E afirma que “Maria é o ícone materno da paternidade de Deus”261, pensamento já definido pela fé dogmática da Igreja. Mas Forte pensa que “à paternidade de Deus Pai no divino corresponde a maternidade da Mãe de Deus no humano”262. Ou seja, na compreensão de Forte a maternidade de Deus só pode ser humana e não divina. Embora pense assumir o feminino como elemento revelador do divino, Forte não o faz, ao contrário dos teólogos da TL, Boff por exemplo, afirma que “o feminino, entrou numa proporção toda especial, na constituição da existência concreta de Jesus”263. Forte relaciona Maria totalmente ao mistério divino, mas sem assumir o femin ino como princípio da salvação 256 FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 187. Op. Cit., p. 189. 258 Ibidem. 259 Op. Cit., p. 187. 260 Op. Cit., p. 188. 261 Op. Cit., p. 192. 262 Op. Cit., p. 193. 263 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 168. 257 88 humana. E Maria, como ícone paterno, está intrinsecamente relacionada à humanidade de Deus, aos méritos unicamente de Cristo como mediador, a qual a maternidade de Maria exalta. Ela participa do mistério da salvação, mas não como veículo de salvação do homem para Deus. 2.3.2. Significado antropológico da maternidade A posição teórica de Forte sobre o significado antropológico da maternidade se baseia fundamentalmente no sentido de que o “homem foi feito para amar” e a resposta positiva de Maria confere à humanidade a transcendência, transcendência 264 manifestada pela maternidade divina da Virgem...” que “se esclarece na direção . Quanto ao significado antropológico da maternidade de Maria, Forte questiona: “qual a imagem do homem que se apresenta na figura da Mãe de Deus, ícone da paternidade divina?”. Ele afirma que esta “interrogação se funda no caráter de ‘nova criação’ da concepção virginal...”265 . Consideraremos agora alguns dos conceitos básicos dessa antropologia. Primeiramente, a figura da Mãe de Deus resplandece a altíssima dignidade da criatura humana, chamada a participar da comunicabilidade do amor divino: ‘O homem não é aqui, simplesmente ‘argila nas mãos do oleiro’, mas ‘criatura que colabora’, que ‘se chamada, responde,’ ‘se amada, ama’ 266 . Forte limita sua antropologia ao sentimento humano mais profundo que é capaz da entrega, de atos de total abandono ao outro, de humildade e de consentimento, apresentando aspectos que são aspectos imanentes, mas de outro lado, apresenta também aspectos transcendentes: o valor do ‘sim’ de Maria: ele é o manifesto da liberdade da criatura, o sinal humilde mais inequívoco, de que o amor do Pai é tão gratuito e, por isso, livre por si, que, para sua iniciativa de salvação, espera o consentimento da criatura. Sem o ‘sim’ da Virgem, a maternidade divina seria algo de ‘fascinosum’ e de 264 FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 207. Ibidem. 266 Op. Cit., p. 207. 265 89 ‘tremendum’, envolto em sacralidade intangível, estranho e distante do homem empenhado na fadiga de querer-se verdadeiramente humano267. Em segundo lugar, “Maria vive a vocação profunda da criatura, amada por Deus e tornada participante da fonte de seu amor, em toda a verdade do seu ser de mulher: ela é a Mãe de Deus, o ícone materno, feminino, do Pai”268 . Neste sentido, ligada ao amor de Deus e a doação de Maria, Forte questiona: “quais são os traços do feminino que se revelam na mulher Maria, enquanto Mãe de Deus?”269. Uma primeira resposta do autor seria a doação sem condições ou reservas, princípio materno da mulher. E ainda, “a mãe de Deus revela aqui a femininidade materna da mulher em seu aspecto mais simples e imediato: ‘a mulher é mais capaz do que o homem de atenção com a pessoa concreta, e a maternidade desenvolve ainda mais essa disposição’”270 . Claro que a partir da teoria dos teólogos da TL, discordamos de que a mulher desempenhe melhor essa afetuosidade, pois, a partir da emancipação da mulher, percebe-se que o homem tem desenvolvido seu caráter paterno/maternal mais efetivamente, hoje, praticamente o pai “engravida” junto com a mãe, desenvolvendo pelo filho o mesmo dom da mulher: doação, amor, ternura e isso têm a ver com o caráter recíproco entre homem e mulher e a estrutura do masculino presente na mulher e do feminino presente no homem (Anima e Animus). Considerações a respeito da posição de Bruno Forte Para Forte, o mistério de Maria está relacionado à encarnação de Cristo. Maria não pode ser desvinculada desta relação, sendo Cristo o único mediador. Entendo que Cristo também não pode ser desvinculado dessa relação, pois no jogo simbólico ambos se pertencem. Gebara e Bingemer pensam diferente neste contexto de mediação. Para elas, a partir da perspectiva antropológica, o termo mediador denuncia um esquema hierárquico, e compreendem que “na entrega da vida pelo surgimento do Reino, todos se tornam ‘raça de sacerdotes’, ou seja, toda a 267 FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 209. Ibidem. 269 Op. Cit., p. 210. 270 Op. Cit., p. 212. 268 90 humanidade se torna portadora da divindade e capaz de revelá- la”271 . Para Leonardo Boff, a mediação de Maria em seu aspecto libertador tem a ver com sua solidariedade universal, para ele “Maria e Cristo devem ser pensados como momentos de um mesmo Mistério de autocomunicação salvadora de Deus”272 . Para Forte, o extremismo mariológico desvirtua o caráter salvífico centralizado na pessoa de Jesus, único mediador. Mas, ao assumir a reciprocidade entre masculino e feminino, há uma coerência com a emancipação da mulher, no entanto, este mesmo caráter não corresponde a uma Mariologia desvinculada da Teologia da Salvação em Cristo. Enquanto a TL enfatiza o indivíduo: homem mulher, ou masculino e feminino inter-relacionado entre si enquanto pessoas, enquanto indivíduos, um não suprime o outro mas são recíprocos. E ao analisar a figura de Maria mostra seu caráter recíproco com Cristo. Uma perspectiva na linha mais “tradicional” preserva o caráter salvífico exclusivamente a partir de Cristo – só Ele é mediador. O que permeia basicamente a TL não é simplesmente uma ruptura radical com o tradicionalismo, mas uma compreensão sobre o que, de fato, significaria “Maria, Mãe de Deus” e “Jesus, Filho de Deus”, com referência à salvação (?). No contexto católico tradicional, parece que a idéia mais comumente adotada entre os teólogos, inclusive de Bruno Forte, é a de que Maria é sempre a Mãe de Deus que está submissa a seu Filho: Jesus Cristo. Mas, a partir de uma ótica libertadora, este tema passa a ser mais explorado, tendo em vista a emancipação do indivíduo dentro do projeto libertador e salvador de Deus. Como imagem e semelhança de Deus, condição que privilegia homem e mulher focalizado nas figuras de Maria e de Jesus. Sínte se do capítulo A partir da teoria do simbolismo religioso, há de se admitir que a fé se processa mediante as representações simbólicas no indivíduo coletivo e individual que se expressa por meio da linguagem. Não há fé sem símbolo, ou como expressa Eliade: “o homem mais ‘realista’ vive de imagens”273 . Não se pode dizer que os símbolos não sejam necessários, mas como afirmamos 271 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 13. BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 189s. 273 ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 12. 272 91 acima, que os símbolos fazem parte do desenvolvimento e construções sociais do ser humano. Ao pensar a figura de Maria como simbolismo religioso intrinsecamente ligado ao imaginário popular coletivo e individual, observamos que Maria é um símbolo que medeia Deus, revelando seu caráter transcendente e a essência do ser humano. Se o símbolo possui uma estrutura dialética, compete à Teolo gia, a partir de sua hermenêutica, reinterpretar o símbolo religioso acompanhando os processos evolutivos da sociedade. A Teologia não deve estar restrita aos conceitos culturais onde há deformações, degradando, no entanto, a permanente dialética do símbolo. Como imagem e semelhança de Deus a partir da perspectiva libertadora, Maria revela também o divino e ao mesmo tempo é mediadora da salvação, já que se descentraliza a salvação por meio de uma única estrutura: o masculino – Jesus. A manifestação do sagrado presente em Maria como mulher concreta revela a transcendência do divino, embora “o conhecimento simbólico não abarca nem domina adequadamente a realidade transcendente...”. E ao mesmo tempo a essência da existência humana: “o conhecimento simbólico franqueia o acesso ao caráter primordial, ideal e paradisíaco da humanidade...”274. Como imagem e semelhança de Deus, o feminino goza dos mesmos privilégios que o masculino. E se Maria, Mãe de Deus, como símbolo da fé representa a “força viva” que sustenta e nutre a fé do povo latino-americano, seu simbolismo “profético e libertador” deve servir também de salvação para a humanidade, além de consolo e abrigo. E a figura de Maria, pensada não mais em subordinação a Cristo, vai se emancipando, desvinculada dos conceitos culturais que degradam o símbolo, a figura de Maria tende a desenvolver novas reflexões. A figura de Maria como mulher concreta na teoria dos teólogos da TL constitui-se em referencial para se repensar a estrutura social e cultural do nosso continente, quer essa hermenêutica seja feita a partir do contexto de opressão, da marginalização, do masculino ou do feminino, seja como for, que promova a partir de seu olhar teológico crítico a emancipação do indivíduo. Com essa perspectiva, ao olhar para a figura de Maria, é possível perceber elementos redentores, libertadores e emancipadores do indivíduo cultural e religiosamente. Numa perspectiva mais tradicional, a figura de Maria é vista ainda dentro do mistério da trilogia: virgindade, maternidade e esponsal, no entanto, em subordinação a Cristo. Para Forte, a Teologia da salvação tem primazia, Cristo é o centro e Maria está relacionada a Ele. Mas, a partir 274 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 238. 92 da perspectiva antropológica evocada pelo amor, como sugere Forte, essa Mariologia deveria se desprender, no entanto, permanece subordinada. Assim como Cristo, Maria também se doou em prol dos planos divinos de salvar a humanidade. O amor de Maria, sua entrega, seu Fiat, não podem, então, ser desvinculados da salvação já que para ela aponta. Mas, ligado intrinsecamente à salvação, a ponto de reconhecer na figura de Maria o símbolo de Deus, a bem aventurada que será reconhecida em todas as gerações. Concluímos pois, que no jogo simbólico, o símbolo expressa adequadamente o significado transcendente de Maria, o conceito seria inadequado para expressar tamanha densidade do mistério que na acolhida humana refletia a cada dia em seu coração como poderia ser isso: a transcendência divina no limite da “humildade” do humano (Kenose). Mariologia e Cristologia seriam sistematizações dos elementos nucleadores da nossa salvação em Deus. E a fé expressaria essa sistematização por meio da linguagem simbólica que medeia o transcendente no plano da salvação. Falar de Maria é falar da mulher, como afirmam Gebara e Bingemer, mas de uma mulher concreta, que existiu. Como símbolo de Deus, Maria representa para a fé cristã não uma divindade, mas uma mulher que revela a partir da maternidade o mistério da encarnação do Verbo e a essência da existência humana. Sendo, pois, a Maternidade de Maria assumida pelos teólogos da libertação como característica de uma Mariologia libertadora, pois os títulos de suas obras assim o indicam: “Maria, Mãe de Deus e mãe dos pobres (GEBARA e BINGEMER); “O rosto materno de Deus” (BOFF) e “De Maria Conquistadora a Maria (Mãe) libertadora (DORADO), no terceiro capítulo intentamos destacar os elementos emancipadores da Mariologia para a vida plena das mulheres e/ou dos indivíduos oprimidos do nosso tempo, tendo em vista que a estrutura do feminino também é reveladora do transcendente. A partir da perspectiva de que tanto Cristo quanto Maria expressam ou medeiam o caráter divino de Deus, lançaremos um olhar linear sobre a maternidade como característica da emancipação da mulher e do indivíduo. 93 CAPÍTULO III A EMANCIPAÇÃO DA MULHER A PARTIR DA FIGURA DE MARIA Introdução Neste capítulo, a investigação consistirá em destacar os elementos emancipadores da Mariologia no que diz respeito à vida plena das mulheres275 e/ou dos indivíduos oprimidos do nosso tempo. Pensamos que a figura de Maria como referência para a emancipação do indivíduo é uma das razões pela qual alguns teólogos da TL têm se ocupado, investigando a partir de uma hermenêutica despatriarcalizada a superação da supremacia de um único modelo mediador da salvação. A partir da teoria do símbolo, compreendemos que ele medeia e presentifica Deus. No entanto, percebemos que os símbolos religiosos estão circunscritos também à própria linguagem simbólica e religiosa que influenciaram as suas interpretações durante séculos. Este capítulo está dividido em três partes, cujas abordagens pretendem-se destacar os aspectos que denotam tais elementos a partir da compreensão das análises interpretativas: 1) do Magnificat; 2) do Fiat; 3) finalmente, a linguagem religiosa. As fontes de pesquisas serão as mesmas que utilizamos nos primeiro e segundo capítulos, acrescentando no entanto, outras referências que servirão de respaldo para o desenvolvimento deste capítulo. A. Algumas barreiras para a emancipação da mulher A partir do que foi exposto nos capítulos anteriores, percebemos que o modo de ser feminino também expressa um Deus sob forma humana, assim como o modo de ser masculino. Se o conceito de símbolo implica sempre algo não completamente conhecido, isso quer dizer que 275 Sempre que usarmos o termo mulher(es) para falarmos da emancipação, neste contexto, o termo indivíduo fica subentendido. 94 parte do seu significado fica completamente alheio ao nosso entendimento, não existindo uma maneira adequada de interpretá-lo, mas aproximativa. Isso não significa afirmar que um símbolo seja portador de várias definições, ou interpretações, mas que ele “evolui” juntamente com o universo simbólico do(s) indivíduo(s), por isso ele é polivalente em sua estrutura. Neste contexto, queremos pensar a figura de Maria como Mãe/Mulher libertadora e referência para a emancipação da mulher latino-americana. Um dado importante é que a tomada de consciência do indivíduo é que o incita à busca de mudanças. E a tomada de consciência do povo latino-americano foi e é a mola mestra para o processo de transformações sociais em que vivem, aliás não existe mudança sem mobilização. E a figura de Maria, de certa forma, promove este resultado. Mas temos consciência de alguns obstáculos para que as mulheres, de modo geral, sejam “plenamente” emancipadas. Talvez um dos impedimentos para a emancipação da mulher seja alguns círculos religiosos institucionais, pois estes têm rejeitado as mudanças que a sociedade atual vem enfrentando, principalmente no que diz respeito ao movimento feminista. Talvez, isso se deva ao fato do não conhecimento das suas ideologias, ou por preconceito, ou até mesmo por acreditarem que cuidar do lar, dos filhos e do marido diz respeito à mulher e que o indivíduo deve se conformar com sua situação, pois Deus assim o quer. Não é em vão que ainda sustentam ser a mulher uma criação inferior ao homem, ela foi a autora da sedução de Adão ao pecado e, ainda, de forma menos emancipadora: que a mulher é única e exclusivamente a auxiliadora do homem, posição sustentada pela leitura errônea do livro de Gênesis. Tais pensamentos degradam a humanidade da mulher, rebaixa sua identidade e a reduz aos estereótipos de todo tipo, indignos e incongruentes. Ao nos depararmos com esta realidade, a qual consideramos arcaica e irreflexa (pois os textos de Gênesis são lidos literalmente), não podemos deixar de perceber que tais pensamentos não só retarda a emancipação definitiva da mulher como imagem e semelhança de Deus, como também prejudica o “binômio homem- mulher”, conforme explicita Dorado ao falar sobre o predomínio do machismo na cultura 276. Esta é uma dura realidade que muitas mulheres enfrentam de “mãos atadas”, pois é legitimada por uma suposta declaração “revelada” e “sagrada” de que “a mulher deve ser submissa”. 276 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 59s. 95 Porém, ainda no âmbito religioso institucional, diferente do âmbito social, este conflito é menos acirrado, pois há uma aceitação pela fé. E as mulheres em silêncio garantem ao sistema patriarcal sua permanência e hegemonia e, assim, a questão de gênero não entra em discussão, oferecendo um sistema pronto e controlado, sem conflitos e sem questionamentos, onde a palavra dada determina o que se deve pensar. Mas, felizmente, outras mulheres têm promovido o “barulho” (a quebra deste silêncio), tanto dentro quanto fora das igrejas. As buscas têm sido intensas, dizer as próprias palavras não é tarefa fácil para quem sempre acreditou que foi determinação de Deus a submissão da mulher, e as injustiças sociais como conseqüência do pecado que alguns têm que suportar em nome da fé. Neste sentido, o discurso religioso legitima o estado de opressão do indivíduo e a submissão da mulher ao homem. Mas, ao se perceber como pessoa plena, a mulher não só se identifica com a imago Dei, mas também encontra na história figuras, imagens, símbolos e mitos que reforçam e representam sua identificação divina. E é a partir do símbolo feminino representado pela figura de Maria que percebemos a necessidade de lançar um olhar que ao mesmo tempo promova e sustente a emancipação do indivíduo, não mais usando uma linguagem opressora do dominador. E isso torna-se desafios que se impõem para reformulações de novas convivências na Igreja e na sociedade, como explicita Lina Boff: As interpretações da nossa dura realidade histórica, seja de ordem estrutural, seja de ordem conjuntural e eclesiástica são outros tantos apelos que nos desafiam à criação de uma nova ekklêsia, a ekklêsia da NOVA JERUSALÉM terrena que aponta para a JERUSALÉM CELESTE277 . Paralelo a este pensamento, Gutierrez afirma que: “o processo de libertação da Igreja acontece com uma ‘ruptura com a atual situação, por uma revolução social’”278. A luta que a TL e as feministas vêm travando contra o sexismo para que a humanidade plena da mulher seja exercida, de fato, tem- nos feito compreender que o simbolismo feminino também pode ser usado como metáforas divinas. A experiência feminina faz parte da “existência ou “subsistência” de uma divindade presente no feminino e no masculino. Diz Johnson: “com isso, a mulher se torna um novo canal de linguagem em relação a Deus, e o pensamento readquire 277 278 BOFF, Lina. Maria e o feminino de Deus: para uma espiritualidade... São Paulo: Paulus, 1997, p. 42. GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 90. 96 certos aspectos fundamentais da doutrina de Deus que de outra forma passariam desapercebidos”279. Dito isto, podemos pensar na elaboração teológica em relação à Mariologia nas teorias contemporâneas da TL e da Teologia Feminista para a emancipação da mulher, particularmente a partir do Magnificat e o Fiat de Maria, mas rompendo com a linguagem patriarcal opressora. Questionamos o seguinte: em que sentido, então, a figura de Maria pode ser canal de emancipação da mulher? O que nos faz olhar para Maria e vê -la não unicamente como Mãe, Virgem e Esposa, mas também como Mulher Libertadora? 1. O Magnificat Esta palavra mágica vem carregada de conceitos, opiniões, teorias científicas, posturas éticas e libertadoras dos mais variados matizes. Na TL, por exemplo, o Magnificat expressa a ânsia de justiça, a luta pela sobrevivência e igualdade social para seu povo e mostra a pobreza e o sofrimento de uma comunidade que vivia em um contexto de total opressão e miséria devido as injustiças sociais. Aqui, a mulher Maria enquanto indivíduo percebe a sit uação de desigualdade profunda em que ela e seu povo vivem. “O canto de Maria é um canto de guerra, canto do combate de Deus travado na história humana, combate pela instauração de um mundo de relações igualitárias, de respeito profundo a cada ser, no qual habita a divindade”280 . A partir desta idéia, de que o canto de Maria revela um Deus que está ao lado dos fracos e não ao lado dos poderosos, ao lado dos pobres e não ao lado dos ricos, é que nasce no coração do povo latino-americano a consciência do seu estado de opressão com a pretensão de atingir uma sociedade mais justa, já que Deus é um Deus salvador. Este aspecto confere ao indivíduo um caráter particular de solidariedade, característica esta que possibilita a partir da união de forças e conhecimento das causas da opressão lutar contra. A teoria sugere que não devemos nos conformar com as desigualdades sociais, tampouco aceitá- las, é necessário combatê-las. As expressões da piedade Mariana na AL alcançam grande parte dos pobres e oprimidos que vêem no Magnificat o cântico de suas próprias vozes. E o papel de Maria como “Mãe Libertadora” é fruto da experiência de fé e de conscientização de sua situação de “opressão279 280 JOHNSON, Elizabeth A., Op. Cit. p. 79. GEBARA , I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 87. 97 libertação”. E, ainda, como bem ressalta Dorado, de que se constitui tarefa dos teólogos na sua elaboração hermenêutica contribuir na sua elaboração científica, tendo consciente ou “levando em conta as ‘opressões culturais’ das quais a Mariologia deve salvar-se, e das quais também Maria quer evangelizadoramente, libertar seus filhos”281. 1) Primeiro, não podemos deixar de ter em mente as lutas cotidianas (retratadas no cântico do Magnificat) que fizeram parte do dia a dia das mulheres de dois mil anos atrás e que, conseqüentemente, Maria também enfrentou. Um cotidiano marcado pelas desigualdades sociais, injustiça e opressão retratados nos gestos simples dessas mulheres e também de Maria – desde o cuidar dos filhos, fiar e tecer, à luta pelo que comer e contra a pobreza em geral. Bruno Forte, ao se referir a Maria como mulher e figura histórica, ao relatar sobre sua grandeza, declara: assim a grandeza do que aconteceu a ela não deve fazer-nos esquecer a humildade de sua condição, o cotidiano de suas fadigas na família de Nazaré, a obscuridade do itinerário de fé no qual ela avançou, os condicionamentos recebidos do ambiente que a cercava, a densidade plena e verdadeira de ter sido mulher e de ter conhecido os diferentes estados da experiência feminina: virgem, mãe, esposa282 . A este respeito, Pilar de Aquino em seu livro-tese trabalha o conceito de gênero e afirma o cotidiano como chave hermenêutica para analisar as práticas sociais e os processos de opressãolibertação283 e nos chama a atenção para um cotidiano de ações “repetitiva, contínua e sistemática”, que ligado ao “âmbito doméstico” se estende nas relações “privadas” e são estabelecidas. O âmbito doméstico é, de certa forma, o legitimador das desigualdades sociais, onde “são aprendidas as primeiras formas de convivência social, de valores e de condutas”. Mas, é claro que essas desigualdades não se restringem unicamente ao âmbito doméstico, como ressalta Aquino: “o campo de luta das mulheres deve incorporar ambas as esferas. (...) de forma a que também ‘o cotidiano privado’ seja compreendido como terreno de luta pela libertação e remonte, assim, ao caráter fragmentário que lhe tem sido atribuído”. É no cotidiano de pequenas lutas que vai se conquistando as transformações sociais, para isso é necessário que se “rompa com a inércia do cotidiano a fim de provocar modelos igualitários de relação inter-humana”. E assim, Aquino mostra na perspectiva de classe que o cotidiano permite desvelar as relações desiguais de classe, a divisão social do trabalho, as relações no âmbito do público e do doméstico, 281 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 104. FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 145. 283 AQUINO, Maria Pilar. Nosso clamor pela vida... São Paulo: Paulinas, 1996, p. 90-95. 282 98 enfim, mostra-se uma categoria importantíssima para revelar a situação de opressão das mulheres na AL. A religião, na maioria das vezes, legitima esse estado de inércia perante a minoria dominante, pois a “nossa morada está no céu”, diriam alguns. E neste sentido, ao invés de ter consciência, o sujeito torna-se alienado, conformado e mendigante da graça divina. Mas, para sair dessa inércia exige-se uma força mobilizadora que não é de um só indivíduo, mas exige uma força mobilizadora coletiva. Nesta linha, percebe-se que o Magnificat é o grito dos oprimidos, da coletividade soada na voz de Maria. O indivíduo consciente não só percebe seu estado de opressão, mas luta contra, de maneira que as mudanças aconteçam, mesmo que não sejam imediatas. Como afirma Gutiérrez: torna-se, com efeito, cada vez mais evidente que os povos latino-americanos não sairão de sua situação a não ser mediante uma transformação profunda, uma revolução social que mude radical e qualitativamente as condições em que vivem atualmente. Os setores oprimidos no interior de cada país vão tomando consciência (...)284 . Em outro momento, ao escrever sobre a “força histórica dos pobres”, Gutierrez diz que participar do processo de libertação exige não só tomada de consciência e mudança das estruturas ou revolução social, mas de um novo modo de ser homem: “é um processo que não leva apenas a uma mudança radical das estruturas, a uma revolução social, mas vai inclusive mais longe: conduz à criação permanente de um novo modo de ser homem”285. 2) Depois, o Magnificat, a partir desta centralidade da TL, vislumbra Maria como continuidade das mulheres “geradoras do povo”. Segundo Gebara e Bingemer286, “a figura da mulher não só exprime uma figura individual, mas ela é ao mesmo tempo a expressão do rosto do povo”. A exemplo de Miriam, Rute, Judite, Ester e Ana – mulheres imagens de um povo. Elas também exprimem simbolicamente “a realidade da mulher obscurecida pelos séculos de patriarcalismo”. Embora valorize o pessoal, a hermenêutica das autoras valoriza também o coletivo, pois para elas essa leitura, a partir do ponto de vista pessoal e coletivo, devolve “às narrações bíblicas a força da história que não se faz apenas a partir de indivíduos isolados, 284 285 286 GUTIERREZ, Gustavo, Op. Cit. p. 84. GUTIERREZ, Gustavo. A força his tórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 47. GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 51s. 99 mesmo se é contada mais especialmente a partir deles”. O que equivale dizer que os heróis não conquistam as vitórias sozinhos, mas que nessa conjuntura há várias outras pessoas envolvidas. Essa visão antropológica centrada nos grandes heróis “reduz a história humano-divina”, e complementam: “ora, essa visão tornaria ineficaz e secundaria a ação de milhares”. 3) Ainda na perspectiva do Magnificat, a voz de Maria denuncia com veemência que Deus destronou os poderosos (cf. Lc 1. 52). Pode-se pensar como poderosos aqueles que têm feito do sistema patriarcal a mola mestra da sociedade. Também seriam poderosos os que estão no poder e oprimem os menos favorecidos. Ou ainda, poderosos também são os injustos, os gananciosos, os egoístas e os tiranos deste mundo. E por fim, os poderosos também são aqueles que mantêm a superioridade masculina em detrimento da feminina e que reafirmam seu poder diante da penúria majoritária. Sendo assim, um Deus que esteja atrelado ao sistema de opressão não é um Deus justo e salvador. O teólogo C. Boff, ao enfocar a figura sociolibertadora de Maria, afirma, a partir do cântico do Magnifica t, que “ela é uma mulher que tem os olhos abertos sobre as opressões sociais e as denuncia com toda a coragem porque são opostos ao plano de Deus”287 . E em seu desenvolvimento histórico em vários empreendimentos, quer esteja ligada aos interesses ideológicos, políticos ou sociais, a figura de Maria está sempre voltada para o âmbito sociolibertador, pois “era invocada como protetora dos pobres e penhor de vitória”288 . Esse destaque da figura sociolibertadora, em partes, evidencia uma linha do pensamento da tradiç ão judaica, onde se acredita em um Deus libertador que age na história. E como figura que revela o divino, Maria evidencia este aspecto libertador a partir do canto do Magnificat. Já a teóloga Lina Boff289 fala do Magnificat como uma mística que revela o mistério divino, do qual ela destaca dois traços distintos: primeiro, “a mística da contemplação” – que é uma experiência voltada para a unidade, essa experiência seria a “imersão no mundo dos humilhados, dos famintos e dos que gritam por socorro”; para a fé, pois crer na “palavra que foi anunciada”; e no “deixar-se absorver por Deus que cobre de bens os pobres, socorre seu povo e presenteia toda a esterilidade com abundante descendência”; segundo, “a mística do compromisso ético” – esta experiência de libertação que sobressai no Cântico de Maria envolve a “mística do vigor” que se realiza na prática. Maria revela um Deus que age “a favor dos 287 BOFF, Clodovis. Visão social da figura de Maria– uma síntese. In: REB, fasc. 250, abr. de 2003, p. 356. Op. Cit., p. 359. 289 BOFF, Lina. A fala de Maria no magnificat aos povos ... In: Reb, fasc. 240, dez. de 2000, p. 861s. 288 100 humildes, mas contra os orgulhosos”; “a mística da eficácia” que já é “realidade libertadora” no meio do povo; “a mística do serviço solidário” é uma realidade presente no meio do povo, pois a partir do sim de Maria foi possível a encarnação do Verbo de Deus, e isso envolve a celebração da “chegada do Evangelho como Boa-Nova a partir da palavra de Jesus, como atuação libertadora do espírito e como revelação do projeto salvífico do Pai”. Ao questionar “que mística nos inspira Maria para o Terceiro Milênio?”, Lina Boff responde que o cântico de Maria de Nazaré “inspira e alimenta a esperança, seja das massas pobres e oprimidas, seja das massas excluídas ou sobrantes”290 . Entendo que podemos também encontrar nossas respostas de acordo com os nossos contextos vividos na Igreja e na sociedade. E as respostas poderão ser encontradas se formos tocados efetivamente pela mística do compromisso ético, a exemplo de Maria e Jesus. Compromisso de conscientizar e transformar o estado de opressão em que vivem as grandes massas. Pois, nisso consiste a TL291 : conscientizar o indivíduo de seu estado de opressão. Isto exposto, pode-se perceber que o Cântico de Maria revela, de certa forma, que ela tem consciência da situação em que seu povo vive – consciência social, que ela não está alheia ao que está acontecendo no meio de sua comunidade. Diante da boa nova do Reino, a voz dessa mulher não foi outra, senão de denunciar, abriu a boca e falou, mostrando que Deus quer libertar o oprimido do cativeiro da miséria e desprezo, e derrotar o opressor: “Deus com o seu braço dispersou os soberbos no pensamento de seus corações. Destituiu os poderosos de seus tronos, e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias” (cf. Lc 1. 51-53). Clodovis Boff ressalta bem a dimensão sociolibertadora que a figura de Maria revela e afirma que ela é “uma mulher de espírito libertário e mesmo revolucionário”292. 4) E esse novo modo de ser e de olhar a figura de Maria aponta para um caminho que Bingemer e Gebara sugerem como: “autonomia e originalidade próprias”293 . Em que se vejam restauradas a presença da “transcendência no homem e na mulher”. E para essas teólogas, “a transcendência não é sinônimo de vivência superior, ou extraterrena, ou para além da história, ou ainda, transcendência não é ruptura do curso dinâmico da história”294 . Isso significa que a transcendência divina revela-se na “fragilidade” humana e no seu “limite”, sem dividí- lo “em 290 BOFF, Lina, Op. Cit. Ibidem. GUTIERREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres, passim. 292 BOFF, Clodovis, Op. Cit. p. 356. 293 GEBARA , I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 14. 294 Op. Cit., p. 15. 291 101 seres superiores e inferiores”, mas ela “se manifesta em sua criatura”295 . Ao compreender a manifestação divina a partir da perspectiva humanocêntrica, o indivíduo não será objeto, mas agente de seu próprio destino. Então, não só a tomada de consciência move o indivíduo para a aniquilação da pobreza e da opressão, mas a “novidade da AL”, segundo Aquino, é a “consciência das causas que geram essa situação”296 . E ela afirma que: ao emergir a consciência da causalidade a respeito da sua condição subalterna e ao fazer audível a reivindicação à palavra e à existência, a presença da mulher obriga a deslocar o horizonte de compreensão da realidade e introduz um significado novo e distinto do que é a humanidade e seu destino297. Dentro dessas perspectivas, a conexão que se estabelece com Maria e o Magnificat para a libertação da mulher é a consciência de que as mudanças são possíveis a partir do momento em que se conhece as causas. Ao compreender-se como sujeito, a mulher passa a reivindicar “a palavra e a existência”, instrumentos de poder que têm por objetivo canalizar sua força em direção a uma prática social transformadora. O patriarcalismo “deixa de ser” em potencial uma força inabalável e permanente, para se tornar um instrumento de incentivo às lutas das maiorias oprimidas. Por isso, o Cântico de Maria pode ser considerado, como definem Gebara e Bingemer, de “síntese da alegria e da esperança do povo no passado, no presente e no futuro”298 . Ainda neste contexto, Leonardo Boff define a figura de Maria como “modelo dos anelos de libertação dos oprimidos”299 . A partir da encíclica de Paulo VI, que sublinha a figura de Maria dentro de uma dimensão libertadora, retratando-a como uma mulher promotora da justiça, Boff situa o Magnificat a partir de dois contextos: primeiro, o “contexto espiritual” – situado “na mesma atmosfera e é cantado no mesmo espírito em que se encontra a mensagem libertadora do Messias. É um prelúdio do anúncio do Reino de Deus...” E de um Deus que se revela como santo. Boff define santo como “aquele que está para além de tudo quanto pudermos pensar e imaginar”. E esse Deus santo ele define também como miseri-cor-dioso que “ouve o clamor do esmagado”300. 295 GEBARA , I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 15. AQUINO, Maria Pilar, Op. Cit. p. 68. 297 Idem, p. 60. 298 GEBARA , I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 87. 299 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 200. 300 Op. Cit., p. 202. 296 102 Um outro contexto é a “dimensão libertadora do Magnificat de Maria”301 , que revela em seu ventre “o princípio de toda sanidade e libertação”. O júbilo de Maria retrata o quanto ela está alegre pelo feito do Senhor no meio dos povos. Boff explicita que esta alegria não é vazia, e em nota de rodapé esclarece que o “primeiro verso do Magnificat evoca o tema, freqüente no AT, da salvação dos aflitos e da restauração de Sion. Esta restauração de Sion, entretanto, era considerada como a libertação do resto aflito e humilhado de Israel” 302 . A dimensão libertadora do Magnificat, segundo Boff, revela também a misericórdia de Deus em consonância com o desenvolvimento da história humana, não é algo descompassado e: ela assume formas históricas e se concretiza em gestos transformadores do jogo de forças. Os orgulhosos, os detentores do poder e os ricos não possuem a última palavra como sempre pretendem. Sobre eles já se manifesta, historicamente, a justiça divina303 . 2. O Fiat Quanto ao Fiat de Maria, resposta positiva à solicitação divina, acolhida sem reservas, solidariedade humana e caminho para a Encarnação do Verbo de Deus no mundo e tantas outras releituras que são feitas, além do pensamento dogmático “tradicional” da Igreja, libertando, entretanto, a figura de Maria do cárcere da “Dogmatização da Virgindade Eterna” como processo meramente biologizante, que deve ser seguido por “todas” as mulheres (principalmente as mulheres cristãs). Ao ser confundida com conteúdo moral ascético, a virgindade apresentou-se em primeiro lugar “como abstinência sexual ou ‘pureza’, que as mulheres devem manter ou por toda vida – do contrário elas se tornariam prostitutas! – ou pelo menos até o casamento – a fim de que o varão possa estar seguro de ter esposado uma mulher intata, intacta”304 . Essa acolhida, ao contrário do Magnificat que se revela de maneira paradoxal305 , um Deus que age a favor de seu povo e é contra quem os oprime, “o Fiat pronunciado ao anúncio do mensageiro pela serva do Senhor (Lc 1. 38) abre as portas à irrupção do Espírito que inaugura, na 301 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 205. Ibidem. 303 Idem, p. 206. 304 EICHER, Peter. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p. 530. 305 Ver maiores detalhes sobre o paradoxo do canto de Maria, em Gebara e Bingemer, 1987, p. 192-197. 302 103 história humana, a plenitude dos tempos (cf. Gl 4. 4) e a Nova Criação”306 . E esse novo povo traz consigo a marca libertadora, que por meio da figura dessa mulher em sua total entrega aos planos redentores de Deus, nos torna também participantes da graça. E ainda, a humanização do próprio Deus. Um dos sentidos teológicos que Leonardo Boff discute sobre a virgindade de Maria é o fato de Deus ter desejado para si mesmo nascer de uma virgem. Ao dizer sim, Maria permite que Deus se auto-realize 307 . E essa auto-realização reside no fato de Deus tornar-se humano mesmo – Deus conosco! Embora a elaboração dogmática católica favoreça a Maria um lugar na economia da Salvação, na verdade, a Igreja não favoreceu a despatriarcalização do seu sistema hierárquico, por isso, a figura de Maria em alguns círculos católicos permanece estereotipada como Virgem, Mãe e Esposa – modelo da mulher ideal, sobressaindo seu aspecto maternal ainda de maneira dogmática. Ela é a mãe do Salvador e está subordinada a Cristo, modelo do crente fiel e da Igreja 308 . Essa descentralização vem por parte das Cebs – “um novo modo de ser Igreja”, terreno fértil para o povo oprimido que emprega suas esperanças em Maria de maneira libertadora. “Maria foi e é também a concretização de um projeto acontecido no meio dos pobres. O projeto de uma humanidade nova que vai sendo gestado com carinho e paciência pelo Deus Criador”309 . Gebara e Bingemer ressaltam ainda a importância que o Concílio Vaticano II dedicou à maternidade de Maria na elaboração do seu documento: a Constituição Dogmática Lumen Gentium, que tem em conta “a dimensão soteriológica dessa maternidade”, que abrange muito mais que uma relação entre Maria e o Verbo Encarnado, “mas pelo significado que essa maternidade dá à salvação humana como um todo”310. Devido a sua complexidade, os dogmas marianos vêm sendo estudados cuidadosamente a partir de uma práxis libertadora e não opressora. Nesta compreensão, nossos autores básicos clarearão esta nova perspectiva no que diz respeito ao Fiat. Neste sentido, esta reflexão é conduzida tomando emprestado os olhares da TL, tendo em vista as novas leituras no que diz respeito aos dogmas marianos, os quais procuram ver restaurada na prática a emancipação da mulher. 306 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 192. BOFF, Leonardo, op. cit. p. 163. 308 Constituição dogmática do concilio ecumênico vaticano II sobre a igreja. 18ª ed. p. 55-62. 309 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 185. 310 Op. Cit., p. 114. 307 104 Nas análises da TL os dogmas ganham outros matizes, a saber: que a virgindade não é uma virtude moral. Segundo as análises de Leonardo Boff, no AT e NT a virgindade não tinha nenhum valor: “a virgindade biológica, como se depreende, não encerra, biblicamente, nenhum valor. Mas ela pode ser o suporte para um valor inapreciável de humildade e disponibilidade à vontade de Deus”311 . Neste sentido, a Teologia mais conservadora concentrou seus olhares no aspecto da moral e do sobrenatural e deixou de atentar para o fato de Maria ter sido uma mulher concreta e humana. Embora B. Forte seja de uma linha conservadora, ressalta alguns aspectos (libertadores) da natureza de Maria, afirmando que a maternidade acontece na sua pessoa concreta: Maria é mulher: esse dado não é em nada indiferente à revelação do mistério humano, oferecida nela. Se é verdade que na sua virgindade se reflete a vocação originária do homem segundo o projeto de Deus, não é menos verdadeiro que isso se verifica historicamente numa figura feminina concreta312 . Para Gebara e Bingemer a virgindade de Maria a partir dos evange lhos e tentando, como dizem as autoras, se libertarem de “todo reducionismo biologizante ou psicologizante”, declaram: não se trata, pois, de um dado antropológico que se passa, intimistamente, entre Deus, uma mãe e seu filho. Mas que a concepção virginal de Jesus em Maria abre para homens e mulheres de todos os tempos e de todas as épocas a perspectiva de um novo nascimento313. Leonardo Boff afirma que “a grandeza de Maria não reside no fato de ser virgem, mas no fato de ser a mulher escolhida para receber em seu seio o Verbo humano. Como mulher poderia ser desposada ou virgem”. E esta virgindade aponta para uma nova humanidade livre do “pecado e da morte”314. Diante dessas teorias, o que o Fiat de Maria revela de novo? As discussões que giram em torno do Fiat de Maria pelos teólogos da TL ressaltam a responsabilidade e autonomia dessa mulher, inclusive Bruno Forte reconhece que Maria foi uma mulher concreta, ressaltando seu aspecto humano e que ao responder sim, Maria respondeu com 311 FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 151. Op. Cit., p. 179. 313 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 121. 314 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 153 -154. 312 105 “todo seu ‘eu’ humano e feminino”315 . E é na humanidade de Maria que o mistério divino se revela e ela passa a compreendê- lo, “meditando em seu coração”, e dela emerge um novo povo, um novo começo, uma nova realidade para a mulher, que é capaz de assumir junto com Deus a salvação do mundo. Deus assume o feminino, e esta feminilidade torna-se realidade para Deus, que se humaniza. Ao se auto-realizar, Deus assume a dor e o sofrimento humano em sua carne, que é a carne da própria Virgem, da própria mulher-Maria. Por isso, longe de ter sido um SIM como submissão alienante, ao contrário, simbolicamente representa a solidariedade de Maria à humanidade, como afirma Leonardo Boff: “ela se solidariza com toda a humanidade fiel que suspirava por uma libertação”316 . Sua entrega livremente a Deus sublinha de modo especial uma ligação com Deus, e L. Boff atribui essa ligação de Maria por meio do Fiat à encarnação, que para sempre “terá uma dimensão feminina e marial; nela o feminino é inserido em Deus”317. Gebara e Bingemer reforçam esta mensagem, afirmando que “a relação entre Maria e Jesus não é apenas a da maternidade e da filiação, mas ambos são sinais e presença viva do novo povo de Deus, daquele que supera os laços da carne e se faz família no mesmo Espírito Santo”318 . Estes aspectos são traços que a tradição Mariana não tematizou, ao contrário, a figura de Maria sempre esteve atrelada especificamente aos aspectos de natureza transcendental e subordinada a Cristo. E essas qualidades foram adotadas como caminho de pureza e acesso a Deus. Mas, simbolicamente, a figura de Maria em potencial não só representa os aspectos da transcendência divina, como também aspectos da nossa humanidade em relação a Deus. Ela é uma mulher de carne e osso mesmo, um ser humano com todas as ambigüidades que lhe são inerentes, mas onde o divino se revela. Em suma, se um símbolo religioso para a fé tem de ser desprovido de suas características humanas, ou melhor dizendo: antropológicas, ou seja, o símbolo tem de estar intrinsecamente inseparável de seu aspecto transcendental para ser divino, Maria atende a esses dois aspectos: humano – simbolizando “o começo da humanidade divinizada”319 ; e divino – pois está vinculada à verdade da humanidade de Deus, verdadeiramente Deus (‘vere Deus’), e que o Filho de Deus é 315 FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 179. BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 193. 317 Ibidem. 318 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 87s. 319 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 146s. 316 106 o Filho de Maria, verdadeiramente homem (‘vere homo’)”320 . Por isso, os aspectos de Virgem, Mãe, e Esposa, que poderiam ser lidos numa perspectiva antropológica para a libertação do indivíduo diante de Deus, não o é na Teologia conservadora. Ao contrário, Maria está subordinada a Cristo e seu simbolismo é interpretado a partir de uma realidade metafísica, negando seu aspecto humano concreto. A virgindade de Maria vista apenas do ponto de vista biológico obscurece a pertinência da reflexão teológica em sua profundidade e amplitude. Portanto, na prática a Teologia precisa diluir os preconceitos e as ultrageneralizações, até mesmo do “puro positivismo teológico que afirma simplesmente fatos brutos e pede o assentimento da fé”321. Mas, o que podemos observar a partir dos teólogos e teólogas da TL é que a virgindade, ou mais especificamente a maternidade de Maria, está intrinsecamente relacionada à encarnação de um Deus que é libertador dos pobres e oprimidos. Como percebemos, a virgindade era motivo de desprezo para uma mulher, o ma is importante era o concebimento de um filho. Ao contrário de ter sido uma resposta passiva, que retrata de certa forma, em algumas interpretações a subordinação da mulher, a virgindade de Maria está relacionada à sua experiência maternal, a qual fez parte de uma opção livre e revela o aspecto feminino da divindade. O seu SIM foi muito mais que representativo de uma submissão alheia e passiva. Em Maria a maternidade divina só se realiza depois de um consentimento livre e consciente. Neste aspecto, podemos ressaltar que esta livre escolha expressa as potencialidades da identidade de uma mulher que se entregou aos desígnios divinos sem perder sua identidade. Para Gebara e Bingemer, “a obediência de Maria ao projeto de Deus vai aliada à sua rebeldia a tudo que se opõe a esse projeto...” e ainda: “... é canal tanto do SIM de Deus ao povo como do NÃO de Deus às forças que impedem esse mesmo povo de viver a Aliança com seu Deus”322. Fazendo um paralelo com Gênesis no ato da criação, em que Deus a partir de sua palavra cria vida: “Haja!”. Diferentemente do ato da criação, Deus espera um sim, e Maria diz: Fiat (faça-se!). A Encarnação do Verbo divino só acontece com a livre permissão humana de uma mulher, Deus não poderia trazer à existência seu Filho sem esta permissão, caso contrário, anularia a autonomia e a liberdade dessa mulher chamada Maria. 320 FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 187. BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 153. 322 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 190. 321 107 Uma outra leitura que Gebara e Bingemer fazem do Fiat é no contexto do evangelho de S. Lucas, a partir da boa nova. Para elas, entre os evangelhos, Lucas é quem relata “ao mesmo tempo a boa-nova de Jesus e a boa-nova de Maria, numa complementariedade profunda, em íntima relacionalidade”323. E esta boa- nova é “bordada” de maneira diferente neste evangelho, apresentada sob nova luz, que elas denominam de “momento poético”. Expresso neste contexto de complementariedade e de relacionalidade, Lucas elabora sua Teologia, da qual as autoras salientam apenas os aspectos para a elaboração da Teologia Marial, que incluem três partes: a Anunciação, a visita de Maria a Isabel e o parto de Maria. Destacaremos apenas a primeira parte: a Anunciação. A Anunciação a Maria (Lc 1. 26-38) que “segue o estilo religioso literário das teofânias, manifestação de Deus na vida do povo”, para essas teólogas, Maria é a figura que representa o povo na acolhida da ‘revelação’ divina e de sua gestação. Lucas faz exatamente uma releitura do AT com fatos novos, ao mesmo tempo em que há uma ligação entre o AT, há também uma passagem e é a figura de Maria que retrata este novo povo, povo fiel, “povo virgem, não vendido aos ídolos, não cúmplice das injustiças”, do qual Deus se faz presente conosco, Emanuel. E ao retratar essas maravilhas de Deus que acontece no meio do povo, o que “leva Lucas a colocar na boca do anjo a saudação a Maria: ‘Ave cheia de graça’, para Gebara e Bingemer Lucas está pensando em Sofonias: ‘O Rei de Israel está no meio de ti’ (Sf 3. 15b). ‘Filha de Sião, solta gritos de alegria. Israel solta gritos de júbilo’ (Sf 3. 14)324 . E ainda, “o sentido profundo do ‘Faça-se em mim’ não pode ser desligado e nem isolado da realização da palavra do Senhor ao longo da experiência vétero e neotestamentária”325. Sendo assim, podemos concluir, em concordância com nossas teólogas e teólogos, que Maria faz parte da mediação universal juntamente com Jesus. A exclusão de Maria do plano mediador, que Leonardo Boff define como “preocupação quase neurótica”, acontece historicamente em algumas confissões protestantes que saíram da Reforma, e Boff considera que esta exclusão deve ser “compreendida dentro das condições cult urais do mundo moderno, profundamente marcado pela tendência masculinizante”326 . E a supervalorização masculina e a rejeição da figura de Maria como símbolo de Deus enfraquece ou inviabiliza a compreensão da 323 GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 79. Op. Cit., p. 80s. 325 Op. Cit., p. 84. 326 BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 191. 324 108 Encarnação de Deus no meio de nós. Por isso, ao propor uma antropologia que supere esta centralização no homem- macho, Gebara e Bingemer rompem com o modelo único de salvação que é Cristo, e afirmam que Deus nos salva “através da realidade masculina e feminina constitutivas do humano”327 . 3. A linguagem religiosa Um outro ponto da nossa reflexão situa-se no contexto da linguagem religiosa, pois, entendemos que ela revela toda a complexidade que gira em torno dos símbolos. Maria nasceu em um ambiente totalmente patriarcal, onde o uso da linguagem se processava de maneira sexista. A subordinação de Maria a Cristo ao longo dos séculos ressalta de maneira singular esse modo de ser da linguagem patriarcal e sexista. Mas ao dizer sim, Maria rompe o esquema patriarcal operante e nos abre a possibilidade de ver além, de compreender o mistério divino revelado na carne humana de uma mulher, a partir de uma perspectiva feminina. Johnson, em seu trabalho Aquela que é, realiza uma pesquisa teológica e trabalha a construção da linguagem como instrumento para analisar o mistério de Deus. Ela relata suas análises sobre a linguagem religiosa acerca de Deus, de que não existe uma maneira correta para se relacionar com Ele, mas que esta linguagem constitui-se em expressividade de uma comunidade de fé, que por sua vez “modela de forma profunda a identidade incorporada à comunidade e orienta a sua práxis”328. Para tanto, a autora parte de algumas questões iniciais como: qual é a maneira correta de se falar de Deus? O Deus da tradição judaica e cristã é realmente tão verdadeiro, a ponto de ser capaz de levar em consideração, iluminar e integrar a experiência atualmente acessível à mulher?”. Johnson pensa, ainda, que há parcialidade na linguagem cristã, mesmo que se entenda que Deus não é somente Pai, mas que é Mãe também, contudo a expressão Mãe raramente é utilizada, quer dizer, nunca é utilizada. Deus é Pai! E a linguagem cristã está profundamente ligada a esse conceito. E o predomínio da linguagem sobre os símbolos demonstra esta predominância e não valoriza a humanidade da mulher: “a linguagem cristã que herdamos em relação a Deus evoluiu 327 328 GEBARA, I. BINGEMER M.C., Op. Cit. p. 48. JOHNSON, Elizabeth, Op. Cit. p. 18. 109 dentro de uma estrutura que não valoriza a humanidade singular e igual da mulher e traz consigo as marcas desta parcialidade e desta predominância”329 . Por isso, que o objetivo da Teologia cristã da libertação feminina “é a reflexão sobre o mistério religioso a partir de uma posição que faz uma opção à priori para a promoção humana da mulher”330 . Para Johnson, “situada à margem, a Teologia feminista da libertação da mulher observa com clareza que a sociedade e a Igreja estão impregnadas de sexismo, com os seus semblantes gêmeos do patriarcado e do androcentrismo”331, os quais a autora considera como pecado social. Consideramos que esse pecado social nega a liberdade, a expressividade, a participação e a redenção para a humanidade a partir de uma figura feminina. Pecado que oprime as mulheres, os menos favorecidos e os marginalizados em geral. Claro que não se pretende eliminar as polarizações, exaltando o feminino, mas que o feminino seja também símbolo representativo da fé para pensar o divino no seu mais profundo mistério. A linguagem é a maneira que dispomos para expressar os pensamentos e os sentimentos, por isso, não estamos isentos de sermos envolvidos pelos conceitos determinantes e determinados da cultura ou pela tradição da qual fazemos parte, muito menos de fazer uso de uma linguagem construída pela sociedade e pela religião. No âmbito religioso, a linguagem é tida como sagrada e, por isso, legitimada pela “revelação divina”. Sendo assim, a linguagem atribuída a Deus, ainda, tem uma relação de gênero, um significado que se expressa unicamente no universo simbólico do patriarcalismo. Pois, Deus é homem e tem um Filho homem – único Salvador, que é Jesus. Pensamos, então, que a linguagem legitima a opressão da mulher ainda nos dias atuais devido seu caráter sagrado. A quebra de paradigmas dessa única forma de falar de Deus é o caminho para que a figura de Maria encontre na Teologia o espaço para a interpretação dos fatos acontecidos nela, ligados à salvação. Porque se Maria existiu em um ambiente patriarcal, como mulher seu simbolismo e as construções ideológicas a seu respeito giraram em torno das ideologias culturais da época vigente. Por isso, é preciso, como sugere Leonardo Boff, que se “despa triarcalize” esta linguagem, que se rompa com os conceitos e estereótipos culturais, que haja mudanças nas estruturas sociais, nos relacionamentos mútuos, nas posições dogmatizantes e nos modelos exclusivistas. 329 330 331 JOHNSON, Elizabeth, Op. Cit. p. 35. Op. Cit., p. 37. Op. Cit., p. 39. 110 Os estudos que Johnson e outras teólogas vê m desenvolvendo tem esse objetivo, mostrar que “o sexismo se manifesta através de estruturas sociais, nas atitudes e na ação das pessoas, entrelaçadas no domínio público e particular”. E a crítica que Johnson faz sobre o uso da linguagem não é simplesment e porque Deus está circunscrito às “metáforas masculinas”, “mas pelo fato de serem esses termos masculinos usados com exclusividade, literal e patriarcalmente”332. Existe uma linguagem determinada religiosa e historicamente do papel da mulher e, portanto, determinante dos conceitos vinculados a ela. A figura de Maria é um exemplo claro do uso “conceitual” da linguagem: Virgem, Mãe e Esposa. Esses conceitos aludidos a Maria, e estendidos às mulheres de um modo geral, subjugaram- na a um papel de esposa, mãe e rainha do lar, deformando, então, o que a mulher realmente deveria (ou deva) ser. Embora a figura de Maria não pressuponha essa relação de dependência e submissão da mulher ao homem, pois em um momento da história ela teve um significado válido para a fé de um determinado povo que não foi aprisioná-la nesta moldura, mas são as interpretações que lhe foram dadas que contribuíram significativamente para que a mulher ficasse no prejuízo, subalterna e inferior ao homem, prejudicando, no entanto, sua emancipação religiosa e culturalmente falando. É o que Johnson lembra a respeito do pensamento de Rosemary Ruether: “... se o próprio conceito de ‘feminino’ empregado para definir a essência da mulher histórica concreta não é uma criação do patriarcado, útil enquanto relega a mulher ao domínio privado e ao papel de auxiliar do homem”333. A linguagem tem grande influência na religião e na crença do indivíduo, a maternidade latino-americana, por exemplo, está estritamente atrelada aos conceitos culturais. Ao falar do machismo e maternidade no contexto social latino -americano, Dorado mostra o quanto implica a supervalorização do homem neste contexto, o macho “é estimado por sua dureza e coragem”, é sagaz, possui autonomia, no lar ele é o rei, é ele quem manda, não realiza t rabalhos domésticos, e os filhos são trabalho da mulher, ele (o macho) apenas se preocupa “de que os filhos homens também cheguem a ser ‘machos’, e que as filhas cheguem a ser a mãe ideal, que está latente no fundo de seu mundo cultural” 334. Neste sentido, a mãe passa a ser o “símbolo do lar”, onde os filhos e o marido encontram: carinho, compreensão, paciência e tolerância. Projeta-se para a 332 333 334 JOHNSON, Elizabeth, Op. Cit. p. 45s. Op. Cit., p. 89. DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 58s. 111 Virgem Maria essas mesmas características, que passa a ser vista como a mãe pronta a atender as necessidades de seus filhos, ela é protetora, consoladora, amorosa e compreensiva. Um outro exemplo da influência da cultura nos relacionamentos e na religião é a cultura camponesa, onde fica estabelecida uma relação entre a mãe e a terra. Com relação a Maria, não é sem referência que ela é considerada “Nossa Mãe”, como afirma Dorado: quando o povo diz ‘minha mãe’ ou ‘nossa mãe’ está fazendo uma referência concreta a esta original maternidade que, por sua vez, constitui uma peça privilegiada da estrutura cultural a que pertence (...) É nesta maternidade – e não em outra – que aparece pela fé a maternidade de Maria. Dela o povo diz com alegria e esperança que é ‘minha Mãe’, ‘nossa mãe’, com toda a ressonância cultural com que o Filho latino-americano o diz de sua própria mãe335 . Felizmente, ultimamente este quadro vem sofrendo transformações e sendo denunciado. A mulher tem buscado maneiras mais igualitárias, rompendo assim, com o machismo predominante na cultura. Ao usar a palavra Deus para expressar a experiência da mulher a novas direções, associada com “metáforas e valores provenientes da experiência da própria mulher”, Johnson está dizendo que essa linguagem em “relação a Deus/Ela” pretende ser inovadora no sentido de produzir uma nova reflexão e “um novo conteúdo para a referência à divindade, na esperança de que este modo de se expressar possa ajudar a sanar a imaginação e a libertar as pessoas para novas formas de comunidade”336. As análises de Johnson têm em conta a linguagem padrão do patriarcado no uso das metáforas femininas, por isso, não é simplesmente uma crítica ao uso da linguagem padrão, mas suas análises contribuem para afirmar que: • Primeiro, mesmo quando se usa uma linguagem em relação a Deus destituída do gênero, “a correção da linguagem androcêntrica apenas em nível do conceito não é suficiente”337 . É preciso que esta linguagem seja utilizada a partir dos “símbolos femininos relacionados com o mistério divino”338 destituindo a exclusividade da metáfora masculina e restaurando a integridade e a identidade da mulher. 335 DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 64. JOHNSON, Elizabeth A., Op. Cit. p. 73. 337 Op. Cit., p. 76. 338 Op. Cit., p. 77. 336 112 • Segundo, “o símbolo do ídolo patriarcal está se partindo, enquanto surge uma série de outros símbolos. Entre eles, estão os símbolos femininos para o mistério divino”339. Neste caso, consciente de que o simbolismo feminino é imagem e semelhança do divino, as mulheres começam a utilizar metáforas femininas para apontar o mistério divino, destituindo o exclusivismo masculino. • E terceiro, “mesmo com a inclusão de características presumidamente femininas, o padrão androcêntrico irá manter-se firme”340. O símbolo feminino é suficientemente capaz de revelar o mistério divino e quando adiciona a este mistério características ligadas ao papel maternal da mulher: amabilidade, paciência, ternura, dentre outras, traz exclusivamente benefício ao caráter de um Deus Pai temível e terrível, amenizando seu caráter opressor. Johnson é contundente ao afirmar que esta inclusão apenas fortalece a predominância do padrão androcêntrico e recusa esta inserção de “qualidades” predominantemente ditas femininas. O importante é se referir “às características femininas de Deus”341 , sugere Johnson. Caso contrário, ao se falar de um Deus com características femininas: “nessa maneira de falar de Deus, continua sendo Pai, porém de certo modo, fica amenizado pelo ideal feminino, de tal forma que os fiéis não precisam temer ou rebelar-se contra um paternalismo opressor”342 . Neste sentido, pensar a imagem do divino em símbolos femininos, e não simplesmente adicionando características femininas, ajuda a dirimir o caráter androcêntrico da divindade e ao mesmo tempo revela no símbolo concreto sua polivalência, que Haight acredita que, por possuírem caráter polivalente, os símbolos não se submetem a conceituação 343 . Essa característica conferida ao símbolo, deve atinar a mente a novas interpretações. Neste sentido, ao olhar a figura de Maria livre dos conceitos e construções sociais do patriarcado, isso possibilitaria uma leitura emancipadora da mulher designada como bem aventurada, ressalta Johnson: 339 JOHNSON, Elizabeth A., Op. Cit. p. 79. Op. Cit., p. 81. 341 Ibidem. 342 Ibidem. 343 HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 32. 340 113 isso acontece quando a realidade concreta e histórica da mulher, ratificada por Deus como bem-aventurada, funciona como símbolo na linguagem em relação ao mistério de Deus. A linguagem é informada pela particularidade da experiência da mulher transmitida pelo símbolo 344 . Esta experiência concreta que o símbolo revela, transmite a particularidade do símbolo livre dos conceitos, por exemplo, a virgindade de Maria não seria interpretada apenas biologicamente, mas apontaria, como sugere Boff, a uma outra verdade revelada neste símbolo, que ajuda a “decifrar dimensões do mistério de Deus, nos ajudam também a decifrar dimensões de nosso próprio mistério”. Então, para ele “a virgindade cristã não é apenas reserva para Deus; é principalmente missão para os homens em nome de Deus”345. O rompimento com a linguagem androcêntrica e sexista possibilita a leitura do simbolismo religioso de maneira inclusiva e não exclusivista, assim sendo, a figura de Maria pode ser interpretada como símbolo da manifestação de Deus, de um Deus que em sua essência é também feminino. Para isso, é necessário que os textos sagrados não sejam tomados radicalmente como revelação divina única e estanque, é necessário que se assuma uma postura crítica diante desses escritos. Isso nos fará enxergar a união dos tecidos e a linha que os liga, e a partir dessa linha formar novas costuras, novos cortes, ainda que sejam utilizados os mesmos tecidos. Quando se fala de uma “pertinência teológica do feminino” como imagem e semelhança de Deus, isso implica dizer que o feminino também faz parte dessa costura, desse fio que une homem e mulher a Deus. E compreender esse componente essencial, de uma certa “igualdade criacional do varão e da mulher” é acreditar em um Deus que se manifestou simbolicamente no masculino e no feminino. Ao se utilizar a imagem feminina para descrever a experiência cristã de Deus, é assumir também que não há uma certa exclusividade em Deus se revelar nos moldes unicamente masculino. Em suma, entendemos que as imagens masculinas e femininas podem ser, como bem ressalta Johnson, empregadas para indicar o mistério divino, embora o mistério divino na expressividade das estruturas feminino e masculino não seja adequado, no entanto a personalidade de Deus “transcende a ambos de forma inimaginável” 346 . O importante é que o 344 JOHNSON, Elizabeth A., Op. Cit. p. 79. BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 162. 346 JONSON, Elizabeth A., Op. Cit. p. 90. 345 114 modelo antropológico único seja descentralizado, considerando a diversidade como característica do símbolo, ou seja, sua polivalência. Síntese do capítulo A TL revela traços significativos a partir da figura de Maria para a emancipação da mulher e para uma Teologia Marial paralela à Cristologia. Embora algumas barreiras pareçam contribuir para a submissão sempre e permanente da mulher, legitimada pela suposta revelação divina, contudo a partir da descentralização da figura de Jesus como único mediador e do masculino como centro da revelação divina e superior ao feminino, se superará o caráter androcêntrico da revelação. Mulheres e homens serão imagem e semelhança de Deus. Cristo e Maria figuras simbólicas que manifestam o mistério divino. O Magnificat como expressão da boa nova do reino de um Deus que se manifesta ao lado dos pobres e oprimidos, sustentará a esperança do povo latino-americano nas buscas de novas formas de convivências na Igreja e na sociedade. Este povo não só se conscientiza do seu estado de opressão como também toma conhecimento das causas e se mobiliza para combatê- las. O Fiat mostra que a figura de Maria assume uma postura não de submissão, mas de autonomia e de solidariedade. O Deus libertador respeita a individualidade e decisão da mulher diante de sua solicitação. Ao ser exaltada como figura totalmente resignada à vontade divina, dando ênfase a seu aspecto moral e modelo da mulher ideal, a figura de Maria não promoverá a emancipação da mulher nem na cultura nem na Igreja. Ao questionarmos em que sentido a figura de Maria pode ser canal de emancipação da mulher, pensamos que isso só será possível a partir de novas leituras dos dados referentes à fé ligados a ela, como por exemplo seu Fiat e o Magnificat; quebrando os paradigmas e destituindo o modelo masculino do centro da “revelação divina”, que histórica e culturalmente vem contribuindo para aprisionar a mulher nos esquemas patriarcais por meio de uma linguagem estritamente sexista. Ao pensar o cântico de Maria como combate pela instauração de um mundo de relações igualitárias dentro do projeto do reino, onde mostra um Deus que se manifesta ao lado dos pobres e oprimidos e não ao lado dos ricos e poderosos, o povo latino-americano toma consciência do 115 seu estado de opressão e busca uma sociedade mais justa. Neste mesmo sentido, o Fiat de Maria não está atrelada exclusivamente ao aspecto virginal e maternal, mas é amplamente pensado, revelando a autonomia e a identidade de Maria. Ao dizer sim, ela rompe com o esquema patriarcal operante e nos abre a possibilidade de ver além e de compreender o mistério divino revelado na carne humana de uma mulher. Destacamos também que Maria pode ser canal de emancipação da mulher a partir do momento que se rompa com a linguagem androcêntrica e sexista. Ainda subordinada a Cristo, a figura de Maria não promoverá a emancipação da mulher, mas só será possível se se romper com esta linguagem que se revela sexista e situada no âmbito patriarcal. Olhar para a figura de Maria rompendo com os conceitos culturais contribuirá indelevelmente para desarraigar dos conceitos culturais o significado do seu simbolismo religioso opressor. Considerações pessoais Ao analisar a figura de Maria como modelo para a emancipação da mulher, compreendemos que ao contrário de uma mulher alheia e submissa, Maria revela-se como uma mulher consciente de seu papel na sociedade que se mostra opressora. A maternidade de Maria foi algo que ela pôde optar em ser mãe ou não. Podemos, então, questionar se ser mãe hoje não seria também uma questão de opção para muitas mulheres, principalmente aquelas que vivem em extrema pobreza, levando em consideração os vários métodos contraceptivos que permitem que a mulher decida por uma gravidez mais tardia. A incidência da maternidade tem ocorrido ultimamente entre as adolescentes, o que a nosso ver, é um fato que prejudica a emancipação das mulheres, pois essas jovens, ainda não conscientes de seu papel na sociedade, crescerão dando continuidade a um tipo de mulher voltada para cuidar dos filhos, do lar e do marido. Ou talvez, quem sabe mulheres mais independentes, já que a maioria delas criarão sozinhas os filhos. Afonso Murad concorda que “... a maternidade tem cada vez mais condições de ser opção e não destino ou fatalidade”347 . É claro que em um país subdesenvolvido, a pobreza atrelada à falta de informação e de meios que possibilitem às 347 MURAD, Afonso. O que Maria tem a dizer às mães de hoje. Paulus: São Paulo, 1997, p. 33. 116 jovens/adolescentes tomarem consciência que uma gravidez precoce é inviável, isso contribui significativamente para a formação de um povo cada vez mais pobre. A pobreza é o mal do nosso século, e cada vez mais crescente a gravidez precoce arrasta a cada dia o contexto da AL para a pobreza. É claro que a gravidez precoce do pobre não é a causa da pobreza e das desigualdades sociais, não é isso que estamos a defender. Sabemos que as causas estão nas estruturas governamentais, econômicas, políticas e sociais de nosso país. Não defendemos também que o pobre não tenha o direito de nascer, mas como bem colocou Murad: “ser pobre é não ser, pois o empobrecimento despoja a pessoa de sua dignidade mínima e dificulta a formação de sua identidade psicoafetiva e da consciência da cidadania”348. E mais, ser pobre é não ter subterfúgios para a própria sobrevivência, menos ainda para um ser totalmente dependente. Como também observamos, se para Gebara, Bingemer e Leonardo Boff, o feminino na figura de Maria, ou a figura de Maria no feminino constitui-se caminho do homem para Deus, ou caminho para a salvação, a TL nos coloca de frente com questões não refletidas pela Teologia conservadora (ou tradicional). Tal influência contribuirá significativamente para a emancipação da mulher, a libertação do indivíduo diante das exclusões gritantes do racismo, sexismo, subordinacionismo da classe pobre e a própria marginalização nas diversas áreas da sociedade. É claro que a TL não é a “salvação” das causas mais profundas que afetam a sociedade e a Igreja, mas suas contribuições ante tão grandes desafios são válidas. Pois, o que ela promove não é simplesmente a conscientização do indivíduo, mas a tolerância religiosa e individual, novas formas de convivência, respeito mútuo e cidadania. 348 MURAD, Afonso, Op. Cit. p. 46. 117 CONCLUSÃO As teorias da libertação pelas quais optamos, no que diz respeito à figura de Maria, trazem uma contribuição importante para o pensar teológico: a inclusão do feminino como nova chave interpretativa do mistério divino. São concepções que contribuem para repensar a figura de Maria sob novo prisma. Essas novas reflexões têm suas teorias voltadas para a emancipação do indivíduo, consciência do seu estado de opressão e conhecimento das causas que os oprimem e a relação entre teoria e práxis. É no contexto da AL que a reflexão sobre a figura de Maria torna-se um caminho alternativo para refletir ao mesmo tempo sobre o feminino e romper com os conceitos tradicionais da fé. Um dos objetivos da pesquisa foi pensar a figura de Maria numa perspectiva libertadora a partir de quatro teólogas(os) da libertação. Neste sentido, sintetizamos suas obras, mostrando as grandes linhas de seus pensamentos no que diz respeito às novas concepções e releituras que têm permeado a elaboração teológica a respeito de Maria, levando em conta a emancipação da mulher, que contribui indelevelmente para a mudança na concepção sobre a própria figura de Maria. E estas releituras mostram que o foco da salvação não está unicamente na figura de Jesus. A partir da teoria do símbolo, compreendemos que a figura de Maria medeia e revela Deus, uma hierofania, pois a piedade popular a contempla de tal modo que é como se ela fosse o próprio Deus. A fé só se expres sa por meio de símbolos e os símbolos fazem parte do desenvolvimento e construções sociais do ser humano. E assim, a figura de Maria expressa simbolicamente o caráter transcendente da divindade e a essência do ser humano. Neste sentido, mostramos que a fig ura de Maria como símbolo religioso revela o divino e é também mediadora da salvação. Um outro objetivo foi pensar a emancipação do indivíduo a partir da figura de Maria, a qual revela traços que podem contribuir para a emancipação da mulher mas, no entanto, algumas barreiras poderão ser decisivas para impedir tal processo. O Magnificat e o Fiat de Maria revelam ao mesmo tempo um Deus que está ao lado dos oprimidos e menos favorecidos, por isso, se faz Deus conosco e uma mulher que, consciente do seu papel social, age em prol do reino de Deus, assumindo uma postura não de submissão, mas de autonomia e de solidariedade. Destacamos também que Maria pode ser canal de emancipação da mulher a partir do momento em que se 118 rompa com a linguagem androcêntrica e sexista. Ainda subordinada a Cristo, a figura de Maria não promoverá a emancipação da mulher, mas só será possível se se romper com esta linguagem que revela -se sexista. Colocamos também que a linguagem religiosa atrelada à cultura e à religião, fortalece de maneira negativa os conceitos atribuídos a Deus. Sendo assim, esta linguagem ainda tem uma relação de gênero, um significado que se expressa unicamente no universo simbólico do patriarcalismo, pois Deus é homem e tem um Filho homem que é Jesus Cristo. Pens amos, então, que a linguagem legitima a opressão da mulher na Igreja e na sociedade nos dias atuais devido ao seu caráter sagrado. E uma das maneiras de se romper com o exclusivismo seria a quebra de paradigmas. Apesar da tendência à confirmação da hipótese inicial da nossa pesquisa, sentimos a necessidade de ampliá-la. Constatamos que a TL, além de apresentar Maria como figura libertadora da situação atual da mulher na AL, alcança também o feminino como imagem e semelhança de Deus. Uma outra hipótese foi que a Mariologia na perspectiva da TL possui elementos novos, que são relevantes para a reflexão atual: emancipação da mulher, libertação e conscientização do oprimido (não aceitar seu estado de opressão) – a fé pressupõe mudança e não estagnação do indivíduo em sua situação. Desta forma, trabalhamos agora com a seguinte hipótese: uma Teologia sistemática, via intervenção da TL, da prática da fé dos indivíduos, pode provocar alterações emancipadoras no seu desempenho reflexivo sob a nova maneira de pensar Deus a partir do feminino. Além disso, esta nova maneira influenciará e produzirá alterações nas práticas hermenêuticas com os dados os quais estão relacionados com Deus e a fé. Olhar para a figura de Maria rompendo com os conceitos culturais, contribuirá indelevelmente para desarraigar dos conceitos culturais o significado do seu simbolismo religioso para interpretações mais emancipadoras e libertadoras. Neste sentido, nossa pesquisa poderá contribuir significativamente tanto para a Igreja, quanto para a sociedade. Teoricamente, pressupomos que esta pesquisa contribuirá no contexto eclesial para que as mulheres se vejam como imagem e semelhança do divino e capaz também de revelá- lo. Por outro lado, para recuperar a identidade própria da mulher enquanto indivíduo no confronto dos discursos marginalizadores e opressores, produzidos e reproduzidos há séculos, que tão profundamente arraigados nos dados revelados, fazem da mulher cristã simplesmente um pedaço de costela 119 (osso), apêndice do homem e refém da fé. Na prática, contribuir para que a emancipação das mulheres seja uma realidade a partir das necessidades práticas do indivíduo social, pois a finalidade da revelação não é confiná- los no arcaísmo religioso, mas sempre expressar necessariamente, ao novo home m, novas maneiras de pensá- la. Prática que só será possível, ao nosso ver, a partir de uma ruptura com os conceitos culturais judaico-cristãos. E na sociedade, contribuir para reafirmar a capacidade de atuação das mulheres nos seus diversos setores; que elas assumam tarefas que antes eram unicamente designadas aos homens; que as mulheres se percebam enquanto sujeitos históricos e não objetos da história; sua efetiva emancipação histórica e a ruptura com os estereótipos. Por fim, promover a igualdade, o respeito mútuo para além das denúncias das desigualdades e das divisões do trabalho. E que a sociedade seja um lugar não das divisões do desempenho dos papéis sociais julgados inerentes aos homens e às mulheres, mas lugar da prática, da execução das relações que se estabelecem entre teorias e práticas igualitárias. O feminino, ao ser considerado como imagem e semelhança de Deus, é caminho que também direciona a humanidade a Deus. Vale dizer que a emancipação da mulher e a libertação do indivíduo no âmbito religioso e conseqüentemente no cultural e social, dependerão (claro que não exclusivamente) da Teologia ou mais precisamente da hermenêutica que se faz dos símbolos, percebendo e distinguindo os elementos culturais que influenciaram, influenciam e continuarão influenciando a religião e a sociedade. Cremos que o caminho a prosseguir para a emancipação do ser humano, seja realmente pensar a fé a partir dos indivíduos históricos concretos e seus contextos: sem-terra, índios, afrodescendentes, sem-teto, aborto, homossexuais, homens e mulheres. Assim sendo, a Teologia poderá contribuir mais eficazmente para o desenvolvimento de relações de respeito sociais e religiosos tanto quanto para a tolerância religiosa. Por fim, a Teologia, na sua elaboração hermenêutica, deveria pensar a Mariologia e Cristologia como sistematizações dos elementos nucleadores da nossa salvação em Deus. A Cristologia não deveria ocupar o centro da Teologia, mas expressar os elementos redentores da fé a partir da Cristologia, como também da Mariologia. Tais sistematizações mediariam o transcendente. Sendo assim, seria uma Teologia inclusiva que mostra que o feminino também é caminho do homem para Deus e de Deus para o homem, e não uma Teologia exclusivista, sexista e patriarcal. 120 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AQUINO, Maria Pilar. A Teologia, a Igreja e a Mulher na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1997. _________. Nosso clamor pela vida: Teologia Latino-americana a partir da perspectiva da mulher. São Paulo: Paulinas, 1996. BEATTIE, Tina. Redescobrindo Maria a partir dos evangelhos. São Paulo: Paulinas, 2001. BOFF, Clodovis. Visão social da figura de Maria – uma síntese. In: REB (Revista Eclesiástica Brasileira), fasc. 250: 354-372, abr. de 2003. BOFF, Leonardo. O Rosto materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas, 2ª. Ed., Petrópolis: Vozes, 1979 BOFF, Lina. A fala de Maria no Magnificat aos povos do terceiro milênio – para uma mística evangélica (II). In: REB (Revista Eclesiástica Brasileira), fasc. 240, dez. de 2000. BOFF, Lina. Maria e a Trindade. Implicações pastorais – caminho pedagógico vivência da espiritualidade. In: A comunidade divina e Maria. São Paulo: Paulus, 2002. ______, Lina. Maria e o feminino de Deus: Para uma espiritualidade Mariana. São Paulo: Paulus, 1997. Constituição dogmática do Concílio Ecumênico Vaticano II:sobre a igreja. 18ª ed. São Paulo: Paulinas, 2005. DORADO, Antonio González. Mariologia popular latino-americana: de Maria conquistadora a Maria libertadora. São Paulo: Loyola, 1982. 121 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ________. Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991. FORTE, Bruno. Maria, a mulher ícone do mistério: ensaio de mariologia simbólico-narrativa. São Paulo: Paulinas, 1991. GEBARA, Ivone e BINGEMER, Maria Clara L. Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres: um ensaio a partir da mulher e da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1987. GUTIERREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981. ___________, Teologia da Libertação. 2ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 1970 HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulus, 2003. JOHNSON, Elisabeth A. Aquela que é: o mistério de Deus no tratado teológico feminista. Petrópolis, Rj: Vozes, 1995. MURAD, Afonso. O que Maria tem a dizer às mães de hoje. Paulus: São Paulo, 1997. TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1985.