O Primeiro Ministro Inserção Competitiva de Cabo Verde na Economia Global Intervenção proferida pelo Dr. José Maria Neves, Primeiro Ministro da República de Cabo Verde, na Universidade Cândido Mendes, por Ocasião da Atribuição do Título de Doutor Honoris Causa Rio de Janeiro, 14 de Outubro de 2009 Introdução Eu queria, em primeiro lugar, cumprimentar o Magnífico Reitor da Universidade Cândido Mendes e agradecer-lhe pelo acolhimento e pelo Outorga do Titulo Doutor Honoris Causa em Ciências Humanas e Sociais. Agradecer-lhe a si e a todos os professores e a comunidade académica desta casa secular, que me recebe hoje, assim como tem recebido cabo-verdianos para a sua formação académica. Na verdade, esta minha presença aqui é um reencontro de amigos, porque pude estar com o Professor Cândido Mendes na nossa cidade de Mindelo, onde, também juntos, inauguramos o Instituto Superior Isidoro da Graça, que é uma instituição de formação superior e que constitui uma ponte importante de relacionamento entre o Brasil e Cabo Verde. Estas primeiras palavras eram para fazer este agradecimento. Na verdade, temos uma pátria comum, como diria Fernando Pessoa, que é a língua portuguesa. O mesmo poeta disse que «navegar é preciso» e sabemos que entre Cabo verde e o Brasil vários homens navegaram para criar e descobrir novos mundos. Sabemos que entre Cabo Verde e o Brasil há traços fortes que nos unem. Para o poeta «Deus quis que o mar unisse, já não separasse» e esse mar largo do Atlântico uniu os destinos deste grande país que é o Brasil e o arquipélago de Cabo Verde. Muitos dos afro-descentes que hoje constituem a maioria do povo brasileiro passaram por Cabo Verde, o próprio Padre António Vieira, que também pregou nas terras da Baia, passou pelas Ilhas e estabeleceu as pontes entre estes dois países. Cabo Verde nasceu de um intenso diálogo de civilizações e diria que esta minha vinda a esta Universidade é mais um reencontro de civilizações, um reencontro entre a mulheres e homens que têm um percurso comum e que navegaram - e navegar é preciso - nas águas do Atlântico, para construir estes mundos que hoje projectam algo de novo para a humanidade. Vou falar-vos de Cabo Verde e da sua inserção competitiva na economia global. Quando se fala em África normalmente é pelos piores motivos. É a África das guerras, dos golpes de estado, da miséria e das doenças endémicas. É a imagem que a imprensa internacional quase sempre apresenta da África. Ninguém negará os grandes problemas que conhece o continente africano e que requer, antes de tudo, grandes esforços das lideranças e das sociedades africanas e uma partilha de responsabilidades com a comunidade internacional. Eu quero ser claro: a responsabilidade pelo desenvolvimento da África cabe em primeiro lugar aos africanos. Já dizia Amílcar Cabral que «por mais quente que seja a água da fonte, ela não cozera o teu arroz» Nós, em África, teremos que cozinhar o nosso arroz, independentemente das fontes onde podemos ir buscar a água, conscientes de que a responsabilidade será sempre dos africanos, dos cidadãos e das sociedades africanas. Quero dizer-vos, todavia, que em África também acontecem coisas boas. Nos últimos anos, tem havido muitos progressos em todos os domínios, em vários países africanos. E, hoje, proponho falar-vos um pouco da trajectória de um país africano, Cabo Verde, considerado um “caso de sucesso». Tudo para provar-vos que o desenvolvimento é possível. As relações económicas internacionais estão estabelecidas para que os países mais pobres apenas mantenham a cabeça fora de água, para não se afogarem e causarem, assim, mais transtornos à comunidade internacional. Cabe, pois, a esses países construir estratégias que possam quebrar as amarras e abrir caminhos ao desenvolvimento. Breve incursão histórica Provavelmente, poucos terão ouvido falar de Cabo Verde. Trata-se de um pequeno país, constituído por 10 ilhas, na costa ocidental africana. É o país de África mais próximo do Brasil, com o qual mantém, desde séculos, laços identitários muito fortes. Cabo Verde chegou a independência de Portugal em 1975, depois de uma longa luta de libertação nacional conduzida por um dos maiores líderes africanos que foi Amílcar Cabral e aqui lembrado pelo professor Cândido Mendes na sua intervenção. Amílcar Cabral já dizia que não valeria a pena a independência se depois dela as pessoas não vivessem melhor, não seria possível justificar as lutas pela independência se após o acesso ao poder resultado da dinâmica libertadora não houvesse uma melhoria significativa da qualidade de vida das pessoas. Amílcar Cabral dizia que a luta para a independência não devia traduzir-se apenas na conquista de um hino e de uma bandeira, mas que era preciso, também, realizar o sonho da independência. E, Cabo Verde, na altura da independência, já lá vão apenas 34 anos, muitos duvidaram da viabilidade do país. De facto, o quadro de partida era bastante desolador: um micro território, ainda por cima dividido em várias ilhas; um país sem recursos naturais economicamente exploráveis; um país ambientalmente vulnerável, a braços com longas secas e em desertificação acelerada; um país sem qualquer infra-estrutura. Para exemplificar: o PIB per capita era de cerca de 120 dólares americanos, um dos mais baixos do mundo, o que é bem o testemunho da pobreza em que se vivia. Havia sérios problemas de segurança alimentar e fomes recorrentes. O analfabetismo era grande. Os cofres do Estado estavam completamente vazios. Governado em regime de partido único, o país partiu do nada. E os desafios eram enormes: Construir um Estado e instituições credíveis; Atender a problemas prementes de sobrevivência das populações; Estancar o processo de desertificação; Mobilizar recursos e lançar as bases do desenvolvimento; Não teremos certamente tempo para debruçarmos em profundidade sobre esta etapa. Gostaria, todavia, de destacar os eixos essenciais da governação do país nos primeiros anos de independência. Foi construída uma agenda de desenvolvimento e foi feita a mais ampla mobilização nacional em torno dos objectivos prioritários. O desenvolvimento do capital humano foi identificado como uma das opções estratégicas e lançou-se num amplo programa de educação, com a criação de condições para que todos tivessem acesso ao sistema de ensino. O signo adoptado foi o de Amílcar Cabral: dizia ele que a principal razão da luta pela independência era dignidade dos guineenses e dos cabo-verdianos: primeiro porque viu guineenses a serem açoitados e cabo-verdianos a morrerem de fome. Era preciso resgatar a dignidade dos guineenses e dos cabo-verdianos. E disse mais: após a independência, aqueles que assumissem as rédeas do poder deviam governar com decência, com honestidade e com patriotismo. Seguindo os desígnios de Amílcar Cabral a ética da responsabilidade foi definida como um valor cimeiro na governação do país. Todos os recursos externos mobilizados teriam de ser geridos com rigor, transparência e eficácia. A dignidade das pessoas estava no cerne de todas as políticas públicas. No contexto da guerra fria, que então se vivia, Cabo Verde manteve-se equidistante dos dois blocos, através de uma política activa de não alinhamento, o que permitiu ao país construir parcerias e mobilizar recursos de ambos os lados. Cabo Verde defendeu sempre o multilateralismo, o diálogo e a resolução negociada de conflitos, a cooperação para a paz e o desenvolvimento. O país cresceu muito. Os interesses emergentes já não podiam ser articulados e integrados por um único partido político. Em Fevereiro de 1990, 15 anos após a independência, foi, assim, iniciado o processo de transição para a democracia, que culminou, onze meses depois, com a realização das primeiras eleições legislativas multipartidárias. Em 1992, foi aprovada uma nova Constituição da República, que marca o inicio de um processo enriquecedor de construção de um Estado de Direito Democrático, considerado exemplo em todo o continente africano. Foi também desencadeado um amplo programa de reformas económicas que criou os alicerces de uma economia de mercado, onde o Estado é estratega, regulador e construtor de uma visão partilhada de desenvolvimento. Cabo Verde é hoje um país com uma democracia consolidada, bem governado e em processo acelerado de transformação económica e social. Pequena economia aberta Historicamente, Cabo Verde foi sempre uma economia aberta: já nos descobrimentos, e no próximo ano comemoraremos os 550 anos do descobrimento das ilhas, funcionou como ponto de escala e trânsito e de entreposto de escravos. Em relação ao Brasil, por exemplo, alguns animais e plantas foram aqui introduzidos a partir de Cabo Verde. Escravos da África Ocidental foram «ladinizados» em Cabo Verde, antes de serem trazidos para o Brasil e outros países das Américas. A partir dos finais da década de oitenta foi encorajada uma maior abertura da economia em vista a uma melhor inserção na economia mundial. A ênfase foi colocada na captação do investimento estrangeiro e das comunidades cabo-verdianas na diáspora. Cabo Verde tem a particularidade de ter uma população emigrada maior que a população residente espalhada pelo mundo inteiro, incluindo o Brasil. De qualquer forma, nenhum país pode pretender desenvolver-se virado para dentro, muito menos uma pequena economia como a cabo-verdiana. Cabo Verde é uma Nação aberta ao mundo. Aberta ao mundo pela sua história, pela sua condição atlântica, pela exposição da sua economia ao exterior, pela sua cultura multifacetada e pela presença de uma numerosa diáspora espalhada pelos diversos cantos do mundo. Inserção competitiva na economia mundial Em 2001, apesar dos progressos conseguidos, constatamos algum esgotamento dos caminhos até então seguidos. O fenómeno da globalização veio mudar profundamente as regras do jogo. A competitividade, o conhecimento e a inovação tornaram-se em recursos estratégicos para o desenvolvimento das nações. Mais recentemente, as múltiplas crises por que passa o mundo vieram por a nu as precariedades da Governança global e a inexistência de mecanismos de regulação da economia de mercado. Fenómenos como a fragilização dos estados nacionais, o aumento das desigualdades, das tensões sociais e dos conflitos intra e interestaduais, os desastres humanitários como as pandemias, os genocídios, os deslocamentos massivos de populações; o aquecimento global, entre outros, vieram chamar a atenção do mundo para lacunas graves nas políticas públicas e na Governança das nações e do mundo. Concomitantemente, e não necessariamente desligado da globalização, no caso concreto de Cabo Verde, tínhamos, também, que fazer face a dois desafios: a redução da ajuda externa e das remessas dos emigrantes, dois pilares essenciais do crescimento da economia até então. Tínhamos de construir uma economia auto-sustentada. Internamente, as nossas necessidades mudaram, as exigências são outras que reclamam uma nova abordagem. A passagem a país de rendimento médio coloca novas e acrescidas necessidades. Precisamos de novos paradigmas para continuar a sustentar a dinâmica transformacional. Lançamos então o que chamamos de estratégia de transformação da economia e de modernização das instituições e da sociedade, de modo a garantir a inserção competitiva de Cabo Verde na economia global. E preferimos ser pragmáticos e colocar a questão de saber como é que uma pequena economia pode tirar proveito das oportunidades que oferece a globalização, por um lado, e minimizar os riscos de uma demasiada exposição ao mundo, por outro, como, por exemplo, os choques externos derivados dos preços do petróleo ou dos alimentos. Cabo Verde é uma nação de vocação atlântica. Tem uma posição geoestratégica que lhe confere a condição histórica de país “ponte” entre os continentes. Está situado na encruzilhada de 3 continentes, África, Europa e Américas, a meio caminho entre a América Latina e a Europa, entre a África e as Américas, a escassas 3 horas da Europa ou do Brasil… Isto dá a possibilidade de Cabo Verde desenvolver uma plataforma de negócios internacionais. Em particular, queremos ser uma porta de entrada para a África ocidental. Uma agenda de inserção competitiva. Construímos e temos estado a implementar uma agenda que, basicamente, vai em 3 direcções: Primeiro: Expandir a base económica através do desenvolvimento do turismo que é, neste momento, o motor do crescimento da economia, dos transportes aéreos e marítimos, dos serviços financeiros, da indústria da cultura, e da criação de clusters do mar - eu digo sempre que Cabo Verde devia chamar-se Cabo Azul, pois temos mais azul do que verde -, das tecnologias informacionais e das energias renováveis e, ainda, modernizar sectores tradicionais como a agricultura e a pecuária. Segundo: construir factores de competitividade. No mundo de hoje é preciso ser competitivo. A competitividade é, na linha de Michael Porter, a nova riqueza das nações. Temos, por isso, trabalhada uma vasta agenda para potenciar o factor “localização” e transformar as vantagens comparativas em fontes de vantagens competitivas: Para um país com as vulnerabilidades de Cabo Verde, a estabilidade é um recurso estratégico. Assim, optamos por uma gestão sã e prudente das finanças públicas, de modo a garantir o equilíbrio dos fundamentais da economia. Adoptamos, por outro lado, um ambicioso programa de crescimento económico e social, para melhorar a qualidade de vida das pessoas e debelar a pobreza. Temos tido um crescimento robusto ao longo dos anos, em média 6,5% ao ano. Mesmo neste ano de 2009, quando os efeitos da crise são mais intensos, esperamos um crescimento de 5%, o que demonstra que o país se preparou para a crise, por um lado, e a eficácia das medidas anti-crise tomadas, por outro. Para acelerar o ritmo de crescimento desencadeamos um vasto leque de reformas, visando uma profunda reforma do Estado e da administração pública, criando uma nova dinâmica de relacionamento com os cidadãos e as empresas, modernizamos as infraestruturas – estradas, portos, aeroportos, água, saneamento, electricidade, telecomunicações –, investimos fortemente no desenvolvimento do capital humano e na construção da sociedade de informação. Terceiro: Construir parcerias estratégicas. Temos consciência que a transformação da nossa economia apoia-se na nossa capacidade de inserção activa no mundo em todos os sectores. Por isso, aprofundamos as relações com os nossos aliados tradicionais e, ao mesmo tempo, abrimos outras fronteiras através da construção de novas parcerias em todo o mundo. A ideia é construir âncoras para sustentar a dinâmica de transformação e fortalecer os factores de competitividade da economia. Destaco aqui algumas medidas tomadas: a. A adesão à Organização Mundial do Comércio: Cabo Verde é o primeiro país africano a negociar directamente a sua própria entrada na OMC. Para além de potenciar a competitividade e o acesso a mercados, a nossa entrada na OMC está igualmente a tornar o nosso mercado um destino preferencial de investimento. b. A Parceria Especial com a União Europeia: mecanismo inovador e único que estabelece um conjunto de relações especiais com a União Europeia. A Parceria Especial abre um vasto leque de oportunidades para Cabo Verde. É factor de modernização do país; é factor de crescimento económico e de inserção competitiva de Cabo Verde no mundo. Uma área crítica é a convergência técnica e normativa às normas europeias, que nos permitirão ter os mesmos padrões institucionais da UE e Cabo Verde tornar-se num importante destino para investimentos e negócios na nossa região e na UE. c. A Parceria para a Mobilidade com a UE que pretende assegurar uma melhor circulação de pessoas e gestão de fluxos migratórios entre os Estados membros da União Europeia e Cabo-Verde d. A construção da Nação Global, integrando as ilhas e as comunidades da diáspora espalhadas pelo mundo. A ideia é construir um poderoso network para o desenvolvimento de Cabo Verde, potenciando as capacidades da Nação em todo o mundo. e. A política de vizinhança e de integração regional, com a potenciação da vocação atlântica de país; Pretendemos reforçar as nossas relações no quadro da CEDEAO e das regiões ultraperiféricas atlânticas da Europa – Madeira, Canárias e Açores; e desenvolver uma inteligente política de vizinhança, que abarca, para além dos países da CEDEAO, Marrocos, Mauritânia, Angola, África do Sul, Brasil, Estados Unidos e, por extensão, Portugal, Espanha e França. É nesse quadro, que perspectivamos, por exemplo, um relacionamento privilegiado com a Mercosul e pensamos ser pertinente explorar as vantagens de uma parceria estratégica com esse dinâmico espaço económico da América do Sul. É também nesse quadro que Cabo Verde terá de continuar a trabalhar, em conjunto com os seus parceiros, para responder aos novos desafios emergentes em domínios como a segurança e transformar o Atlântico Sul numa zona de paz, de cooperação para o desenvolvimento e de prosperidade. Acreditamos na possibilidade de construir uma sólida parceria com o Brasil, podendo Cabo Verde funcionar como plataforma de negócios de empresas brasileiras para os mercados da CEDEAO e da Europa, por exemplo. Conclusões Quisemos mostrar-vos, mesmo que de forma perfunctória, como é que um pequeno país pode inserir-se com vantagem e utilidade no contexto mundial. Este pequeno país que, a partir do nada, passou num curto espaço de tempo de um dos países mais pobres do mundo a país de rendimento médio; que passou de $120 de PIB per capita a $3041 actualmente; que reduziu a pobreza em 10 pontos em sete anos; que eliminou o analfabetismo nos jovens; que tem todas as crianças no sistema de ensino, com paridade de género; que reduziu a mortalidade infantil de 108 em 1975 a 21 por mil actualmente. Um pequeno país que goza de grande credibilidade internacional, porventura desproporcional ao seu tamanho; um país sempre citado entre os primeiros em África quer se fale de performance económica, de progressos sociais ou da qualidade da democracia ou ainda da ausência de corrupção; um pequeno país considerado ainda recentemente e mais uma vez o segundo mais bem governado de África; um pequeno país de quem as Nações Unidas vaticinam ser um dos dois países africanos a conseguir realizar os ODM, em 2015. Acima de tudo, minhas senhoras e meus senhores, a nação cabo-verdiana quer e está a conseguir demonstrar que o desenvolvimento é possível em Africa. Esta é a contribuição de um pequeno Estado insular: Construir uma África moderna, competitiva, com coesão social e qualidade ambiental. Uma África optimista, positiva, disponível para fazer crescer um mundo mais livre, mais igual e mais solidário. Muito obrigado