Leia Rosa dos Santos - TEDE2 da UNIVERSIDADE

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO – UMESP
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
LÉIA ROSA DOS SANTOS
MARIA SÍMBOLO DE DEUS E DA MULHER:
Estudo das Imagens de Maria na Teologia da Libertação
São Bernardo do Campo, março de 2006
2
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO – UMESP
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
LÉIA ROSA DOS SANTOS
MARIA SÍMBOLO DE DEUS E DA MULHER:
Estudo das Imagens de Maria na Teologia da Libertação
Orientador:
Prof. D r. Etienne Alfred Higuet
Dissertação
apresentada
em
cumprimento
parcial
às
exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião para obtenção do grau de Mestre.
São Bernardo do Campo, março de 2006
3
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO – UMESP
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________
Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet
UMESP
___________________________________
Prof. Dr. Antônio Carlos de Melo Magalhães
UMESP
_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Luiza Etsuko Tomita
Escola Dominicana de Teologia – EDT
4
DEDICATÓRIA
Aos amigos e amigas católicos (as) com os quais
tive o prazer de conviver em respeito mútuo e
recíproco nas diferenças religiosas.
A mulheres e homens que lutam por uma
sociedade e igreja com práticas mais igualitárias
e que lutam também contra os efeitos da
segregação racial, da discriminação social e do
preconceito sexual.
5
AGRADECIMENTOS
“Chamar o nome de Jesus, o nome de Maria ou de um santo de que se é
devoto, é como um bálsamo que faz bem para o corpo todo, para a vida
que habita em cada um de nós”.
Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer
Meu agradecimento, antes de tudo, vai para minha mãe que
não hesitou em insistir para que fôssemos alfabetizados e à minha
irmã Rita pelo constante incentivo à leitura.
À Prof.ª Elizabeth Paiva e aos Profs. Jone Nunes e Jorge
Nery, do Seminário Teológico Batista do Nordeste, cuja visão crítica
serviu de grande inspiração teológica.
Agradeço ao corpo docente da UMESP, pelo constante apoio,
especialmente aos Profs. Drs. Lauri Wirth, Antônio Magalhães e
Geoval da Silva.
À funcionária Ana Fonseca.
Minha gratidão ao IEPG pelo apoio financeiro desde o início
do curso até à sua conclusão e por ter acreditado em nossa pesquisa.
Agradeço a Tânia, prima, irmã e amiga, pela paciência, pelo
apoio moral e incentivo nos momentos difíceis, pela compreensão e
tolerância de conviver com os livros espalhados pelos dois pequenos
cômodos da casa.
Agradeço principalmente ao meu orientador, Prof. Dr.
Etienne Higuet, pela paciência e pelas importantes observações, as
quais foram decisivas para o desenvolvimento da pesquisa.
Enfim, meus agradecimentos a todos quantos contribuíram
direta ou indiretamente no desenvolvimento desta pesquisa.
Obrigada.
6
SIGLAS USADAS
AL
América Latina
NT
Novo Testamento
TL
Teologia da Libertação / Teologia Latino-americana da Libertação
VT
Velho Testamento
7
SINOPSE
A figura de Maria está em processo de emancipação, de uma Maria divinizada e pura,
para uma Maria concreta, humana e mulher. Sua emancipação vem em decorrência das
conquistas e vitórias que as mulheres de hoje têm buscado e alcançado. Claro que essas
mudanças vêm ocorrendo restritamente em uma determinada linha teológica, que a partir de uma
hermenêutica libertadora e a partir do feminino como ele se mostra pra nós hoje, pensa Maria
como figura (mulher) concreta. Mas, como símbolo religioso, ela será sempre Virgem, Mãe e
Esposa, e as novas interpretações serão sempre um esforço de superar o modelo de mulher ideal
projetado no simbolismo de Maria, vista com os óculos do patriarcalismo. Parale la a essa nova
interpretação do simbolismo religioso mariano, encontra-se a estrutura do feminino como nova
chave hermenêutica para se pensar Deus, perspectiva que revela a transcendência divina e sua
humanidade presente também na figura da mulher. Deus-Mãe é um termo bastante utilizado nos
círculos populares, a partir da leitura bíblica de textos veterotestamentário e também está restrito
às academias, acepção que dificilmente se pronunciará no âmbito religioso evangélico e na
sociedade, pois a cultura ainda está impregnada de patriarcalismo, onde a supremacia masculina
inibe de se pensar o feminino como estrutura que transcende sua natureza humana.
Palavras-chave: Maria; hermenêutica; mulher; símbolo; feminino; Deus.
8
ABSTRACT
Mary’s figure is going through an emancipation process; from a divine and pure Mary to a
concrete, woman and human Mary. Her emancipation is a result of the achievements and
victories that women today have sought and pursued. It is evident that these changes have
occurred exclusively in one determined theological trend, that using a liberating hermeneutic and
the feminine as it is shown to us today, thinks Mary as a concrete figure (woman). However, as a
religious symbol, she will always be a Virgin, a Mother and a Wife, and new interpretations will
always be an attempt to overcome the model of an ideal woman projected in Mary’s symbolism
seen through the lens of a patriarchal structure. Parallel to this new interpretation of the religious
symbolism of Mary, is found the structure of the feminine as the new hermeneutic key to think
about God, a perspective that reveals the divine transcendence and the humanity present in a
woman’s figure as well. God-Mother is a very well used term in popular circles, from a biblical
reading of the Old Testament texts and is also restrict to the academy, meaning that will hardly be
used in an evangelical religious realm and in society, for the culture is still impregnated with
patriarchal structures where man’s supremacy hinders the feminine thought as a structure that
transcends its human nature.
Key-words : Mary; hermeneutics; woman; symbol; feminine; God.
9
SUMÁRIO
Dedicatória .................................................................................................................................... 4
Agradecimentos ............................................................................................................................. 5
Siglas usadas................................................................................................................................... 6
Sinopse ........................................................................................................................................... 7
Abstract .......................................................................................................................................... 8
M ARIA, SÍMBOLO DE DEUS E DA MULHER: INTRODUÇÃO
GERAL AO TEMA .................................................................................................................... 18
CAPÍTULO I. A FIGURA DE MARIA NA AMÉRICA LATINA ...................................... 19
1. Maria, a esperança de um povo novo
Introdução ........................................................................................................................ 20
1.1. Proposta antropológica de Gebara e Bingemer .................................................... 20-21
1.2. Teologia Marial .................................................................................................... 22-24
1.3. Dogmas ................................................................................................................. 24-26
1.4. Maria no continente latino-americano .................................................................. 26-28
1.5. As autoras concluem .................................................................................................. 28
Considerações pessoais ................................................................................................. 28-29
10
2. O feminino e Maria
Introdução .................................................................................................................... 30-31
2.1. O feminino revelador do divino ........................................................................... 31-33
2.2. Jesus, um feminista (?) ......................................................................................... 34-35
2.3. Proposta antropológica de Leonardo Boff ........................................................... 35-36
2.4. Feminino – caminho de Deus para o homem ....................................................... 36-39
2.5. Análise simbólica dos dogmas em Leonardo Boff ............................................... 39-41
2.6. A solidariedade e mediação universal de Maria ................................................... 41-42
2.7. O mito como acesso à realidade ........................................................................... 42-44
Observações a respeito do texto. A união hipostática de Maria:
uma hipótese, segundo Boff ........................................................................................ 44-46
3. Mariologia popular
Introdução .................................................................................................................... 46-47
3.1. Maria na Teologia da re ligiosidade popular Latino-americana............................ 47-50
3.2. Maternidade popular latino-americana ................................................................. 50-52
3.3. A Maria da América Latina .................................................................................. 53-55
3.4. Conclusões do autor ................................................................................................... 56
Considerações pessoais sobre o texto .......................................................................... 56-58
Síntese do capítulo ....................................................................................................... 58-61
CAPÍTULO II. MARIA, SÍMBOLO DE DEUS ..................................................................... 62
Introdução ....................................................................................................................... 62
1. Manifestação do sagrado
Introdução .................................................................................................................... 62-64
1.1. Imagens e símbolos .............................................................................................. 64-66
1.2. Símbolos da fé ...................................................................................................... 66-68
1.3. O símbolo religioso .............................................................................................. 68-71
Considerações a respeito dos textos ............................................................................ 72-74
11
2. Maria, símbolo da fé
Introdução .................................................................................................................... 75-77
2.1. Maria, símbolo religioso ....................................................................................... 78-81
2.2. Feminino: imagem e semelhança de Deus ........................................................... 82-84
2.3. Maria, a mulher ícone do mistério ....................................................................... 84-86
2.3.1. Significado teológico da maternidade ................................................. 86-88
2.3.2. Significado antropológico da maternidade .......................................... 88-89
2.4. Considerações a respeito da posição de Bruno Forte ........................................... 89-90
Síntese do capítulo ....................................................................................................... 90-92
CAPÍTULO III. A EMANCIPAÇÃO DA MULHER A PARTIR DA
FIGURA DE MARIA ............................................................................................................... 93
Introdução ......................................................................................................................... 93
A. Algumas barreiras para a emancipação da mulher .................................................. 93-96
1. O Magnificat ........................................................................................................... 96-102
2. O Fiat ...................................................................................................................... 102-108
3. A linguagem religiosa ............................................................................................ 108-114
Síntese do capítulo ...................................................................................................... 114-115
Considerações pessoais ............................................................................................... 115-116
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 117-119
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 120-121
12
INTRODUÇÃO
As novas formas de pensar Deus e, tudo que está relacionado a ele, têm sido para a
hermenêutica um trabalho singular. Olhar para o mundo de hoje sob novas perspectivas
teológicas contribui significativamente para novas releituras do próprio pensar teológico: a fé,
Deus, o homem e, agora, ainda que timidamente, a mulher. Neste sentido, apontamos para uma
perspectiva mais paradigmática como foco de interesse sobre a emancipação da mulher, já que
durante séculos e, ainda hoje, o feminino enquanto objeto de análise, ainda habita a periferia do
discurso teológico. Pois, a Teologia sempre esteve atrelada à Cristologia e, conseqüentemente, à
Teologia da Salvação que é lida única e exclusivamente a partir de um “modelo próprio” – que é
Cristo, único mediador entre Deus e nós. Esta nova ênfase possibilitará uma nova experiência
mariológica no campo hermenêutico, e Maria poderá ser considerada veículo da revelação e
salvação de Deus no mundo como experiência emancipadora da mulher e do indivíduo de forma
libertadora.
O objetivo desta pesquisa não é divinizar Maria, mas como símbolo de Deus, mostrar que
ela, assim como Jesus, desempenhou um papel importante nos desígnios da salvação de Deus
para a humanidade, conforme relatos dos textos bíblicos. Tanto Cristo como Maria, ambos se
pertencem, um está vinculado ao outro e subsistem reciprocamente. Maria é símbolo de um Deus
que se humaniza, se comunica, um Deus que quer ser mãe e mulher.
Para mim, falar de Maria é um desafio muito grande, pois nasci em um lar cristão batista
embora minha formação escolar primária tenha sido numa escola católica, mesmo sem a
aprovação de meu pai, minha mãe, ao contrário, não se importava, para ela o importante era
sermos alfabetizados. Contudo, meu pai nos advertia severamente para não cantarmos os hinos
ensinados, nem tampouco rezar suas preces, mas lembro-me até hoje da canção entoada todos os
dias nas vozes das freiras e dos coleguinhas antes das aulas, que marcou minhas lembranças, eis
um trecho da canção:
mãezinha do céu, eu não sei rezar,
eu só sei dizer que quero te amar (...)
13
Fiz Teologia num seminário confessional e o amor por Maria nasceu há pouco tempo,
quando consegui descentralizar a salvação divina no modelo único: Jesus e, em minha concepção,
Maria passou a ter um novo significado. Concordo com a afirmação da teóloga protestante
presbiteriana,Tina Beattie:
todos nós temos o direito de nos relacionar com Maria de uma maneira que nos ajude a aprofundar nossa fé
e a expressar nossa humanidade. Ela representa um rico manancial para a espiritualidade da mulher e para a
redescoberta dos elementos negligenciados da feminilidade na Igreja (...) Ao encontrar Maria mais uma vez,
os homens encontram uma parte de si mesmos que precisam possuir. Ela oferece aos homens a oportunidade
de recuperar os aspectos maternais de sua própria natureza, e às mulheres, a oportunidade de resgatar o
senso de autonomia e de auto-estima diante de Deus 1
Hoje, como teóloga evangélica e como mulher, percebo que a figura de Maria no discurso
teológico e pastoral no âmbito evangélico guarda um profundo silêncio e, para mim, a figura de
Maria é uma peça central para nossa salvação em Deus. Acredito que a ausência não só de Maria,
mas a ausência de metáforas femininas no discurso teológico e pastoral solidifica as
interpretações literais dos textos a respeito das mulheres, os quais lhes foram pejorativamente
associados. E compreendendo que nós mulheres estamos rotuladas e estereotipadas como
culpadas, sedutoras, impuras, criação inferior ao homem e em conseqüência disso, devemos ser
submissas, percebo que a figura de Maria, neste sentido, no âmbito evangélico, também está
submissa a Cristo, pois ele é a expressão máxima da revelação de Deus. Penso que a ausência de
Maria em nossa comunidade justifica a ideologia controladora desse discurso: a submissão de
Maria a Cristo e, conseqüentemente, a submissão da mulher ao homem. Exclui-se Maria, a bemaventurada e assim exclui-se também a mulher – culpada pelo pecado da humanidade.
Acredito que as igrejas evangélicas precisam atualizar seu discurso sobre a mulher no que
diz respeito à sua dignidade, autonomia e espiritualidade, levando em consideração as conquistas
atuais. Penso ainda, que Maria, como símbolo de Deus, nos ajudará a superar essa grande lacuna,
pois a salvação divina focada na figura masculina de Jesus fica incompleta, e refletindo a figura
de Maria a partir de alguns teólogos e teólogas da Teologia da Libertação, busco argumentos
plausíveis para compreender que a figura de Maria também é fonte da reve lação divina para a fé
cristã evangélica, há muito banida pela reforma protestante, que considerou qualquer
1
BEATIE, Tina. Redescobrindo Maria a partir dos evangelhos. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 4-5.
14
representação simbólica ou imagem esculpida como idolatria. Ainda hoje se percebe que uma boa
parte dos evangélicos tem verdadeira aversão a Maria, pois sua figura está atrelada ao catolicismo
e tudo que vem associado ao catolicismo para alguns evangélicos é idolatria. Acredito que a
figura de Maria não deveria estar única e exclusivamente ligada ao catolicismo tendo em vista
que ela foi chamada de be m-aventurada, disse Fiat ao refletir sobre os planos de Deus e tendo em
vista também que ela é Mãe de Jesus Cristo.
No entanto, ao ignorar a figura de Maria, anula -se também a presença do feminino como
imagem e semelhança de Deus, nega-se à mulher a representação do feminino na divindade e a
humanidade divina no corpo da mulher e, inclusive, exclui-se também a presença da mulher na
liturgia e na pastoral.
Então, é a partir da Teologia Católica que a figura de Maria serviu de fonte de inspiração
para pensar nessa figura mais cultuada e adorada de toda a AL. Como fruto da nossa reflexão
teórica, observamos que a TL pensa a figura de Maria a partir da emancipação da mulher no
contexto atual, pois, o desenvolvimento do pensamento cristão não promoveu por meio da figura
de Maria a emancipação da mulher nem como imagem e semelhança de Deus, tal como se
apresenta nas Escrituras Sagradas, nem como veículo de salvação divina. Por isso, pensamos
junto com os(as) teólogos(as) da libertação o inverso, ou seja, a emancipação da mulher no
contexto atual como fator primordial para pensar a figura de Maria e libertá- la do cativeiro da
idealização e da marginalização. Assim sendo, estaremos simultaneamente olhando para a figura
de Maria e a estrutura do feminino em seus relevantes aspectos emancipadores.
Assim, objetivamos também, apresentar uma visão panorâmica de alguns autores da TL,
suas principais concepções teológicas e a promoção/libertação das mulheres a partir da figura de
Maria, enfatizando seus aspectos libertadores, mas a partir do feminino, tal como se apresenta
para nós hoje: em pleno processo de emancipação.
A opção pelo tema veio em decorrência do conteúdo estar sempre se referindo à mulher
como imagem e semelhança de Deus e a Maria como figura originária desta imagem. Portanto, o
tema da pesquisa satisfaz e traduz o seu objetivo. Quanto à opção pelos autores, buscamos
aqueles que atendessem ao nosso objetivo. Claro que outros autores poderiam contribuir para o
desenvolvimento da nossa pesquisa, mas devido aos nossos critérios: relevância para o tema
proposto e objetivo, inclusive a acessibilidade às fontes determinaram sua escolha. Não
entraremos nas questões teóricas a respeito de gênero, entretanto, utilizaremos outras correntes do
15
pensamento teológico, como, por exemplo, a Teologia Feminista, por seu conteúdo se prender
efetivamente a uma visão emancipadora e libertadora da mulher. Dividida em três capítulos,
apresentaremos a seguir as linhas gerais do caminho a percorrer.
No primeiro capítulo não faremos uma análise dos textos nem uma exegese meticulosa
dos fatos bíblicos associados à Maria, mas a partir de teólogas(os) da TL: Ivone Gebara e Maria
Clara Bingemer (1987), Leonardo Boff (1979) e Antônio González Dorado (1992), faremos uma
síntese dos seus pensamentos, apresentando uma visão geral e observando o que eles trazem de
novo ao pensarem a figura de Maria a partir do feminino e do contexto latino -americano.
Subdividimos este capítulo em três partes.
Na primeira parte, intitulada de “Maria a esperança de um povo novo”, sintetizaremos os
pensamentos das teólogas Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer. Nesta síntese absorveremos ao
máximo os pensamentos dessas teólogas, expondo os grandes eixos dessa sistematização para
uma Teologia Marial. Primeiro, suas propostas antropológicas; segundo, a Teologia Marial;
terceiro, os dogmas; e quarto, Maria no continente latino-americano. Na segunda parte, intitulada
“o feminino e Maria”, sintetizaremos os pensamentos do teólogo Leonardo Boff, subdividindo-os
em sete tópicos: primeiro, o feminino revelador do divino; segundo, Jesus um feminista(?); no
terceiro, as propostas antropológicas do autor; no quarto, o feminino – caminho de Deus para o
homem; no quinto, uma análise simbólica dos dogmas nos pensamentos do autor; no sexto, a
solidariedade e mediação universal de Maria; sétimo, o mito como acesso à realidade; e por fim,
concluiremos a síntese dos pensamentos de Leonardo Boff sobre a união hipostática de Maria:
uma hipótese, segundo Boff. Na terceira parte, intitulada “Mariologia popular”, sintetizaremos os
pensamentos de Dorado em três momentos: primeiro, Maria na Teologia da religiosidade popular
latino-americana; o segundo, sobre a maternidade popular latino-americana; e por fim, a Maria da
AL, indicando como a cultura contribui (negativamente) na Teologia da fé popular.
No segundo capítulo, intitulado “Maria símbolo de Deus”, faremos uma abordagem
teórica sobre os símbolos religiosos a partir das teorias de Haight (2003), Tillich (1985) e Eliade
(1991 e 1992). Ao analisarmos teoricamente o símbolo religioso, apontaremos para Maria como
símbolo de Deus e conseqüentemente, símbolo da mulher. Este capítulo está subdividido em três
partes: primeiro, Maria, símbolo de Deus, pois Deus se manifestou em sua carne; segundo, Maria
símbolo da fé, proclamada como bem-aventurada que manifesta o caráter de Deus; e terceiro,
16
Maria, a mulher ícone do mistério, a partir da teoria de Bruno Forte (1991), teólogo europeu,
observaremos que Maria está subordinada a Cristo em função de sua maternidade divina.
No terceiro capítulo, apresentaremos uma visão geral da figura de Maria a partir dos
nossos teólogos básicos da TL em diálogo com outros teólogos e teólogas, especialmente
Elizabeth Johnson, que traz uma importante contribuição a respeito de Deus sobre o uso da
linguagem, alguns desses autores não falam exclusivamente da figura de Maria, mas teoricamente
pensam a mulher como imagem suficiente para revelar o divino. Aqui, falaremos da emancipação
da mulher a partir da figura de Maria. Este capítulo está subdividido em três partes: primeiro, a
partir da compreensão do Magnificat e sua importância para o contexto da AL e seus efeitos no
pensamento dos oprimidos do mundo moderno – Deus está ao lado dos oprimidos; segundo, o
Fiat revela a responsabilidade e autonomia de Maria como mulher e mãe diante dos desígnios
divinos; e finalmente, a linguagem religiosa revela sua parcialidade ao falar sobre Deus
unicamente como Pai, Deus mãe é uma palavra (quase) impronunciável. O predomínio da
linguagem cristã sobre o símbolo influencia profundamente o conceito de Deus como Pai, e não
valoriza a humanidade plena da mulher, conforme observa Johnson.
A transcendência divina pode ser pensada tanto a partir da estrutura masculina, quanto a
partir da estrutura feminina, as polarizações ficam por parte dos preconceitos e estereótipos da
cultura e da sociedade. Assim, hoje, a Teologia tenta usar a linguagem de maneira menos sexista
e exclusivista. Por isso, ao nos referirmos a “Maria como símbolo de Deus e da Mulher”, não
queremos fazer uso do pensamento da Teologia atual que agrega ao caráter masculino de Deus
“características femininas”, nem nos apropriarmos das teorias a respeito da terceira pessoa da
Trindade – o Espírito Santo que é considerado em seu gênero gramatical como feminino: ruah,
para justificar a dimensão feminina de Deus. Posições criticadas pela Teologia Feminista, em
particular pela teóloga Elizabeth Johnson, que fornece respaldos suficientemente convincentes e
compreensíveis de que atribuir características femininas a Deus não promove a humanidade plena
da mulher, além do mais são características estereotipadas2 , mas deve -se pensar Deus a partir da
própria mulher numa perspectiva inclusiva e libertadora.
De um lado, ao examinar esses autores e suas produções teóricas (teológicas) em que
aparecem as formulações de crítica ao “tradicional” modo de pensar a figura de Maria, em que se
2
JOHNSON, Elizabeth A. Aquela que é: o mistério de Deus no tratado teológico feminino. Petrópolis, RJ: Vozes,
1995, p. 79s.
17
afirmam de outro lado, a interdependência e autonomia do seu caráter, por outro lado, a
recuperação do discurso de emancipação a respeito da mesma questão, no sentido de perceber
como aqueles saberes, ao serem vinculados ao sistema patriarcal, inviabilizaram a imagem da
mulher como símbolo do divino, e atualmente tornou-se ao mesmo tempo poderoso símbolo de
apropriação do feminino para a emancipação da mulher como imagem do divino, já que durante
muito tempo a figura de Maria revelava apenas o modelo de mulher idealizada pelo
patriarcalismo. A presença/ausência feminina no trabalho teológico (tradicional) vem sendo
marcada, no decorrer da história, por idéias relacionadas a uma suposta natureza feminina, que a
TL tem procurado romper.
A inclusão do feminino na TL como objeto de reflexão teológica tem contribuído
significativamente para um questionamento social, eclesial e teológico a partir de uma
perspectiva libertadora. Nos autores supracitados encontramos elementos para uma linguagem
inovadora a respeito de Maria e do feminino, são teólogos e teólogas que incluem em seus
discursos despidos de preconceitos a inserção do feminino como sujeito, parte constitutiva da TL.
Este novo rosto que figura Maria a partir do feminino, que também é marginalizado, começa,
então, a fazer parte do pensar teológico, não como idealizou a tradição, mas Maria é Mulher com
todas as ambigüidades que lhe são inerentes. Contribuem também como fontes inspiradoras para
refletir a presença do feminino no trabalho teológico, a partir de uma reflexão desprendida das
idéias relacionadas a uma suposta “natureza feminina”, rompendo assim com os conceitos
culturais no que diz respeito às “verdades” sobre Maria no contexto da AL.
Encontramos pontos de contatos para uma Teologia Marial libertadora e atual acerca das
“verdades marianas”, por exemplo, a partir da perspectiva do Reino conforme sugerem Gebara e
Bingemer, que é entender que Deus não privilegia um modelo da humanidade que deva salvar a
todos, neste caso a figura masculina representada na pessoa de Jesus , mas tanto a realidade
masculina quanto a feminina é receptora e integralmente apta para salvar e ouvir a voz de Deus.
E na perspectiva do Reino não há lugar para o patriarcalismo que projeta no homem o modelo e
caminho para se chegar até Deus, ao contrário, “é afirmar que a salvação e a criação de Deus
sempre se mostraram inseparavelmente presentes no homem e na mulher”3 .
3
GEBARA, I. BINGEMER, M.C. Maria, Mãe de Deus e mãe dos pobres: um ensaio a partir da mulher e da América
Latina. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 48.
18
Eles comunicam de maneira mais ampla com os diversos ramos da cultura secular,
tornando possível o diálogo entre Teologia e cultura, Teologia e sociedade e uma possível práxis
teológica efetiva.
Portanto, a reflexão mariológica a partir de uma sistematização à luz da nova emergência
do feminino e do processo de emancipação do homem/mulher, oprimido/a da AL, contribuirá
para uma sociedade mais justa e uma Igreja cuja doutrina seja menos opressora das mulheres e
dos marginalizados em geral.
A partir deste quadro de reflexões mais libertadoras do feminino e da Mariologia,
podemos pensar a figura de Maria como símbolo de Deus e da Mulher. E assim, criando asas para
que, livre do domínio do patriarcalismo, dos seus ditames, da sua soberba, do seu império
reinante na cultura, possamos também romper com os estereótipos e também com determinados
componentes culturais que têm marcado ao longo da sua história.
19
CAPÍTULO I
A FIGURA DE MARIA NA AMÉRICA LATINA
Neste primeiro capítulo, o objetivo central é sintetizar as obras dos nossos quatro
teólogos(as) da TL: Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer (1987), Leonardo Boff (1979) e
Antonio González Dorado (1992), e apresentar uma visão panorâmica das suas principais
concepções sobre a figura de Maria. Com o intuito de observar o que eles trazem de novo ao
pensarem a figura de Maria a partir do feminino e do contexto latino-americano.
Este capítulo está subdividido em três partes. Na primeira parte, intitulada de “Maria a
esperança de um povo novo”, sintetizaremos a obra das teólogas Gebara e Bingemer, primeiro,
suas propostas antropológicas; segundo, a Teologia Marial; terceiro, os dogmas; e quarto, Maria
no continente latino-americano.
Na segunda parte, intitulada de “O feminino e Maria”, sintetizaremos os pensamentos do
teólogo Leonardo Boff, subdividindo-os em sete tópicos: primeiro, o feminino revelador do
divino; segundo, Jesus um feminista (?); no terceiro, as propostas antropológicas do autor; no
quarto, o feminino – caminho de Deus para o homem; no quinto, uma análise simbólica dos
dogmas nos pensamentos do autor; no sexto, a solidariedade e mediação universal de Maria; e
por fim, o mito como acesso à realidade. Concluiremos esta síntese fazendo observações pessoais
a respeito do texto (A união hipostática de Maria: uma hipótese, segundo Boff).
Na terceira parte, sintetizaremos os pensamentos do teólogo Dorado sobre a “Mariologia
Popular” em três momentos: primeiro, Maria na Teologia da religiosidade popular LatinoAmericana, que abarca os três primeiros capítulos, salientando a gênese da Teologia popular; no
segundo, sobre a maternidade popular Latino Americana, analisaremos os capítulos quatro e
cinco, observando como a figura de Maria se incorpora neste continente, e por fim, do capítulo
seis ao oitavo, a Maria da AL, que está associada ao contexto de opressão, mas com a finalidade
de libertar-se a ponto de ser considerada como Mãe da libertação.
20
1. MARIA, A ESPERANÇA DE UM POVO NOVO
Introdução
“Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres”, esta é uma obra elaborada por duas teólogas
latino-americanas que objetivam superar os modelos antropológicos que há muito “presidiu a
elaboração mariológica e teológica”, conforme explicitam as autoras. A temática é tratada a partir
de “uma nova perspectiva antropológica”, que é: humanocêntrica, unitária, realista e
pluridimensional, para a elaboração da Teologia Marial. O livro está organizado em seis
capítulos, precedido de uma introdução, cujo trecho poético lembra sofrimento e escravidão:
“Maria dos oprimidos”. Mas, ao mesmo tempo revela a esperança de um “povo” que tem uma
mãe sob a imperativa súplica: “Liberta os filhos teus...”4 . Trata-se, então,
de uma análise
teológica feita a partir da realidade de um povo, tendo em vistas sua emancipação. O subtítulo da
obra é bastante significativo: “um ensaio a partir da mulher e da AL”. Temos aí dois discursos: a
Mulher e a América Latina, os quais servem de ponto de partida para o desenvolvimento das
análises dessas teólogas.
Mulher e AL talvez reflitam a mesma realidade expressiva de marginalização, esta por ser
um país de terceiro mundo, onde as desigualdades sociais são cada vez mais acentuadas e aquela
por representar o grupo dos oprimidos e excluídos neste continente.
1.1. Proposta antropológica de Gebara e Bingemer
É neste contexto de marginalização e opressão que as reflexões dessas autoras se situam.
Assim, ao analisarem o pensamento da “antropologia tradicional”, propõem uma nova abordagem
antropológica já no primeiro capítulo, intitulado “Por uma nova perspectiva antropológica”, com
o objetivo, no entanto, de superar os discursos da antropologia androcêntrica, dualista, idealista e
4
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit., p. 7.
21
unidimensional, os quais, segundo elas, conseqüentemente, contribuíram para o contexto atual da
nossa sociedade. Destes, destacaremos o idealismo platônico, o qual trouxe sérias conseqüências
para a humanidade, dividindo-a em dois mundos, cujo um deles é inalcançável (utópico). Este
mundo “desejado e projetado” é paradoxal às nossas realidades existentes, causando uma grave
miopia que se esforça em enxergar unicamente: “o outro mundo”, o “outro eu”, a “outra
realidade”. Cegueira esta que faz com que as pessoas tornem-se incapazes “de ver, enxergar,
sentir a presença interpelante do ‘homem da mão seca’, da ‘mulher sofrendo de fluxo de sangue’
em meio à multidão”5 .
Ao romper com essa moldura antropológica idealista, na qual Maria é vista “nas suas
qualidades sobre- humanas, nas suas virtudes dignas de imitação, na sua capacidade de ternura
ilimitada e no seu amor sem fim” 6 , torna-se em um modelo inalcançável. Gebara e Bingemer
pretendem elaborar uma “Teologia Marial” que mine as bases estruturais dessa figura que
antecipadamente já está “pronta” e supostamente inquestionável. A proposta dessa perspectiva
antropológica é humanocêntrica, unitária, realista e pluridimensional. Ao propor uma
antropologia com características humanocêntricas: “homem e mulher como centro da história”,
elas apontam, assim, a possibilidade de se elaborar uma “Teologia Marial que recupere a ação
histórica das mulheres em favor do Reino de Deus e que, em conseqüência, faça justiça a Maria,
às mulheres, aos homens, em fim, à humanidade criada à imagem e semelhança de Deus”7 .
Entretanto, seria necessário articular com uma antropologia que “seja capaz de
ultrapassar a experiência do “homem” como experiência normativa para todo o comportamento
humano”8 . Assim sendo, elas propõem (já que a mulher não é mais “consumidora” da Teologia,
mas começa também a “fazer Teologia” e ligado a esse momento de consciência e emancipação
da mulher) uma “antropologia feminina, ou mais precisamente feminista”9 . Esta antropologia
Teológica visa incluir a mulher como parte da revelação divina, que quer reconhecer em Maria a
esperança da presença divina para todos homens e mulheres marginalizadas. Deus também se
manifesta no mais simples e desprezados de todos os povos, sua presença não é limitada aos
poderosos, mas abrange o ser humano em geral.
5
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit., 17.
Op. Cit., p. 18.
7
Op. Cit., 14.
8
Op. Cit., p. 22.
9
Op. Cit., p. 25.
6
22
1.2. Teologia Marial
No terceiro capítulo, ao falarem sobre Maria na Sagrada Escritura, elas pensam o
conceito “Reino de Deus” como “central e fundador de uma nova maneira de abordar o papel de
Maria na história de nossa fé”10 . Mostrando que nas expressões do Reino, ambas as imagens
masculina e feminina representam um elo que nos liga à figura da nossa salvação: Deus. O Reino
de Deus não é um Reino aristocrático em que o outro é excluído, ao contrário, é um Reino
participativo e convidativo a todos quantos desejem lutar contra as forças opressoras, estes
estarão aptos a participarem desse “movimento”: mulheres e homens quer sejam ricos ou pobres,
negros ou brancos, índios e mestiços. Um Reino que rejeita a discriminação social, rejeita a
segregação racial e o preconceito sexual (Gl. 3.28).
Por isso, segundo essas teólogas, fazer Teologia Marial a partir da perspectiva do Reino é
entender que Deus não privilegia um modelo da humanidade que deva salvar a todos, neste caso a
figura masculina representada na pessoa de Jesus . Mas, tanto a realidade masculina quanto a
feminina é receptora e integralmente apta para salvar e ouvir a voz de Deus. E na perspectiva do
Reino não há lugar para o patriarcalismo que projeta no homem o modelo e caminho para se
chegar até Deus, ao contrário, “É afirmar que a salvação e a criação de Deus sempre se
mostraram inseparavelmente presentes no homem e na mulher”11. Fatos estes presentes nas
figuras simbólicas de Adão e Eva, Maria e Jesus.
Gebara e Bingemer afirmam, ainda, que “fazer Teologia Marial a partir da perspectiva do
Reino não é simplesmente “falar de uma figura feminina contrapondo-a a uma figura masculina”,
é muito mais que simplesmente revelar as “excelências” realizadas em Maria, ou falar do seu
amor, sua dedicação e entrega a Deus, “mas porque sem ela, sem a dimensão que ela representa,
fica faltando uma metade de nós, uma metade da humanidade e, conseqüentemente, uma metade
da divindade”12 , ou seja, a divindade estaria revelada pela metade (grifo meu). E este Reino se
revela tanto no homem quanto na mulher de maneira complementar e relacional.
Em decorrência da extrema valorização do masculino, encobriram-se de várias formas os
modelos femininos que contribuíram efetivamente na história e em vários contextos (um exemplo
10
11
12
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit., p. 44.
Op. Cit., p. 48.
Op. Cit., p. 49.
23
atual desta supervalorização masculina em detrimento da feminina é a hierarquia institucional
eclesiástica em alguns segmentos religiosos). Entre essas mulheres, que as autoras denominam de
“mulheres geradoras ou portadoras da salvação do povo”, estão: Míriam, Ana, Rute, Judite e
Ester. Mostram, então, que elas foram mulheres bíblicas que expressaram os modos de viver
coletivos, foram símbolos de um povo que cantou a vitória, que viveu à beira da extinção, povo
frágil, estéril, mas esperançoso. Para Gebara e Bingemer, os heróis não vencem sozinhos, mas as
lutas são sempre marcadas pela coletividade, pela presença de mulheres e homens e de pessoas
oprimidas que não aparecem no cenário. Centralizar a vitória em uma figura é esquecer do outro
que deu sua vida em prol dessa coletividade. Por isso, no Reino de Deus não cabe o ego ísmo, a
ganância, mas o que é mútuo e ao mesmo tempo recíproco.
E é a partir dessas mulheres, “imagens do povo”, que as autoras caracterizam a figura de
Maria como “Herdeira da tradição de seu povo e inovadora de suas esperanças”13 . Ao afirmarem
que “Deus nasce de uma mulher”, expressão para o mesmo “valor teológico” de que “Deus se faz
carne em Jesus”, ambas vêem a “encarnação” como “experiência de cada mulher e de cada
homem”14 . Como herdeira da tradição, a figura de Maria revela o rosto de um novo povo que
nasce a partir da “experiência presencial do Espírito Santo”. Não mais uma figura em quem se
manifestou o poder de Deus, mas a mulher que simboliza “a presença salvífica e criadora de Deus
no meio do povo”15 .
Ao situar a figura de Maria em seu contexto histórico, tendo em conta que a perspectiva
da Teologia neste continente é elaborada a partir do seu contexto “sócio -economico-cultural”,
ressaltam que: “sem por isso deixar de lado o componente mistérico e transcendente”16. E ao se
referirem à “mulher no tempo de Maria”, as autoras vão afirmar que Maria é uma mulher que
existiu em um contexto de condição inferior ao homem “marcada mesmo pela sua
corporeidade”17 .
É a partir dos dados histórico e contextual da vida de Maria que se faz Teologia na AL,
para que se revele e se mostre a presença, a atuação, a solidariedade e coletividade das mulheres
efetivamente. Enumeradas as condições que inferiorizam as mulheres vividas na época de Maria,
13
14
15
16
17
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 54.
Op. Cit., p. 55.
Op. Cit., p. 57.
Op. Cit., p. 60.
Op. Cit., p. 61.
24
as autoras denominam de “anátema”18. Basta citarmos um desses anátemas, que é “ter seu ciclo
biológico mensal considerado como impureza”19. Assim, ao percorrerem pelos evangelhos, Atos
dos Apóstolos, Gálatas e o Apocalipse, as autoras vão tecendo fio por fio até chegarem ao ponto
em que as possibilidades indiquem para uma Teologia Marial.
1.3. Dogmas
Gebara e Bingemer no quarto capítulo fazem uma releitura dos “dogmas mariais e seu
novo significado a partir dos pobres e a partir do ‘espírito’ do nosso tempo”, mas lidos a partir do
contexto do continente latino -americano. Segundo as autoras, os dogmas constituem-se uma
“questão ecumenicamente delicada, moralmente espinhosa e teologicamente desafiante”20 . Em
primeiro lugar, definem o que significa para elas o “verdadeiro sentido do dogma”. O significado
de dogma não tem o mesmo sentid o que teve na definição do Concílio Vaticano I, o qual ficou
reduzido a “proposições dogmáticas”, mas seu conceito e sua significação devem ser buscados
nas suas “origens mais remotos, na ‘Igreja Primitiva...’ (At 15.28)”21.
Em virtude da abrangência do assunto deste capítulo, passaremos rapidamente pelos
demais dogmas e nos deteremos no dogma da “Maternidade”. Em suas reflexões, o primeiro
dogma é o da “Maternidade divina”, o qual “possui profundas e sólidas referências
escriturísticas”. “O termo grego que sintetiza o mistério de fé contido no dogma – THEOTÓKOS
– Mãe de Deus”22 . Mediante o exame do conjunto dos textos neotestamentários, elas reafirmam
que a Maternidade de Maria é divina e que muitas vezes são descritos sob os “mais significativos
símbolos do AT”, por exemplo, em Lucas, “a nuvem que acompanhava o povo e envolvia a tenda
da Aliança (Ex 40.34), significa que seu interior está repleto da glória de Javé (...)”. E, “a
maternidade divina de Maria a torna assim, segundo Lucas a nova Arca da Aliança (Lc 1.39-44,
56)”23 .
18
19
20
21
22
23
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. Ibidem.
Op. Cit., p. 62.
Op. Cit., p. 104.
Op. Cit., p. 105s.
Op. Cit., p. 110.
Op. Cit., p. 112.
25
Esta compreensão, entretanto, ajuda a estabelecer possíveis pontos de contatos com a
nova insurgência da mulher na sociedade, já que anteriormente a função da mulher era a
procriação, principalmente na cultura judaica na qual a mulher que não fosse mãe era
marginalizada. Embora a maternidade de Maria e sua maneira de viver (virgem, santa e mãe),
tenham produzido a passividade das mulheres em geral, hoje a maternidade passa a ser uma
opção. Mas, não vamos entrar no mérito dessa discussão, falaremos disso mais tarde. As autoras
citam também os concílios, em que aparecem as formulações sobre a maternidade:
Constantinopolitano I, Éfeso e Calcedônia, e atualmente, “o Concilio Vaticano II”, na elaboração
do seu documento: “a Constituição Dogmát ica Lumen Gentium”. Elas ressaltam o significado
que o Concílio deu à maternidade, do seu profundo significado “à salvação humana como um
todo”24 .
Ao contrário do valor explícito que tinha (tem) a maternidade na cultura judaica, a
Virgindade não tinha (tem) o mesmo valor significativo, não apresentava (apresenta) um valor
singular. A esterilidade era considerada uma humilhação, e a realização da mulher estava no
simples fato de ser mãe. E é nesta situação de humilhação e desprezo que o Filho de Deus nasce.
A Virgindade, simbolicamente significa um novo ser gerado, para viver as experiências do Reino,
possibilidade esta, que se “... abre para homens e mulheres de todos os tempos e de todas as
épocas a perspectiva de um novo nascimento”. E assim “a criatura humana é, pois, diante
d’Aquele que a criou, como um terreno virgem e inexplorado, onde tudo pode acontecer”25 .
O terceiro dogma, que as autoras denominam de a “Cheia de Graça”, é o da “Imaculada
Conceição”. A proclamação do dogma da Imaculada Conceição aconteceu em um “contexto
sociocultural modernista e contexto eclesial antimodernista”. Fixado em 1854, por Pio IX. Para
as autoras, a declaração desse dogma, isentando Maria do pecado original, “vem confirmar de
certa forma a postura da Igreja da época, de não querer se imiscuir no modernismo, considerado o
grande pecado do momento”26 .
E por fim, a “Vitoriosa e Senhora Nossa: A Assunção” que é o dogma mais recente,
“definida e proclamada solenemente por Pio XII, a 1º de novembro de 1950”. Assim como esse
dogma trouxe esperança para os fiéis na época do seu estabelecimento, época das duas guerras
24
25
26
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 114.
Op. Cit., p. 121s.
Op. Cit., p. 126.
26
mundiais, assim também como “imagem e início da Igreja do futuro, sinal escatológico de
esperança e de consolo...”27 , para o povo de hoje.
1.4. Maria no continente latino-americano
O quinto capítulo, intitulado “Algumas tradições de culto a Maria na AL”, é também uma
análise do contexto histórico do nosso continente, com o objetivo de mostrar as diferentes
relações e os aspectos dessa devoção no período das conquistas. Dividido em sete partes, este
capítulo não ressalta unicamente os aspectos negativos da colonização, mas a grande influência
que a figura de Maria exerceu, o que significou para os conquistadores e conquistados. Marcado
pelo período colonial o continente latino-americano sofreu as conseqüências das conquistas
ibero-portuguesas, que conquistou e destruiu os “infiéis” e sua idolatria de culto indígena à
deusa-Mãe. Por meio da violência, a imagem de Maria foi usada pelos colonizadores para
legitimar suas conquistas e sobrepor sua tradição religiosa, massacrando e destruindo a cultura
dos índios e negros, brutalmente conquistados. Embora, ainda com resistência, a cultura
espanhola e portuguesa foi se impondo, havendo posteriormente “uma integração sincrética entre
as grandes divindades dos índios, e também dos negros com o cristianismo”28 . Veremos mais
detalhes dessas conquistas na terceira parte deste capítulo, ao tratarmos da “Mariologia popular”.
As devoções a Maria na AL marcam um relacionamento em que o povo espera alcançar
as graças. Ao falar das “aparições, curas e milagres”, as autoras destacam duas figuras centrais
neste contexto: “A aparição de Nossa Senhora de Guadalupe”, e a “Senhora da Conceição
Aparecida: ‘salva’ das águas para salvar o povo”. O tema é tratado dentro da perspectiva
teológica. “Maria é “viva em Deus” e, por isso, vive de maneira especial na esperança histórica
dos povos crentes”29 . “O maravilhoso, o milagre, a cura acontecem na ordem da materialidade
ou corporeidade humana”30 . A aparição de Nossa Senhora de Guadalupe tem “lugar privilegiado
na Mariologia Latino-Americana”, ela não é uma imagem “encontrada ou esculpida”, sua
27
28
29
30
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 137.
Op. Cit., p. 151.
Op. Cit., p. 157.
Op. Cit., p. 158.
27
aparição foi “sobrenatural”31. O objetivo das autoras “é lembrar a profundidade da experiência
religiosa que se dá em Guadalupe...”32 . Quanto a aparição de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida , salva das águas do Rio Paraíba pelo pescador João Alves, essa figura envolve “uma
tradição popular, segundo a qual ela foi objeto de uma ‘pesca milagrosa’” 33 . “Trazida pelo
colonizado r português: uma Virgem branca, mas a Virgem encontrada nas águas é negra”34 .
Posteriormente proclamada como Padroeira do Brasil.
As autoras concluem esta parte percebendo a impossibilidade de “falar dos múltiplos
rostos latino-americanos de Maria”. E que seria necessário fazer uma peregrinação “sobretudo
nos ‘lugares santos’ da devoção, visitar “Luján na Argentina, Chiquinquirá na Colômbia”, enfim,
Gebara e Bingemer sugerem a leitura da obra de Ruben Ugarte, na qual pode ser encontrada a
“síntese histórica das diferentes devoções mariais latino -americanas”35 .
No sexto capítulo, sobre a figura de “Maria e as maravilhas de Deus no meio dos
pobres”, as autoras ressaltam a importância das CEBs como a “concretização de um projeto de
Igreja”. Mas em nota de rodapé justificam que não se trata de colocar “o povo das CEBs ao lado
ou à frente do povo simples em geral”. Esse novo modo de ser Igreja constitui-se em vivência
“original de tomada de consciência de seu lugar no mundo e sua potencialidade de luta”36 . É
pensar a Igreja a partir da perspectiva do Magnificat, o canto de libertação dos pobres de todos os
tempos que Lucas colocou na boca de Maria, mulher pobre, marginalizada, excluída, mas
escolhida para ser Mãe do Filho de Deus e hoje considerada mãe do povo pobre do continente.
As CEBs enfatizam a figura de Maria junto às classes populares na Igreja e na sociedade, a
mulher que carregou em seu ventre e deu luz ao “Libertador dos pobres”. Em um continente
marcado pela exclusão, opressão, derramamento de sangue, é preciso ouvir a voz de Maria e o
que ela continua nos falando hoje: de plenitude de vida e de libertação.
A partir do Magnificat, a voz libertadora que soa a favor da vida e de uma sociedade
igualitária, não pode “ser entendido como algo que canta por e para si mesma enquanto
indivíduo, mas também para o povo messiânico, o povo que suspira e geme pelas promessas do
31
32
33
34
35
36
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 165.
Op. Cit., p. 166.
Op. Cit., p. 179.
Op. Cit., p. 180.
Op. Cit., p. 183.
Op. Cit., p. 185.
28
Senhor Deus”37 . Por isso, o Magnificat deve permanecer como o canto dos oprimidos que
anseiam pela erradicação da estrutura patriarcal que discrimina, que exclui e que explora homens
e mulheres pobres, negros, índios, mestiços etc., para incluí- los, também, no projeto do Reino de
Deus. O mistério de Maria deve continuar sendo lido dentro “de seu contexto de opressão, luta,
resistência e vitória”, afirmam as autoras. Mas com um novo discurso teológico “a partir da
experiência e da prática concretas”38 .
1.5. As autoras concluem
“Uma nova Teologia Marial, aponta para o ‘mistério de Maria’ com ‘uma nova palavra
para o mundo’”. E esse mistério “diz que o mundo não é apenas palco sinistro de uma tragédia
absurda, onde vencedores e vencidos são sempre os mesmos, mas lugar da esperança de
vitória...”39 . O mistério de Maria também “traz uma nova palavra sobre Deus”, luz que brilha
“para todos os oprimidos do continente Latino -Americano”. 40
Considerações pessoais
Se na perspectiva do Reino, conforme mostraram Gebara e Bingemer, a salvação está
presente tanto no homem quanto na mulher, logo, Maria e Cristo constituem-se veículos da
revelação/salvação de Deus no mundo. Elas afirmam que “A Teologia Marial a partir do Reino
de Deus não pode ser pensada em função da Cristologia, de forma a diluir aquilo que é próprio à
maneira feminina de viver e proclamar o Reino”41 .
Com efeito, Maria tem presença participativa no meio dos pobres, ela não se constitui
uma mulher completamente passiva, unicamente como “a encantadora Mãe de Jesus, mas ela é,
acima de tudo, ‘operária’ na messe do Reino, membro ativo do movimento dos pobres, o mesmo
37
38
39
40
41
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 191.
Op. Cit., p. 196.
Op. Cit., p. 200.
Op. Cit., p. 201.
Op. Cit., p. 49.
29
de Jesus de Nazaré”, na qual a divindade também está presente. É nesta perspectiva que essas
teólogas rompem com o modelo limitado de “seu passado, ou seja, uma versão de submissão a
seu Filho, expressão da submissão da mulher à ordem estabelecida pelo sistema patriarcal
vigente”42 , para a elaboração da Teologia Marial. Esta leitura dará uma nova visão a respeito de
Maria, tanto para os que só conseguem ver sua humanidade, tanto para os que não conseguem ver
sua transcendência.
O rosto de Maria é visto nos diferentes contextos da AL, bem como suas aparições, curas
e milagres. Maria, a Padroeira latina-americana tem nomes e identidades próprias em cada
cultura. Ela é a mulher representativa das diversas marias latino-americanas, é a figura que
engloba os injustiçados, os marginalizados, os pobres, os negros, os índios, os quais também são
imagens e semelhanças de Deus.
A Teologia Marial elaborada por essas mulheres não é pensada única e exclusivamente
em função da Cristologia. Elas afirmam também que “Mariologia e Cristologia são formas de
exprimir a novidade sempre poética, sempre inédita da ternura e da justiça que acontecem na
mulher e no homem que buscam amar para além de seus limites”43 . Incluir a mulher nessa
realização e nos ideais do Reino exige que se tenha coragem e força, perseverança e confiança
para lutar contra as forças do reino das segregações, dos modelos hierarquizados, dos ideais do
patriarcalismo e de todas as forças contrárias à justiça do Reino.
“Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres”, ainda, clama hoje em favor de seus filhos contra
as injustiças, a discriminação, o preconceito e a dominação racial e sexual. Maria é Mãe,
protetora, auxiliadora, intercessora e tantos outros adjetivos carregados de plenos significados
revelados neste Continente de maneiras particulares.
42
43
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 50.
Op. Cit., p. 49.
30
2.
O FEMININO E MARIA
Introdução
A mulher hoje tem conquistado espaços relevantes na sociedade e desenvolvido suas
capacidades emotiva, intelectual e intuitiva não mais de maneira negativa, como lhes foram
atribuídas tais características pejorativamente. É interessante notar que as funções que as
mulheres têm ocupado em nada as tornam inferiores ou subalternas ao homem, sua capacidade
em nada fica devendo à capacidade masculina. E é esse avançar feminino que mina a hierarquia
patriarcal e promove sua emancipação.
O livro de Leonardo Boff, intitulado “O Rosto Materno de Deus: ensaio interdisciplinar
sobre o feminino e suas formas religiosas”, analisa a pertinência do feminino na elaboração da
Teologia. Para Boff, “quase não se explorou o feminino como acesso a Deus”44 . Convencido de
que o feminino não fora ainda assumido como caminho para se pensar a Mariologia, Boff o
assume. Sua proposta é a partir de uma nova reflexão sobre as perspectivas tradicionais que a fé
nos legou a respeito de Maria, mostrar teo logicamente que o feminino também constitui um
caminho do homem para Deus e de Deus para o homem.
O feminino também possui igual dignidade que o masculino, baseado na leitura de
Gênesis 1. 27. Sendo o masculino e o feminino imagem e semelhança de Deus, tanto um quanto
outro, observa Boff, serve de “arquétipo supremo”45 . E no quinto capítulo analisa teologicamente
o feminino a partir de algumas perspectivas, para que o próprio feminino manifeste sua
pertinência teológica. Portanto, o autor busca a partir do feminino, entender radicalmente, o
significado transcendente de Maria.
Ao introduzir o assunto, ressalta que mundialmente a cultura, a sociedade está passando
por transformações. “De uma sociedade patriarcal, assentada sobre o pré-domínio do varão e da
racionalidade, está passando para uma sociedade pessoal, centrada sobre a força nucleadora da
44
BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas
Petrópolis, RJ: Vozes, 1979, p. 15.
45
Op. Cit., p. 102.
31
pessoa e do equilíbrio de suas qualidades”46 . Neste contexto, há uma retomada a respeito da
“valorização da intuição, o feminino e de tudo o que afeta e concerne à sua subjetividade”, o
império da racionalidade agora se vê de frente do ‘arracional’ como realidade própria”47 . E
também tem a ver com a “pertinência teológica”. Cabe à Teologia contribuir de maneira “crítica”
e não mais “ingênua”, e a partir daí romper com as idéias culturais.
2.1. O feminino revelador do divino
Na primeira parte de sua reflexão, Boff coloca a questão do “feminino como princípio
organizador da Mariologia”, acerca do qual persiste uma complexa discussão teológica. Boff
traça os caminhos teoló gicos que têm presidido essa discussão, no entanto, destacaremos apenas
dois desses. Um primeiro caminho dos sete que Boff analisa: “se recusa a perguntar pelo desígnio
secreto de Deus”; e um segundo caminho argumenta que é legítimo a unidade de sentido nos
acontecimentos marianos, “mas não se deveria, apesar disso, elaborar um tratado específico de
Mariologia”48. Segundo Boff, esses caminhos são insuficientes para se chegar a uma análise
sistemática da Mariologia, então, um caminho que supera essa insuficiência para Boff seria o
“feminino”. Para ele, “importa que a mario-logia seja teo-logia. Em outras palavras: ao se falar de
Maria deve-se falar de Deus”49 . Deste modo, o “centro seria Deus e não mais Maria, ou o
homem, ou o feminino ou mesmo Cristo”. O autor então questiona: “Que significa Maria para
Deus?”. Ou ainda, “que significa o feminino para Deus? Se Maria for considerada a expressão
suprema do feminino, não se poderá então dizer que Deus ‘se realizou’ a si mesmo maximamente
em Maria?” Dessa forma, se abriria um novo horizonte sobre “a maneira de Deus se
autocomunicar e se auto-realizar”50 .
Na segunda parte, a qual é composta de quatro capítulos, Boff analisa profundamente o
feminino do ponto de vista científico, filosófico e teológico, destaca alguns obstáculos
epistemológicos concernentes ao feminino. Citamos apenas três desses, os quais julgamos ser os
46
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 13.
Op. Cit., p. 14.
48
Op. Cit., p. 24s
49
Op. Cit., p. 31.
50
Op. Cit., p. 32.
47
32
mais interessantes para o desenvolvimento do nosso tema. O primeiro obstáculo é o monismo
sexual – a experiência da mulher como indivíduo ainda não se revela independente nem
plenamente devido às determinações culturais. Embora teoricamente se afirme a libertação da
mulher, de fato aconteceu, mas em muitos setores a mulher ainda permanece marginalizada e
sempre associada às atividades domésticas, é sua função cuidar dos filhos e do lar, pois isso é sua
competência. Como afirma Boff: “Esta situação infra-estrutural repercutiu no nível supraestrutural, aparecendo uma compreensão da mulher como apêndice do varão ou uma
manifestação diminuída dele”, e ainda, “É a partir do varão que se realiza, plenamente, a natureza
humana; a mulher na medida em que se associa a ele”51 .
O segundo obstáculo tem a ver com a “ontologização de manifestações históricas” –
está ligada à dominação do homem sobre a mulher, sua submissão e dedicação doméstica
tornam-se “atributos da própria natureza feminina”. Então, “Atribui-se à natureza aquilo que é
produto da história, resultado das práticas humanas e do jogo dos interesses”52 . E uma terceira
perspectiva é a “exaltação do feminino : a mulher eterna – os estereótipos ligados à mulher, dos
quais a figura de Maria é representativa – mulher do sim submisso, resignada, modesta e
anônima. Tais “qualidades” ditas femininas, de certa forma, impedem “a mulher de descobrir sua
verdadeira vocação e suas possibilidades históricas” 53, ressalta o autor.
No terceiro capítulo, partindo de
uma compreensão do feminino a partir de uma
aproximação analítica, Boff afirma a “diferença varão- mulher”, e ao mesmo tempo sua
“reciprocidade”. Analiticamente, ao comparar os cromossomos da mulher e do varão verifica-se
que “o sexo-base é o feminino”; “o masculino é induzido a partir daquele feminino, fato que
desautoriza o mitológico ‘princípio de Adão’”54 . E mais adiante, hipoteticamente irá dizer que o
“feminino surge como uma perfeição”55 . No entanto, o “homem é sempre varão e mulher”. Mas a
ciência não consegue captar todo o mistério que envolve o varão e a mulher 56 .
No capítulo quatro, o autor faz uma análise do feminino a partir de uma reflexão
filosófica. “O humano articulado em varão e mulher revela-se dentro de uma estrutura
51
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 42.
Op. Cit., p. 44.
53
Op. Cit., p. 45.
54
Op. Cit., p. 49.
55
Op. Cit., p. 74.
56
Op. Cit., p. 60.
52
33
profundamente dialética”57 . Porquê a ciência não decifra quem é o homem, o pensar filosófico
tenta responder sobre o mistério que reside o varão e a mulher. Ou seja, a estrutura ontológica
existente em cada ser humano, que segundo Boff consiste no “e”. “Ser ele e mais o diferente dele
com o qual comunga”58. Embora diferentes, o masculino e o feminino são realidades recíprocas.
No quinto capítulo busca analisar o feminino a partir de uma “meditação teológica”, a
partir de cinco perspectivas: 1) pertinência da meditação teológica; 2) o que dizem as escrituras e
a tradição da fé sobre o feminino; 3) princípios para uma antropologia teológica do feminino; 4)
Deus no feminino – o feminino em Deus; e 5) Maria, antecipação escatológica do feminino em
sua absoluta realização: uma hipótese. Qual seria então a pertinência teológica do feminino para
revelar o transcendente?
O autor, primeiramente, ressalta a responsabilidade da Teologia em refletir sobre a
presença do feminino e de Deus.
A Teologia, como a palavra o sugere, reflexiona a partir de Deus. Interroga o feminino sob duas
modalidades: até que ponto o feminino constitui um caminho do homem para Deus e até que ponto o
feminino se apresenta como um caminho de Deus para o homem. Em outros termos: até que ponto o
feminino revela Deus e até que ponto Deus se revela no feminino 59 .
Tendo em vista que a dimensão feminina é inerente a Deus e que o “feminino possuiria
uma profundidade divina” (discurso filosófico), a questão teológica acerca do feminino se daria,
então, a partir de uma “ruptura existencial da fé num Deus encarnado em Jesus Cristo (Filho) e
‘espiritualizada’ na vida dos justos (Espírito Santo)”. Isto implicaria “num corte epistemológico
instaurando um discurso próprio...” A Teologia, então, colocaria seu discurso no nível da fé, e é a
partir deste eixo que Boff apresenta seu discurso, e a pergunta se reformularia: “Como o feminino
é revelador da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espír ito Santo? Como a Trindade Santíssima se
revela a si mesma no feminino?”60.
57
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 64.
Op. Cit., p. 65.
59
Op. Cit., p. 73.
60
Op. Cit., p. 74.
58
34
2.2. Jesus, um feminista (?)
Boff considera que nas Escrituras Sagradas existem alguns textos antifeministas, ao fazer
uma revisão hermenêutica desses textos, demonstra com clareza como os relatos de Gênesis
interpretados de maneira masculinizante atribuíram à mulher um lugar secundário e,
conseqüentemente, a rejeição do feminino como acesso a Deus. Por exemplo, o relato da criação
de Eva. Para Boff, “o sentido intencionado pelo autor sagrado é mostrar a unidade do varão e da
mulher e fundamentar a monogamia. Entretanto, esta doutrina, que em si deveria superar a
discriminação da mulher, acabou por secundá- la”. Um outro relato é o da “Queda (Gn 3. 6-7)”.
Este quer demonstrar a presença do mal, ou como esclarece Boff: “o relato mítico quer
etiologicamente mostrar como o mal está do lado da humanidade e não do lado de Deus” 61 . Mas,
ao contrário, o texto contribuiu significativamente para marginalizar a mulher, ou seja, o
feminino ficou submetido às idéias masculinizantes do judaísmo cristão.
Para Boff, as boas novas de Jesus se situam neste cenário de idéias antifeministas, embora
ele (Jesus) tenha sido um “feminista”, suas idéias não proporcionaram alterações significantes
para a emancipação da mulher, ainda “social e religiosamente discriminada”. Claro que Jesus,
como observa Boff, não fez nenhuma “pregação explicita de libertação da mulher; mas colocou
um princípio libertador geral que incidiu sobre a situação de dominação feminina”. Jesus quebra
vários tabus, por exemplo: “mantém profunda amizade com Marta e Maria (Lc 10. 38); e contra o
ethos do tempo, conversa publicamente e a sós com a mulher samaritana junto ao poço de Jacó,
causando admiração até dos discípulos (Jo 4. 27)”62 . E conclui, dizendo que “as atitudes e a
mensagem de Jesus significaram uma ruptura com a situação imperante e uma grande novidade
nos quadros daquele tempo”. E observa também que “As instâncias econômicas, política e
cultural não haviam sofrido ainda aquelas transformações que permitissem a assimilação da
revolução antropológica (ideológica) inaugurada por Jesus”63 .
Entretanto, Boff observa também que o cristianismo não deu continuidade a esta ruptura,
prova disto é que no NT existem as ambigüidades. Ao mesmo tempo em que mostra a igualdade,
fala também da submissão ou desigualdade 64 , mostrando também as tensões, ambigüidades,
61
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 77.
Op. Cit., p. 78.
63
Op. Cit., p. 79.
64
Op. Cit., p. 79s.
62
35
conflitos e as lacunas da ideologia dos seus sucessores, e Paulo é um exemplo claro: “por um
lado assume a novidade introduzida por Jesus acerca da igualdade da mulher, por outro, não
consegue fazê- la valer em sua cultura e passa a refletir a submissão da mulher: ‘não há varão,
nem mulher, todos são um em Cristo’” (Gl 32. 28)”65 . Ao concluir, afirma que “na história
posterior os textos de Paulo que refletem a cultura imperante discriminatória fossem invocados
como palavra de revelação e assim legitimassem a dominação do varão sobre a mulher”66.
2.3. Proposta antropológica de Leonardo Boff
Tendo em vista essa leitura antifeminista, Boff propõe seis princípios para uma
antropologia teológica do feminino. Os três primeiros princípios equilibram paralelamente as
relações humanas entre si e a divindade: primeiro, a partir da “igualdade criacional do varão e
da mulher”. Este princípio já estava presente na antropologia judaica cristã. Boff resgata o
pensamento “original” do autor bíblico. Por exemplo, o texto de Gênesis 1.27 é uma afirmação
“contra o espírito antifeminista” em que o escritor sagrado, de forma contundente, afirma: “Deus
criou o ser humano (humanidade) à sua imagem (...) criou-os varão e mulher”. “Esta imagem de
Deus só é completa quando refletida nos dois sexos”67 . O texto revela a igualdade criacional do
varão e da mulher. O segundo princípio tem a ver com a “reciprocidade varão-mulher”. Para
Boff “o relato mais arcaico do Gênesis (2. 18-23), apesar de sua conotação masculinizante, deixa
claramente entrever a diferença e também a reciprocidade varão- mulher”. “Quando Deus decide
criar a mulher diz, num modismo tipicamente hebraico: vou dar ao varão alguém que lhe será um
vis-à-vis e semelhante a ele (Gn 2. 18)” 68 . Varão e mulher se complementam e são recíprocos. O
terceiro princípio diz respeito ao “feminino: revelação de Deus”. Sendo o feminino também
veículo da revelação de Deus , sua presença aparece também na linguagem feminina. “Deus e
Cristo são personificados na temática feminina da Sabedoria (Pr 8. 22-26; Si 24. 9; 1Cor 24. 30)”.
Mulher e Sabedoria estabelecem entre si uma estreita correlação, ocorrendo uma transmutação
simbó lica entre uma e outra. “Ou Deus é comparado com a mãe que consola (Is 66. 13), mãe
65
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 80.
Op. Cit., p. 83.
67
Op. Cit., p. 87.
68
Op. Cit., p. 88.
66
36
incapaz de esquecer o filho de suas entranhas; Jesus se compara como a mãe que quer reunir os
filhos sob a sua proteção (Lc 13. 34)”69.
Estes três últimos princípios mostram a confluência do feminino no plano do mistério
divino. No quarto princípio, a iniciativa da fé de mulheres que estiveram presentes na vida de
Jesus e que permaneceram fiéis nessa nova aliança, vale ressaltar alguns exemplos: “É pelo Fiat
de Maria que o Salvador entra no mundo; são elas que permanecem fiéis ao pé da cruz, quando os
discípulos haviam fugido (Mt. 27. 56); são elas as primeiras testemunhas da ressurreição (Mt 28.
19-20). Em João a mulher ocupa uma função constitutiva da salvação: é a mãe de Jesus que
introduz o primeiro milagre em Caná (Jo 2.11)”70 . O quinto é o princípio feminino da
salvação”, onde é ressaltada a figura de Maria que “representa para a fé cristã não apenas a
plenitude de realização do feminino em suas distintas manifestações ligadas ao mistério da vida
como a virgem e a mãe, pelo fato de ser a virgem- mãe de Deus encarnado e estar relacionada
intimamente ao Espírito Santo”. Mas, por causa da “relação ontológica entre Maria e Jesus. A
carne que ela forneceu a Jesus é carne do próprio Deus. Há, pois, algo do feminino de Maria
assumido hipostaticamente por Deus mesmo”71 . O sexto e último princípio mostra que “a
plenitude da mulher não está no varão, mas em Deus ”. A mulher e o homem criados como
imagem e semelhança de Deus não pode se furtarem à responsabilidade de ser para Deus pessoas
distintas e recíprocas. Deus imbuiu homens e mulheres aptos a serem totalmente realizados como
pessoas humanas. E conclui: “A destinação última do varão e da mulher é Deus mesmo”72 .
2.4. Feminino – caminho de Deus para o homem
A partir desse quadro de análise dos princípios antropológicos, Boff norteia-se
teologicamente a partir dos dados atuais acerca do feminino, não mais do ponto de vista da
Sagrada Escritura, mas mediante a aproximação sócio-analítica e da reflexão filosófica. Com
69
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 89.
Op. Cit., p. 89s
71
Op. Cit., p. 90.
72
Op. Cit., p. 91s.
70
37
efeito, afirma que masculino e feminino enquanto recíprocos são pertinentes para a reflexão
antropológica, a qual “não pode se fechar nem se fundar sobre si mesma; ela se sente reenviada a
um movimento mais profundo que coloca uma questão última: que é, finalmente, o homem em
sua expressão masculina e feminina”73 . E conclui, dizendo que se o ser humano se constitui
imagem e semelhança de Deus, por esta lógica devemos admitir “que Deus é prototipicamente
masculino e feminino”74.
Ainda, neste contexto, ao discutir sobre “O feminino: caminho de Deus para o ser
humano”, Boff é hipotético. Então, se existe um feminino em Deus, ele não afirma se existe, ele
interroga: “Podemos falar de um feminino em Deus? É-nos lícito invocar a Deus como minha
Mãe, assim como aprendemos do Senhor a invocá- lo como nosso Pai?”75 .
Sem desconhecer a complexidade que marca esta questão, busca compreender melhor
alguns aspectos das práticas libertadoras das mulheres, do cristianismo e da Teologia. O
aprofundamento desta temática é importante, pois, se as “Escrituras e a Tradição da fé
comumente não nos apresentam um Deus como Ela, mas como Ele”, um Deus totalmente
masculino: Deus Pai e Deus Filho, então, esse possível deslocamento: de se invocar Deus como
“Mãe”, como “Ela”, neste contexto de tomada de consciência da própria mulher, ou como é
função da teologia refletir a “partir do discurso racional da fé”, que segundo Boff “deve
aprofundar e conscientizar os limites de tais afirmações”76 , ou ainda, de uma “correta
hermenêutica teológica”, como bem denomina, para despatriarcalizar “nossa representação do
mistério trinitário”. “O masculino e o feminino encontram em Deus seu protótipo e sua fonte.
Deus- feminino serve de arquétipo supremo para a mulher como Deus- masculino para o varão”77 .
Boff observa que nos últimos anos tem surgido no contexto da libertação da mulher:
“Deus-Mãe”. E ao descrever “Deus, princípio Último de toda feminilidade” questiona, em que
sentido pode-se “falar de um feminino em Deus”? 78 . “Pai, Filho e Espírito Santo exprimem
realidades divinas enquanto princípio sem origem, sendo que o Filho é uma realidade
autocomunicada como verdade e o Espírito Santo ao comunicar-se a si mesma produz aceitação
73
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 93.
Ibidem.
75
Op. Cit., p. 94.
76
Op. Cit., p. 95.
77
Op. Cit., p. 102.
78
Op. Cit., p. 101.
74
38
amorosa no receptor”79 . Termina, afirmando que Deus “pode ser experimentado e invocado como
meu Pai e minha Mãe, nosso Pai e nossa Mãe”. E ao questionar: “qual o sentido último do
feminino?”, sua primeira resposta é que “o feminino, na ordem da criação, encontra o seu sentido
em revelar o Feminino de De us mesmo, porquanto tudo o que existe, naquilo que é e na forma
como é revela Deus”80 ; uma segunda resposta apontada é que “afeta Deus diretamente” é que
“Deus cria o diferente, na ocorrência o feminino, para ele poder se autocomunicar a este
diferente”81 . Boff conclui, dizendo que é tarefa do Espírito Santo “divinizar hipostaticamente o
feminino, direta e explicitamente e de forma implícita o masculino”82.
A quinta perspectiva, neste quadro de análise, é sobre “Maria, antecipação escatológica
do feminino” em sua absoluta realização. A hipótese do autor irá sustentar que “Maria” é essa
“antecipação escatológica do feminino em sua absoluta realização”83. Então, para explicitar essa
antecipação escatológica, ele parte de sete pressupostos: primeiro, “o ser humano tem a
possibilidade ontológica de ser unido hipostaticamente a uma Pessoa divina”; segundo, tem a ver
com a plena realização de felicidade humana no céu; terceiro, “a natureza humana assumida pelo
Filho Eterno é simultaneamente masculina e feminina (Gn 1. 27)”; quarto, “assim como o
masculino foi divinizado diretamente convém que o seja também o feminino de forma direta
imediata; quinto, “Deus pode divinizar o feminino, porque tanto em Deus quanto no feminino
existe esta possibilidade”; sexto, o fato de ter sido Maria e não qualquer outra mulher a assumida
hipostaticamente (...) protótipo feminino realizado de forma absoluta”; sétimo e último, é que “o
divinizador do masculino (e feminino) foi o Verbo; o divinizador do feminino (e do masculino) é
o Espírito Santo”84.
Para finalizar este quadro de análise em que retrata a união hipostática de Maria, ou seja, a
encarnação do Espírito Santo em Maria, Boff evita usar o termo “ encarnação” por ser um “termo
técnico da cristologia” e utiliza o termo “espiritualizar”. Sustenta “que Maria não só recebeu os
efeitos da intervenção do Espírito Santo em sua vida – como qualquer outra pessoa, apenas numa
79
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 102.
Op. Cit., p. 103.
81
Op. Cit., p. 104.
82
Op. Cit., p. 105.
83
Op. Cit., p. 106s.
84
Op. Cit., p. 107.
80
39
intensidade única – mas especificamente acolheu a própria Terceira Pessoa divina da Trindade
Santa”85 .
2.5. Análise simbólica dos dogmas em Leonardo Boff
Na quarta parte, que vai do capítulo sete ao capítulo doze, intitulado de “A Teologia”,
Boff analisa nos quatro primeiros capítulos os “dogmas”, e nos capítulos ulteriores a “mediação
universal de Maria” e seu “papel libertador”. Primeiramente, distingue a “Mariologia que vem de
baixo” de uma “Mariologia que vem de cima”86 . A Mariologia que vem de baixo é voltada para a
história, para seus acontecimentos – para a Maria que se considera serva do Senhor (Lc 1.38); a
que vem de cima é teológica, é a Maria de quem se diz que é cheia de graça (Lc 1.30). Boff
afirma que a “gramática divina” é diferente da nossa, pois sua glória se realiza na “pequenez, se
revela na insignificância e se concretiza na marginalidade”87 . A Mariologia da exaltação não se
opõe a aquela, mas antes se atém aos acontecimentos “histórico-salvífico”.
Por se tratar de um tema bastante amplo, sintetizaremos ao máximo a questão dos dogmas
marianos, os quais são analisados numa perspectiva simbólica. Para Boff, o teor do dogma não
está em dizer se são verdadeiros, mas como eles se relacionam e o que nos dizem. Por exemplo: a
Imaculada Conceição em suas análises é a “culminância da humanidade”88 . A partir da
declaração de que “Maria foi preservada e isenta de toda mancha de pecado original”, o autor
parte de duas questões iniciais: primeiro, “o que significa estar livre do pecado original? A
segunda questão: “que significa estar cheia de graça?”89 . Suas análises contribuíram para afirmar
que:
todos nascemos dentro do pecado (...) Mas de Maria se diz: ela foi isenta e preservada de toda a mancha do
pecado original; ela realiza o homem que Deus sempre quis, ereto para o céu (nós somos pelo pecado
85
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 111.
Op. Cit., p. 173s
87
Op. Cit., p. 138.
88
Op. Cit., p. 140.
89
Op. Cit., p. 144.
86
40
encurvados), aberto para o outro (nós nos centramos sobre nós mesmos) e confraternizado com o mundo
(nós possuímos egoisticamente a terra) 90 .
Sobre “A Virgindade perpétua de Maria”, Boff define como o “começo da humanidade
divinizada” e a situa no contexto do AT, onde a virgindade não “possui nenhum valor particular”.
Ao contrário, “equivalia à esterilidade que provoca desprezo”91 . A virgindade antes do parto
aponta para o novo começo do mundo. Com base nas análises de Boff, podemos concluir que a
virgindade de Maria antes do parto está associada ao ministério da encarnação; está a serviço da
realização dos desígnios de Deus; e simboliza uma ruptura para o assentamento de uma nova
humanidade. A virgindade de Maria no parto: o nascimento foi conforme a natureza humanodivina de Jesus”, não é um testemunho das Sagradas Escrituras, mas trata-se “de uma conclusão
teológica derivada da virgindade antes do parto”92 . Há uma “tradição teológica que ensina que se
trata de ausência de dor e de inviolabilidade do hímem por ocasião do nascimento do menino
Jesus” (para Boff isso deve continuar a ser tratado como especulações). “A virgindade depois do
parto : dedicação total a Cristo e ao Espírito Santo”. Este é um dos assuntos que separam
católicos e protestantes. De um lado, o “protestantismo moderno, à diferença do antigo, nega este
artigo de fé baseado nos textos evangélicos que falam dos irmãos de Jesus (Mc 3. 31; Jo 2. 12; At
1. 14; I Cor 9. 5 ; Gl 1. 19). De outro, os católicos defendem que Maria permaneceu virgem.
Segundo estes, “Os assim chamados irmãos e irmãs de Jesus eram seus primos e primas”93 . Para
Boff, “O conteúdo da virgindade após o parto não deve ser buscado em qualquer preconceito
contra a vida matrimonial e sexual”. Maria e José estavam “a serviço do significado salvífico de
Jesus”. E ainda, a virgindade tem um “sentido antropológico” e outro “teológico”. Para tanto, a
verdade revelada tende neste sentido a “decifrar dimensões do mistério de Deus, nos ajudam
também a decifrar dimensões de nosso próprio mistério”. Então, para ele “a virgindade cristã não
é apenas reserva para Deus; é principalmente missão para os homens em nome de Deus”94 .
A partir dessas análises, compreendemos que não é a virgindade de Maria o mais
importante, mas a sua “maternidade humana e divina ”, devido a seu caráter. Ela está a serviço
do desígnio de Deus. “E qual é este desígnio? Querer ser homem. Deus quer ‘realizar-se’
90
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 141s.
Op. Cit., p. 146.
92
Op. Cit., p. 158.
93
Op. Cit., p. 160s.
94
Op. Cit., p. 162.
91
41
fazendo-se homem” 95 . Maria é a “pro-genitora (genitrix)” de Deus. Ao falar da maternidade
humana de Maria, Boff afirma que esta teve implicações como qualquer outra maternidade, ou
seja, foi uma maternidade humana. Afirma também que “a maternidade não se reduz a uma fase
da vida; ser mãe é para toda a vida como também ser filho”96 . E conclui, dizendo que “Ela não é
só mãe do homem Jesus. É também mãe do Deus Jesus. Por isso, o que dela nascer será Santo e
Filho de Deus, como o diz S. Lucas (1.35)”97 . O outro pólo reside em Jesus verdadeiro Deus,
logo, legitima-se sua maternidade divina.
No capítulo dez, quanto à “Ressurreição e Assunção de Maria”, ao analisar o texto
dogmático: “a imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso de sua vida
terrestre, foi assunta em corpo e alma à gloria celeste” (DS 3903), Boff vai afirmar que o texto
deixa entrever que Maria de fato morreu, pois a morte faz parte da estrutura da vida humana,
independentemente do pecado. A Assunção para Maria, significa “o definitivo encontro com seu
Filho que a precedeu na glória”. Para nós, a Assunção de Maria “concretiza de modo
eminentemente nosso próprio destino na glória especialmente da dimensão femin ina da
existência”98 . Para Deus,
a Assunção de Maria permite uma relação mais profunda com ela, quer dizer: como se trata de uma relação
escatológica, vale dizer, na sua absoluta perfeição, significa que Deus realiza de forma terminal sua união
com Maria mediante o Espírito Santo que a partir da Anunciação fez dela templo vivo99 .
2.6. A solidariedade e mediação universal de Maria
A mediação de Maria, para o autor, tem como base “o único mistério cristológico e
pneumático”. “Maria e Cristo devem ser pensados como momentos de um mesmo Mistério de
autocomunicação salvadora de Deus”100. A solidariedade de Maria, então, consiste em toda sua
maneira de viver. Boff enumera os fatos históricos como testemunhos da solidariedade Mariana.
Seu “Sim” dado livremente a Deus; sua visita a Isabel; o Magnificat mostra a profunda
95
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 166.
Op. Cit., p. 169.
97
Op. Cit., p. 170.
98
Op. Cit., p. 182s.
99
Op. Cit., p. 184.
100
Op. Cit., p. 189s.
96
42
solidariedade de Maria pelos oprimidos da terra; o nascimento de Jesus; sua fuga ao Egito –
Maria participa da sorte de todos os fugitivos e perseguidos da história, enfim, em Caná ela
participa da alegria de um casamento e do constrangimento da falta de vinho101 . Ele entende a
mediação como “os vínculos que aproximam e unem as pessoas”102 .
O capítulo doze, ressalta a figura de “Maria, mulher profética e libertadora”, Boff ressalta
três pontos: 1) a situação opressora atual, como lugar hermenêutico da libertação; 2) Maria,
modelo dos anelos de libertação dos oprimidos; e 3) mostra-te como mãe libertadora! A
libertação é tema principal na AL, há de se perceber que nos últimos anos a fé centrada em Maria
busca uma nova compreensão, principalmente nas comunidades de base onde se apreciam “os
traços denunciadores, enunciadores, proféticos e libertadores de Maria, presentes em seu hino de
louvor, o Magnificat ”103 . É uma situação que o autor denomina de “catividade e opressão”, esta
dualidade nos coloca dentro de um “circulo hermenêutico” que, ao comparar as situações “sócio históricas” vividas por Maria e os seus conterrâneos com a nossa situação atual de cativeiro e
opressão social e política, é que se faz também “um lugar hermenêutico privilegiado para lermos
o Magnificat de Maria e fazermo-nos ouvintes de sua mensagem” 104. “A dimensão libertadora de
Maria foi, solenemente, sublinhada pela encíclica de Paulo VI, O culto à Virgem Maria (1974)”.
Boff descreve algumas considerações acerca do Magnificat para ressaltar o modelo de libertação
anelado pelos oprimidos: “(...) longe de ser uma mulher passivamente submissa ou de uma
religiosidade alienante foi, sim, uma mulher que não duvidou em afirmar que Deus é vingador
dos humildes e dos oprimidos e derruba dos seus tronos os poderosos do mundo” (cf. Lc 1. 5153)105.
2.7. O mito como acesso à realidade
Na quinta e última parte do seu livro, Boff aborda sobre “a Mitologia”, fazendo, digamos
um “retrospecto”, que constitui um panorama rico de informações a respeito da “mariologia
simbólica” a partir da mitologia, refletindo sobre o símbolo, o mito (e o arquétipo). Nesta
101
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 193s.
Op. Cit., p. 188.
103
Op. Cit., p. 196.
104
Op. Cit., p. 198.
105
Op. Cit., p. 200s.
102
43
reflexão, aponta para “Maria, o templo do Espírito, a nova Eva”. O símbolo, o mito e o arquétipo
emerge m do inconsciente, do sentimento afetivo. Entre os grandes estudiosos dos mitos citados
pelo autor, estão: Eliade, Bultmann e o antropólogo francês Gilbert Durand. Esta parte está
subdividida em três capítulos: o capítulo 13, que fala sobre “o mito no conflito das interpretações;
o capítulo 14, fala sobre “Maria na linguagem dos mitos”; e o capítulo 15, sobre o conteúdo
simbólico-existencial dos dogmas marianos.
No imaginário, a figura de Maria enquanto símbolo: “trata-se de expressar a experiência
do valor, do sentido para a vida humana, do entusiasmo pela figura de Maria”, afirma Boff. O
autor compreende também que o mito está na esfera do sentimento, numa linguagem que é de
“idealização e de escatologização”. A “mariologia simbólica” faz parte do “inconsciente pessoal
e coletivo”, é uma força que se traduz em recriar e refazer a realidade106 .
A diferença entre as deusas mitológicas e Maria é que Maria existiu de fato, ao contrário,
por exemplo, das deusas como Cibele e Hera. Mas, ao fazer uma abordagem da história
comparada da religião, deve-se notar a influência da mitologia pagã grega no cristianismo. A
deusa Hera expressava o “sentido do ierós gamós, do amor e da fecundidade sagrada”. Este
símbolo “pagão” “era o símbolo da verdadeira realidade de Maria”107 . Compreendo, então, que a
fusão da Maria histórica com a Maria simbólica “traduz a realidade do sentimento e a experiência
do coração”, tendo em vista que o simbólico revela o extraordinário, o fascinante.
Buscar sentido, significar, ou seja, “é o universo do símbolo e da mitologia que
constituem as peças comunicadoras do sentido e dos valores que conferem significado à vida
humana”108 . As “imagens do inconsciente” impõem uma relação com a realidade. Ao comparar
os dogmas marianos e seu conteúdo simbólico, Boff explica que “... os grandes mistérios
marianos se constituem como pontos de emergência e de intersecção de imagens do
inconsciente”. Por exemplo, “a virgindade de Maria, no regime simbólico e na sensibilidade da
fé, é muito mais do que um fenômeno miraculoso de biologia humana. Para nossa arqueologia
interior, a virgem constitui o arquétipo do inteiro, do completo, do ainda não tocado, do natural,
do saído inteiro das mãos do Criador”109.
106
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 216.
Op. Cit., p. 227.
108
Op. Cit., p. 251.
109
Op. Cit., p. 252.
107
44
Na sua conclusão final, afirma que “o mistério do feminino não é um mistério aterrador,
mas aconchegador e cheio de ternura”110. “O mistério não tem solução. Quanto mais penetramos
nele, mais ele se abre como desafio para o entendimento”. Maria é uma antecipação escatológica,
símbolo daquilo que irá ocorrer com todo o feminino que se realiza, a seu modo próprio, em
todos os seres humanos”111 . “Ela se constitui um ideal humano e não apenas em ideal para a
mulher”112.
Observações a respeito do texto
A união hipostática de Maria: uma hipótese, segundo Boff.
Ao assumir o feminino como caminho mariológico de reflexão, Boff, a partir de uma
aproximação analítica em que se compreende que o ser humano é sempre varão e mulher, a partir
de uma reflexão filosófica, masculino e feminino possuem uma estrutura ontológica na sua
existê ncia e a partir de uma meditação teológica, considera o feminino como caminho do ser
humano para Deus e de Deus para o ser humano. Mas, sendo Deus princípio último de toda
feminilidade: Deus minha Mãe, como observa Boff, logo, podemos expressá-lo também a partir
da “despatriarcalização” do mistério trinitário “em terminologia feminina de Mãe, Filha e
Espírito Santo”113 . E a figura de Maria, segundo o autor é uma figura “escatológica”, símbolo da
destinação última de toda humanidade.
Para Boff, as propostas teológicas da união hipostática de Jesus e de Maria se diferenciam
em alguns aspectos. Primeiramente, em Jesus essa união hipostática deve ser considerada como
humanidade do próprio Deus. “O Filho é esta mesma realidade divina enquanto é
autocomunicada como verdade de si mesma, como expressão infinita de si mesma para fora de si
mesma”114. Foi a “Segunda Pessoa da SS. Trindade, o Filho, quem assumiu Jesus de Nazaré; não
foi o Espírito Santo nem o Pai. Mediante o Verbo Eterno o masculino foi divinizado e
110
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 263.
Op. Cit., p. 264.
112
Op. Cit., p. 265.
113
Op. Cit., p. 103.
114
Op. Cit., p. 102.
111
45
eternizado”. E o feminino de uma maneira indireta. Segundo, quanto a Maria, ou seja, quanto ao
feminino, Boff questiona: “que Pessoa divina estaria ordenada a assumir diretamente o feminino
e divinizá- lo?”115 . Justifica que sua resposta não está baseada na fé nem na doutrina oficial do
cristianismo nem na tradição teológica. Mas, “a Teologia com espaço de hipótese que lhe é
reconhecido”. Ele acredita, “ser o Espírito Santo a Pessoa divina a quem o feminino é apropriado.
Não só porque na mentalidade Hebraica o Espírito Santo seja feminino, mas porque tudo o que é
ligado à vida, à criatividade, à geração é atribuído nas fontes da fé ao Espírito”. E ainda, “O
Espírito Santo teria, portanto, a missão histórico-salvífica de divinizar hipostaticamente o
feminino, direta e explicitamente, e de forma implícita o masculino”116.
Em que sentido, então, Boff levanta sua hipótese acerca do feminino? A partir da
“antecipação escatológica deste evento”. Para ele, o feminino não ficaria condicionado aos
eventos históricos. Então, ele sustenta a seguinte hipótese acerca da união hipostática de Maria:
de que a Virgem Maria, Mãe de Deus e dos homens, realiza de forma absoluta e escatológica o feminino
porque o Espírito Santo fez dela o Seu templo, Seu santuário e Seu tabernáculo de maneira tão real e
verdadeira que ela deve ser considerada como unida hipostaticamente à Terceira Pessoa da SS. Trindade117 .
É interessante notar que estudos mais recentes têm insistido sobre a importância de se
considerar o feminino como lugar hermenêutico de reflexão, desenvolvendo novas práticas
teológicas. São posturas teológicas que contribuirão indelevelmente a futuras práticas
hermenêuticas. São teólogas comprometidas em transformar as práticas tradicionais da Teologia
a respeito de Maria e do feminino, desenvolvendo então uma Mariologia e uma Teologia com
resultados mais satisfatórios.
Por exemplo, na Teologia Feminista, Elizabeth Johnson pensa Deus também a partir do
feminino e o título da sua obra é bem ousado: (She who is,) “Aquela que é”. Segundo esta
teóloga, a própria mulher tem buscado falar de Deus “de formas menos impróprias”118 . E as
imagens masculina e feminina, “cada uma delas pode ser muito bem empregadas como metáforas
para indicar o mistério divino”119 . Gebara e Bingemer pensam Maria numa perspectiva
115
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 105.
Ibidem.
117
Op. Cit., p. 106.
118
Cf. JOHNSON, Elizabeth A., op. cit. p. 39.
119
Op. Cit., p. 90.
116
46
antropológica libertadora, que elas denominam de humanocêntrica – “... homem e mulher como
centro da história reveladora do divino”. E a partir da perspectiva do Reino de Deus, que para
elas “vai além da pessoa de Jesus”, mas “toca no conjunto de seu movimento, do qual homens e
mulheres participam de forma ativa”120 . Portanto, “é afirmar que a salvação e a criação de Deus
sempre se mostraram inseparavelmente presentes no homem e na mulher”121 .
É consensual o pensamento destas três autoras, que complementam e ampliam questões
presentes no pensamento de Boff, que é pensar Deus a partir do feminino, a partir do que ele
representa para nós hoje, a partir de uma ruptura com a ideologia cultural.
Agora, o olhar hermenêutico mariológico/teológico deve se orientar para uma prática
libertadora, deve também se dirigir para o conhecimento que se passa nas ciências auxiliadoras.
Neste sentido, a Mariologia deverá se posicionar paralela à Cristologia na efervescência de sua
discussão. Isso tem se constituído um exercício árduo de teólogas e teólogos latino-americanos.
Os novos olhares constituem-se um desafio à hermenêutica como caminho metodológico mais
convenientemente ajustado ao objeto de estudo.
3. MARIOLOGIA POPULAR
Introdução
A obra de Dorado, para aqueles que se interessam por Mariologia popular, é um livro
cheio de informações, relatos e fatos históricos importantes ligados ao momento da inserção da
figura de Maria no continente latino-americano. Embora saibamos que a história da AL esteja
marcada por um período cruel e sangrento das conquistas e da colonização, entretanto, conforme
informa Dorado, Maria “insurge” neste continente no mesmo período. Inclusive, a figura de
Maria faz parte dos movimentos das conquistas, que na maioria das vezes impulsionando os
conquistadores, concedeu-lhes e legitimou suas vitórias. É nesse quadro de conquistas e vitórias
que encontramos várias culturas e a religiosidade destruídas, desrespeitadas, reduzidas às cinzas e
120
121
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 44.
Op. Cit., p. 48.
47
subjugadas aos ideais das conquistas e do “evangelismo”. No entanto, não se trata aqui de revisar
toda esta história, pois existem obras especializadas neste contexto.
Seu livro, intitulado “Mariologia Popular Latino-Americana: de Maria Conquistadora a
Maria Libertadora”, é uma reflexão séria e honesta, sobretudo da devoção popular surgida neste
contexto. Suas reflexões oferecem bases para a compreensão da devoção popular latinoamericana e destaca a religiosidade popular como ela é concebida pelo povo. Relaciona esta
postura com a idéia de “Teologia popular”, a qual para ele é pré-científica, irreflexa e espontânea.
A obra caminha no sentido de valorizar a história latino-americana como um conjunto de dados
úteis para identificar como se desenvolveu neste contexto a Mariologia popular.
Em nota introdutória, o autor esclarece que seu objetivo é “uma aproximação crítica da
teologia Mariana que está subjacente no catolicismo popular latino-americano, com a finalidade
de alcançar um conhecimento mais ajustado da Virgem Maria em quem o nosso povo crê (...)”.
Devido a pluriculturalidade deste continente: asteca, maia, incaica, guarani, afro-americana,
Dorado percebe que a própria expressão “a Virgem Maria, é de grande complexidade”122. A obra
está dividida em oito capítulos, com a apresentação feita por J. Montero Tirado.
3.1. Maria na Teologia da religiosidade popular latino-americana
Os três primeiros capítulos dessa reflexão pretendem estabelecer relações entre a gênese
da teologia popular, a Virgem Maria, a devoção mariana dos conquistadores e as ambigüidades
teológicas da Maria denominada de “A Conquistadora”.
Para Dorado, a Teologia popular é pré-científica, irreflexa e espontânea, diferente da
Teologia que se articula reflexa e cientificamente. Em alusão à chamada célebre definição
anselmiana: “fides quaerens intellectum ”, Dorado pensa que se “a teologia é fides quaerens
intellectum”, ela é pensada por meio da assimilação prévia da revelação através da fé, “mediante
a qual o homem se constitui em crente...”. Logo, para o autor a gênese da teologia popular, então,
“é o resultado de um processo de assimilação da fé por uma pessoa ou por uma coletividade”, do
qual, o centro desta fé é “a aparição, mediante a evangelização de Jesus Cristo morto e
122
Cf. DORADO, Antonio González. Mariologia popular Latino-americana: de Maria Conquistadora a Maria
libertadora. São Paulo: Loyola, 1982, p. 13.
48
ressuscitado como salvador do mundo (Jo 4. 42) e de cada pessoa concreta (Lc 1. 47)”. E a
assimilação deste universo soteriológico acontece num determinado momento histórico “que
adquire na pessoa características de acontecimento com o advento da fé”. É o reconhecimento de
Cristo como “meu salvador”123. Entretanto, como indica o autor:
quando esta expressão é analisada à luz do Magnificat, meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” (Lc.
1, 47), a expressão adquire profundidades e novidades insuspeitadas. Deus-Salvador é o que se exprime com
o nome de Jesus. O Deus Salvador que aparece na fé cristã de Maria, e no qual ela se alegra com esperança,
é Jesus. O momento de assimilação histórica entra em simbiose com o universo histórico-sociocultural do
mesmo povo, dando origem "a uma religiosidade ou catolicismo popular, como no caso, latino-americano,
no qual está subjacente uma autóctone e popular teologia ou ‘cultura teológica’124.
“Quem é a Virgem Maria” no contexto latino americano? Primeiramente, Dorado
distingue quatro aspectos na Virgem Maria: “A Maria da história ” – que se incorpora à fé da
Igreja por ser mãe do Jesus histórico. Ela é uma mulher israelita, pobre, que reside em Nazaré,
que cumpre as leis imperiais e convive com as desigualdades sociais; segundo, “A Maria da fé
pascal do NT” – para Dorado esta é uma outra dimensão de Maria de maior transcendência e
referência de toda a Mariologia. Ela é originária por acontecimento da ressurreição de Cristo,
mãe do Jesus histórico, logo, mãe do Cristo ressuscitado. Sem negar, evidentemente, a dimensão
biológica e humana que a humanidade supõe, a maternidade fica constituída essencialmente, com
relação ao Cristo, em ouvir e amar a palavra de Deus (Lc 11. 28), e em cumprir a vontade de
Deus (Mc 3. 35); terceiro, “A Maria da Igreja magisterial e teológica” – esta é a Maria definida
por atos do Magistério e refletida pelos teólogos. Está circunscrita no contexto do Cristo
ressuscitado e dá origem aos dogmas marianos que aprofundam a maternidade pascal, a qual está
vinculada à sua virgindade
desde o século IV na confissão de fé de Epifânio e qualifica
expressamente Maria como sempre-Virgem (Dz 13). A consciência da concepção Imaculada de
Maria foi definida como dogma por Pio IX em 1854, e de sua Assunção corporal na glória celeste
solenemente declarada como dogma por Pio XII, em 1950; e por último, “A Maria da piedade da
Igreja e das igrejas – diferente da Maria histórica, esta é múltipla e diversificada, com
123
124
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 18.
Op. Cit., p. 18s.
49
profundidade de séculos e com capacidade de multiplicar-se sempre de novo com uma nova
imagem, com uma nova invocação ou com uma nova devoção”125.
Maria chegou ao continente por meio de seus conquistadores, eles dedicavam- lhe profunda
devoção, por exemplo, Cristóvão Colombo nutria profunda devoção à Virgem, inclusive “em seu
estandarte estavam impressas as imagens de Jesus e de Maria”. Suas vitórias foram atribuídas à
Virgem e ao derrotarem os índios impuseram um altar à Maria em substituição aos deuses e altares
indígenas. O autor ressalta a parte histórica das conquistas e como a figura de Maria ficou atrelada
aos seus empreendimentos e legitimando os interesses ideológicos dos seus conquistadores. Duas
questões de Dorado nos chamam a atenção: “Qual era a Virgem Maria que se ocultava na fé dos
conquistadores? Como esta Virgem Maria aparecia diante dos olhos indígenas?”126. Temos aí duas
faces de uma mesma moeda, de um lado, o empreendimento hispânico pela conquista de novas
terras, conquistadores que clamam pela vitória à Virgem Maria e assim se sentem apoiados por
Maria “A Conquistadora”. E de outro, o movimento missionário pela conquista “espiritual”127 , que
salvaria os índios do inferno.
É neste contexto de conquista que se origina o que Dorado denomina de “ambigüidade
teológica da Conquistadora”. Relatos da crônica escrita por Fr. Antonio de Tello, encontrada nos
escritos de Vargas Ugarte, conforme relata Dorado, mostram em uma inscrição essa ambigüidade
teológica da Conquistadora, descrita assim:
nesta venci e quem me carregar, com ela vencerá, e de outro lado estava a imagem da conceição puríssima de
Nossa Senhora e com outra inscrição que dizia: Maria, Mater Dei, ora pro nobis, e ao descobri-la e levantá-la
ao alto, estando de joelhos, com lágrimas e devoção lhe suplicaram os aflitos espanhóis que fossem libertados
de tantos inimigos...128 .
O resto do relato mostra que o estanda rte se encheu de resplendores, encorajando, assim, os
espanhóis a marcharem e a lutarem e, ao chegarem perto dos adversários, puseram à mostra os
estandartes, temerosos os índios se prostraram ante o estandarte de Maria e da cruz, colocando aos
pés do Padre Frei Juan de Villadiego suas bandeirinhas. Conclui Dorado: “... sem necessidade de
luta e de arma, pessoalmente com seus resplendores derrota os índios, concedendo a vitória aos
125
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 28s.
Op. Cit., p. 33.
127
Op. Cit., p. 35.
128
Op. Cit., p. 37.
126
50
espanhóis”129 . Em conseqüência disso, os ameríndios e afro-americanos – os ve ncidos, “para eles
tratava-se de um mundo de invasores e inimigos protegidos por deuses estranhos”, ressalta
Dorado 130 .
3.2. Maternidade popular latino-americana
O quarto e quinto capítulos referem-se à incorporação de Maria na AL, ou seja, “o
princíp io da maternidade como chave da nova Teologia popular Mariana. Mas também há uma
importante transição da figura de Maria como a “Conquistadora” para a Maria do contexto atual “Maria Mãe Libertadora”. Isso acontece em três momentos que o autor considera privilegiados:
“Guadalupe, Copacabana e a Virgem ”. Nesta parte, Dorado apóia-se nas pesquisas de Clodomiro
Siller e de Salvador Carrillo. “A nova América Latina nasce em Guadalupe”. Não entraremos nos
detalhes dos acontecimentos relacionados à sua incorporação, mas vale ressaltar que a figura de
Maria foi aclamada pelos índios:
Quando em 1531, o bispo do México, Frei Juan de Zumárraga se encaminha em devota procissão desde a
cidade do México até o Tepeyac com a manta do índio Juan Diego, em que aparecia impressa a imagem da
Virgem de Guadalupe, contam as testemunhas que uma grande multidão de índios a aclamaram como sua
mãe e que não se cansavam de repetir: Nobre indiazinha, nobre indiazinha, Mãe de Deus! Nobre indiazinha!
Toda nossa!131 .
Em Guadalupe é o momento em que os índios assimilaram a figura de Maria aclamando-a
como Mãe. É claro que na situação em que se encontravam os índios: “politicamente, indígenas
derrotados e humilhados, ameaçados pela varíola e por outras doenças importadas pelo
invasor”132, nada mais “justo” que unir-se aos deuses dos conquistadores, já que os seus foram
derrotados. Maria aparece ao índio Juan Diego dizendo: “eu sou vossa piedosa mãe”133 .
129
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. Ibidem.
Op. Cit., p. 39.
131
Op. Cit., p. 44.
132
Op. Cit., p. 45.
133
Op. Cit., p. 46.
130
51
Um outro momento importante é a Virgem de Copacabana, que é uma imagem trabalhada
pelas mãos de um índio, Francisco Tito Yupanqui, pelos anos de 1580. “Pachamama era o
princípio materno de identificação do mundo indígena, a mãe telúrica, o seio materno que se
deveria tratar com todo o carinho, e do qual dependia sua vida. Pachamama tinha uma
representação insigne na pedra sagrada que dominava tudo”. Para o autor, a Virgem de
Copacabana é um novo nascimento original de Maria, dentro deste específico contexto ameríndio.
O encontro dos indígenas de Copacabana com a imagem da virgem Maria “feita pelas mãos de um
filho de seu povo, estabelecem espontaneamente uma conexão entre Maria e a Pachamama,
encontrando nela o início de sua salvação”134 .
E por último, a devoção à Virgem Maria, “a Mãe libertadora”, esta se desenvolve durante
os séculos da colônia, mas como observa Dorado “com uma progressiva matização americana,
tanto para os crioulos como para os mestiços e indígenas”135. A fé na Virgem foi se
desenvolvendo aos poucos, durante os anos de independência. Na independência do México, por
exemplos, “é conhecida a figura do padre Hidalgo com os primeiros insurgentes marchando para
o Santuário de Atotonilco e levando da sacristia um pano com a imagem da Virgem de
Guadalupe...”136; “Os patriarcas de Quito, antes de lançar o primeiro grito de rebelião, puseram
seu empreendimento sob a proteção de Maria”137.
A maternidade de Maria na piedade popular, segundo Dorado, é o ponto central de sua
incorporação na AL. Há um reconhecimento, de fato, que Maria é Mãe de Deus e de Cristo, e
mais ainda: “Maria é minha Mãe e é nossa Mãe”. “Esta relação afetiva e vital é fundamental para
a configuração da Teologia Mariana na AL”. A maternidade como lugar privilegiado de Maria
marca a devoção popular e, “é nesse lugar privilegiado que vão ficar semeados a devoção e a
piedade a Maria e, portanto, em que se vai elaborar pelo povo sua própria Teologia de Maria,
com suas grandezas e suas limitações”138.
No entanto, devido à complexidade do tema e diante de uma pluriculturalidade existente,
Dorado considera três fatores importantes, os quais marcaram os processos históricos deste
134
135
136
137
138
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 53.
Op. Cit., p. 54.
Op. Cit., ibidem.
Op. Cit., p. 55.
Op. Cit., p. 57.
52
continente, nos quais a figura da mulher e/ou da mãe fica atrelada aos conceitos e determinações
culturais: “o machismo, a opressão e a predominante experiência camponesa”139 .
A cultura machista supervalorizou o homem, caracterizando-o pelo seu caráter de
“macho”, “estimado por sua dureza e coragem”, “... um modelo de homem que é plenamente
aceito e compreendido em seu meio ambiente”, ao qual “se contrapõe dialeticamente a
mulher”140. Dorado afirma: “o que o machismo certamente rompe é o equilíbrio e humano
binômio homem- mulher”141 . Neste ambiente de cultura machista se supervaloriza a maternidade
e o lar. O autor ressalta, ainda, que “a mãe, como valor positivo para os filhos, vai surgir
dialeticamente como o negativo-positivo do ‘macho’”142 ; o segundo fator que o autor considera é
a maternidade e opressão – para Dorado “a nível de Igreja, conscientizou-se a situação de
opressão em que vive o nosso continente”. “A relação da maternidade-filiação entre oprimidaoprimido é, sem dúvida, muito dolorosa e base de muitos sofrimentos...”143 ; o terceiro fator é a
maternidade e cultura camponesa – a cultura camponesa é fortemente marcada pela sua “relação
entre a mãe e a terra”, com algumas características: trata-se de “uma maternidade virginal,
mediante a maternidade da terra se estabelece uma profunda solidariedade entre a terra e o
homem; é uma maternidade ritual e quase mágica. Com efeito, o camponês tem de intervir de
alguma forma na fecundidade e generosidade da mãe-terra”; é também uma maternidade cíclica,
que se manifesta em sua plenitude em determinados tempos privilegiados, tempos em que é
possível obter toda espécie de bens” 144.
Dorado conclui, dizendo:
quando o povo diz ‘minha mãe’ ou ‘nossa Mãe’ está fazendo uma referência concreta a esta original
maternidade que, por sua vez, constitui uma peça privilegiada da estrutura cultural a que pertence. Portanto,
não se refere a uma maternidade abstrata, mas a uma maternidade em situação e bem pessoal de ‘nossos
filhos’ a ‘nossa Mãe145 .
139
140
141
142
143
144
145
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 58.
Op. Cit., p. 58.
Op. Cit., p. 59.
Op. Cit., p. 60.
Op. Cit., p. 61.
Op. Cit., p. 62.
Op. Cit., p. 64.
53
3.2. A Maria da América Latina
No capítulo seis, intitulado “A Maria da América Latina”, “a Virgem é exaltada até os
limites insuspeitados; é humanizada e aproximada da vida do povo; ela é concretizada e
localizada em imagens e espaços determinados”146 . O autor, primeiramente, ressalta a exaltação
de Maria na AL, que foi até denunciada como “mariolatria”. As expressões de relacionamento
Mãe-Filho são atos que se manifestam nas celebrações, nos dons, nas promessas e nas orações.
Neste sentido, o autor considera que a Maria Pascal e Eclesial, neste contexto é uma
“Maria simbólica”: ela é a Virgem caracterizada pelo “triunfo de ‘nossa mãe’ diante da agressão
machista, tendo o privilégio de ter sido amorosamente fecundada por Deus de uma forma
semelhante à mãe-terra”147 ; ela é Imaculada caracterizada pelo ideal de mãe e de lar...”; e ela é
“Assunta ao céu que caracteriza a mulher que se encontra com Deus, o que se manifesta também
em ser modelo e escola de piedade”. A Maria da história é a Maria sofredora que também tem sua
“história de pobreza e de opressão”, essa identificação possibilita ao mesmo tempo humanizá-la e
elevá- la até aos limites insuspeitados. Dentro deste contexto de maternidade sofredora e
oprimida, a Maria da história reflete bem tais características. A concretização da maternidade de
Maria se realiza a partir do relacionamento “filho- minha mãe”. A “Maria da piedade e de nossa
história” habita no lar, a presença da imagem, quadro ou estátua, segundo Dorado, é fundamental
na Teologia popular latino-americana”, é significativa, pois esta mantém o relacionamento
afetivo de “proximidade, visualização e de contato estritamente pessoal ‘individualizado’”148 . A
Maria da AL é o ideal de mãe e de lar. A maternidade vivida pelos filhos é projetada na
maternidade revelada de Maria.
No capítulo sete a partir de uma “análise da teologia Mariana popular”, o autor constata
que existe “deformidades e deficiências” nesta religiosidade popular. Conforme sublinha Dorado,
essas deformações “não se podem encontrar no dado revelado, pois sua principal causa deve ser
encontrada na cultura que recebeu a fé”149 . A Mariologia neste contexto fica reduzida a uma
funcionalidade restritamente em aspectos de refúgio, consolo e proteção.
146
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 65.
Op. Cit., p. 66.
148
Op. Cit., p. 71.
149
Op. Cit., p. 79.
147
54
O lar e a sociedade são espaços em que se desenvolvem os papéis sociais e,
conseqüentemente, as desigualdades. Na ótica do oprimido, principalmente em ambiente
machista, a Mariologia se restringe à maternidade centrada no lar. “A cosmovisão da cultura
oprimida na AL, por motivos de ordem provavelmente histórica, está qualificada
simultaneamente pelo machismo e pela predominante experiência camponesa”150 . Então, o lar e a
sociedade são espaços dualistas, a sociedade é o espaço do macho o qual a mulher está excluída,
cabendo-lhe o ambiente do lar para desempenho de seu papel “social” ou maternal (grifo meu).
O lar constitui-se em ambiente afetivo de compreensão e de perdão para os filhos, ressalta o
autor.
Essa relação fiducial desemboca nas projeções da mariologia popular, primeiro, porque “é
uma Mariologia basicamente afetiva e sentimental”; segundo, pelo perdão e salvação eterna; e
terceiro, a maternidade da Virgem como refúgio, auxílio e ajuda diante de qualquer
necessidade”151. Dorado destaca também algumas limitações da Mariologia popular: primeiro, “é
uma Mariologia que limita a compreensão da personalidade humana de Maria, situando-a na
maternidade e no lar, o que dificulta a função soteriológica do Evangelho através de Maria sobre
a mulher latino-americana”, que o autor define como ‘a mais oprimida entre os oprimidos’”. A
segunda limitação: “a Mariologia popular fica estabelecida sobre uma relação entre a mãe e o
homem, na qual o homem fica projetado em duas imagens bem diferentes: a do filho e a do
macho”. A terceira limitação “é dada pela não intervenção da mulher e mesmo da mãe no mundo
econômico, social e político – a não ser no plano subsidiário da ‘misericórdia’ –, o que tende a
limitar a intervenção da mulher e da mãe Maria em tal campo”152 .
E por fim, o capítulo oito, intitulado: “Da mãe dos oprimidos à mãe da libertação”, o autor
reflete a partir desse novo momento em que se incorpora a mariologia popular sob o contexto de
libertação, ou seja, na “perspectiva soteriológica sob o signo da libertação”153 . Neste contexto, a
Igreja deve estar consciente da sua responsabilidade no projeto de evangelização e segundo
Dorado, o objetivo formulado deve incluir três aspectos complementares:
150
151
152
153
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 81.
Op. Cit., p. 84s.
Op. Cit., p. 90s
Op. Cit., p. 96.
55
o estrutural – que supõe o desaparecimento de estruturas geradoras de injustiças, e devem ser substituídas
pelas estruturas geradoras de justiça; o cultural – implica renovação e transformação evangélica de nossa
cultura (...) – mudança plena do homem através do evangelho; e o religioso – que é o passo de uma fé débil
a uma fé forte, e de uma religiosidade popular ambígua a uma religiosidade popular profundamente
evangelizada (...) que é a partir da fé, e a partir da fé em Jesus Cristo, na pureza do dado revelado, que se
descobrem toda a profundidade e exigência da dignidade da pessoa humana e sua dimensão transcendente
com relação a Deus154.
Um outro ponto que Dorado destaca nesse capítulo é “a situação opressão-libertação
como novo lugar hermenêutico”. Este lugar hermenêutico pode ser vivenciado tanto pelo povo
como pelo teólogo, “mas com uma estreita colaboração entre ambos”. A partir do momento em
que o povo “se conscientiza de sua situação de ‘opressão- libertação’, espontaneamente tenderá ao
descobrimento da Virgem como Nossa Mãe Libertadora...”155 . Levando em conta que a
Mariologia popular corre o risco das limitações, das contradições, dos desequilíbrios e,
principalmente, “pelo fator do machismo”, o trabalho teológico científico é significativo pois,
“em seu esforço mariológico, levando em conta as ‘opressões culturais’ das quais a Mariologia
deve salvar-se, e das quais também Maria quer, evangelizadoramente, libertar seus filhos”156 .
Nesse novo lugar hermenêutico em que Maria aparece como nossa Mãe da libertação,
essa nova Mariologia deve marcar, segundo Dorado, a continuidade e a descontinuidade com o
passado. Essas novas características devem acompanhar Maria, no seu novo lugar hermenêutico:
Maria como libertadora da Mulher – primeiro, é preciso “conscientizar bíblica e historicamente
Maria, antes de ser mãe, foi mulher...”157 , ressalta o autor; Maria, libertadora do fatalismo e do
imanentismo social – “é constituir-se em demolidora do fatalismo típico das culturas cíclicas
camponesas, sujeitas inevitavelmente aos condicionamentos ecológicos e atmosféricos nos quais
vivem”158 ; Maria, libertadora das cadeias do machismo – esta aponta para Cristo como caminho
de salvação e “deve mostrar um novo caminho a seus filhos, dizendo: ‘Fazei o que ele vos disser’
(Jo 2.5)”; Maria, libertação e maternidade universal – deve ser vivida e compartilhada por seus
filhos 159 .
154
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 97.
Op. Cit., p. 104.
156
Ibidem.
157
Op. Cit., p. 105.
158
Op. Cit., p. 107.
159
Op. Cit., p. 113.
155
56
3.4. Conclusões do autor
“Maria deve aparecer como o símbolo que nos oferece a fé da libertação da mulher oprimida
no contexto de um pecaminoso universo machista, restituindo-lhe sua dignidade e sua dimensão
especificamente social, tanto na comunidade religiosa como na profana”160 . E, finalmente, o autor
conclui afirmando da sua convicção de que “a nova Mariologia popular latino-americana tende a
desenvolver-se em sua originalidade, autoctonia e audácia, assumindo no mesmo contexto a
mariologia da Virgem de Guadalupe. É uma mariologia que se abre energicamente para o futuro,
sempre apoiada sobre suas mais legítimas raízes”161 .
Considerações pessoais sobre o texto
A partir do aprofundamento dos seus estudos sobre a temática da Mariologia popular, o
autor constata que há “deficiências” na religiosidade popular e que essas deficiências não são
encontradas no dado revelado, mas nos modelos estruturantes da cultura que recebe a fé. A
cultura popular, como ressaltou o autor, é marcada pelo triângulo “opressão- machismoexperiência camponesa”, este mesmo fator não suficientemente criticado e denunciado, poderia
continuar incidindo perigosamente na gênese da nova Mariologia. Dorado entende que a Teologia
científica contribui mais diretamente para a mudança estrutural da cultura, já que o machismo
incidiu na Mariologia popular tradicional dos povos latino-americanos.
Dessa forma, não estamos pensando no entendimento da Mariologia popular como uma
prática subjacente à própria Teologia, mas ao mesmo tempo a piedade popular consciente do seu
estado de opressão identifica e busca teologicamente, conferindo aos teólogos competências
metodológicas, não para se sobrepor à Mariologia popular, mas para se refletir novas formas que
contribuam para extinguir as estruturas geradoras de injustiças, substituindo-as pelas “estruturas
geradoras de justiça”.
160
161
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 107.
Op. Cit., p. 123.
57
Entendo também que a Mariologia popular consciente do contexto de opressão, vislumbra
em Maria proteção, abrigo, ternura e amparo. Ela é uma intercessora entre o devoto e Deus, neste
caso, a mediação de Maria é significativa dentro de uma cultura machista, já que esta contribui
para a tipificação de Deus como um Pai rigoroso, autoritário e exigente. Sua mediação contribui
mais significativamente para conciliar, unir e estabelecer o relacionamento entre Pai, filhos e
filhas. Podemos perceber que a devoção popular não se restringe às projeções da cultura sob o
simbolismo mariano da maternidade, mas a maternidade de Maria como preservação da vida e
amparo nas aflições.
A Teologia científica seria pretensiosa no sentido de querer “corrigir” a Teologia popular
que vive da fé e da esperança. No entanto, a experiência religiosa vem acompanhada pela fé, que
poderá ser, ainda que contraditório, esperança para quem se encontra no desespero, na angústia e
no desamparo, e os símbolos vêm marcados pelos momentos de tristeza, perseguição, dor e
morte, por exemplo, a paixão de Cristo. Eles nascem em situações de extrema desilusão e tudo o
que o povo quer é ser atendido em suas preces, na devoção Mariana o que importa não é a
influência da cultura sobre o símbolo, mas a esperança, o conforto, o consolo que Maria evoca.
No entanto, o símbolo mariano com toda ambigüidade e contradição, fortalece e nutre a fé
do povo. Claro que a Teologia deverá contribuir para conscientizar o povo da situação de
opressão, mas isso não significa interferir na piedade popular para obliterar a fé, como se o
discurso teológico fosse a única fonte de vida, claro que a teologia popular não deve também se
sobrepor à científica mas, como explicita Dorado, ambas devem trabalhar em conjunto.
Por outro lado,
o tema mulher é encontrado num contexto vinculado ao tema da
marginalidade social da própria mulher na AL, em que ela é oprimida, e o homem constitui-se o
ideal pela sua agressividade – “atributo do macho”. Alijada do mundo do poder, na sociedade
patriarcal o lugar da mulher é o lar. Sendo assim, a figura de Maria apenas contribui para
acentuar as diferenças sociais existentes. A cultura serve de instrumento para inserção da fé
religiosa em Maria. A exemplo da AL, a figura de Maria é um símbolo conveniente fortíssimo na
cultura predominantemente machista, em que a mulher deve reproduzir a figura da “Virgem
Maria”: ideal de mulher, de mãe perfeita, submissa, caseira, compreensiva, auxiliadora, sensível.
O símbolo mariano é o pretexto da religião, o qual conserva e promove a condição de
inferioridade da mulher ao homem. Embora o próprio símbolo da Virgindade de Maria promova
não a virgindade ou submissão da mulher, mas sua castração ao poder e renúncia da sua
58
capacidade produtiva, intelectual e social. Maria torna -se símbolo de dominação machista e ao
mesmo tempo também símbolo de adoração e louvor. Mas a Maria Mãe da libertação, como
ressalta o autor, deve nessa nova perspectiva promover a libertação da mulher.
Síntese do capítulo
As novas concepções e releituras que têm permeado a elaboração teológica a respeito de
Maria e nesta releitura a inclusão do feminino a levar em conta a emancipação da mulher, coloca
uma contribuição para a mudança na concepção sobre a própria figura de Maria. As contribuições
aqui escolhidas fazem parte dessas novas reflexões, que têm suas teorias voltadas para tais
perspectivas. O primeiro capítulo está subdividido em três partes, nas quais estão presentes
alguns eixos dos pensamentos que caracterizam a TL: consciência do indivíduo do seu estado de
opressão; emancipação; a relação entre teoria e práxis. No contexto da AL a reflexão sobre a
figura de Maria é um caminho alternativo para refletir ao mesmo tempo sobre o feminino e
romper com os conceitos tradicionais da fé.
Começamos, assim, com Gebara e Bingemer, que ousam romper com a Teologia da
Salvação que é centrada na figura de Jesus – único mediador. Para elas, “se Deus nos fala e nos
salva de muitas maneiras, fala-nos e salva-nos através da realidade masculina e feminina
constitutivas do humano”162. Enfatizam a partir da antropologia (feminista ou feminina) novas
formas de se pensar a fé numa prática que seja inclusivista e não exclusivista, nem sexista,
tampouco patriarcal. Neste sentido, ao falar de “Maria a esperança de um povo novo” se retrata,
de um lado, um povo que reza, canta, louva e exalta a Virgem Maria cheia de graça. De outro,
apesar das adversidades que o homem contemporâneo tem enfrentado, há de se notar que a
esperança é a mola mestra para as situações-limites do cotidiano.
Em um país onde o desemprego, os baixos salários e as desigualdades sociais são
gritantes, “a esperança nossa de cada dia” é quem nutre a fé desse povo que espera por um país
melhor, políticos melhores, principalmente esperançosos de contemplarem o fim das
desigualdades sociais. Esse mesmo povo que reza, canta, louva e tem esperança é também um
162
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 48.
59
“povo novo” que surge neste contexto: consciente de seu estado de opressão, que até mesmo em
função da esperança “luta” por uma sociedade mais justa, menos opressora e, sobretudo,
solidária.
Uma terceira contribuição vem do teólogo Leonardo Boff. A espinha dorsal do seu
trabalho é a reflexão do feminino como acesso a Deus. A leitura de Gênesis 1. 27 para Boff
constitui-se a base que legitima o feminino em igual dignidade que o masculino como acesso ao
divino; o feminino também serve de “arquétipo supremo”163 . As análises de Boff nos ajudam a
lançar olhares sobre o feminino como imagem e semelhança de Deus que ele é. Sendo assim,
Boff analisa a figura de Maria rompendo com os conceitos tradicionais e assume o feminino
como caminho mariológico para revelar Deus. Para ele, “importa que a mario-logia seja teologia. E, “(...) ao se falar de Maria deve-se falar de Deus”164. Considera também que a Teologia
como responsável por pensar a fé, deve dar respostas de formas mais críticas, rompendo com os
conceitos culturais. Suas contribuições também são significativas para o desenvolvimento da
nossa temática, já que ele pensa o feminino como caminho mariológico; sua pertinência
teológica, indicando que ele também é caminho para se chegar a Deus.
Uma quarta contribuição é a do espanhol Dorado, que lança olhares críticos na Teologia
da piedade popular, indicando que é necessário “corrigir” a influência da cultura na Teologia da
fé popular, para que a figura de Maria não fique atrelada aos conceitos culturais da maternidade,
pois a maneira que o povo crê vem carregada de elementos culturais: “opressão- machismoexperiência camponesa”. É, pois, necessário que se compreenda os fenômenos sociais ligados à
fé, e com esta compreensão entender o símbolo mariano livre dos conceitos culturais. Isso
implicaria em desvincular a figura de Maria dos aspectos associados à cultura, conscientizando o
povo das estruturas geradoras de injustiças e dos modelos culturais operantes geradores de
opressão. Sendo assim, um olhar crítico sobre a Mariologia popular contribuirá para corrigir os
aspectos negativos ligados à figura de Maria.
O novo lugar hermenêutico, portanto, poderá originar “um novo momento da Mariologia
tanto científica como popular”. No entanto, podendo existir os dois níveis, tanto o espontâneo,
irreflexo e vivencial pelo povo, quanto o científico e reflexo pelo teólogo, contanto que haja uma
mútua colaboração, como ressalta o autor165.
163
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 102.
Op. Cit., p. 31.
165
DORADO, Antonio González, op. cit. p. 104.
164
60
As contribuições desses teólogos e teólogas são significativas, pois apresentam uma
ruptura com o tradicional modo de pensar a Bíblia e a aceitação dos dados revelados de maneira
passiva e resignada; é também uma ruptura, de certa forma, com a tradicional maneira de pensar
a figura de Maria: ou como uma figura inferior a Cristo ou simplesmente como a terna Mãe de
Deus. E sugerem que devemos pensar mais a respeito dos textos lidos, tendo em vista que eles
são produções culturais, bem como, as suas interpretações, por isso “não deve haver uma
transposição simplista daquilo que é dito para um grupo, para um outro mesmo que algumas
coisas possam ser perfeitamente aplicáveis”166 . Boff sugere apropriação dos dados novos e da
mudança que “se verifica na sociedade no tocante ao feminino” e que cabe à Teologia contribuir
de maneira “crítica” e não mais “ingênua”, e a partir daí romper com as idéias culturais167 . Para
Dorado, é muito importante o “trabalho teológico científico em seu esforço mariológico, levando
em conta as ‘opressões culturais’ das quais a Mariologia deve salvar-se, e das quais também
Maria quer, evangelizadoramente, libertar seus filhos”168 .
Concluímos, pois, que o que existe de novo nos teólogos a partir da TL, comparando com
o que já conhecemos sobre Maria, é propriamente uma ênfase mais acentuada do que uma
mudança no conteúdo. Pois, podemos perceber que os nossos autores permanecem na posição
teológica previamente definida (conteúdos teológicos do texto bíblico) e que posteriormente foi
definida como dogma no decorrer da história do cristianismo – eles são dogmáticos, não se
despem totalmente dos dogmas, mas fazem uma releitura dentro de uma perspectiva libertadora.
E um dos focos centrais é o Magnificat como referência de libertação do oprimido. Os teólogos
da TL colocam Maria de Nazaré numa linha paralela à figura de Jesus de Nazaré, mas o centro é
sempre Deus, nunca Jesus ou Maria; masculino ou feminino, mas estes se constituem caminhos
até Deus. A TL imprime no sujeito, a partir da figura de Maria, o incentivo para as suas buscas
permanentes e constantes de maneira efetiva concreta e não apenas subjetiva, ao contrário, a
esperança se concretiza na objetividade da fé prática.
O segundo capítulo, intitulado “Maria símbolo de Deus”, está dividido em duas partes,
nas quais analisar-se-á primeiro a teoria dos símbolos baseada nos pensamentos de Eliade, Tillich
e Haight, enfatizando o significado de símbolo religioso. Em seguida, na segunda parte, analisarse-á a figura de Maria como símbolo de Deus à luz das teorias do símbolo. Na terceira parte,
166
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 39.
BOFF. Leonardo, Op. Cit. p. 17.
168
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 104.
167
61
inferiremos a teoria de um teólogo europeu (FORTE: 1991), que servirá de interlocutor para ver
se há contrapontos.
62
CAPÍTULO I I
MARIA, SÍMBOLO DE DEUS
Introdução
Propomos neste segundo capítulo apresentar uma visão geral das teorias acerca do
“símbolo religioso”, começando por Eliade (1991 e 1992), que faz uma abordagem
fenomenológica, depois por Tillich (1985), que faz uma análise a partir da linguagem religiosa e
da fé, e por último as análises de Haight (2003), que analisa a figura de Jesus como símbolo de
Deus. Para não desviarmo-nos do ponto central do trabalho, não nos deteremos nestas
importantes e extensas discussões das teorias, mas a partir da luz de seus significados, para que
assim, iluminem nossa compreensão a respeito da figura de Maria como “símbolo de Deus e da
Mulher”. Ressaltaremos, no entanto, alguns aspectos relevantes para contextualizar nossa
temática. No interior dessa discussão, o símbolo está ligado à linguagem religiosa, ao sentimento,
à fé, à transcendência, ao mistério e ao inconsciente. Na segunda parte, inferiremos qual o sentido
simbólico da fé e qual o sentido religioso, será analisado também o feminino como imagem e
semelhança de Deus. E por fim, concluiremos esta parte com as reflexões da teoria de Bruno
Forte sobre “Maria, a mulher ícone do mistério”.
1. MANIFESTAÇÃO DO SAGRADO
Eliade ocupa lugar relevante na história da fenomenologia, em rigor, ele representa uma
das primeiras tentativas de compreensão sobre os símbolos religiosos. Embora não apresente
especificamente o conceito de símbolo, mas aborde o tema a partir da compreensão do próprio
63
simbolismo em seus aspectos e es truturas, comparando-os em seus contextos religiosos. Mas
temos em mãos duas obras deste autor, as quais tentaremos captar o significado de símbolo
religioso e o valor que o símbolo representa para o indivíduo e a coletividade.
A primeira obra, intitulada “O sagrado e o Profano” (Le Sacré et le Profane, 1957), está
mais voltada para a manifestação do sagrado no cosmos, nos objetos, no tempo e na natureza.
Eliade usa o termo “hierofania” para indicar a manifestação simbólica do sagrado, ou no seu
sentido “e timológico: algo de sagrado se nos revela ”. Para ele, “o homem toma conhecimento
do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do
profano”169 .
Para Eliade, assim como para os seus sucessores, Tillich e Haight, porém usando o termo
hierofania , ao invés de símbolo religioso, a manifestação do sagrado em “um objeto qualquer se
torna outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio
cósmico envolvente”. Por exemplo, “A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como
pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não
é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere” 170 . Um símbolo religioso é o que é
porque nele houve uma hierofania. O valor atribuído a um objeto que o torna sagrado é um valor
simbólico da presença sagrada. Por isso, esse valor simbólico se diferencia nas diversas culturas,
a adoração a este objeto que se revela e não é mais objeto, mas uma “outra coisa”, mas que
“continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente”. Citando o
exemplo do próprio Eliade, uma pedra sagrada não se distingue das outras pedras que não são
sagradas, mas para aqueles “a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata
transmuda-se numa realidade sobrenatural” 171 . Ou seja, cada cultura possui seus símbolos
religiosos sagrados e que ao mesmo tempo não agrega valor sagrado para uma outra cultura. Isso
explica a grande variedade de símbolos e simbolismos nos diversos contextos culturais.
Uma outra manifestação do sagrado ocorre no “espaço”, que o homem religioso o
distingue em “espaço sagrado e não-sagrado”, experiência que segundo Eliade se dá pela não
homogeneidade desses espaços e afirma que “a manifestação do sagrado funda ontologicamente
o mundo”172 . A idéia do espaço como lugar sagrado faz parte também do pensamento hebraico,
169
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 17.
Op. Cit., p. 18.
171
Ibidem.
172
Op. Cit., p. 26.
170
64
por exemplo, a experiência de Moisés no “Monte Horebe” (Ex 3. 5). Ao contrário da experiência
profana que “mantém a homogeneidade e portanto a relatividade do espaço”173.
1.1. Imagens e símbolos
Na segunda obra de Eliade, intitulada “Imagens e Símbolos: ensaios sobre o simbolismo
mágico-religioso”, em nota introdutória, ele fala da importância da descoberta da psicanálise para
comprovar a existência do subconsciente. Aqui, o autor mostra como o simbolismo está
completamente presente no pensamento religioso e nas diversas áreas do pensamento: na
literatura, na poesia, na filosofia, na psicanálise. “... o símbolo, o mito, a imagem pertencem à
substância da vida espiritual, que podemos camuflá- los, mutilá-los, degradá- los, mas que jamais
podemos extirpá- los”174 . Até mesmo os contextos históricos das conquistas estão cheios de
imagens e símbolos, por exemplo, a Europa Ocidental e suas descobertas relacionadas ao
“irracional, ao inconsciente, ao simbolismo, às experiências poéticas, às artes exóticas e não
figurativas etc (...) serviram indiretamente mais tarde para o diálogo com os povos nãoeuropeus”175 .
Por estarem intimamente relacionados, “simbo lismo e psicanálise”, ambos podem ser
vistos como meios para desvelar aspectos da realidade que seria impossível por meio de outro
conhecimento. Mesmo porque “o pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do
poeta ou do desequilibrado: ela é consubstancial ao ser humano”176 . Claro que não iremos
abordar aqui as teses da psicanálise a respeito dos simbolismos, mas especificamente para dizer
que por meio da psicanálise se consegue desvelar (em partes) o que vai ao íntimo do pensamento
humano pelas imagens, símbolos e sonhos. Eliade afirma, ainda, que “cada ser histórico traz em
si uma grande parte da humanidade anterior à História”. Ao aludir às transformações do
pensamento histórico, mostra como o homem moderno é afetado por eles, mas mesmo que:
173
ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 27.
Op. Cit., p. 7.
175
Ibidem.
176
Op. Cit., p. 8.
174
65
escapando à sua historicidade, o homem não abdica da qualidade de ser humano para se perder na
‘animalidade’. Porque ‘reencontra’ a linguagem... Os sonhos, os devaneios, as imagens de suas nostalgias,
de seus desejos, de seus entusiasmos etc., tantas forças que projetam o ser humano historicamente
condicionado em um mundo espiritual infinitamente mais rico que o mundo fechado do seu ‘momento
histórico’177 .
Entendemos, então, que mesmo que se o ser humano não seja afetado pela força histórica
que o cerca (o que talvez seja improvável) é afetado por outras forças presentes no inconsciente,
do qual deriva o simbolismo.
Até mesmo o positivismo não conseguiu eliminar as imagens (iconoclastia), nem extirpar
o simbolismo, a razão não apagou do imaginário os mitos, ao contrário, legitimou-os a partir das
iconografias de suas grandes invenções: o cinema, o teatro, a televisão. “O homem mais ‘realista’
vive de imagens”178, afirma Eliade. Podemos considerar que o ser humano vive das imagens e
dos símbolos para seu desenvolvimento e construções sociais, pois o ser humano é também
homos socius.
Pois o inconsciente não é unicamente assombrado por monstros: ele é também a morada dos deuses, das
deusas, dos heróis, das fadas; aliás, os monstros do inconsciente também são mitológicos, uma vez que
continuam a preencher as mesmas funções que tiveram em todas as mitologias: em última análise ajudar o
homem a libertar-se, aperfeiçoar sua iniciação 179 .
Eliade compreende que as imagens servem para captar a realidade profunda das coisas,
pois a própria “realidade se manifesta de maneira contraditória”, por isso, os conceitos seriam
inadequados para expressá- la. O conceito não revelaria o verdadeiro significado da realidade das
imagens mais profundas, porque “ela se revela de maneira contraditória”180. Ao considerar que as
imagens são multivalentes, Eliade conclui que:
177
178
179
180
ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 9.
Op. Cit., p. 12s.
Op. Cit., p. 10.
Op. Cit., p. 11.
66
a Imagem em si, enquanto conjunto de significações, que é verdadeira, e não uma única das suas
significações ou um único dos seus inúmeros planos de referências. Traduzir uma Imagem na sua
terminologia concreta, reduzindo-a a um único dos seus planos referenciais, é pior que mutilá -la, é aniquilála, anulá-la como instrumento de conhecimento181.
1.2. Símbolos da fé
Paul Tillich, em “A dinâmica da fé”, no capítulo três, também sugere esse caráter
mediático do símbolo religioso ao afirmar que: “o símbolo indica algo que se encontra fora dele”.
Para Tillich, embora símbolo e sinal tenham algo em comum (indica algo que se encontra fora
dele), no entanto o sinal não tem uma conexão em si. “A luz vermelha e o parar dos carros em si
nada tem a ver um com o outro”; mas é uma convenção válida enquanto conveniente. O sinal tem
uma função específica, pode ser substituído, enquanto o símbolo não, “ele faz parte daquilo que
ele indica”182. É o que Eliade afirma acerca do símbolo, no prefácio de sua obra Imagens e
Símbolos, “que podemos camuflá- los, mutilá-los, degradá- los, mas que jamais
extirpá- los”
poderemos
183
.
Neste panorama geral acerca do conceito de símbolo, Tillich destaca seis características e
ressalta que: primeiro, o símbolo não pode ser substituído; devido a esse caráter de insubstituível,
ele aponta a segunda característica: faz parte da realidade daquilo que indica, por exemplo, a
bandeira de uma nação; terceiro, “consiste em que ele nos leva a níveis da realidade que, não
fosse ele, nos permaneceriam inacessíveis”; a quarta característica é que “ele abre dimensões e
estruturas da nossa alma que correspondem às dimensões e estruturas da realidade”; a quinta
característica é que “símbolos não podem ser inventados arbitrariamente. Eles provêm do
inconsciente individual ou coletivo e só tomam vida ao se radicarem no inconsciente do nosso
próprio ser”184 . E por fim, pelo fato de os símbolos não poderem ser inventados, é que “eles
surgem quando a época estiver madura para eles, e desaparecem quando o tempo os tiver
181
ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 12.
TILLICH, Paul. A dinâmica da fé. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1985, p. 31.
183
ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 7.
184
TILLICH, Paul, Op. Cit. p. 31.
182
67
ultrapassado”. Por exemplo, “o símbolo de ‘rei’, apareceu numa determinada época da história e
se apagou nos tempos atuais em quase todo o mundo”185 .
Em Tillich, os símbolos situam-se no âmbito do incondicional, como resultado daquilo
que nos toca e que expressamos simbolicamente, ou “o que toca o homem incondicionalmente só
pode ser expresso simbolicamente” 186 . Tal processo se dá em tudo aquilo que ocupa, ou se torna
objeto da nossa preocupação máxima, seja dinheiro, sucesso, poder (muitas vezes valorizamos
tanto um objeto que dizemos que tal objeto é sagrado). Acredito que, ao se referir a aquilo que
nos toca incondicionalmente, “o homem faz um “deus”, Tillich quer mostrar que esta linguagem
só pode ser simbólica pelo grau de importância que se atribui a um objeto ou pessoa.
Podemos perceber em Tillich duas características do simbolismo religioso. Primeiro, é
atribuir um caráter sagrado àquilo que nos toca incondicionalmente, pois não existe outra
maneira adequada de expressar a fé, senão por meio dos símbolos. Isso ocorre mesmo antes de
serem movidos por conceitos religiosos, antes de construir um conhecimento acerca do
simbolismo, a pessoa assimila o caráter simbólico já posto sobre o mesmo no cotidiano e “sua
raiz está na própria natureza do incondicional e da fé”187 , justifica Tillich. E, segundo “Deus
transcende o seu próprio nome ”, ou seja, “se a nossa preocupação suprema, a chamamos de
Deus ou não, as nossas afirmações sempre têm significados simbólicos”188 . Tanto a linguagem da
fé quanto a linguagem dos símbolos são maneiras “adequadas” de expressar aquilo que nos toca
incondicionalmente, entretanto maneiras não suficientes.
O símbolo religioso, esse se circunscreve no âmbito da fé, e a fé só se expressa por meio
dos símbolos. Diz Tillich: “A linguagem da fé é a linguagem dos símbolos”. Para ele, o símbolo é
um elemento intrínseco da estrutura da fé, e ressalta que a fé não é apenas “um acreditar, apenas
vontade ou sentime nto”. A fé, afirma ele, é “como estar possuído por aquilo que nos toca
incondicionalmente...”189 . E Deus é esse “símbolo fundamental para aquilo que nos toca
incondicionalmente”. Sendo Deus o centro “em todo o ato de crer, mesmo quando esse ato de
crer inclui a negação de Deus”190, logo, é consensual essa a idéia em Haight e em Eliade que os
objetos de nossa fé “medeiam a presença de Deus”, e ainda, “não se trata da veneração da pedra
185
TILLICH, Paul, Op. Cit. p. 32.
Ibidem.
187
Ibidem.
188
Op. Cit., p. 33.
189
Ibidem.
190
Ibidem.
186
68
como pedra, de um culto da árvore como árvore”, eles não são adorados como pedra ou como
árvore, mas justamente porque são hierofanias...”. É o valor sagrado, a experiência vivenciada.
Uma questão que nos chama atenção na tese de Tillich é o fato de que não devemos
perguntar pela existência de Deus, mas a questão é a seguinte: “qual dentre os inúmeros símbolos
corresponde mais profundamente ao sentido da fé?” Ou, “que símbolo do incondicional expressa
o absoluto sem estar imbuído de elementos idólatras?”. Primeiro Tillich afirma que “Deus é o
símbolo fundamental da fé, mas não é o único”, são as nossas “experiências finitas”, que ao
projetar-se “sobre aquilo que se encontra além de finitude e infinitude” revelam Deus191 .
Qualidades de poder, amor, justiça “são símbolos retirados de nossa experiências cotidiana (...)” e
conclui: “Tudo isso são símbolos retirados de nossa experiência cotidiana, e não afirmações sobre
o que Deus fez em tempos antiqüíssimos ou fará em futuro distante”192 , Deus está para além das
projeções e dos conceitos.
1.3. O símbolo religioso
Roger Haight, em seu mais recente trabalho, “Jesus, symbol of God”, traduzido para o
português sob o título Jesus, símbolo de Deus, a partir de uma análise inspirada
conseqüentemente nas idéias de Tillich e de Eliade sobre os símbolos religiosos, realizou um
estudo que tem por objeto “Jesus”. No capítulo específico sobre “A estrutura da cristologia”,
define o símbolo nestes termos: “Pode-se entender símbolo como algo que medeia alguma outra
coisa diferente dele próprio. Um símbolo presentifica alguma outra coisa” 193 . Ressalta ainda que
“um símbolo desvela algo diferente, alguma coisa que não poderia ser conhecida sem seu
concurso”, diferente do “signo” que não tem uma conexão com a realidade, o signo não é
“mediacional”, ele revela uma convenção entre as relações. Um sinal vermelho no trânsito é um
signo e não um símbolo, exemplifica Haight.
O símbolo
envolve sentimento, expressa experiência. Por exemplo, “um cristão não pode
empregar a palavra ‘cruz’ simplesmente para referir-se à morte de Jesus, sem conotar uma longa
191
TILLICH, Paul, Op. Cit. p. 33.
Op. Cit., p. 34.
193
HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulus, 2003, p. 234.
192
69
tradição de profundo sentimento, reflexão e significado”194. Haight distingue entre os símbolos
concretos e os símbolos conceituais.
“Um símbolo religioso concreto é uma entidade que revela e presentifica alguma outra
coisa”. Ele pode ser “alguma coisa, uma pessoa, um objeto, um evento”, e como “objeto físico ou
evento, é um ser, ou tem ser, o que o torna possível sujeito de ontologia”195, ressalta Haight. Já o
símbolo conceitual, “é um conceito, uma palavra, uma metáfora, uma parábola, um poema, um
evangelho ou um relato que revela alguma outra coisa e torna-a presente à imaginação e à
mente”. Para esse teólogo, os símbolos conceituais são reveladores, ou seja, eles não são só um
conceito, mas pressupõem uma “conexão” (com a realidade?). Como explicita Haight, para que o
símbolo conceitual não seja simplesmente “signos convencionais”, “tem de possuir alguma
conexão interior com o que é revelado e, assim, presentificado à mente”196 .
“O termo símbolo é análogo porque existem diferentes tipos de símbolos. Mas o
religiosamente simbólico é sempre aquele que revela alguma outra coisa para além de si
mesmo”197. No entanto, Haight atribui aos símbolos religiosos seis características como base para
a sistematização da Cristologia. Para fins de transportar esses significados para a figura de Maria
como símbolo de Deus, explicitemos cada uma dessas características:
1) Demanda participação – “a comunicação simbólica não é objetiva, no sentido de que
pode realizar-se sem o engajamento subjetivo ou existencial daquele sujeito em quem está sendo
processada”. Ou seja, o símbolo só faz sentido se existir uma participação
interna entre a
comunicação subjetiva e um sujeito com predisposição para receber a comunicação. Por
exemplo, “Jesus não funcionará como mediação de Deus para uma pessoa na qua l a questão
religiosa inexiste”198.
2) Os símbolos medeiam o significado pela ativação da mente – neste sentido, “a mente
tem de descobrir o sentido no contra-senso, a verdade na inverdade, o propósito da identidade na
diferença”199 . Entendo que este aspecto cognitivo que medeia a participação, esta “realidade” que
não está ao alcance dos sentidos, mas que ao mesmo tempo se encontra ao alcance (pois deve ser
194
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 234.
Op. Cit., p. 235.
196
Ibidem.
197
Op. Cit., p. 237.
198
Ibidem.
199
Op. Cit., p. 238.
195
70
buscada) e precisa ser buscada para que manifeste o sentido que buscamos para a vida e em
outros âmbito s da nossa existência, o próprio mistério não fica alheio à realidade sensível.
3) Os símbolos religiosos participam da transcendência e para ela apontam – “o
conhecimento simbólico não abarca nem domina adequadamente a realidade transcendente, mas
está profundamente imerso no desconhecido, no não-saber e no agnosticismo”200. É
profundamente paradoxal esta afirmação de Haight, pois mesmo “imerso” (entranhado) no
desconhecido (e imersão aqui, e a própria palavra o sugere, me parece indicar pleno
envolvimento), parece que se está mais imerso no desconhecido do que na transcendência. No
entanto, a afirmativa sobre o símbolo é valida: “o conhecimento simbólico não abarca nem
domina adequadamente a realidade transcendente”.
4) Os símbolos religiosos revelam a essê ncia da existência humana – levando-se em
conta que por meio dos símbolos, temos acesso à realidade e que “o conhecimento simbólico
franqueia o acesso ao caráter primordial, ideal e paradisíaco da humanidade, que se acha abaixo
ou acima de qualquer atualização histórica particular”201, como afirma Haight. Podemos dizer
que estamos intrinsecamente ligados aos símbolos religiosos.
5) Os símbolos são polivalentes em sua estrutura – “a mente humana utiliza símbolos
para aprender a realidade última, porque a própria realidade última revela-se de maneiras
contraditórias que não se submetem à conceituação”. Por exemplo, “o que significa exatamente
dizer que Jesus é Filho de Deus? Quantos significados diferentes essa proposição possui em todo
o NT?”. E ainda, “o símbolo exprime os múltiplos aspectos da realidade que não são redutíveis a
uma série de proposições”202. Por isso, de um símbolo podemos atribuir várias proposições, pois
o símbolo não é algo que já signifique, que já esteja pronto e acabado, que perdure em seu
significado. Ou, como o expressa Tillich: “os símbolos surgem e desaparecem”203 .
6) Os símbolos religiosos possuem caráter dialético – o caráter dialético do símbolo
permite que se afirmem coisas contrárias a seu respeito porque, embora não seja o simbolizado,
presentifica-o”204 . Haight considera que aplicado à Cristologia é difícil exagerar a importância
dessa qualidade. Mas cita a explicação de Eliade sobre a dialética de coisas que são sagradas.
200
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 238.
Ibidem.
202
Op. Cit., p. 239.
203
TILLICH, Paul, Op. Cit. p. 32.
204
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 239.
201
71
No que diz respeito à estrutura simbólica da Cristologia, Haight atesta que Jesus de
Nazaré é o substrato da Cristologia. Mas, a partir da sua estrutura dialética, destaca que Jesus
pode ser ou não objeto dela, mediante a “qualidade de mediador histórico de Deus, é um símbolo
concreto”205 . Neste sentido, algumas perguntas foram ganhando seus primeiros contornos, como
por exemplo: “é se Jesus é objeto da Cristologia?”. Haight entende que uma resposta dialética a
esta questão pode ser “sim” como também pode ser “não”. As respostas a esta questão, que pode
ser tanto “s im” como também pode ser “não”, não tem a intenção de “apresentar alternativas,
nem propor um foco de atenção que oscila entre dois pólos, ainda que isso possa ser inevitável.
Pelo contrário, a idéia é sugerir uma estrutura intrínseca e irredutível em um símbolo religioso,
que ao mesmo tempo explica Jesus, o encontro de Deus nele e a cristologia como a disciplina que
estuda esses fenômenos”206 . Como mediador histórico, Jesus é um símbolo concreto. Jesus é
objeto da Cristologia dentro de uma estrutura dialética.
Uma segunda questão, que para Haight suscita resposta dialética, é se “Jesus é o objeto da
fé cristã?”. Haight entende que “Jesus é e não é objeto da fé cristã”. “Qualquer tentativa de
responder simplesmente ou que Jesus é e não é objeto da fé cristã será inevitavelmente
inadequada, porque relaxará a tensão incidente sobre Jesus como símbolo de Deus, por negar um
dos pólos”207 .
Considerando, ainda, uma outra questão: “o que significa dizer que Jesus é consubstancial
com Deus, e por conseqüência precisame nte não um ser humano, e consubstancial conosco, e
nessa medida distinto de Deus, uma criatura?” Em resposta, Haight chama a atenção para “as
questões ontológicas atinentes aos símbolos religiosos”208 . E, partindo da análise da ressurreição,
busca compreender as duas dimensões de Jesus Cristo “de uma forma que preserve a integridade
de ambos”209 . Ao descrever a gênese da Cristologia, Haight nos faz ver que a sua condição de
possibilidade está associada à ressurreição.
205
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 242.
Ibidem.
207
Op. Cit., p. 243.
208
Op. Cit., p. 245.
209
Ibidem.
206
72
Considerações a respeito dos textos
Nossos referenciais teóricos foram buscados como instrumentos capazes de ajudar na
interpretação do símbolo mais conhecido na AL, que é a figura de Maria, mas que ao mesmo
tempo demanda desvelamento continuamente, pois esta é a função do símbolo religioso: medeia
o significado pela ativação da mente – neste caso, “a mente tem de descobrir o sentido no contrasenso, a verdade na inverdade, o propósito da identidade na diferença”. Para esta análise,
apoiamo-nos nos pensamentos de Haight, considerando que a figura de Maria em cada época
encontra novas definições, novos valores e que na época atual seu simbolismo é pensado como
figura libertadora a partir do seu cântico.
Considerando também que a linguagem da fé (ou religiosa) é a linguagem do símbolo e
que toda linguagem acerca de Deus é simbólica, temos como referenciais teóricos Haight e
Tillich. Ao buscarmos compreender a linguagem religiosa, estamos buscando elementos que
permitam compreender na expressiva figura de Maria evidências da manifestação de Deus. Maria
como instrumento da manifestação de Deus. Aqui nos servirá de referencial teórico os
pensamentos de Eliade.
A manifestação da piedade popular Mariana se explica pelo fato da sua maternidade, o
Verbo de Deus Encarnado, passa pelo processo maternal do nascimento. A adoração a Maria é
adoração ao próprio Deus, pois para o povo Maria é a mediadora, intercessora, a Mãe de Deus e a
nossa mãe. Em Maria aconteceu uma hierofania, por isso, a piedade Mariana se explica e se
justifica. Nesta questão, teremos como referencial teórico Eliade.
Em suma, os símbolos religiosos estão sempre abertos a novas interpretações, à medida
que se apresentam à nossa realidade e nos atingem, eles abarcam o mistério que é desconhecido,
transcendente, mas ao mesmo tempo presentifica e medeia alguma outra coisa, e a mente tem que
descobrir. Os símbolos religiosos só permanecerão alheios para aqueles “cuja questão religiosa
inexiste”. Os símbolos religiosos fazem parte da experiência mais profunda da humanidade.
Um símbolo religioso concreto é uma entidade que “revela e presentifica alguma outra
coisa”210. Jesus é este símbolo concreto que revela e presentifica Deus. Neste sentido, em Haight
podemos buscar, a partir desta compreensão, ao nos referirmos a Maria, que ela é um símbo lo
210
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 234.
73
concreto, pois “revela e presentifica alguma outra coisa”, ela medeia o próprio Deus. Pois
acreditamos que a compreensão da construção desse conceito contribuirá significativamente para
apoiar a nossa tese de que Maria é símbolo de Deus. Portanto, a utilização do conceito de símbolo
religioso como chave interpretativa parece- nos ser um procedimento que servirá ao nosso
propósito, o de caracterizar a figura de Maria como símbolo de Deus.
“Toda linguagem acerca de Deus é simbólica”211 ; “A linguagem da fé é a linguagem dos
símbolos”212 ; e “... o homem mais realista vive de imagens”213 . Essas assertivas mostram que o
que conhecemos acerca de Deus mesmo, passa primeiro pela experiência de uma linguagem
simbólica humana e da experiência de uma realidade material por meio das imagens.
Em síntese, os autores possuem algumas características que se aproximam e se
diferenciam. Apresentaremos a seguir um quadro sinóptico dos autores acerca do símbolo
religioso.
211
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 236.
TILLICH , Paul, Op. Cit. p. 33.
213
ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 12s.
212
74
CARACTERISTICAS
Caráter mediático
Dialético
ELIADE
TILLICH
Um objeto qualquer tornase outra coisa e, contudo,
O símbolo indica algo
continua a ser ele mesmo, que se encontra fora
porque continua a
dele.
participar o meio cósmico
envolvente.
A pedra sagrada, a árvore
sagrada não são adoradas
como pedra ou como
árvore, mas justamente
porque são hierofanias,
porque “revelam” algo que
já não é nem pedra nem
árvore, mas o sagrado, o
ganz andere.
HAIGHT
Pode-se entender
símbolo como algo que
medeia alguma outra
coisa diferente dele
próprio. Um símbolo
presentifica alguma
outra coisa.
Esse caráter permite
que se afirmem coisas
contrárias a seu respeito
porque, embora não
seja o simbolizado,
presentifica-o.
Deus é o símbolo
fundamental da fé, mas
não é o único, são as
nossas experiência s
finitas que ao projetarse sobre aquilo que se
encontra além de
finitude e infinitude
revelam Deus. Ver,
julgar e agir.
Deus como centro
Não conceitual
A realidade se manifesta
de maneira contraditória,
por isso, os conceitos
seriam inadequados para
expressá-la.
Linguagem
A linguagem apenas pode
sugerir tudo o que
ultrapassa a experiência
natural do homem
mediante termos retirados
dessa mesma experiência
natural.
Insubstituível
Podemos camuflá-los,
mutilá -los, degradá -los,
mas jamais poderemos
extirpá-los
Para que o símbolo
Deus transcende o seu conceitual não seja
próprio nome.
simplesmente signos
convencionais, tem de
possuir alguma conexão
interior com o que é
revelado e, assim,
presentificado à mente.
A linguagem da fé é a
linguagem dos
símbolos.
O símbolo não pode ser
substituído, devido a
esse caráter de
insubstituível
Toda linguagem
acerca de Deus é
simbólica.
75
2. MARIA, SÍMBOLO DA FÉ
“... todas as nações me chamarão bem-aventurada” (Lc 1. 48)
A figura de Maria em sua trajetória histórica tem sido uma das forças vivas no
pensamento humano e especificamente no continente latino -americano, que ao longo destes 500
anos, vem sendo portadora da fé de milhões de devotos, claro que a fé em Maria é subjacente ao
catolicismo. Nas produções teóricas, ultimamente, um dos focos de interesses dos teólogos e
teólogas contemporâneos pela figura de Maria tem sido o Magnificat, tema que tem recebido os
mais diversos enfoques, refletindo os fatos históricos e a experiência reveladora de Deus neste
contexto e, sobretudo no contexto de opressão da AL. A partir deste enfoque, a história da
salvação traz as marcas de um Deus que se revela como Mãe na pessoa de Maria de Nazaré, e a
piedade popular a reconhece como Mãe de Deus e assim, “Nossa Mãe”. Por isso que as
invocações que a ela se faz, traz sempre esse caráter maternal de consolo, abrigo, proteção e ao
mesmo tempo de denúncia. Ao ser invocada como mãe, simbolicamente a figura de Maria para o
povo latino -americano evoca a presença de Deus.
Embora a figura de Maria tenha sido sempre pensada em subordinação a Cristo, assim
como o feminino sempre teve o seu desejo orientado para o homem, nas teorias dos teólogos
latino-americanos percebe-se uma ruptura com esses pensamentos, para uma reflexão menos
paradigmática, inclusiva e livre dos conceitos tradicionais. E essa reflexão passa a ser inovadora a
partir do momento que muda esse eixo e inclui também o feminino e Maria como fontes que
revelam o divino. Essa inclusão possibilita uma nova chave hermenêutica de interpretação da
revelação divina, em que a mulher como sujeito de reflexão teológica corporifica uma nova
linguagem ao se falar dos símbolos religiosos, promovendo uma nova identidade (ou restaurandoa). Essa possibilidade de uma releitura do simbolismo religioso numa visão inclusiva e não mais
exclusivista e sexista-patriarcal privilegia a mulher como agente participativo desta revelação.
Assim sendo, rompe-se com os estereótipos do passado que foram associados e ditos a respeito
da mulher – a queda, a morte, a dor, a serpente e a inferioridade, dimensões que designaram-na e
marginalizaram- na.
76
A partir da exigência do nosso tempo, em que o feminino e masculino são estruturas do
humano, no que diz respeito especificamente ao feminino, tomando como paradigma a figura de
Maria, já que as reflexões sempre giraram em torno do masculino, pode-se indagar: Por que a
“Redenção ” é vista unicamente pelo viés da Cristologia? Quais elementos “redentores” estão
também presentes na imagem do feminino, representada aqui na figura de Maria e podem ser
absortos para revelá- la como símbolo de Deus e da mulher?
Considero que, entender a figura de Maria como símbolo de Deus, é fundamental para
aqueles que estão envolvidos com a Teologia. O enfrentamento destas questões pode ser uma
contribuição para se repensar a figura de Maria em uma nova perspectiva, seja a partir do
feminino, ou do contexto de opressão, de marginalização, o importante é que se rompa com os
conceitos culturais, como sugere Boff. Sem dúvida, estas questões ainda não possuem respostas
consensuais, mas têm sido alvo das preocupações teológicas daqueles que estão envoltos com a
emancipação do indivíduo. Por isso, Maria como símbolo da fé, ainda permanece restrita às
reflexões de teólogos católicos.
Então, Maria como símbolo da fé, tomando por referência Boff, para quem as Escrituras
Sagradas revelam o caráter feminino, pois, se o mesmo “constitui uma dimensão estrutural do
humanum”, ele deve estar presente nas Escrituras cristãs, apesar de sua ideologia masculinizante.
Claro, que para isso, tem que ser feita uma hermenêutica para “despatriarcalizar as Escrituras”214 ,
já que a revelação se processou dentro da era patriarcal. Apesar das representações sociais
masculinizantes, Boff constata que:
Maria representa para a fé cristã não apenas a plenitude de realização do feminino em suas distintas
manifestações ligadas ao mistério da vida como a virgem e a mãe, pelo fato de ser a virgem-Mãe de Deus
encarnado e estar relacionada intimamente ao Espírito Santo. Por causa do mis tério da encarnação (...)
vigora uma relação ontológica entre Maria e Jesus215 .
Para Boff, Maria foi a escolhida para manifestar algo que Cristo não manifestou na
redenção, justificando essa idéia ao fato de Jesus ser varão, ao contrário, Maria pode manifestar:
a “ternura maternal”, típica de uma Mãe
214
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 75.
Op. Cit., p. 90.
216
Op. Cit., p. 90.
215
216
. Assim, poderíamos dizer que Boff analisa, a partir de
77
uma hermenêutica despatriarcalizada, um princípio feminino na fé cristã baseado na figura de
“ternura maternal” de Maria. No entanto, podemos discordar desta idéia pois a ternura não é algo
exclusivo da mulher-Maria, mas o próprio Jesus a expressou quando curou, quando repartiu o pão
e teve compaixão dos seus seguidores.
Para Dorado, é o reconhecimento da maternidade divina que incorpora a fé do povo em
Maria no continente latino -americano. Em decorrência dos fatos históricos: por ser “Mãe de Jesus
histórico”, mulher israelita que existiu e cumpriu leis, ligados a estes fatos, a Maria da fé pascal
que tem a ver com o acontecimento da ressurreição – “A Mãe de Jesus de Nazaré aparece
também como a mãe de Cristo”217 . É neste contexto do Cristo Ressuscitado, que Dorado
compreende a Maria da fé pascal neste Continente e afirma que:
(...) a fé no Cristo ressuscitado faz a comunidade neotestamentária descobrir na Mãe de Jesus a crente
Maria, mas não com uma fé justaposta à sua maternidade humana, e sim invadindo-a em sua raiz mais
profunda, enchendo-a de um novo significado, constituindo-a mãe de Cristo, em seu mais pleno sentido218.
Para Gebara e Bingemer existe uma relação entre os “crentes da história e os “vivos em
Deus”, dos quais Maria faz parte e tem um papel principal” 219 . Como símbolo da fé, a figura de
Maria para estas teólogas não representa unicamente “a mulher profética ou a mulher libertadora,
ou a mãe extraordinária, mas Maria, e ainda Jesus, Deus e os santos, são palavras ‘mágicas’ que
pronunciadas assemelham-se a um clamor que brota das entranhas e que produz uma espécie de
alívio na aflição”220 .
Maria é símbolo da fé por ser Mãe de Deus que participa ativamente da história da
redenção e salvação da humanidade. Sua maternidade revela a encarnação ou a espiritualização
de Deus no mundo e, ainda, alimenta a esperança de milhares de devotos.
217
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 27.
Ibidem.
219
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 31.
220
Op. Cit., p. 35.
218
78
2.1. Maria, símbolo religioso
A partir da dialética do símbolo, nas teorias de Eliade e Haight, um objeto não é adorado
por ser simplesmente um objeto, ou seja, “não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de
um culto da árvore como árvore (...) não são adorados como pedra ou como árvore, mas
justamente porque são hierofanias...” Esse valor sagrado atribuído à árvore e à pedra se justifica,
segundo Eliade, porque houve uma manifestação sobrenatural, porque a pedra “já não é nem
pedra, nem árvore mas, o sagrado” 221 . Analogamente, pensamos que a figura de Maria revela o
divino. Por isso, na piedade popular a veneração a Maria é a veneração do próprio Deus. Maria é
venerada porque houve nela uma hierofania (manifestação do sagrado).
Como símbolo religioso, Maria participa da transcendência divina e, por isso, pode-se
considerá- la símbolo de Deus. É o valor sagrado referente ao simbolismo religioso, que revela
sua transcendência e a partir dessa experiência vivenciada, ela se torna não simplesmente uma
mulher da cidadezinha de Nazaré, mas a Mãe do próprio Deus. A maternidade de Maria revela
em partes aquilo para o que ela aponta: a maternidade divina – um Deus que quer se revelar como
Mãe e ao mesmo tempo ela revela também “a essência da existência humana”, a capacidade de
doar-se em prol da coletividade.
Tal afirmação, de que a manifestação do sagrado está presente no objeto cultuado, não
está apenas presente no pensamento de Eliade, mas também aparece com destaque nos estudos de
Haight, o qual afirma ter os símbolos religiosos caráter dialético: “o caráter dialético do símbolo
permite que se afirmem coisas contrárias a seu respeito porque, embora não seja o simbolizado,
presentifica-o”222 . No entanto, numa primeira análise, o símbolo pode ser e não ser aquilo que ele
indica (vamos nos deter aqui aos estudos realizados por Eliade, Tillich e Haight, ressaltando
alguns aspectos relevantes para contextualizar esta temática de Maria como símbolo que revela
Deus).
Podemos pensar que o caráter dialético dos símbolos indica que não existe uma verdade
absoluta a seu respeito, e por possuírem esse caráter relativo é que não conhecemos
profundamente as verdades acerca do divino, “o conhecimento simbólico não abarca nem domina
adequadamente a realidade transcendente, mas está profundamente imerso no desconhecido, no
221
222
ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 18.
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 239.
79
não-saber e no agnosticismo”223 . Por isso, conhecemos o que Maria revela do transcendente em
partes, porque o mistério se mostra totalmente mistério para não deixar de ser mistério. A partir
da simbologia da figura de Maria, conhecemos um Deus que relaciona -se com a humanidade, um
Deus que ama e um Deus que é Mãe. Segundo Boff, a “maternidade humana e divina” de Maria
está a serviço do desígnio de Deus. “E qual é este desígnio? Querer ser homem. Deus quer
‘realizar-se’, fazendo-se homem” 224.
Talvez esse método para alguns seja descartado, pelo fato de que nada se afirme do
transcendente, já que o mesmo está submerso em conceitos tradicionais, culturais, enraigado de
tal maneira que seria quase impossível dizer outras coisas, como por exemplo, negá-lo. Por isso, a
rejeição desse método é cômoda para alguns, mas como insere Haight que o símbolo “demanda
participação, a comunicação simbólica não é objetiva, no sentido de que pode realizar-se sem o
engajamento subjetivo ou existencial daquele sujeito em quem está sendo processada”225.
Em alguns contextos, os símbolos ficaram reduzidos a um encadeamento de conceitos que
os sentidos não mais percebem a idéia do transcendente como outra coisa senão nas projeções das
qualidades humanas. Eliade compreende que as imagens servem para captar a realidade profunda
das coisas, pois a própria “realidade se manifesta de maneira contraditória”, por isso, os conceitos
seriam inadequados para expressá- la. O conceito não revelaria o verdadeiro significado da
realidade das imagens mais profundas, porque “ela se revela de maneira contraditória”226 . A
imagem de Maria revela esse caráter (contraditório), basta pensarmos nos dogmas. Atrelada às
projeções das “qualidades humanas” (conceitos morais), aos conceitos culturais e compreendida
dentro de uma estrutura que se julga meramente imanente à mulher: Virgem, Mãe e Esposa. Ao
invés desses conceitos transcenderem o seu significado cultural e moral, ao contrário, reduz-se o
simbolismo religioso aos conceitos, degradando, no entanto, o símbolo. Por isso, as expressões
da virgindade e maternidade como meros conceitos culturais ou morais “danificam” o caráter
simbólico que ele representa.
Sobre isso, em suas análises sobre a “teologia Mariana popular”, Dorado pensa que as
deformações existentes não estão no dado revelado, mas na “cultura que recebeu a fé”227 . A
religiosidade popular projetada na figura de Maria neste contexto fica reduzida a uma
223
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 236.
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 166.
225
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 237.
226
ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 11.
227
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 79.
224
80
funcionalidade restrita aos aspectos de refúgio, consolo e proteção. E essa projeção sublinhada à
maternidade reve lada de Maria, é vivenciada nas expressões das “celebrações, os dons e
promessas, e a oração”. Ao descrever como funciona este relacionamento fiducial, Dorado mostra
como a maternidade de Maria está intrinsecamente atrelada à cultura, por exemplo:
A festividade da padroeira é o equivalente ao aniversário da mamãe, momento em que nenhum dos filhos
pode faltar. A celebração da festividade da Virgem para muitos se torna uma peregrinação porque é o
momento, com a expressão paraguaia, em que todos os filhos têm de voltar a ‘seu vale’ para encontrar-se
com a mãe 228 .
A oração é também uma outra forma de relacionar-se com Maria: “Para isto emprega
antigas ‘rezas’, entre as quais sobressai o Rosário. Em geral, são orações tecidas numa linguagem
solene, marcando especialmente a dimensão de grandeza e autoridade da Virgem”229 . Vale
ressaltar o pensamento de Tillich, que a partir das análises daquilo que toca o homem
incondicionalmente é expressa pela linguagem da fé, a qual é a linguagem dos símbolos230 . A fé
não conhece outro meio de expressar-se a não ser pelos símbolos religiosos. A concepção de
símbolo que parece estar presente em seu trabalho é a do “símbolo divino”, que atua
“incondicionalmente” no indivíduo, ocupando-o completamente, o divino está presente nos
símbolos da fé. Por isso, Maria é uma “palavra mágica”, que ao ser pronunciada assemelha-se “a
um clamor que brota das entranhas e que produz uma espécie de alívio na aflição”231 . Mas, se a
linguagem da fé é a linguagem dos símbolos, como afirma Tillich, essa linguagem pode e deve
ser sempre dialética, sempre buscando novos sentidos para expressá-los, sem que, no entanto, os
símbolos se circunscrevam em conceitos formais e fechados. Por isso, o símbolo não pode ser
entendido de forma literal, mas compreendido dentro da sua própria dinâmica, pois ele participa
da realidade que representa. E Maria é um dos símbolos que expressa a fé religiosa dos
primeiros cristãos e se desenvolve na piedade popular ao longo desses dois milênios.
Para Haight, os símbolos “são polivalentes em sua estrutura”, considerando que “a mente
humana utiliza símbolos para aprender a realidade última, porque a própria realidade última
228
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 75.
Op. Cit., p. 76.
230
TILLICH, Paul, Op. Cit. p. 33.
231
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 35.
229
81
revela-se de maneiras contraditórias que não se submetem à conceituação”232 . Maria, no contexto
de Virgem, Mãe e Esposa, pode evocar várias interpretações, releituras, resignificações, mas
nunca se esgotará completamente seu sentido, ou seus sentidos. Os símbolos sempre apontam
para uma nova interpretação que a mente “tem que descobrir”233 , afirma Haight. Por exemplo,
entender a maternidade não como função procriadora da mulher, mas como realidade subjacente
ao caráter humano capaz de “gerar vida”, e aqui não estamos utilizando o termo maternidade
como sinônimo de gestação. Mas gerar a vida nas expressões de ternura, afetuosidade, carinho e
proteção, características inerentes à estrutura antropológica de qualquer ser humano que ama.
Como afirma Gebara e Bingemer, sobre a maternidade divina de Maria nas perspectivas bíblicas
e na tradição da Igreja: “Trata-se de um serviço a todo gênero humano, que implica a entrega da
vida e a abertura amorosa e total à vontade de Deus e às necessidades dos outros”234. Nesta
perspectiva, a maternidade transcende seu conceito cultural, e estrutural inerente à mulher.
Assim, Haight também compartilha com Tillich de que “toda linguagem acerca de Deus é
simbólica”235 . Eliade afirma que a linguagem “exprime ingenuamente o tremendum”236. Essas
assertivas mostram que o que conhecemos acerca de Deus mesmo, passa primeiro pela
experiência de uma linguagem que se restringe àquilo que conhecemos naturalmente, ou como
expressa Eliade: da vida “espiritual profana do homem” 237. São as representações simbólicas que
fazem mediação entre o conhecimento e a experiência de uma realidade material – a Encarnação
do Verbo de Deus no mundo. E essa experiência passa pelo nascimento da experiência virginal.
Ao tornar-se carne, o Verbo de Deus dá-se a conhecer e este conhecimento da “realidade”
transcendental de Deus se dá mediante a presença da encarnação em Maria: “O Verbo se fez
carne e habitou entre nós” (Jo 1. 1-2). Por isso, quando os símbolos da fé são adorados,
venerados, cultuados medeiam a presença do transcendente.
Em resumo, o conceito de símbolo é tema aberto, à medida que se define um símbolo
religioso em uma única explicação hermética e imutável, ele perde sua essência e “deixa de ser
símbolo”, deixa de simbolizar.
232
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 239.
Op. Cit., p. 238.
234
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 117.
235
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 236.
236
ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 16.
237
Ibidem.
233
82
2.2. Feminino: imagem e semelhança de Deus
A Imago Dei está presente na mulher tanto quanto no homem, do mesmo modo, ambos
com a capacidade de perceber Deus. Este ensinamento rabínico privilegia o ser humano a uma
posição distinguível na natureza ou no universo. Adão e Eva, Maria e Cristo nivelam-se em sua
capacidade de percepção do sagrado de modo equivalente, mas de maneiras diferentes. Nessa
perspectiva da “imagem e semelhança de Deus”, homens e mulheres capazes de participarem do
mesmo projeto de salvação, de re-organização social, de procriação e da necessidade do sagrado
é que se fará a análise da figura de Maria a partir da reflexão dos teólogos da TL. Nesta tentativa
hermenêutica objetiva-se captar na imanência o conteúdo divino dessa “equivalência” (termo
usado pela teóloga feminista Elizabeth Johnson para falar das imagens masculina e feminina de
Deus; 1995:90).
Uma das características dos teólogos supracitados é a opção que fazem pelo feminino, em
suas reflexões enfatizam- no a partir da sua nova emergência como chave de interpretação para
compreender a figura de Maria. Boff, por exemplo, assume o feminino como princípio
mariológico fundamental para elaborar a Mariologia. Mas, a priori, dá uma explicação das idéias:
a) analítica – em que se valoriza a diferença do homem e da mulher em uma dialética de
reciprocidade; b) filosófica – o feminino e o masculino constituem os elementos ontológicos de
cada existência humana; c) teológica – o feminino também é caminho da revelação de Deus. “A
revelação atinge o feminino, manifestando o desígnio do Altíssimo sobre ele”238 .
Na perspectiva da criação, o relato do Gênesis não está afirmando que o homem (varão)
possui capacidades superiores nem que seja diferente da mulher, ao contrário, afirma que ambos
são imagem e semelhança de Deus. As análises de Boff imprimem uma visão interdisciplinar
sobre o feminino, e o caráter de reciprocidade é que reflete a imagem e semelhança de Deus em
seus aspectos tanto antropológicos, quanto teológicos. Para ele, os textos de Gênesis são
antifeministas, que foram sendo interpretados de maneira masculinizante, de tal forma que
mascarou o sentido intencionado pelo autor sagrado, por exemplo, o relato da criação de Eva (Gn
2. 18-25); e da queda original (Gn 3. 1-19) 239 .
238
239
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 35s.
Op. Cit., p. 77.
83
Como afirmamos anteriormente, os símbolos ficaram reduzidos a um encadeamento de
conceitos, e esses conceitos de um lado presos ao idealismo (projeção das coisas perfeitas em um
outro mundo), de outro ao dualismo (oposição entre espírito e matéria), como sugerem Gebara e
Bingemer. Ao romperem com essas estruturas antropológicas, ambas propõem uma nova releitura
a partir de uma antropologia humanocêntrica para que se elabore uma Teologia Marial que faça
jus à revelação divina também na figura da mulher criada à imagem e semelhança de Deus.
Justificam sua Teologia a partir da transformação antropológica, ou seja, uma antropologia
humanocêntrica: “homem e mulher como centro da história”240 . Como princípio básico da
Mariologia, o feminino constitui-se nessa reflexão uma relação equivalente com o masculino,
representado na figura de Jesus na história da salvação como modelo único de acesso ao divino.
Essa equivalênc ia, entre o masculino e feminino, aponta para os símbolos da fé representados
pelas figuras de Jesus e Maria, como modelos representativos do divino, não privilegiando um só
modelo. A partir desta perspectiva, ambas rompem radicalmente com o modelo único: Cristo, a
ponto de afirmarem que ele é um mediador e esclarecem a respeito da “mediação” que no uso do
seu termo tem conotação de um esquema hierárquico:
A humanidade homem/mulher é que constrói a história, que se relaciona entre si e com a divindade. As
palavras ‘mediador’ e ‘mediação’ devem ter seu conteúdo esclarecido nesse esboço antropológico. Não se
trata, aqui, de mediação no sentido de termo médio, intermediário entre um ser e outro, ou ainda, de
mediador como um sujeito que faria uma espécie de ligação entre os seres. Essa linguagem denuncia um
esquema hierárquico, que parece estranho à experiência neotestamentária e à postura que assumimos. Na
perspectiva da Encarnação, Deus assume totalmente a carne humana, de forma que, ‘quem me vê, vê o Pai’,
‘quem diz que ama a Deus e odeia seu irmão, é mentiroso’, ‘eu tive fome e me destes de comer’, ‘eu estava
nu e me vestistes’. Somos uns para os outros presença de Deus, somos uns para os outros apelo de Deus
para a conversão. De forma que a humanidade toda é Templo, Morada de Deus241.
A figura do feminino compreendida como imagem e semelhança de Deus, e a figura de
Maria como expressiva da revelação divina e também representativa da salvação de Deus no
mundo, então associada a esta Imagem, a figura de Maria como símbolo de Deus ajuda “a superar
a ausência de metáforas femininas”, fazendo valer a sua própria experiência. Pensamos com
Gebara e Bingemer que não se trata unicamente de: “... falar de uma figura feminina
240
241
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 14.
Op. Cit., p. 13.
84
contrapondo-a a uma figura masculina, ou explicitar a revelação de Deus na mulher Maria e nas
mulheres em geral para mostrar que são também importantes”. E acrescentam que sem Maria,
“... sem a dimensão que ela representa, fica faltando uma metade de nós, uma metade da
humanidade e, conseqüenteme nte uma metade da divindade”242 . Isso nos faz refletir sobre o
elemento transcendente presente no humano enquanto imagem e semelhança de Deus que somos.
Como símbolo que participa da transcendência divina e para ela aponta e como símbolo
que revela a essência da existência humana243 , isto significa que há uma essência com
características antropológica e teológica no símbolo, revelando assim o caráter ontológico da
existência humana. Maria, símbolo concreto de Deus, revela e presentifica Deus, como ressalta
Haight ao falar sobre o símbolo concreto “... e como objeto físico ou evento, é um ser, ou tem
ser, o que o torna possível sujeito de ontologia”244. Portanto, Maria como imagem e semelhança
de Deus, revela Deus e presentifica-O.
2.3. Maria, a mulher ícone do mistério
O teólogo Bruno Forte, em sua obra intitulada “Maria, A Mulher Ícone do Mistério”, com
o qual também intitulamos este ponto de nossa reflexão, objetiva-se, como afirma ele, a
“perscrutar o Todo (mistério que se realiza no Filho) no fragmento” – que é a “humilde serva do
Senhor, Maria de Nazaré...”245. Aprofundando o tema da figura de Maria como Virgem, Mãe e
Esposa dentro do mistério divino que a envolve, o qual está ligado à sua concretude de mulher,
para Forte, Maria é a revelação do mistério de Deus para uma nova humanidade eleita a participar
da união divina outrora rompida, a quem Ele escolheu. Ao falar da nova emergência do feminino
e seus processos de libertação, Forte reconhece que “A usurpação absoluta do masculino pelo
homem traz desequilíbrio e dilaceração, relegando a mulher à pura passividade dependente”, o
contrário também é verdadeiro, e complementa que “é só na reciprocidade, que não mortifica as
diferenças, mas as valoriza uma pela outra, que o homem e a mulher podem ser eles mesmos”246 .
242
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 49.
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 238.
244
Op. Cit., p. 235.
245
FORTE, Bruno. Maria, a mulher ícone do mistério: ensaio de Mariologia simbólico-narrativa. São Paulo:
Paulinas, 1991, p. 5.
246
Op. Cit., p. 22.
243
85
Forte considera que a Teologia Feminista tem seu lado negativo e o seu lado positivo, e
crítica a hipótese de Boff sobre a união hipostática, chamando de “extremismo mariológico”, e
ainda, que esta hipótese é “destituída de qualquer fundamento dogmático, mas carregada de
sugestão simbólica – de que a “Virgem Maria, Mãe de Deus e dos homens, realiza o feminino de
forma absoluta e escatológica porque o Espírito Santo fez dela seu templo, seu santuário e seu
tabernáculo de modo tão real e verdadeiro que ela deva ser considerada
como unida
hipostaticamente à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade”247 . Sem absorver o que para Forte
significa “extremismo mariológico”, ele afirma que pretende
sublinhar os aspectos profundamente libertadores da história de Maria, ‘seu consentimento ativo e
responsável’ ao desígnio divino, sua ‘escolha corajosa feita para se consagrar totalmente ao amor de Deus’,
até afirmar que ela, ‘embora completamente entregue à vontade do Senhor’, foi totalmente diferente de
mulher passivamente submissa ou de religiosidade alienante, mas mulher que não duvidou em proclamar
que Deus é vingador dos humildes e dos oprimidos... 248.
Embora critique as posições da Teologia Feminista da Libertação, Bruno Forte assume
algumas posturas emancipadoras no que diz respeito à figura de Maria, entretanto, para ele, o seu
mistério está relacionado à encarnação de Cristo. Maria não pode ser desvinculada de sua relação
a Cristo, sendo Ele único mediador. Então, os elementos libertadores no que diz respeito à Maria
para Forte, estão presentes no fato do seu Fiat consciente, ao contrário de uma resposta passiva e
submissa que há muito se desenvolveu a este respeito. Mas quanto à Salvação, Cristo é o único
mediador, pois, só a Deus glória, “soli Deo gloria!”249.
Diferente de Forte, que pensa a Teologia da Salvação a partir unicamente de Cristo como
centro, o Todo revelado no fragmento – Maria, para os teólogos da TL o centro também é Deus,
Maria e Cristo são pensados como caminhos que levam até Deus. Por exemplo, para Boff uma
Mariologia que seja Teologia o “centro seria Deus e não mais Maria”250. Gebara e Bingemer, a
partir da perspectiva do Reino, afirmam que “não há uma parte de Deus que salva. Assim como
não há uma parte do humano que salva a outra ou que é instrumento único de salvação, mas é o
247
FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 26.
Op. Cit., p. 26.
249
Op. Cit., p. 11.
250
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 31.
248
86
humano total que é salvo, e é instrumento de salvação”251. E, ainda, referente à fé cristã “Deus é
nosso único salvador...”252 . Esta perspectiva nos deixa entrever que esta descentralização lança
luzes sobre a figura de Maria a ser compreendida também como caminho de salvação.
No entanto, para Forte, Jesus é o centro, embora afirme que “nada e ninguém, sequer a
mãe do Senhor, deverá tomar o lugar que compete ao Altíssimo na reflexão e na vida dos
crentes”. E tomando por referência H. Zwingli, subscreve: “Quanto mais crescem a glória e o
amor de Jesus entre os homens, tanto mais crescem também a valorização e a glória de Maria,
porque ela nos gerou um Senhor e Redentor tão grande e rico de graças”253 . Forte foca suas
análises sobre Maria no modo da Salvação por Jesus.
A partir do terceiro capítulo, que tem o mesmo título da sua obra, “Maria, a mulher ícone
do mistério”, ele analisa a figura de Maria sob as três perspectivas de Virgem, Mãe e Esposa,
dentro do contexto pascal, teológico, eclesiológico e antropológico. Na impossibilidade prática de
explorar os quatro contextos, dentro das três perspectivas: Virgem, Mãe e Esposa, nos
limitaremos à análise da “maternidade” em seus aspectos teológicos e antropológicos.
2.3.1. Significado teológico da maternidade
A figura de Maria faz parte do desenvolvimento de fé do povo que se inicia na
comunidade dos primeiros cristãos relatado nos Evangelhos e no livro de Atos dos Apóstolos, e
vai se desenvolvendo no seio da devoção popular através dos séculos. “Maria é a Mãe do Senhor
(Lc 1.43), segundo o testemunho da Escritura; a Mãe de Deus, como a define a fé da Igreja em
Calcedônia (451), em continuidade com a Palavra normativa e fontal do NT...”254. Do ponto de
vista teológico, para Forte:
As expressões ‘Mãe de Deus’ e ‘Genitora de Deus’ são usadas na tradição da fé de modo mais ou menos
equivalente: a primeira é do tipo mais pessoal-relacional, enquanto abrange todo o mundo vital das relações
entre Mãe e o Filho, a segunda é mais técnica, mais precisa do ponto de vista estritamente teológico,
enquanto afirma que Maria gerou aquele que é o Filho de Deus 255 .
251
GEBARA, I. BINGEMER, M.C., Op. Cit. p. 48.
Op. Cit., p. 49.
253
FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 11.
254
FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 184.
255
Ibidem.
252
87
Ao questionar “qual o aspecto da divindade a se oferecer no mistério da Mãe de Deus?”,
Forte sublinha que o título de Mãe e Deus dado a Maria está vinculado à verdade da humanidade
de Deus: “Ele veicula, de
forma densa e incisiva, a verdade da humanidade de Deus,
verdadeiramente Deus (‘vere Deus’), e que o Filho de Deus é o Filho de Maria, verdadeiramente
homem (‘vere homo’)...”256 . Primeiro, ancorado a essas afirmações, a maternidade de Maria não
tem outra funcionalidade a não ser revelar todo o caráter do “vere Deus” e do “vere homo”. Isso
significa que Jesus, como Deus, participa da humanidade – o Verbo Encarnado. O título
conferido a Maria de Mãe de Deus “se oferece como compêndio da fé no mistério central do
cristianismo”257. Não é um título designado por ela mesma, mas pelo próprio Deus que aprouve
escolhê- la. Segundo, a maternidade de Maria “remete também à totalidade do mistério trinitário:
se o Filho de Maria, gerado por ela no tempo, é o Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos
os séculos, então o Deus que se revela no mistério da maternidade da Virgem é o Gerado e o
Gerante, o Filho e o Pai”258 .
O sentido teológico da sua maternidade além, de revelar “a verdade da humanidade de
Deus”, inclui Maria “totalmente dentro do movimento descendente da salvação...”259 .
Ela
“testemunha do divino é a sua transcendência e absoluticidade, e ao mesmo tempo, a sua
misericórdia e infinita humildade”260 . Neste contexto, Forte questiona “quem é a Mãe de Deus
diante da Trindade, que a envolveu no mistério de suas relações pessoais?”. E afirma que “Maria
é o ícone materno da paternidade de Deus”261, pensamento já definido pela fé dogmática da
Igreja. Mas Forte pensa que “à paternidade de Deus Pai no divino corresponde a maternidade da
Mãe de Deus no humano”262. Ou seja, na compreensão de Forte a maternidade de Deus só pode
ser humana e não divina.
Embora pense assumir o feminino como elemento revelador do divino, Forte não o faz,
ao contrário dos teólogos da TL, Boff por exemplo, afirma que “o feminino, entrou numa
proporção toda especial, na constituição da existência concreta de Jesus”263. Forte relaciona
Maria totalmente ao mistério divino, mas sem assumir o femin ino como princípio da salvação
256
FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 187.
Op. Cit., p. 189.
258
Ibidem.
259
Op. Cit., p. 187.
260
Op. Cit., p. 188.
261
Op. Cit., p. 192.
262
Op. Cit., p. 193.
263
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 168.
257
88
humana. E Maria, como ícone paterno, está intrinsecamente relacionada à humanidade de Deus,
aos méritos unicamente de Cristo como mediador, a qual a maternidade de Maria exalta. Ela
participa do mistério da salvação, mas não como veículo de salvação do homem para Deus.
2.3.2. Significado antropológico da maternidade
A posição teórica de Forte sobre o significado antropológico da maternidade se baseia
fundamentalmente no sentido de que o “homem foi feito para amar” e a resposta positiva de
Maria confere à humanidade a transcendência, transcendência
264
manifestada pela maternidade divina da Virgem...”
que “se esclarece na direção
. Quanto ao significado antropológico da
maternidade de Maria, Forte questiona: “qual a imagem do homem que se apresenta na figura da
Mãe de Deus, ícone da paternidade divina?”. Ele afirma que esta “interrogação se funda no
caráter de ‘nova criação’ da concepção virginal...”265 . Consideraremos agora alguns dos conceitos
básicos dessa antropologia. Primeiramente,
a figura da Mãe de Deus resplandece a altíssima dignidade da criatura humana, chamada a participar da
comunicabilidade do amor divino: ‘O homem não é aqui, simplesmente ‘argila nas mãos do oleiro’, mas
‘criatura que colabora’, que ‘se chamada, responde,’ ‘se amada, ama’ 266 .
Forte limita sua antropologia ao sentimento humano mais profundo que é capaz da
entrega, de atos de total abandono ao outro, de humildade e de consentimento, apresentando
aspectos que são aspectos imanentes, mas de outro lado, apresenta também aspectos
transcendentes:
o valor do ‘sim’ de Maria: ele é o manifesto da liberdade da criatura, o sinal humilde mais inequívoco, de
que o amor do Pai é tão gratuito e, por isso, livre por si, que, para sua iniciativa de salvação, espera o
consentimento da criatura. Sem o ‘sim’ da Virgem, a maternidade divina seria algo de ‘fascinosum’ e de
264
FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 207.
Ibidem.
266
Op. Cit., p. 207.
265
89
‘tremendum’, envolto em sacralidade intangível, estranho e distante do homem empenhado na fadiga de
querer-se verdadeiramente humano267.
Em segundo lugar, “Maria vive a vocação profunda da criatura, amada por Deus e tornada
participante da fonte de seu amor, em toda a verdade do seu ser de mulher: ela é a Mãe de Deus,
o ícone materno, feminino, do Pai”268 . Neste sentido, ligada ao amor de Deus e a doação de
Maria, Forte questiona: “quais são os traços do feminino que se revelam na mulher Maria,
enquanto Mãe de Deus?”269. Uma primeira resposta do autor seria a doação sem condições ou
reservas, princípio materno da mulher. E ainda, “a mãe de Deus revela aqui a femininidade
materna da mulher em seu aspecto mais simples e imediato: ‘a mulher é mais capaz do que o
homem de atenção com a pessoa concreta, e a maternidade desenvolve ainda mais essa
disposição’”270 . Claro que a partir da teoria dos teólogos da TL, discordamos de que a mulher
desempenhe melhor essa afetuosidade, pois, a partir da emancipação da mulher, percebe-se que o
homem tem desenvolvido seu caráter paterno/maternal mais efetivamente, hoje, praticamente o
pai “engravida” junto com a mãe, desenvolvendo pelo filho o mesmo dom da mulher: doação,
amor, ternura e isso têm a ver com o caráter recíproco entre homem e mulher e a estrutura do
masculino presente na mulher e do feminino presente no homem (Anima e Animus).
Considerações a respeito da posição de Bruno Forte
Para Forte, o mistério de Maria está relacionado à encarnação de Cristo. Maria não pode
ser desvinculada desta relação, sendo Cristo o único mediador. Entendo que Cristo também não
pode ser desvinculado dessa relação, pois no jogo simbólico ambos se pertencem. Gebara e
Bingemer pensam diferente neste contexto de mediação. Para elas, a partir da perspectiva
antropológica, o termo mediador denuncia um esquema hierárquico, e compreendem que “na
entrega da vida pelo surgimento do Reino, todos se tornam ‘raça de sacerdotes’, ou seja, toda a
267
FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 209.
Ibidem.
269
Op. Cit., p. 210.
270
Op. Cit., p. 212.
268
90
humanidade se torna portadora da divindade e capaz de revelá- la”271 . Para Leonardo Boff, a
mediação de Maria em seu aspecto libertador tem a ver com sua solidariedade universal, para ele
“Maria e Cristo devem ser pensados como momentos de um mesmo Mistério de
autocomunicação salvadora de Deus”272 .
Para Forte, o extremismo mariológico desvirtua o caráter salvífico centralizado na pessoa
de Jesus, único mediador. Mas, ao assumir a reciprocidade entre masculino e feminino, há uma
coerência com a emancipação da mulher, no entanto, este mesmo caráter não corresponde a uma
Mariologia desvinculada da Teologia da Salvação em Cristo. Enquanto a TL enfatiza o indivíduo:
homem mulher, ou masculino e feminino inter-relacionado entre si enquanto pessoas, enquanto
indivíduos, um não suprime o outro mas são recíprocos. E ao analisar a figura de Maria mostra
seu caráter recíproco com Cristo. Uma perspectiva na linha mais “tradicional” preserva o caráter
salvífico exclusivamente a partir de Cristo – só Ele é mediador.
O que permeia basicamente a TL não é simplesmente uma ruptura radical com o
tradicionalismo, mas uma compreensão sobre o que, de fato, significaria “Maria, Mãe de Deus” e
“Jesus, Filho de Deus”, com referência à salvação (?). No contexto católico tradicional, parece
que a idéia mais comumente adotada entre os teólogos, inclusive de Bruno Forte, é a de que
Maria é sempre a Mãe de Deus que está submissa a seu Filho: Jesus Cristo. Mas, a partir de uma
ótica libertadora, este tema passa a ser mais explorado, tendo em vista a emancipação do
indivíduo dentro do projeto libertador e salvador de Deus. Como imagem e semelhança de Deus,
condição que privilegia homem e mulher focalizado nas figuras de Maria e de Jesus.
Sínte se do capítulo
A partir da teoria do simbolismo religioso, há de se admitir que a fé se processa mediante
as representações simbólicas no indivíduo coletivo e individual que se expressa por meio da
linguagem. Não há fé sem símbolo, ou como expressa Eliade: “o homem mais ‘realista’ vive de
imagens”273 . Não se pode dizer que os símbolos não sejam necessários, mas como afirmamos
271
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 13.
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 189s.
273
ELIADE, Mircea, Op. Cit. p. 12.
272
91
acima, que os símbolos fazem parte do desenvolvimento e construções sociais do ser humano. Ao
pensar a figura de Maria como simbolismo religioso intrinsecamente ligado ao imaginário
popular coletivo e individual, observamos que Maria é um símbolo que medeia Deus, revelando
seu caráter transcendente e a essência do ser humano.
Se o símbolo possui uma estrutura dialética, compete à Teolo gia, a partir de sua
hermenêutica, reinterpretar o símbolo religioso acompanhando os processos evolutivos da
sociedade. A Teologia não deve estar restrita aos conceitos culturais onde há deformações,
degradando, no entanto, a permanente dialética do símbolo.
Como imagem e semelhança de Deus a partir da perspectiva libertadora, Maria revela
também o divino e ao mesmo tempo é mediadora da salvação, já que se descentraliza a salvação
por meio de uma única estrutura: o masculino – Jesus. A manifestação do sagrado presente em
Maria como mulher concreta revela a transcendência do divino, embora “o conhecimento
simbólico não abarca nem domina adequadamente a realidade transcendente...”. E ao mesmo
tempo a essência da existência humana: “o conhecimento simbólico franqueia o acesso ao caráter
primordial, ideal e paradisíaco da humanidade...”274. Como imagem e semelhança de Deus, o
feminino goza dos mesmos privilégios que o masculino.
E se Maria, Mãe de Deus, como símbolo da fé representa a “força viva” que sustenta e
nutre a fé do povo latino-americano, seu simbolismo “profético e libertador” deve servir também
de salvação para a humanidade, além de consolo e abrigo. E a figura de Maria, pensada não mais
em subordinação a Cristo, vai se emancipando, desvinculada dos conceitos culturais que
degradam o símbolo, a figura de Maria tende a desenvolver novas reflexões.
A figura de Maria como mulher concreta na teoria dos teólogos da TL constitui-se em
referencial para se repensar a estrutura social e cultural do nosso continente, quer essa
hermenêutica seja feita a partir do contexto de opressão, da marginalização, do masculino ou do
feminino, seja como for, que promova a partir de seu olhar teológico crítico a emancipação do
indivíduo. Com essa perspectiva, ao olhar para a figura de Maria, é possível perceber elementos
redentores, libertadores e emancipadores do indivíduo cultural e religiosamente.
Numa perspectiva mais tradicional, a figura de Maria é vista ainda dentro do mistério da
trilogia: virgindade, maternidade e esponsal, no entanto, em subordinação a Cristo. Para Forte, a
Teologia da salvação tem primazia, Cristo é o centro e Maria está relacionada a Ele. Mas, a partir
274
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 238.
92
da perspectiva antropológica evocada pelo amor, como sugere Forte, essa Mariologia deveria se
desprender, no entanto, permanece subordinada. Assim como Cristo, Maria também se doou em
prol dos planos divinos de salvar a humanidade. O amor de Maria, sua entrega, seu Fiat, não
podem, então, ser desvinculados da salvação já que para ela aponta. Mas, ligado intrinsecamente
à salvação, a ponto de reconhecer na figura de Maria o símbolo de Deus, a bem aventurada que
será reconhecida em todas as gerações.
Concluímos pois, que no jogo simbólico, o símbolo expressa adequadamente o
significado transcendente de Maria, o conceito seria inadequado para expressar tamanha
densidade do mistério que na acolhida humana refletia a cada dia em seu coração como poderia
ser isso: a transcendência divina no limite da “humildade” do humano (Kenose). Mariologia e
Cristologia seriam sistematizações dos elementos nucleadores da nossa salvação em Deus. E a fé
expressaria essa sistematização por meio da linguagem simbólica que medeia o transcendente no
plano da salvação. Falar de Maria é falar da mulher, como afirmam Gebara e Bingemer, mas de
uma mulher concreta, que existiu. Como símbolo de Deus, Maria representa para a fé cristã não
uma divindade, mas uma mulher que revela a partir da maternidade o mistério da encarnação do
Verbo e a essência da existência humana.
Sendo, pois, a Maternidade de Maria assumida pelos teólogos da libertação como
característica de uma Mariologia libertadora, pois os títulos de suas obras assim o indicam:
“Maria, Mãe de Deus e mãe dos pobres (GEBARA e BINGEMER); “O rosto materno de Deus”
(BOFF) e “De Maria Conquistadora a Maria (Mãe) libertadora (DORADO), no terceiro capítulo
intentamos destacar os elementos emancipadores da Mariologia para a vida plena das mulheres
e/ou dos indivíduos oprimidos do nosso tempo, tendo em vista que a estrutura do feminino
também é reveladora do transcendente. A partir da perspectiva de que tanto Cristo quanto Maria
expressam ou medeiam o caráter divino de Deus, lançaremos um olhar linear sobre a maternidade
como característica da emancipação da mulher e do indivíduo.
93
CAPÍTULO III
A EMANCIPAÇÃO DA MULHER A PARTIR DA FIGURA DE MARIA
Introdução
Neste capítulo, a investigação consistirá em destacar os elementos emancipadores da
Mariologia no que diz respeito à vida plena das mulheres275 e/ou dos indivíduos oprimidos do
nosso tempo. Pensamos que a figura de Maria como referência para a emancipação do indivíduo
é uma das razões pela qual alguns teólogos da TL têm se ocupado, investigando a partir de uma
hermenêutica despatriarcalizada a superação da supremacia de um único modelo mediador da
salvação. A partir da teoria do símbolo, compreendemos que ele medeia e presentifica Deus. No
entanto, percebemos que os símbolos religiosos estão circunscritos também à própria linguagem
simbólica e religiosa que influenciaram as suas interpretações durante séculos.
Este capítulo está dividido em três partes, cujas abordagens pretendem-se destacar os
aspectos que denotam tais elementos a partir da compreensão das análises interpretativas: 1) do
Magnificat; 2) do Fiat; 3) finalmente, a linguagem religiosa. As fontes de pesquisas serão as
mesmas que utilizamos nos primeiro e segundo capítulos, acrescentando no entanto, outras
referências que servirão de respaldo para o desenvolvimento deste capítulo.
A. Algumas barreiras para a emancipação da mulher
A partir do que foi exposto nos capítulos anteriores, percebemos que o modo de ser
feminino também expressa um Deus sob forma humana, assim como o modo de ser masculino.
Se o conceito de símbolo implica sempre algo não completamente conhecido, isso quer dizer que
275
Sempre que usarmos o termo mulher(es) para falarmos da emancipação, neste contexto, o termo indivíduo fica
subentendido.
94
parte do seu significado fica completamente alheio ao nosso entendimento, não existindo uma
maneira adequada de interpretá-lo, mas aproximativa. Isso não significa afirmar que um símbolo
seja portador de várias definições, ou interpretações, mas que ele “evolui” juntamente com o
universo simbólico do(s) indivíduo(s), por isso ele é polivalente em sua estrutura.
Neste contexto, queremos pensar a figura de Maria como Mãe/Mulher libertadora e
referência para a emancipação da mulher latino-americana. Um dado importante é que a tomada
de consciência do indivíduo é que o incita à busca de mudanças. E a tomada de consciência do
povo latino-americano foi e é a mola mestra para o processo de transformações sociais em que
vivem, aliás não existe mudança sem mobilização. E a figura de Maria, de certa forma, promove
este resultado. Mas temos consciência de alguns obstáculos para que as mulheres, de modo geral,
sejam “plenamente” emancipadas.
Talvez um dos impedimentos para a emancipação da mulher seja alguns círculos
religiosos institucionais, pois estes têm rejeitado as mudanças que a sociedade atual vem
enfrentando, principalmente no que diz respeito ao movimento feminista. Talvez, isso se deva ao
fato do não conhecimento das suas ideologias, ou por preconceito, ou até mesmo por acreditarem
que cuidar do lar, dos filhos e do marido diz respeito à mulher e que o indivíduo deve se
conformar com sua situação, pois Deus assim o quer. Não é em vão que ainda sustentam ser a
mulher uma criação inferior ao homem, ela foi a autora da sedução de Adão ao pecado e, ainda,
de forma menos emancipadora: que a mulher é única e exclusivamente a auxiliadora do homem,
posição sustentada pela leitura errônea do livro de Gênesis. Tais pensamentos degradam a
humanidade da mulher, rebaixa sua identidade e a reduz aos estereótipos de todo tipo, indignos e
incongruentes.
Ao nos depararmos com esta realidade, a qual consideramos arcaica e irreflexa (pois os
textos de Gênesis são lidos literalmente), não podemos deixar de perceber que tais pensamentos
não só retarda a emancipação definitiva da mulher como imagem e semelhança de Deus, como
também prejudica o “binômio homem- mulher”, conforme explicita Dorado ao falar sobre o
predomínio do machismo na cultura 276. Esta é uma dura realidade que muitas mulheres enfrentam
de “mãos atadas”, pois é legitimada por uma suposta declaração “revelada” e “sagrada” de que “a
mulher deve ser submissa”.
276
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 59s.
95
Porém, ainda no âmbito religioso institucional, diferente do âmbito social, este conflito é
menos acirrado, pois há uma aceitação pela fé. E as mulheres em silêncio garantem ao sistema
patriarcal sua permanência e hegemonia e, assim, a questão de gênero não entra em discussão,
oferecendo um sistema pronto e controlado, sem conflitos e sem questionamentos, onde a palavra
dada determina o que se deve pensar. Mas, felizmente, outras mulheres têm promovido o
“barulho” (a quebra deste silêncio), tanto dentro quanto fora das igrejas. As buscas têm sido
intensas, dizer as próprias palavras não é tarefa fácil para quem sempre acreditou que foi
determinação de Deus a submissão da mulher, e as injustiças sociais como conseqüência do
pecado que alguns têm que suportar em nome da fé. Neste sentido, o discurso religioso legitima o
estado de opressão do indivíduo e a submissão da mulher ao homem.
Mas, ao se perceber como pessoa plena, a mulher não só se identifica com a imago Dei,
mas também encontra na história figuras, imagens, símbolos e mitos que reforçam e representam
sua identificação divina. E é a partir do símbolo feminino representado pela figura de Maria que
percebemos a necessidade de lançar um olhar que ao mesmo tempo promova e sustente a
emancipação do indivíduo, não mais usando uma linguagem opressora do dominador. E isso
torna-se desafios que se impõem para reformulações de novas convivências na Igreja e na
sociedade, como explicita Lina Boff:
As interpretações da nossa dura realidade histórica, seja de ordem estrutural, seja de ordem conjuntural e
eclesiástica são outros tantos apelos que nos desafiam à criação de uma nova ekklêsia, a ekklêsia da NOVA
JERUSALÉM terrena que aponta para a JERUSALÉM CELESTE277 .
Paralelo a este pensamento, Gutierrez afirma que: “o processo de libertação da Igreja
acontece com uma ‘ruptura com a atual situação, por uma revolução social’”278.
A luta que a TL e as feministas vêm travando contra o sexismo para que a humanidade
plena da mulher seja exercida, de fato, tem- nos feito compreender que o simbolismo feminino
também pode ser usado como metáforas divinas. A experiência feminina faz parte da “existência
ou “subsistência” de uma divindade presente no feminino e no masculino. Diz Johnson: “com
isso, a mulher se torna um novo canal de linguagem em relação a Deus, e o pensamento readquire
277
278
BOFF, Lina. Maria e o feminino de Deus: para uma espiritualidade... São Paulo: Paulus, 1997, p. 42.
GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 90.
96
certos aspectos fundamentais da doutrina de Deus que de outra forma passariam
desapercebidos”279.
Dito isto, podemos pensar na elaboração teológica em relação à Mariologia nas teorias
contemporâneas da TL e da Teologia Feminista para a emancipação da mulher, particularmente a
partir do Magnificat e o Fiat de Maria, mas rompendo com a linguagem patriarcal opressora.
Questionamos o seguinte: em que sentido, então, a figura de Maria pode ser canal de
emancipação da mulher? O que nos faz olhar para Maria e vê -la não unicamente como Mãe,
Virgem e Esposa, mas também como Mulher Libertadora?
1. O Magnificat
Esta palavra mágica vem carregada de conceitos, opiniões, teorias científicas, posturas
éticas e libertadoras dos mais variados matizes. Na TL, por exemplo, o Magnificat expressa a
ânsia de justiça, a luta pela sobrevivência e igualdade social para seu povo e mostra a pobreza e o
sofrimento de uma comunidade que vivia em um contexto de total opressão e miséria devido as
injustiças sociais. Aqui, a mulher Maria enquanto indivíduo percebe a sit uação de desigualdade
profunda em que ela e seu povo vivem. “O canto de Maria é um canto de guerra, canto do
combate de Deus travado na história humana, combate pela instauração de um mundo de relações
igualitárias, de respeito profundo a cada ser, no qual habita a divindade”280 .
A partir desta idéia, de que o canto de Maria revela um Deus que está ao lado dos fracos e
não ao lado dos poderosos, ao lado dos pobres e não ao lado dos ricos, é que nasce no coração do
povo latino-americano a consciência do seu estado de opressão com a pretensão de atingir uma
sociedade mais justa, já que Deus é um Deus salvador. Este aspecto confere ao indivíduo um
caráter particular de solidariedade, característica esta que possibilita a partir da união de forças e
conhecimento das causas da opressão lutar contra. A teoria sugere que não devemos nos
conformar com as desigualdades sociais, tampouco aceitá- las, é necessário combatê-las.
As expressões da piedade Mariana na AL alcançam grande parte dos pobres e oprimidos
que vêem no Magnificat o cântico de suas próprias vozes. E o papel de Maria como “Mãe
Libertadora” é fruto da experiência de fé e de conscientização de sua situação de “opressão279
280
JOHNSON, Elizabeth A., Op. Cit. p. 79.
GEBARA , I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 87.
97
libertação”. E, ainda, como bem ressalta Dorado, de que se constitui tarefa dos teólogos na sua
elaboração hermenêutica contribuir na sua elaboração científica, tendo consciente ou “levando
em conta as ‘opressões culturais’ das quais a Mariologia deve salvar-se, e das quais também
Maria quer evangelizadoramente, libertar seus filhos”281.
1) Primeiro, não podemos deixar de ter em mente as lutas cotidianas (retratadas no cântico
do Magnificat) que fizeram parte do dia a dia das mulheres de dois mil anos atrás e que,
conseqüentemente, Maria também enfrentou. Um cotidiano marcado pelas desigualdades sociais,
injustiça e opressão retratados nos gestos simples dessas mulheres e também de Maria – desde o
cuidar dos filhos, fiar e tecer, à luta pelo que comer e contra a pobreza em geral. Bruno Forte, ao
se referir a Maria como mulher e figura histórica, ao relatar sobre sua grandeza, declara:
assim a grandeza do que aconteceu a ela não deve fazer-nos esquecer a humildade de sua condição, o
cotidiano de suas fadigas na família de Nazaré, a obscuridade do itinerário de fé no qual ela avançou, os
condicionamentos recebidos do ambiente que a cercava, a densidade plena e verdadeira de ter sido mulher e
de ter conhecido os diferentes estados da experiência feminina: virgem, mãe, esposa282 .
A este respeito, Pilar de Aquino em seu livro-tese trabalha o conceito de gênero e afirma o
cotidiano como chave hermenêutica para analisar as práticas sociais e os processos de opressãolibertação283 e nos chama a atenção para um cotidiano de ações “repetitiva, contínua e
sistemática”, que ligado ao “âmbito doméstico” se estende nas relações “privadas” e são
estabelecidas. O âmbito doméstico é, de certa forma, o legitimador das desigualdades sociais,
onde “são aprendidas as primeiras formas de convivência social, de valores e de condutas”. Mas,
é claro que essas desigualdades não se restringem unicamente ao âmbito doméstico, como
ressalta Aquino: “o campo de luta das mulheres deve incorporar ambas as esferas. (...) de forma a
que também ‘o cotidiano privado’ seja compreendido como terreno de luta pela libertação e
remonte, assim, ao caráter fragmentário que lhe tem sido atribuído”. É no cotidiano de pequenas
lutas que vai se conquistando as transformações sociais, para isso é necessário que se “rompa
com a inércia do cotidiano a fim de provocar modelos igualitários de relação inter-humana”. E
assim, Aquino mostra na perspectiva de classe que o cotidiano permite desvelar as relações
desiguais de classe, a divisão social do trabalho, as relações no âmbito do público e do doméstico,
281
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 104.
FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 145.
283
AQUINO, Maria Pilar. Nosso clamor pela vida... São Paulo: Paulinas, 1996, p. 90-95.
282
98
enfim, mostra-se uma categoria importantíssima para revelar a situação de opressão das mulheres
na AL.
A religião, na maioria das vezes, legitima esse estado de inércia perante a minoria
dominante, pois a “nossa morada está no céu”, diriam alguns. E neste sentido, ao invés de ter
consciência, o sujeito torna-se alienado, conformado e mendigante da graça divina. Mas, para sair
dessa inércia exige-se uma força mobilizadora que não é de um só indivíduo, mas exige uma
força mobilizadora coletiva. Nesta linha, percebe-se que o Magnificat é o grito dos oprimidos, da
coletividade soada na voz de Maria. O indivíduo consciente não só percebe seu estado de
opressão, mas luta contra, de maneira que as mudanças aconteçam, mesmo que não sejam
imediatas. Como afirma Gutiérrez:
torna-se, com efeito, cada vez mais evidente que os povos latino-americanos não sairão de sua situação a
não ser mediante uma transformação profunda, uma revolução social que mude radical e qualitativamente as
condições em que vivem atualmente. Os setores oprimidos no interior de cada país vão tomando consciência
(...)284 .
Em outro momento, ao escrever sobre a “força histórica dos pobres”, Gutierrez diz que
participar do processo de libertação exige não só tomada de consciência e mudança das estruturas
ou revolução social, mas de um novo modo de ser homem: “é um processo que não leva apenas a
uma mudança radical das estruturas, a uma revolução social, mas vai inclusive mais longe:
conduz à criação permanente de um novo modo de ser homem”285.
2) Depois, o Magnificat, a partir desta centralidade da TL, vislumbra Maria como
continuidade das mulheres “geradoras do povo”. Segundo Gebara e Bingemer286, “a figura da
mulher não só exprime uma figura individual, mas ela é ao mesmo tempo a expressão do rosto do
povo”. A exemplo de Miriam, Rute, Judite, Ester e Ana – mulheres imagens de um povo. Elas
também exprimem simbolicamente “a realidade da mulher obscurecida pelos séculos de
patriarcalismo”. Embora valorize o pessoal, a hermenêutica das autoras valoriza também o
coletivo, pois para elas essa leitura, a partir do ponto de vista pessoal e coletivo, devolve “às
narrações bíblicas a força da história que não se faz apenas a partir de indivíduos isolados,
284
285
286
GUTIERREZ, Gustavo, Op. Cit. p. 84.
GUTIERREZ, Gustavo. A força his tórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 47.
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 51s.
99
mesmo se é contada mais especialmente a partir deles”. O que equivale dizer que os heróis não
conquistam as vitórias sozinhos, mas que nessa conjuntura há várias outras pessoas envolvidas.
Essa visão antropológica centrada nos grandes heróis “reduz a história humano-divina”, e
complementam: “ora, essa visão tornaria ineficaz e secundaria a ação de milhares”.
3) Ainda na perspectiva do Magnificat, a voz de Maria denuncia com veemência que
Deus destronou os poderosos (cf. Lc 1. 52). Pode-se pensar como poderosos aqueles que têm
feito do sistema patriarcal a mola mestra da sociedade. Também seriam poderosos os que estão
no poder e oprimem os menos favorecidos. Ou ainda, poderosos também são os injustos, os
gananciosos, os egoístas e os tiranos deste mundo. E por fim, os poderosos também são aqueles
que mantêm a superioridade masculina em detrimento da feminina e que reafirmam seu poder
diante da penúria majoritária. Sendo assim, um Deus que esteja atrelado ao sistema de opressão
não é um Deus justo e salvador.
O teólogo C. Boff, ao enfocar a figura sociolibertadora de Maria, afirma, a partir do
cântico do Magnifica t, que “ela é uma mulher que tem os olhos abertos sobre as opressões sociais
e as denuncia com toda a coragem porque são opostos ao plano de Deus”287 . E em seu
desenvolvimento histórico em vários empreendimentos, quer esteja ligada aos interesses
ideológicos, políticos ou sociais, a figura de Maria está sempre voltada para o âmbito
sociolibertador, pois “era invocada como protetora dos pobres e penhor de vitória”288 . Esse
destaque da figura sociolibertadora, em partes, evidencia uma linha do pensamento da tradiç ão
judaica, onde se acredita em um Deus libertador que age na história. E como figura que revela o
divino, Maria evidencia este aspecto libertador a partir do canto do Magnificat.
Já a teóloga Lina Boff289 fala do Magnificat como uma mística que revela o mistério
divino, do qual ela destaca dois traços distintos: primeiro, “a mística da contemplação” – que é
uma experiência voltada para a unidade, essa experiência seria a “imersão no mundo dos
humilhados, dos famintos e dos que gritam por socorro”; para a fé, pois crer na “palavra que foi
anunciada”; e no “deixar-se absorver por Deus que cobre de bens os pobres, socorre seu povo e
presenteia toda a esterilidade com abundante descendência”; segundo, “a mística do
compromisso ético” – esta experiência de libertação que sobressai no Cântico de Maria envolve
a “mística do vigor” que se realiza na prática. Maria revela um Deus que age “a favor dos
287
BOFF, Clodovis. Visão social da figura de Maria– uma síntese. In: REB, fasc. 250, abr. de 2003, p. 356.
Op. Cit., p. 359.
289
BOFF, Lina. A fala de Maria no magnificat aos povos ... In: Reb, fasc. 240, dez. de 2000, p. 861s.
288
100
humildes, mas contra os orgulhosos”; “a mística da eficácia” que já é “realidade libertadora” no
meio do povo; “a mística do serviço solidário” é uma realidade presente no meio do povo, pois a
partir do sim de Maria foi possível a encarnação do Verbo de Deus, e isso envolve a celebração
da “chegada do Evangelho como Boa-Nova a partir da palavra de Jesus, como atuação libertadora
do espírito e como revelação do projeto salvífico do Pai”.
Ao questionar “que mística nos inspira Maria para o Terceiro Milênio?”, Lina Boff
responde que o cântico de Maria de Nazaré “inspira e alimenta a esperança, seja das massas
pobres e oprimidas, seja das massas excluídas ou sobrantes”290 . Entendo que podemos também
encontrar nossas respostas de acordo com os nossos contextos vividos na Igreja e na sociedade. E
as respostas poderão ser encontradas se formos tocados efetivamente pela mística do
compromisso ético, a exemplo de Maria e Jesus. Compromisso de conscientizar e transformar o
estado de opressão em que vivem as grandes massas. Pois, nisso consiste a TL291 : conscientizar o
indivíduo de seu estado de opressão.
Isto exposto, pode-se perceber que o Cântico de Maria revela, de certa forma, que ela tem
consciência da situação em que seu povo vive – consciência social, que ela não está alheia ao que
está acontecendo no meio de sua comunidade. Diante da boa nova do Reino, a voz dessa mulher
não foi outra, senão de denunciar, abriu a boca e falou, mostrando que Deus quer libertar o
oprimido do cativeiro da miséria e desprezo, e derrotar o opressor: “Deus com o seu braço
dispersou os soberbos no pensamento de seus corações. Destituiu os poderosos de seus tronos, e
elevou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias” (cf. Lc 1.
51-53). Clodovis Boff ressalta bem a dimensão sociolibertadora que a figura de Maria revela e
afirma que ela é “uma mulher de espírito libertário e mesmo revolucionário”292.
4) E esse novo modo de ser e de olhar a figura de Maria aponta para um caminho que
Bingemer e Gebara sugerem como: “autonomia e originalidade próprias”293 . Em que se vejam
restauradas a presença da “transcendência no homem e na mulher”. E para essas teólogas, “a
transcendência não é sinônimo de vivência superior, ou extraterrena, ou para além da história, ou
ainda, transcendência não é ruptura do curso dinâmico da história”294 . Isso significa que a
transcendência divina revela-se na “fragilidade” humana e no seu “limite”, sem dividí- lo “em
290
BOFF, Lina, Op. Cit. Ibidem.
GUTIERREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres, passim.
292
BOFF, Clodovis, Op. Cit. p. 356.
293
GEBARA , I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 14.
294
Op. Cit., p. 15.
291
101
seres superiores e inferiores”, mas ela “se manifesta em sua criatura”295 . Ao compreender a
manifestação divina a partir da perspectiva humanocêntrica, o indivíduo não será objeto, mas
agente de seu próprio destino. Então, não só a tomada de consciência move o indivíduo para a
aniquilação da pobreza e da opressão, mas a “novidade da AL”, segundo Aquino, é a
“consciência das causas que geram essa situação”296 . E ela afirma que:
ao emergir a consciência da causalidade a respeito da sua condição subalterna e ao fazer audível a
reivindicação à palavra e à existência, a presença da mulher obriga a deslocar o horizonte de compreensão
da realidade e introduz um significado novo e distinto do que é a humanidade e seu destino297.
Dentro dessas perspectivas, a conexão que se estabelece com Maria e o Magnificat para a
libertação da mulher é a consciência de que as mudanças são possíveis a partir do momento em
que se conhece as causas. Ao compreender-se como sujeito, a mulher passa a reivindicar “a
palavra e a existência”, instrumentos de poder que têm por objetivo canalizar sua força em
direção a uma prática social transformadora. O patriarcalismo “deixa de ser” em potencial uma
força inabalável e permanente, para se tornar um instrumento de incentivo às lutas das maiorias
oprimidas. Por isso, o Cântico de Maria pode ser considerado, como definem Gebara e Bingemer,
de “síntese da alegria e da esperança do povo no passado, no presente e no futuro”298 .
Ainda neste contexto, Leonardo Boff define a figura de Maria como “modelo dos anelos
de libertação dos oprimidos”299 . A partir da encíclica de Paulo VI, que sublinha a figura de Maria
dentro de uma dimensão libertadora, retratando-a como uma mulher promotora da justiça, Boff
situa o Magnificat a partir de dois contextos: primeiro, o “contexto espiritual” – situado “na
mesma atmosfera e é cantado no mesmo espírito em que se encontra a mensagem libertadora do
Messias. É um prelúdio do anúncio do Reino de Deus...” E de um Deus que se revela como santo.
Boff define santo como “aquele que está para além de tudo quanto pudermos pensar e imaginar”.
E esse Deus santo ele define também como miseri-cor-dioso que “ouve o clamor do
esmagado”300.
295
GEBARA , I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 15.
AQUINO, Maria Pilar, Op. Cit. p. 68.
297
Idem, p. 60.
298
GEBARA , I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 87.
299
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 200.
300
Op. Cit., p. 202.
296
102
Um outro contexto é a “dimensão libertadora do Magnificat de Maria”301 , que revela em
seu ventre “o princípio de toda sanidade e libertação”. O júbilo de Maria retrata o quanto ela está
alegre pelo feito do Senhor no meio dos povos. Boff explicita que esta alegria não é vazia, e em
nota de rodapé esclarece que o “primeiro verso do Magnificat evoca o tema, freqüente no AT, da
salvação dos aflitos e da restauração de Sion. Esta restauração de Sion, entretanto, era
considerada como a libertação do resto aflito e humilhado de Israel” 302 . A dimensão libertadora
do Magnificat, segundo Boff, revela também a misericórdia de Deus em consonância com o
desenvolvimento da história humana, não é algo descompassado e:
ela assume formas históricas e se concretiza em gestos transformadores do jogo de forças. Os orgulhosos, os
detentores do poder e os ricos não possuem a última palavra como sempre pretendem. Sobre eles já se
manifesta, historicamente, a justiça divina303 .
2. O Fiat
Quanto ao Fiat de Maria, resposta positiva à solicitação divina, acolhida sem reservas,
solidariedade humana e caminho para a Encarnação do Verbo de Deus no mundo e tantas outras
releituras que são feitas, além do pensamento dogmático “tradicional” da Igreja, libertando,
entretanto, a figura de Maria do cárcere da “Dogmatização da Virgindade Eterna” como processo
meramente biologizante, que deve ser seguido por “todas” as mulheres (principalmente as
mulheres cristãs). Ao ser confundida com conteúdo moral ascético, a virgindade apresentou-se
em primeiro lugar “como abstinência sexual ou ‘pureza’, que as mulheres devem manter ou por
toda vida – do contrário elas se tornariam prostitutas! – ou pelo menos até o casamento – a fim de
que o varão possa estar seguro de ter esposado uma mulher intata, intacta”304 .
Essa acolhida, ao contrário do Magnificat que se revela de maneira paradoxal305 , um Deus
que age a favor de seu povo e é contra quem os oprime, “o Fiat pronunciado ao anúncio do
mensageiro pela serva do Senhor (Lc 1. 38) abre as portas à irrupção do Espírito que inaugura, na
301
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 205.
Ibidem.
303
Idem, p. 206.
304
EICHER, Peter. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p. 530.
305
Ver maiores detalhes sobre o paradoxo do canto de Maria, em Gebara e Bingemer, 1987, p. 192-197.
302
103
história humana, a plenitude dos tempos (cf. Gl 4. 4) e a Nova Criação”306 . E esse novo povo traz
consigo a marca libertadora, que por meio da figura dessa mulher em sua total entrega aos planos
redentores de Deus, nos torna também participantes da graça. E ainda, a humanização do próprio
Deus. Um dos sentidos teológicos que Leonardo Boff discute sobre a virgindade de Maria é o
fato de Deus ter desejado para si mesmo nascer de uma virgem. Ao dizer sim, Maria permite que
Deus se auto-realize 307 . E essa auto-realização reside no fato de Deus tornar-se humano mesmo –
Deus conosco!
Embora a elaboração dogmática católica favoreça a Maria um lugar na economia da
Salvação, na verdade, a Igreja não favoreceu a despatriarcalização do seu sistema hierárquico,
por isso, a figura de Maria em alguns círculos católicos permanece estereotipada como Virgem,
Mãe e Esposa – modelo da mulher ideal, sobressaindo seu aspecto maternal ainda de maneira
dogmática. Ela é a mãe do Salvador e está subordinada a Cristo, modelo do crente fiel e da
Igreja 308 .
Essa descentralização vem por parte das Cebs – “um novo modo de ser Igreja”, terreno
fértil para o povo oprimido que emprega suas esperanças em Maria de maneira libertadora.
“Maria foi e é também a concretização de um projeto acontecido no meio dos pobres. O projeto
de uma humanidade nova que vai sendo gestado com carinho e paciência pelo Deus Criador”309 .
Gebara e Bingemer ressaltam ainda a importância que o Concílio Vaticano II dedicou à
maternidade de Maria na elaboração do seu documento: a Constituição Dogmática Lumen
Gentium, que tem em conta “a dimensão soteriológica dessa maternidade”, que abrange muito
mais que uma relação entre Maria e o Verbo Encarnado, “mas pelo significado que essa
maternidade dá à salvação humana como um todo”310.
Devido a sua complexidade, os dogmas marianos vêm sendo estudados cuidadosamente a
partir de uma práxis libertadora e não opressora. Nesta compreensão, nossos autores básicos
clarearão esta nova perspectiva no que diz respeito ao Fiat. Neste sentido, esta reflexão é
conduzida tomando emprestado os olhares da TL, tendo em vista as novas leituras no que diz
respeito aos dogmas marianos, os quais procuram ver restaurada na prática a emancipação da
mulher.
306
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 192.
BOFF, Leonardo, op. cit. p. 163.
308
Constituição dogmática do concilio ecumênico vaticano II sobre a igreja. 18ª ed. p. 55-62.
309
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 185.
310
Op. Cit., p. 114.
307
104
Nas análises da TL os dogmas ganham outros matizes, a saber: que a virgindade não é
uma virtude moral. Segundo as análises de Leonardo Boff, no AT e NT a virgindade não tinha
nenhum valor: “a virgindade biológica, como se depreende, não encerra, biblicamente, nenhum
valor. Mas ela pode ser o suporte para um valor inapreciável de humildade e disponibilidade à
vontade de Deus”311 .
Neste sentido, a Teologia mais conservadora concentrou seus olhares no aspecto da moral
e do sobrenatural e deixou de atentar para o fato de Maria ter sido uma mulher concreta e
humana. Embora B. Forte seja de uma linha conservadora, ressalta alguns aspectos (libertadores)
da natureza de Maria, afirmando que a maternidade acontece na sua pessoa concreta:
Maria é mulher: esse dado não é em nada indiferente à revelação do mistério humano, oferecida nela. Se é
verdade que na sua virgindade se reflete a vocação originária do homem segundo o projeto de Deus, não é
menos verdadeiro que isso se verifica historicamente numa figura feminina concreta312 .
Para Gebara e Bingemer a virgindade de Maria a partir dos evange lhos e tentando, como
dizem as autoras, se libertarem de “todo reducionismo biologizante ou psicologizante”, declaram:
não se trata, pois, de um dado antropológico que se passa, intimistamente, entre Deus, uma mãe e seu filho.
Mas que a concepção virginal de Jesus em Maria abre para homens e mulheres de todos os tempos e de
todas as épocas a perspectiva de um novo nascimento313.
Leonardo Boff afirma que “a grandeza de Maria não reside no fato de ser virgem, mas no
fato de ser a mulher escolhida para receber em seu seio o Verbo humano. Como mulher poderia
ser desposada ou virgem”. E esta virgindade aponta para uma nova humanidade livre do “pecado
e da morte”314.
Diante dessas teorias, o que o Fiat de Maria revela de novo?
As discussões que giram em torno do Fiat de Maria pelos teólogos da TL ressaltam a
responsabilidade e autonomia dessa mulher, inclusive Bruno Forte reconhece que Maria foi uma
mulher concreta, ressaltando seu aspecto humano e que ao responder sim, Maria respondeu com
311
FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 151.
Op. Cit., p. 179.
313
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 121.
314
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 153 -154.
312
105
“todo seu ‘eu’ humano e feminino”315 . E é na humanidade de Maria que o mistério divino se
revela e ela passa a compreendê- lo, “meditando em seu coração”, e dela emerge um novo povo,
um novo começo, uma nova realidade para a mulher, que é capaz de assumir junto com Deus a
salvação do mundo. Deus assume o feminino, e esta feminilidade torna-se realidade para Deus,
que se humaniza. Ao se auto-realizar, Deus assume a dor e o sofrimento humano em sua carne,
que é a carne da própria Virgem, da própria mulher-Maria.
Por isso, longe de ter sido um SIM como submissão alienante, ao contrário,
simbolicamente representa a solidariedade de Maria à humanidade, como afirma Leonardo Boff:
“ela se solidariza com toda a humanidade fiel que suspirava por uma libertação”316 . Sua entrega
livremente a Deus sublinha de modo especial uma ligação com Deus, e L. Boff atribui essa
ligação de Maria por meio do Fiat à encarnação, que para sempre “terá uma dimensão feminina e
marial; nela o feminino é inserido em Deus”317. Gebara e Bingemer reforçam esta mensagem,
afirmando que “a relação entre Maria e Jesus não é apenas a da maternidade e da filiação, mas
ambos são sinais e presença viva do novo povo de Deus, daquele que supera os laços da carne e
se faz família no mesmo Espírito Santo”318 .
Estes aspectos são traços que a tradição Mariana não tematizou, ao contrário, a figura de
Maria sempre esteve atrelada especificamente aos aspectos de natureza transcendental e
subordinada a Cristo. E essas qualidades foram adotadas como caminho de pureza e acesso a
Deus. Mas, simbolicamente, a figura de Maria em potencial não só representa os aspectos da
transcendência divina, como também aspectos da nossa humanidade em relação a Deus. Ela é
uma mulher de carne e osso mesmo, um ser humano com todas as ambigüidades que lhe são
inerentes, mas onde o divino se revela.
Em suma, se um símbolo religioso para a fé tem de ser desprovido de suas características
humanas, ou melhor dizendo: antropológicas, ou seja, o símbolo tem de estar intrinsecamente
inseparável de seu aspecto transcendental para ser divino, Maria atende a esses dois aspectos:
humano – simbolizando “o começo da humanidade divinizada”319 ; e divino – pois está vinculada
à verdade da humanidade de Deus, verdadeiramente Deus (‘vere Deus’), e que o Filho de Deus é
315
FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 179.
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 193.
317
Ibidem.
318
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 87s.
319
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 146s.
316
106
o Filho de Maria, verdadeiramente homem (‘vere homo’)”320 . Por isso, os aspectos de Virgem,
Mãe, e Esposa, que poderiam ser lidos numa perspectiva antropológica para a libertação do
indivíduo diante de Deus, não o é na Teologia conservadora. Ao contrário, Maria está
subordinada a Cristo e seu simbolismo é interpretado a partir de uma realidade metafísica,
negando seu aspecto humano concreto. A virgindade de Maria vista apenas do ponto de vista
biológico obscurece a pertinência da reflexão teológica em sua profundidade e amplitude.
Portanto, na prática a Teologia precisa diluir os preconceitos e as ultrageneralizações, até mesmo
do “puro positivismo teológico que afirma simplesmente fatos brutos e pede o assentimento da
fé”321.
Mas, o que podemos observar a partir dos teólogos e teólogas da TL é que a virgindade,
ou mais especificamente a maternidade de Maria, está intrinsecamente relacionada à encarnação
de um Deus que é libertador dos pobres e oprimidos. Como percebemos, a virgindade era motivo
de desprezo para uma mulher, o ma is importante era o concebimento de um filho. Ao contrário de
ter sido uma resposta passiva, que retrata de certa forma, em algumas interpretações a
subordinação da mulher, a virgindade de Maria está relacionada à sua experiência maternal, a
qual fez parte de uma opção livre e revela o aspecto feminino da divindade.
O seu SIM foi muito mais que representativo de uma submissão alheia e passiva. Em
Maria a maternidade divina só se realiza depois de um consentimento livre e consciente. Neste
aspecto, podemos ressaltar que esta livre escolha expressa as potencialidades da identidade de
uma mulher que se entregou aos desígnios divinos sem perder sua identidade. Para Gebara e
Bingemer, “a obediência de Maria ao projeto de Deus vai aliada à sua rebeldia a tudo que se opõe
a esse projeto...” e ainda: “... é canal tanto do SIM de Deus ao povo como do NÃO de Deus às
forças que impedem esse mesmo povo de viver a Aliança com seu Deus”322. Fazendo um paralelo
com Gênesis no ato da criação, em que Deus a partir de sua palavra cria vida: “Haja!”.
Diferentemente do ato da criação, Deus espera um sim, e Maria diz: Fiat (faça-se!). A
Encarnação do Verbo divino só acontece com a livre permissão humana de uma mulher, Deus
não poderia trazer à existência seu Filho sem esta permissão, caso contrário, anularia a autonomia
e a liberdade dessa mulher chamada Maria.
320
FORTE, Bruno, Op. Cit. p. 187.
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 153.
322
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 190.
321
107
Uma outra leitura que Gebara e Bingemer fazem do Fiat é no contexto do evangelho de
S. Lucas, a partir da boa nova. Para elas, entre os evangelhos, Lucas é quem relata “ao mesmo
tempo a boa-nova de Jesus e a boa-nova de Maria, numa complementariedade profunda, em
íntima relacionalidade”323. E esta boa- nova é “bordada” de maneira diferente neste evangelho,
apresentada sob nova luz, que elas denominam de “momento poético”. Expresso neste contexto
de complementariedade e de relacionalidade, Lucas elabora sua Teologia, da qual as autoras
salientam apenas os aspectos para a elaboração da Teologia Marial, que incluem três partes: a
Anunciação, a visita de Maria a Isabel e o parto de Maria. Destacaremos apenas a primeira parte:
a Anunciação.
A Anunciação a Maria (Lc 1. 26-38) que “segue o estilo religioso literário das teofânias,
manifestação de Deus na vida do povo”, para essas teólogas, Maria é a figura que representa o
povo na acolhida da ‘revelação’ divina e de sua gestação. Lucas faz exatamente uma releitura do
AT com fatos novos, ao mesmo tempo em que há uma ligação entre o AT, há também uma
passagem e é a figura de Maria que retrata este novo povo, povo fiel, “povo virgem, não vendido
aos ídolos, não cúmplice das injustiças”, do qual Deus se faz presente conosco, Emanuel. E ao
retratar essas maravilhas de Deus que acontece no meio do povo, o que “leva Lucas a colocar na
boca do anjo a saudação a Maria: ‘Ave cheia de graça’, para Gebara e Bingemer Lucas está
pensando em Sofonias: ‘O Rei de Israel está no meio de ti’ (Sf 3. 15b). ‘Filha de Sião, solta gritos
de alegria. Israel solta gritos de júbilo’ (Sf 3. 14)324 . E ainda, “o sentido profundo do ‘Faça-se em
mim’ não pode ser desligado e nem isolado da realização da palavra do Senhor ao longo da
experiência vétero e neotestamentária”325.
Sendo assim, podemos concluir, em concordância com nossas teólogas e teólogos, que
Maria faz parte da mediação universal juntamente com Jesus. A exclusão de Maria do plano
mediador, que Leonardo Boff define como “preocupação quase neurótica”, acontece
historicamente em algumas confissões protestantes que saíram da Reforma, e Boff considera que
esta exclusão deve ser “compreendida dentro das condições cult urais do mundo moderno,
profundamente marcado pela tendência masculinizante”326 . E a supervalorização masculina e a
rejeição da figura de Maria como símbolo de Deus enfraquece ou inviabiliza a compreensão da
323
GEBARA, I. BINGEMER, M. C., Op. Cit. p. 79.
Op. Cit., p. 80s.
325
Op. Cit., p. 84.
326
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 191.
324
108
Encarnação de Deus no meio de nós. Por isso, ao propor uma antropologia que supere esta
centralização no homem- macho, Gebara e Bingemer rompem com o modelo único de salvação
que é Cristo, e afirmam que Deus nos salva “através da realidade masculina e feminina
constitutivas do humano”327 .
3. A linguagem religiosa
Um outro ponto da nossa reflexão situa-se no contexto da linguagem religiosa, pois,
entendemos que ela revela toda a complexidade que gira em torno dos símbolos. Maria nasceu
em um ambiente totalmente patriarcal, onde o uso da linguagem se processava de maneira
sexista. A subordinação de Maria a Cristo ao longo dos séculos ressalta de maneira singular esse
modo de ser da linguagem patriarcal e sexista. Mas ao dizer sim, Maria rompe o esquema
patriarcal operante e nos abre a possibilidade de ver além, de compreender o mistério divino
revelado na carne humana de uma mulher, a partir de uma perspectiva feminina.
Johnson, em seu trabalho Aquela que é, realiza uma pesquisa teológica e trabalha a
construção da linguagem como instrumento para analisar o mistério de Deus. Ela relata suas
análises sobre a linguagem religiosa acerca de Deus, de que não existe uma maneira correta para
se relacionar com Ele, mas que esta linguagem constitui-se em expressividade de uma
comunidade de fé, que por sua vez “modela de forma profunda a identidade incorporada à
comunidade e orienta a sua práxis”328. Para tanto, a autora parte de algumas questões iniciais
como: qual é a maneira correta de se falar de Deus? O Deus da tradição judaica e cristã é
realmente tão verdadeiro, a ponto de ser capaz de levar em consideração, iluminar e integrar a
experiência atualmente acessível à mulher?”.
Johnson pensa, ainda, que há parcialidade na linguagem cristã, mesmo que se entenda que
Deus não é somente Pai, mas que é Mãe também, contudo a expressão Mãe raramente é utilizada,
quer dizer, nunca é utilizada. Deus é Pai! E a linguagem cristã está profundamente ligada a esse
conceito. E o predomínio da linguagem sobre os símbolos demonstra esta predominância e não
valoriza a humanidade da mulher: “a linguagem cristã que herdamos em relação a Deus evoluiu
327
328
GEBARA, I. BINGEMER M.C., Op. Cit. p. 48.
JOHNSON, Elizabeth, Op. Cit. p. 18.
109
dentro de uma estrutura que não valoriza a humanidade singular e igual da mulher e traz consigo
as marcas desta parcialidade e desta predominância”329 . Por isso, que o objetivo da Teologia
cristã da libertação feminina “é a reflexão sobre o mistério religioso a partir de uma posição que
faz uma opção à priori para a promoção humana da mulher”330 . Para Johnson, “situada à margem,
a Teologia feminista da libertação da mulher observa com clareza que a sociedade e a Igreja estão
impregnadas
de
sexismo,
com
os
seus
semblantes
gêmeos
do
patriarcado
e
do
androcentrismo”331, os quais a autora considera como pecado social.
Consideramos que esse pecado social nega a liberdade, a expressividade, a participação e
a redenção para a humanidade a partir de uma figura feminina. Pecado que oprime as mulheres,
os menos favorecidos e os marginalizados em geral. Claro que não se pretende eliminar as
polarizações, exaltando o feminino, mas que o feminino seja também símbolo representativo da
fé para pensar o divino no seu mais profundo mistério.
A linguagem é a maneira que dispomos para expressar os pensamentos e os sentimentos,
por isso, não estamos isentos de sermos envolvidos pelos conceitos determinantes e determinados
da cultura ou pela tradição da qual fazemos parte, muito menos de fazer uso de uma linguagem
construída pela sociedade e pela religião. No âmbito religioso, a linguagem é tida como sagrada
e, por isso, legitimada pela “revelação divina”. Sendo assim, a linguagem atribuída a Deus, ainda,
tem uma relação de gênero, um significado que se expressa unicamente no universo simbólico do
patriarcalismo. Pois, Deus é homem e tem um Filho homem – único Salvador, que é Jesus.
Pensamos, então, que a linguagem legitima a opressão da mulher ainda nos dias atuais devido seu
caráter sagrado.
A quebra de paradigmas dessa única forma de falar de Deus é o caminho para que a figura
de Maria encontre na Teologia o espaço para a interpretação dos fatos acontecidos nela, ligados à
salvação. Porque se Maria existiu em um ambiente patriarcal, como mulher seu simbolismo e as
construções ideológicas a seu respeito giraram em torno das ideologias culturais da época
vigente. Por isso, é preciso, como sugere Leonardo Boff, que se “despa triarcalize” esta
linguagem, que se rompa com os conceitos e estereótipos culturais, que haja mudanças nas
estruturas sociais, nos relacionamentos mútuos, nas posições dogmatizantes e nos modelos
exclusivistas.
329
330
331
JOHNSON, Elizabeth, Op. Cit. p. 35.
Op. Cit., p. 37.
Op. Cit., p. 39.
110
Os estudos que Johnson e outras teólogas vê m desenvolvendo tem esse objetivo, mostrar
que “o sexismo se manifesta através de estruturas sociais, nas atitudes e na ação das pessoas,
entrelaçadas no domínio público e particular”. E a crítica que Johnson faz sobre o uso da
linguagem não é simplesment e porque Deus está circunscrito às “metáforas masculinas”, “mas
pelo fato de serem esses termos masculinos usados com exclusividade, literal e
patriarcalmente”332.
Existe uma linguagem determinada religiosa e historicamente do papel da mulher e,
portanto, determinante dos conceitos vinculados a ela. A figura de Maria é um exemplo claro do
uso “conceitual” da linguagem: Virgem, Mãe e Esposa. Esses conceitos aludidos a Maria, e
estendidos às mulheres de um modo geral, subjugaram- na a um papel de esposa, mãe e rainha do
lar, deformando, então, o que a mulher realmente deveria (ou deva) ser. Embora a figura de
Maria não pressuponha essa relação de dependência e submissão da mulher ao homem, pois em
um momento da história ela teve um significado válido para a fé de um determinado povo que
não foi aprisioná-la nesta moldura, mas são as interpretações que lhe foram dadas que
contribuíram significativamente para que a mulher ficasse no prejuízo, subalterna e inferior ao
homem, prejudicando, no entanto, sua emancipação religiosa e culturalmente falando. É o que
Johnson lembra a respeito do pensamento de Rosemary Ruether: “... se o próprio conceito de
‘feminino’ empregado para definir a essência da mulher histórica concreta não é uma criação do
patriarcado, útil enquanto relega a mulher ao domínio privado e ao papel de auxiliar do
homem”333.
A linguagem tem grande influência na religião e na crença do indivíduo, a maternidade
latino-americana, por exemplo, está estritamente atrelada aos conceitos culturais. Ao falar do
machismo e maternidade no contexto social latino -americano, Dorado mostra o quanto implica a
supervalorização do homem neste contexto, o macho “é estimado por sua dureza e coragem”, é
sagaz, possui autonomia, no lar ele é o rei, é ele quem manda, não realiza t rabalhos domésticos, e
os filhos são trabalho da mulher, ele (o macho) apenas se preocupa “de que os filhos homens
também cheguem a ser ‘machos’, e que as filhas cheguem a ser a mãe ideal, que está latente no
fundo de seu mundo cultural” 334. Neste sentido, a mãe passa a ser o “símbolo do lar”, onde os
filhos e o marido encontram: carinho, compreensão, paciência e tolerância. Projeta-se para a
332
333
334
JOHNSON, Elizabeth, Op. Cit. p. 45s.
Op. Cit., p. 89.
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 58s.
111
Virgem Maria essas mesmas características, que passa a ser vista como a mãe pronta a atender as
necessidades de seus filhos, ela é protetora, consoladora, amorosa e compreensiva.
Um outro exemplo da influência da cultura nos relacionamentos e na religião é a cultura
camponesa, onde fica estabelecida uma relação entre a mãe e a terra. Com relação a Maria, não é
sem referência que ela é considerada “Nossa Mãe”, como afirma Dorado:
quando o povo diz ‘minha mãe’ ou ‘nossa mãe’ está fazendo uma referência concreta a esta original
maternidade que, por sua vez, constitui uma peça privilegiada da estrutura cultural a que pertence (...) É
nesta maternidade – e não em outra – que aparece pela fé a maternidade de Maria. Dela o povo diz com
alegria e esperança que é ‘minha Mãe’, ‘nossa mãe’, com toda a ressonância cultural com que o Filho
latino-americano o diz de sua própria mãe335 .
Felizmente, ultimamente este quadro vem sofrendo transformações e sendo denunciado. A
mulher tem buscado maneiras mais igualitárias, rompendo assim, com o machismo predominante
na cultura. Ao usar a palavra Deus para expressar a experiência da mulher a novas direções,
associada com “metáforas e valores provenientes da experiência da própria mulher”, Johnson está
dizendo que essa linguagem em “relação a Deus/Ela” pretende ser inovadora no sentido de
produzir uma nova reflexão e “um novo conteúdo para a referência à divindade, na esperança de
que este modo de se expressar possa ajudar a sanar a imaginação e a libertar as pessoas para
novas formas de comunidade”336. As análises de Johnson têm em conta a linguagem padrão do
patriarcado no uso das metáforas femininas, por isso, não é simplesmente uma crítica ao uso da
linguagem padrão, mas suas análises contribuem para afirmar que:
•
Primeiro, mesmo quando se usa uma linguagem em relação a Deus destituída do gênero,
“a correção da linguagem androcêntrica apenas em nível do conceito não é suficiente”337 .
É preciso que esta linguagem seja utilizada a partir dos “símbolos femininos relacionados
com o mistério divino”338 destituindo a exclusividade da metáfora masculina e
restaurando a integridade e a identidade da mulher.
335
DORADO, Antonio González, Op. Cit. p. 64.
JOHNSON, Elizabeth A., Op. Cit. p. 73.
337
Op. Cit., p. 76.
338
Op. Cit., p. 77.
336
112
•
Segundo, “o símbolo do ídolo patriarcal está se partindo, enquanto surge uma série de
outros símbolos. Entre eles, estão os símbolos femininos para o mistério divino”339. Neste
caso, consciente de que o simbolismo feminino é imagem e semelhança do divino, as
mulheres começam a utilizar metáforas femininas para apontar o mistério divino,
destituindo o exclusivismo masculino.
•
E terceiro, “mesmo com a inclusão de características presumidamente femininas, o padrão
androcêntrico irá manter-se firme”340. O símbolo feminino é suficientemente capaz de
revelar o mistério divino e quando adiciona a este mistério características ligadas ao papel
maternal da mulher: amabilidade, paciência, ternura, dentre outras, traz exclusivamente
benefício ao caráter de um Deus Pai temível e terrível, amenizando seu caráter opressor.
Johnson é contundente ao afirmar que esta inclusão apenas fortalece a predominância do
padrão androcêntrico e recusa esta inserção de “qualidades” predominantemente ditas
femininas. O importante é se referir “às características femininas de Deus”341 , sugere
Johnson. Caso contrário, ao se falar de um Deus com características femininas: “nessa
maneira de falar de Deus, continua sendo Pai, porém de certo modo, fica amenizado pelo
ideal feminino, de tal forma que os fiéis não precisam temer ou rebelar-se contra um
paternalismo opressor”342 .
Neste sentido, pensar a imagem do divino em símbolos femininos, e não simplesmente
adicionando características femininas, ajuda a dirimir o caráter androcêntrico da divindade e ao
mesmo tempo revela no símbolo concreto sua polivalência, que Haight acredita que, por
possuírem caráter polivalente, os símbolos não se submetem a conceituação 343 . Essa característica
conferida ao símbolo, deve atinar a mente a novas interpretações. Neste sentido, ao olhar a figura
de Maria livre dos conceitos e construções sociais do patriarcado, isso possibilitaria uma leitura
emancipadora da mulher designada como bem aventurada, ressalta Johnson:
339
JOHNSON, Elizabeth A., Op. Cit. p. 79.
Op. Cit., p. 81.
341
Ibidem.
342
Ibidem.
343
HAIGHT, Roger, Op. Cit. p. 32.
340
113
isso acontece quando a realidade concreta e histórica da mulher, ratificada por Deus como bem-aventurada,
funciona como símbolo na linguagem em relação ao mistério de Deus. A linguagem é informada pela
particularidade da experiência da mulher transmitida pelo símbolo 344 .
Esta experiência concreta que o símbolo revela, transmite a particularidade do símbolo
livre dos conceitos, por exemplo, a virgindade de Maria não seria interpretada apenas
biologicamente, mas apontaria, como sugere Boff, a uma outra verdade revelada neste símbolo,
que ajuda a “decifrar dimensões do mistério de Deus, nos ajudam também a decifrar dimensões
de nosso próprio mistério”. Então, para ele “a virgindade cristã não é apenas reserva para Deus; é
principalmente missão para os homens em nome de Deus”345.
O rompimento com a linguagem androcêntrica e sexista possibilita a leitura do
simbolismo religioso de maneira inclusiva e não exclusivista, assim sendo, a figura de Maria
pode ser interpretada como símbolo da manifestação de Deus, de um Deus que em sua essência é
também feminino. Para isso, é necessário que os textos sagrados não sejam tomados radicalmente
como revelação divina única e estanque, é necessário que se assuma uma postura crítica diante
desses escritos. Isso nos fará enxergar a união dos tecidos e a linha que os liga, e a partir dessa
linha formar novas costuras, novos cortes, ainda que sejam utilizados os mesmos tecidos. Quando
se fala de uma “pertinência teológica do feminino” como imagem e semelhança de Deus, isso
implica dizer que o feminino também faz parte dessa costura, desse fio que une homem e mulher
a Deus. E compreender esse componente essencial, de uma certa “igualdade criacional do varão e
da mulher” é acreditar em um Deus que se manifestou simbolicamente no masculino e no
feminino. Ao se utilizar a imagem feminina para descrever a experiência cristã de Deus, é
assumir também que não há uma certa exclusividade em Deus se revelar nos moldes unicamente
masculino.
Em suma, entendemos que as imagens masculinas e femininas podem ser, como bem
ressalta Johnson, empregadas para indicar o mistério divino, embora o mistério divino na
expressividade das estruturas feminino e masculino não seja adequado, no entanto a
personalidade de Deus “transcende a ambos de forma inimaginável” 346 . O importante é que o
344
JOHNSON, Elizabeth A., Op. Cit. p. 79.
BOFF, Leonardo, Op. Cit. p. 162.
346
JONSON, Elizabeth A., Op. Cit. p. 90.
345
114
modelo antropológico único seja descentralizado, considerando a diversidade como característica
do símbolo, ou seja, sua polivalência.
Síntese do capítulo
A TL revela traços significativos a partir da figura de Maria para a emancipação da
mulher e para uma Teologia Marial paralela à Cristologia. Embora algumas barreiras pareçam
contribuir para a submissão sempre e permanente da mulher, legitimada pela suposta revelação
divina, contudo a partir da descentralização da figura de Jesus como único mediador e do
masculino como centro da revelação divina e superior ao feminino, se superará o caráter
androcêntrico da revelação. Mulheres e homens serão imagem e semelhança de Deus. Cristo e
Maria figuras simbólicas que manifestam o mistério divino.
O Magnificat como expressão da boa nova do reino de um Deus que se manifesta ao lado
dos pobres e oprimidos, sustentará a esperança do povo latino-americano nas buscas de novas
formas de convivências na Igreja e na sociedade. Este povo não só se conscientiza do seu estado
de opressão como também toma conhecimento das causas e se mobiliza para combatê- las.
O Fiat mostra que a figura de Maria assume uma postura não de submissão, mas de
autonomia e de solidariedade. O Deus libertador respeita a individualidade e decisão da mulher
diante de sua solicitação. Ao ser exaltada como figura totalmente resignada à vontade divina,
dando ênfase a seu aspecto moral e modelo da mulher ideal, a figura de Maria não promoverá a
emancipação da mulher nem na cultura nem na Igreja.
Ao questionarmos em que sentido a figura de Maria pode ser canal de emancipação da
mulher, pensamos que isso só será possível a partir de novas leituras dos dados referentes à fé
ligados a ela, como por exemplo seu Fiat e o Magnificat; quebrando os paradigmas e destituindo
o modelo masculino do centro da “revelação divina”, que histórica e culturalmente vem
contribuindo para aprisionar a mulher nos esquemas patriarcais por meio de uma linguagem
estritamente sexista.
Ao pensar o cântico de Maria como combate pela instauração de um mundo de relações
igualitárias dentro do projeto do reino, onde mostra um Deus que se manifesta ao lado dos pobres
e oprimidos e não ao lado dos ricos e poderosos, o povo latino-americano toma consciência do
115
seu estado de opressão e busca uma sociedade mais justa. Neste mesmo sentido, o Fiat de Maria
não está atrelada exclusivamente ao aspecto virginal e maternal, mas é amplamente pensado,
revelando a autonomia e a identidade de Maria. Ao dizer sim, ela rompe com o esquema
patriarcal operante e nos abre a possibilidade de ver além e de compreender o mistério divino
revelado na carne humana de uma mulher.
Destacamos também que Maria pode ser canal de emancipação da mulher a partir do
momento que se rompa com a linguagem androcêntrica e sexista. Ainda subordinada a Cristo, a
figura de Maria não promoverá a emancipação da mulher, mas só será possível se se romper com
esta linguagem que se revela sexista e situada no âmbito patriarcal. Olhar para a figura de Maria
rompendo com os conceitos culturais contribuirá indelevelmente para desarraigar dos conceitos
culturais o significado do seu simbolismo religioso opressor.
Considerações pessoais
Ao analisar a figura de Maria como modelo para a emancipação da mulher,
compreendemos que ao contrário de uma mulher alheia e submissa, Maria revela-se como uma
mulher consciente de seu papel na sociedade que se mostra opressora. A maternidade de Maria
foi algo que ela pôde optar em ser mãe ou não. Podemos, então, questionar se ser mãe hoje não
seria também uma questão de opção para muitas mulheres, principalmente aquelas que vivem em
extrema pobreza, levando em consideração os vários métodos contraceptivos que permitem que a
mulher decida por uma gravidez mais tardia.
A incidência da maternidade tem ocorrido ultimamente entre as adolescentes, o que a
nosso ver, é um fato que prejudica a emancipação das mulheres, pois essas jovens, ainda não
conscientes de seu papel na sociedade, crescerão dando continuidade a um tipo de mulher voltada
para cuidar dos filhos, do lar e do marido. Ou talvez, quem sabe mulheres mais independentes, já
que a maioria delas criarão sozinhas os filhos. Afonso Murad concorda que “... a maternidade tem
cada vez mais condições de ser opção e não destino ou fatalidade”347 . É claro que em um país
subdesenvolvido, a pobreza atrelada à falta de informação e de meios que possibilitem às
347
MURAD, Afonso. O que Maria tem a dizer às mães de hoje. Paulus: São Paulo, 1997, p. 33.
116
jovens/adolescentes tomarem consciência que uma gravidez precoce é inviável, isso contribui
significativamente para a formação de um povo cada vez mais pobre.
A pobreza é o mal do nosso século, e cada vez mais crescente a gravidez precoce arrasta a
cada dia o contexto da AL para a pobreza. É claro que a gravidez precoce do pobre não é a causa
da pobreza e das desigualdades sociais, não é isso que estamos a defender. Sabemos que as
causas estão nas estruturas governamentais, econômicas, políticas e sociais de nosso país. Não
defendemos também que o pobre não tenha o direito de nascer, mas como bem colocou Murad:
“ser pobre é não ser, pois o empobrecimento despoja a pessoa de sua dignidade mínima e
dificulta a formação de sua identidade psicoafetiva e da consciência da cidadania”348. E mais, ser
pobre é não ter subterfúgios para a própria sobrevivência, menos ainda para um ser totalmente
dependente.
Como também observamos, se para Gebara, Bingemer e Leonardo Boff, o feminino na
figura de Maria, ou a figura de Maria no feminino constitui-se caminho do homem para Deus, ou
caminho para a salvação, a TL nos coloca de frente com questões não refletidas pela Teologia
conservadora (ou tradicional).
Tal influência contribuirá significativamente para a emancipação da mulher, a libertação
do indivíduo diante das exclusões gritantes do racismo, sexismo, subordinacionismo da classe
pobre e a própria marginalização nas diversas áreas da sociedade. É claro que a TL não é a
“salvação” das causas mais profundas que afetam a sociedade e a Igreja, mas suas contribuições
ante tão grandes desafios são válidas. Pois, o que ela promove não é simplesmente a
conscientização do indivíduo, mas a tolerância religiosa e individual, novas formas de
convivência, respeito mútuo e cidadania.
348
MURAD, Afonso, Op. Cit. p. 46.
117
CONCLUSÃO
As teorias da libertação pelas quais optamos, no que diz respeito à figura de Maria, trazem
uma contribuição importante para o pensar teológico: a inclusão do feminino como nova chave
interpretativa do mistério divino. São concepções que contribuem para repensar a figura de Maria
sob novo prisma. Essas novas reflexões têm suas teorias voltadas para a emancipação do
indivíduo, consciência do seu estado de opressão e conhecimento das causas que os oprimem e a
relação entre teoria e práxis. É no contexto da AL que a reflexão sobre a figura de Maria torna-se
um caminho alternativo para refletir ao mesmo tempo sobre o feminino e romper com os
conceitos tradicionais da fé.
Um dos objetivos da pesquisa foi pensar a figura de Maria numa perspectiva libertadora a
partir de quatro teólogas(os) da libertação. Neste sentido, sintetizamos suas obras, mostrando as
grandes linhas de seus pensamentos no que diz respeito às novas concepções e releituras que têm
permeado a elaboração teológica a respeito de Maria, levando em conta a emancipação da
mulher, que contribui indelevelmente para a mudança na concepção sobre a própria figura de
Maria. E estas releituras mostram que o foco da salvação não está unicamente na figura de Jesus.
A partir da teoria do símbolo, compreendemos que a figura de Maria medeia e revela
Deus, uma hierofania, pois a piedade popular a contempla de tal modo que é como se ela fosse o
próprio Deus. A fé só se expres sa por meio de símbolos e os símbolos fazem parte do
desenvolvimento e construções sociais do ser humano. E assim, a figura de Maria expressa
simbolicamente o caráter transcendente da divindade e a essência do ser humano. Neste sentido,
mostramos que a fig ura de Maria como símbolo religioso revela o divino e é também mediadora
da salvação.
Um outro objetivo foi pensar a emancipação do indivíduo a partir da figura de Maria, a
qual revela traços que podem contribuir para a emancipação da mulher mas, no entanto, algumas
barreiras poderão ser decisivas para impedir tal processo. O Magnificat e o Fiat de Maria revelam
ao mesmo tempo um Deus que está ao lado dos oprimidos e menos favorecidos, por isso, se faz
Deus conosco e uma mulher que, consciente do seu papel social, age em prol do reino de Deus,
assumindo uma postura não de submissão, mas de autonomia e de solidariedade. Destacamos
também que Maria pode ser canal de emancipação da mulher a partir do momento em que se
118
rompa com a linguagem androcêntrica e sexista. Ainda subordinada a Cristo, a figura de Maria
não promoverá a emancipação da mulher, mas só será possível se se romper com esta linguagem
que revela -se sexista.
Colocamos também que a linguagem religiosa atrelada à cultura e à religião, fortalece de
maneira negativa os conceitos atribuídos a Deus. Sendo assim, esta linguagem ainda tem uma
relação de gênero, um significado que se expressa unicamente no universo simbólico do
patriarcalismo, pois Deus é homem e tem um Filho homem que é Jesus Cristo. Pens amos, então,
que a linguagem legitima a opressão da mulher na Igreja e na sociedade nos dias atuais devido ao
seu caráter sagrado. E uma das maneiras de se romper com o exclusivismo seria a quebra de
paradigmas.
Apesar da tendência à confirmação da hipótese inicial da nossa pesquisa, sentimos a
necessidade de ampliá-la. Constatamos que a TL, além de apresentar Maria como figura
libertadora da situação atual da mulher na AL, alcança também o feminino como imagem e
semelhança de Deus. Uma outra hipótese foi que a Mariologia na perspectiva da TL possui
elementos novos, que são relevantes para a reflexão atual: emancipação da mulher, libertação e
conscientização do oprimido (não aceitar seu estado de opressão) – a fé pressupõe mudança e não
estagnação do indivíduo em sua situação.
Desta forma, trabalhamos agora com a seguinte hipótese: uma Teologia sistemática, via
intervenção da TL, da prática da fé dos indivíduos, pode provocar alterações emancipadoras no
seu desempenho reflexivo sob a nova maneira de pensar Deus a partir do feminino. Além disso,
esta nova maneira influenciará e produzirá alterações nas práticas hermenêuticas com os dados os
quais estão relacionados com Deus e a fé.
Olhar para a figura de Maria rompendo com os conceitos culturais, contribuirá
indelevelmente para desarraigar dos conceitos culturais o significado do seu simbolismo religioso
para interpretações mais emancipadoras e libertadoras. Neste sentido, nossa pesquisa poderá
contribuir significativamente tanto para a Igreja, quanto para a sociedade. Teoricamente,
pressupomos que esta pesquisa contribuirá no contexto eclesial para que as mulheres se vejam
como imagem e semelhança do divino e capaz também de revelá- lo. Por outro lado, para
recuperar a identidade própria da mulher enquanto indivíduo no confronto dos discursos
marginalizadores e opressores, produzidos e reproduzidos há séculos, que tão profundamente
arraigados nos dados revelados, fazem da mulher cristã simplesmente um pedaço de costela
119
(osso), apêndice do homem e refém da fé. Na prática, contribuir para que a emancipação das
mulheres seja uma realidade a partir das necessidades práticas do indivíduo social, pois a
finalidade da revelação não é confiná- los no arcaísmo religioso, mas sempre expressar
necessariamente, ao novo home m, novas maneiras de pensá- la. Prática que só será possível, ao
nosso ver, a partir de uma ruptura com os conceitos culturais judaico-cristãos.
E na sociedade, contribuir para reafirmar a capacidade de atuação das mulheres nos seus
diversos setores; que elas assumam tarefas que antes eram unicamente designadas aos homens;
que as mulheres se percebam enquanto sujeitos históricos e não objetos da história; sua efetiva
emancipação histórica e a ruptura com os estereótipos. Por fim, promover a igualdade, o respeito
mútuo para além das denúncias das desigualdades e das divisões do trabalho. E que a sociedade
seja um lugar não das divisões do desempenho dos papéis sociais julgados inerentes aos homens
e às mulheres, mas lugar da prática, da execução das relações que se estabelecem entre teorias e
práticas igualitárias.
O feminino, ao ser considerado como imagem e semelhança de Deus, é caminho que
também direciona a humanidade a Deus. Vale dizer que a emancipação da mulher e a libertação
do indivíduo no âmbito religioso e conseqüentemente no cultural e social, dependerão (claro que
não exclusivamente) da Teologia ou mais precisamente da hermenêutica que se faz dos símbolos,
percebendo e distinguindo os elementos culturais que influenciaram, influenciam e continuarão
influenciando a religião e a sociedade.
Cremos que o caminho a prosseguir para a emancipação do ser humano, seja realmente
pensar a fé a partir dos indivíduos históricos concretos e seus contextos: sem-terra, índios, afrodescendentes, sem-teto, aborto, homossexuais, homens e mulheres. Assim sendo, a Teologia
poderá contribuir mais eficazmente para o desenvolvimento de relações de respeito sociais e
religiosos tanto quanto para a tolerância religiosa.
Por fim, a Teologia, na sua elaboração hermenêutica, deveria pensar a Mariologia e
Cristologia como sistematizações dos elementos nucleadores da nossa salvação em Deus. A
Cristologia não deveria ocupar o centro da Teologia, mas expressar os elementos redentores da
fé a partir da Cristologia, como também da Mariologia. Tais sistematizações mediariam o
transcendente. Sendo assim, seria uma Teologia inclusiva que mostra que o feminino também é
caminho do homem para Deus e de Deus para o homem, e não uma Teologia exclusivista, sexista
e patriarcal.
120
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