- DCS/UEM

Propaganda
A FUNÇÃO DO EGITO NO PROJETO
IMPERIALISTA DOS ESTADOS UNIDOS
PARA O MUNDO ÁRABE: LINHAS GERAIS
Felipe Alexandre Silva de Souza
Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(UNESP/Marília), graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM) e bacharel em Comunicação Social - Habilitação: Jornalismo - pela Universidade
Estadual de Londrina (UEL).
Resumo: Este trabalho pretende examinar em linhas gerais o papel geopolítico do Egito na
manutenção dos interesses econômicos, políticos e militares dos Estados Unidos no Oriente
Médio e no norte da África no período do governo de Hosni Mubarak, entre 1981 e 2011,
caracterizado pela grande proximidade estratégica entre Washington e o Cairo. Para isso, nos
baseamos na concepção leniniana de imperialismo que, a partir de Marx, analisa o modo de
produção capitalista como inerentemente expansionista, decorrendo daí que o imperialismo é
uma fase de desenvolvimento necessária e mais avançada do capitalismo. Demonstrado esse
processo, é possível compreender mais claramente por que os Estados Unidos precisam manter
o domínio sobre o Oriente Médio e o Norte da África e como o Egito é utilizado como estadosatélite para atingir esse objetivo.
Palavras-chave: Egito; Estados Unidos; Imperialismo; Oriente Médio.
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
A FUNÇÃO DO EGITO NO PROJETO IMPERIALISTA DOS ESTADOS UNIDOS PARA O MUNDO ÁRABE: LINHAS GERAIS
INTRODUÇÃO: O IMPERIALISMO COMO RESULTADO NECESSÁRIO DO
DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO
Entender com alguma profundidade o papel geopolítico do Egito em relação ao imperialismo
dos Estados Unidos no Mundo Árabe1 requer, antes de tudo, que compreendamos o capitalismo
como um sistema inerentemente expansionista e concentrador de recursos e o imperialismo
como uma fase mais avançada de seu desenvolvimento. Esse será nosso ponto de partida.
A busca incessante pela produção e acumulação de mais-valia que rege o modo de
produção capitalista cria a necessidade crescente de mercados e impele os detentores dos meios
de produção a extrapolar suas atividades para além das fronteiras de seus países de origem.
A burguesia é obrigada a estabalecer vínculos de exploração em todos os lugares possíveis
(Marx e Engels, 2008), e por isso a expansão mundial das classes exploradoras dos países
desenvolvidos tem sido um dos movimentos históricos mais significativos dos últimos séculos.
Nas palavras de Marx (1985), o capital nasceu gotejando sangue e lama dos pés à
cabeça2. O período de acumulação primitiva de capital, que deu origem ao modo de produção
capitalista (consolidado no século XVI3), foi caracterizado pela separação violenta dos
trabalhadores de seus meios de produção e também pela ocupação, administração e exploração
europeia de outras áreas do mundo.
A descoberta das minas de ouro e prata da América, o extermínio das populações
indígenas, sua escravização ou seu enterramento nas minas, a conquista e o
começo da pilhagem das Índias Ocidentais, a transformação da África em um
vasto cercado onde se caçavam negros, tudo isso caracteriza a aurora da era da
produção capitalista. Esses procedimentos idílicos são os fatores importantes da
acumulação primitiva. (Marx, 1985, p.580)
Nesse processo, os conflitos comerciais entre as nações européias começaram a se
agravar, e as resoluções bélicas se tornaram cada vez mais frequentes, como na guerra dos
Países Baixos contra a Espanha (1581), a guerra da Inglaterra contra a França Jacobina (1793)
e as guerras inglesas contra a China em torno da comercialização de ópio (1840) (Marx, 1985).
1 Neste trabalho demos preferência ao termo “Mundo Árabe” por este ser geograficamente mais abrangente
que o termo “Oriente Médio”. Afinal, o Egito está no norte da África, não no Oriente Médio. Mas “Mundo
Árabe” também é um termo impreciso, uma vez que o Irã, localizado no Oriente Médio, é um país de maioria
persa, não árabe.
2 Neste trabalho são ressaltados os pontos negativos da expansão europeia e estado-unidense pelo mundo, mas
esse processo civilizador é inevitavelmente contraditório e também pode ser caracterizado como progresso,
pois leva aos países dominados, junto com a barbárie, o avanço das forças produtivas, e extingue algumas
relações sociais mais atrasadas, criando (obviamente, de forma não intencional) condições objetivas mais
propícias para que os povos subordinados possam se emancipar. Para mais detalhes sobre essa contradição,
ver artigo publicado por Karl Marx no New York Daily em junho de 1853, intitulado “A dominação britânica
na Índia”.
3 “Ainda que as primeiras manifestações da produção capitalista se dêem já, aqui ou ali, nos séculos XIV
e XV, em algumas cidades do Mediterrâneo, a era capitalista só data, de fato, do século XVI. Por toda parte
onde se instala o capitalismo, a servidão já tinha sido abolida há muito tempo, e a Idade Média, cujo fasto
fora marcado pelas cidades soberanas, já estava empalidecendo.” (Marx, 1985, p.570)
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
251
FELIPE ALEXANDRE SILVA DE SOUZA
Em 1648, com o objetivo de evitar esses conflitos e criar certo equilíbrio político na Europa,
as principais nações assinam o Tratado de Westfalia, segundo o qual não haveria qualquer tipo
de autoridade acima dos estados integrantes do sistema político internacional (Arrighi, 2010).
Mas, na prática, o Tratado não impediu a ascensão da Holanda como país dominante e centro
de acumulação capitalista.
A história da colonização holandesa no século XVIII — era a Holanda o modelo
da nação capitalista — desenrola um quadro incomparável de traições, de
corrupção, de assassinatos e ignomínia. Para se apoderar de Malaca, os holandeses
corromperam o governador português, que lhes abriu as portas em 1641. Em
seguida, correram à sua casa e o mataram para não lhe pagar a soma de 21.875
libras esterlinas, que fora o preço de sua traição. Por toda parte a devastação e o
despovoamento seguiram seus passos. Em 1750, Banjuwangi, província de Java,
contava com mais de 80.000 habitantes. Em 1811 esse número caíra para 8.000.
(Marx, 1985, p.583)
No final do século XVIII, a Holanda entrou em declínio e o Tratado de Westfalia se
tornou obsoleto com a ascensão da Inglaterra, que graças à Revolução Industrial alcançou o posto
de nação dominante. O Império Britânico em seu apogeu ocupou militarmente e administrava
cerca de quarta parte da superfície terrestre (Hobsbawm, 2007). Durante o domínio inglês,
especialmente a partir da década de 1870, o desenvolvimento da economia mundial passou por
alterações significativas, marcando, segundo Lênin (2012), a passagem do capitalismo de sua
fase pré-monopolista de livre concorrência para seu estágio monopolista e imperialista, na qual
há a predominância dos monopólios, da exportação de capitais e da competição intercapitalista
em níveis interestatais. Examinemos brevemente as principais características do capitalismo
monopolista imperialista.
A) A concentração da produção e do capital em nível elevado, resultando na formação
de monopólios. “O enorme aumento da indústria e o processo notavelmente rápido de
concentração da produção em empresas cada vez maiores constituem uma das particularidades
mais características do capitalismo (Lênin, 2012, p.37).” Ao analisar os países centrais europeus
e os Estados Unidos, Lênin constatou que um número cada vez maior de empresas controla
parcelas cada vez maiores do comércio e do emprego maquinário, matérias primas4 e mão de
obra5. Na década de 1870 os cartéis começam a se desenvolver, e, a partir de 1900, passam a
ser a base de toda a vida econômica (Lênin, 2012). “Os cartéis estabelecem entre si acordos
sobre as condições de venda, os prazos de pagamento etc. Repartem os mercados de venda.
Fixam a quantidade de produtos a fabricar. Estabelecem os preços. Distribuem os lucros entre
4 Maquinário e matéria prima constituem, para o burguês, o capital constante: são elementos que não geram
mais-valia, apenas transferem seu valor para o produto final (Marx, 1985).
5 Mão de obra, ou força de trabalho, constitui o capital variável, que gera a mais-valia apropriada pelo burguês.
Durante determinado período da jornada de trabalho, o proletário trabalha para gerar o valor correspondente
àquilo que será seu salário (calculado com base no custo dos recursos necessários para a manutenção da força
de trabalho: comida, moradia, vestuário etc); no restante da jornada, ele trabalha gratuitamente, produzindo
um valor excedente que será apropriado por seu patrão (Marx, 1985).
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
252
A FUNÇÃO DO EGITO NO PROJETO IMPERIALISTA DOS ESTADOS UNIDOS PARA O MUNDO ÁRABE: LINHAS GERAIS
as diferentes empresas etc. (Lênin, 2012, p.44).”
B) A fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação do capital financeiro.
A tarefa básica dos bancos é a de mediar pagamentos, reunindo rendimentos em dinheiro e os
colocando à disposição do capitalista (Lênin, 2012). Mas, quando os bancos se desenvolvem e
passam pelo processo de monopolização, tornam-se forças poderosas que dispõem de grande
parte do capital da burguesia e pequena-burguesia (Lênin, 2012). Na medida em que os bancos
fazem operações monetárias isoladas para a burguesia industrial, isso não afeta a independência
do empresário. Porém,
se essas operações se tornam cada vez mais freqüentes e mais sólidas, se o banco
“reúne” nas suas mãos capitais imensos, se as contas correntes de uma empresa
permitem ao banco — e é assim que acontece — conhecer, de modo cada vez
mais pormenorizado e completo, a situação econômica de seu cliente, o resultado
é uma dependência cada vez mais completa do capitalista industrial em relação ao
banco (Lênin, 2012, p.68).
Desse modo, ocorre a união dos bancos com as maiores empresas industriais, “a fusão
de uns com as outras mediante a aquisição das ações, mediante a participação dos diretores
dos bancos nos conselhos de supervisão (ou de administração) das empresas industriais e
comerciais, e vice-versa (Lênin, 2012, p.68)”.
C) A exportação de capitais passa a adquirir uma importância cada vez maior. Com a
formação dos monopólios, a união entre bancos e indústrias e a intensificação da concentração
de capital, um dos resultados é o excedente de capitais nos países avançados. Não há mais espaço
para a aplicação dos excedentes dentro das fronteiras nacionais — e, se o capital não é aplicado,
não gera lucro6. Portanto, a burguesia deve procurar outras fontes de investimento nos países
pobres, onde as chances de extrair lucros maiores são grandes, já que nesses países o preço
das terras, força de trabalho e matéria prima são baixos e os capitais, escassos (Lênin, 2012).
“A necessidade da exportação de capitais se deve ao fato de o capitalismo ‘ter amadurecido
excessivamente’ em alguns países, e o capital [...] carecer de campo [em seu país de origem]
para a sua colocação ‘lucrativa’ (Lênin, 2012, p.94).”
D) A formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que
partilham o mundo entre si. As organizações capitalistas (trustes, carteis, conglomerados etc)
partilham o mercado interno entre si. Porém, no capitalismo, o mercado interno é inevitavelmente
conectado ao externo e, à medida que a exportação de capitais aumenta, junto com a relação
entre os países desenvolvidos e os menos desenvolvidos, também aumenta a influência das
6 “Naturalmente, se o capitalismo pudesse [...] elevar o nível de vida das massas populares, que continuam
marcadas—apesar do vertiginoso progresso da técnica—por uma vida de subalimentação e de miséria, não
haveria motivo para falar de um excedente de capital. Esse é o ‘argumento’ que os críticos pequeno-burgueses
do capitalismo se esgrimem sem parar. Mas o capitalismo deixaria de ser capitalismo, pois o desenvolvimento
desigual e a subalimentação das massas são as condições e as premissas básicas e inevitáveis deste modo de
produção. Enquanto o capitalismo for capitalismo, o excedente de capital não é consagrado à elevação do
nível de vida das massas do país, pois isso significaria a diminuição dos lucros dos capitalistas [...].” (Lênin,
2012, p.94)
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
253
FELIPE ALEXANDRE SILVA DE SOUZA
associações monopolistas, e “a marcha ‘natural’ das coisas levou a um acordo universal entre
elas, à construção dos carteis internacionais (Lênin, 2012, p.99)”.
E) A partilha territorial do mundo entre as principais potências capitalistas se
completa, e “o mundo encontra-se completamente repartido, de tal modo que, no futuro,
somente novas partilhas serão possíveis, ou seja, a passagem de territórios de um ‘proprietário’
para outro, e não a passagem de um território sem proprietário para um ‘dono’” (Lênin, 2012,
p.110). A Inglaterra intensificou suas conquistas coloniais entre 1860 e 1890, e a França e a
Alemanha entre 1880 e 1900 — exatamente no período da passagem do capitalismo para seu
estágio monopolista (Lênin, 2012). “Em fins do século XIX, sobretudo a partir da década de
1880, todos os Estados capitalistas se esforçaram por adquirir colônias, o que constitui um fato
universalmente conhecido da história da diplomacia e da política externa” (Lênin, 2012, p.111).
As áreas de influência são fontes potenciais para suprir a necessidade de matérias-primas,
mercado consumidor e alvos para exportação de capitais.
O capital financeiro não está interessado apenas nas fontes de matérias-primas já
descobertas, mas também em fontes em potencial, pois, nos nossos dias, a técnica
avança com uma rapidez incrível, e as terras não aproveitáveis hoje podem tornarse terras úteis amanhã, se forem descobertos novos métodos (para tal fim, um
grande banco pode enviar uma expedição especial de engenheiros, agrônomos
etc.), se forem investidos grandes capitais. O mesmo accontece com a exploração
de riquezas minerais, com os novos métodos de elaboração e utilização de tais ou
tais matérias-primas etc etc. Daí a tendência inevitável do capital financeiro em
ampliar o seu território econômico e até o seu território em geral. (Lênin, 2012,
pp.117/118)
Enfim, o imperialismo pode ser definido sucintamente como o estágio monopolista do
capitalismo: o capital financeiro (capital bancário unido ao capital industrial) se intensificando
nos países desenvolvidos e se expandindo sobre as regiões do globo que ainda não estavam
definitivamente sob relações capitalistas (Lênin, 2012).
O IMPERIALISMO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA E SUAS AÇÕES NO
MUNDO ÁRABE
Na década de 1870, enquanto a Inglaterra aprofundava sua dominação sobre o planeta,
começaram a crescer dois países capazes de ameaçar a posição britânica: a Alemanha e —
principalmente — os Estados Unidos (Arrighi, 2010). Os EUA experimentaram um notável
surto de desenvolvimento após a Guerra da Secessão (1861-1865) (Harvey, 2013), e no
início do século XX já detinham incontroverso poder, expressado pela influência global de
seus trustes, como os bancos de Morgan e Rockefeller, a gigantesca indústria elétrica General
Eletric e o conglomerado petrolífero Standard Oil Company (Lênin, 2012). Nesse período, o
desenvolvimento do capitalismo em sua fase imperialista elevou as disputas e contradições
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
254
A FUNÇÃO DO EGITO NO PROJETO IMPERIALISTA DOS ESTADOS UNIDOS PARA O MUNDO ÁRABE: LINHAS GERAIS
inter-imperialistas, que se acirravam desde a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e a Partilha
da África na Conferência de Berlim (1884-1885). O resultado, além de uma tensão política
internacional sem precedentes, foi uma crise global de superprodução, e a resolução encontrada
pelas potências foi a deflagração de duas guerras mundiais (Harvey, 2013). Depois de 1945,
com a Grã Bretanha enfraquecida pelos conflitos, os EUA definitivamente assumiram o posto
de potência dominante. De 1945 a 1973, a economia mundial saiu da crise e experimentou
grande desenvolvimento nos países centrais, baseado na organização fordista de produção,
no welfare state, nas políticas keynesianas (Harvey, 2012) e no crescente complexo militarindustrial dos EUA (Mészáros, 2002). Durante essa “Era de Ouro” (Hobsbawm, 1995), os EUA
foram “líderes na tecnologia e na produção. O dólar (apoiado por boa parte do estoque de ouro
do mundo) reinava supremo, e o aparato militar do país era bem superior a qualquer outro. Seu
único oponente digno de nota era a União Soviética (Harvey, 2013, p.48)”.
Segundo Arrighi (2010), os Estados Unidos são herdeiros diretos do imperialismo
britânico. Mas o modus operandi não é o mesmo. Como lembra Halliday (2011), embora os
EUA tenham interesses imperiais, nunca foram um império formal, e sua única colônia oficial
foram as Filipinas (1898-1946). Os Estados Unidos exercem sua dominação primariamente por
meio de um sistema de mercados e de empresas transnacionais (Arrighi, 2010) — ressaltando
ainda mais a importância dos monopólios apontada por Lênin — e de países dependentes e
satélites (Hobsbawm, 2007).
A preponderância das empresas transnacionais no domínio global estado-unidense
determina, em última instância, a política externa dos Estados Unidos. As relações internacionais
se desenvolvem no sistema inter-estatal, mas no estudo dessas relações é freqüentemente
deixado de lado que o Estado — seja ele democrático ou ditatorial — é uma expressão das
contradições do modo de produção capitalista e um instrumento de dominação construído e
utilizado pela burguesia para manter sua exploração sobre as classes trabalhadoras (Lênin,
2013), e as contradições do capitalismo também se expressam nas relações internacionais. O
capital monopolista imperialista estado-unidense expande e aprofunda suas relações ao redor
do mundo apoiado pela força bélica7 do governo dos Estados Unidos, materializada em suas
Forças Armadas, serviços secretos e em dezenas de bases militares norte-americanas espalhadas
pelo mundo, muitas delas secretas, que “não existem para benefício das pessoas [...], mas para
benefício único do poder de ocupação, de forma a [...] dar condições e impor políticas que
melhor atendam aos [...] interesses [estado-unidenses]” (Mészáros, 2006, p. 55).
Depois da Segunda Guerra Mundial, o governo dos EUA, “dedicado ele mesmo à
acumulação ilimitada do capital, estava preparado para acumular o poder político e militar
capaz de defender e promover esse processo em todo o globo”. (Harvey, 2013, p.41) Na medida
7 É importante notar que o complexo industrial-militar que fornece a força bélica para os EUA (e muitos
ouros países) é parte fundamental do capital monopolista imperialista. A produção bélica do complexo
industrial-militar foi um dos fatores essenciais para que o capitalismo saísse de sua crise da primeira metade
do século XX, porque as compras massivas de armamentos por parte do governo dos EUA e de outros estados
nacionais permitiram a continuidade da produção de mais-valia e proporcionaram um destino para o capital
excedente. Para mais detalhes, ver Mészáros (2002).
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
255
FELIPE ALEXANDRE SILVA DE SOUZA
em que a acumulação se intensificou, a já mencionada necessidade de grandes quantidades de
matéria-prima pelos monopólios da fase imperialista também aumentou.
Esses monopólios adquirem a máxima solidez quando reúnem nas suas mãos todas
as fontes de matérias primas, e [...] as associações internacionais de capitalistas
se esforçam para retirar do adversário toda a possibilidade de concorrência para
adquirir, por exemplo, as terras que contêm minério de ferro, campos de petróleo
etc. [...] Quanto mais desenvolvido está o capitalismo, quanto mais sensível se
torna a falta de matérias-primas, quanto mais dura é a concorrência e a procura de
fontes de matérias-primas em todo o mundo, tanto mais encarniçada é a luta por
aquisição de colônias (Lênin, 2012, p.116).
Por isso, a carência de matérias-primas foi a força motriz de grande parte dos conflitos
bélicos iniciados pelos EUA ou em que estes se envolveram, embora outros fatores sempre
estivessem presentes, tais como o anticomunismo durante a Guerra Fria.
Na década de 1950, os Estados Unidos estavam importando 48% de seu suprimento
total de metais, comparado a 5% na década de 1920, e a saúde de sua economia
dependia em suprimentos do Terceiro Mundo. A dependência em matéria-prima
também era significativa. Como resultado da Guerra da Coreia, o preço mundial de
todos os metais aumentou 39% de 1950 a 1952, e com isso cresceu a consciência
de Washington a respeito da importância vital do Terceiro Mundo. Manganês,
níquel e estanho são a base da indústria de aço moderna, e em 1960 os EUA
escolheram auxiliar os franceses na Indochina para impedir que todo o sudeste
asiático caísse como dominós e as “grandes fontes de certas matérias primas”
fossem suspensas. “Eu não acredito que este país possa sobreviver”. W. Averell
Harriman, um dos homens mais influentes da era do pós-guerra, alertou um comitê
do Senado no início de 1952, “se as fontes de matérias-primas estiverem nas
mãos de povos hostis que estão determinados a nos destruir”. Essa necessidade
exigiu cada vez mais que os Estados Unidos usassem seus recursos encobertos e
declarados para regular as relações de estados espalhados por vastas distâncias —
um processo que sempre traz o perigo de conflito e guerra uma vez que as tropas
e equipamentos dos EUA entram em cena (Kolko, 2006, p.10, tradução nossa).
Mas o setor da produção capitalista mais sensível hoje em dia é o energético. Atualmente
os Estados Unidos são casa de 4% da população mundial e consomem cerca de 25% dos
recursos energéticos disponíveis no planeta. (Mészáros, 2006), e tudo indica que a situação
tende a se tornar mais crítica no futuro. Segundo Kolko (2006), na década de 1970 os EUA
produziam 69% do petróleo que consumiam, e em 1996 a porcentagem caiu para 38%. A região
do Golfo Pérsico forneceu 8,8% das importações de petróleo aos EUA em 1983 e 22,1% em
2000. Projeções oficiais estimam que a produção doméstica de petróleo nos EUA permanecerá
estável até 2020 enquanto o consumo saltará de 18,9 para 25,8 milhões de barris diários, e a
competição mundial pelas importações está se intensificando cada vez mais (Kolko, 2006).
Desta vez o senso comum está certo: grande parte dos conflitos no Oriente Médio gira em
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
256
A FUNÇÃO DO EGITO NO PROJETO IMPERIALISTA DOS ESTADOS UNIDOS PARA O MUNDO ÁRABE: LINHAS GERAIS
torno do fornecimento de petróleo. “Quem controlar o Oriente Médio controlará a torneira
global do petróleo, e quem controlar o Oriente Médio poderá controlar a economia global, pelo
menos no futuro próximo (Harvey, 2013, p.25).” Por isso devemos “considerar a importância
e a condição geopolítica do Oriente Médio como um todo em relação ao capitalismo global. E
isso é afirmado na retórica oficial [dos EUA]”. (Harvey, 2013, p.25)
O Oriente Médio foi parte do Império Turco-Otomano do século XVI até o final da
Primeira Guerra Mundial, mas imperialismo europeu começou a adentrar o Mundo Árabe muito
antes do fim da administração Otomana, já na metade final do século XIX, em um movimento
que foi resultado do grande desenvolvimento do capitalismo na Europa.
Os capitais excedentes da Europa, que o poder afirmativo da classe capitalista
impedia crescentemente de encontrar usos internos, foram levados à força para
o exterior a fim de mergulhar o mundo numa imensa onda de investimento e
comércio especulativos, em particular a partir de 1870 ou perto disso. [...] A
necessidade de proteger esses empreendimentos externos, e mesmo de regular
seus excessos, pressionou os Estados a responder a essa lógica capitalista
expansionista. (Harvey, 2013, p.44)
Em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial, o Império Turco-Otomano se
esfacelou, e os imperialismos britânico e francês efetivaram sua dominação sobre o Oriente
Médio. As ingerências foram profundas a ponto de terem sido a gênese do mapa político da
região: os estados nacionais árabes são, em grande parte, resultado do Tratado de Versailles
depois da Primeira Guerra Mundial. O acordo traiu os interesses dos nacionalistas árabes, que
auxiliaram a Inglaterra e a França na derrota dos otomanos, e impôs uma configuração de
Estados que refletia os interesses imperiais britânicos e franceses (Harvey, 2013, p.25). Mas
a Inglaterra saíra muito debilitada da Primeira Guerra Mundial e seu declínio em relação aos
Estados Unidos era evidente. Nesse meio tempo, a importância do petróleo para as potências
cresceu, atraindo a atenção dos EUA para o Oriente Médio. A partir de 1920 o petróleo se tornou
o fator mais importante nos cálculos das potências em relação às ações na região (Kolko, 2006).
Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA se consolidaram como poder dominante, mas
quem ainda dominava militarmente o Mundo Árabe era a enfraquecida Inglaterra. O governo
dos EUA não queria acelerar o enfraquecimento da Inglaterra, afinal, os ingleses eram os aliados
econômicos, políticos e ideológicos mais próximos, e, além disso, os EUA haviam emprestado
uma grande quantia em dinheiro à Coroa Britânica em 1945, como forma de barrar a influência
soviética (Kolko, 2006). Mas a burguesia estado-unidense necessitava de um controle muito
maior sobre as reservas de petróleo do Oriente Médio. A administração Truman desejava que
a Inglaterra mantivesse a dominação militar na região, porque caso contrário isso teria de ser
feito pelos EUA, o que seria muito dispendioso. Porém, a crescente necessidade das reservas e
a pressão do lobby dos trustes de petróleo falaram mais alto e os EUA utilizaram vários meios
para acelerar a saída da Inglaterra (Kolko, 2006).
Em seguida, os Estados Unidos iniciaram uma série de operações declaradas e secretas na
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
257
FELIPE ALEXANDRE SILVA DE SOUZA
região, começando em 1953, quando a CIA auxiliou na derrubada do governo democraticamente
eleito de Mohamed Mossadegh, no Irã, e em seu lugar instaurou a ditadura sanguinária do Xá
Reza Palev e sua polícia secreta, a SAVAK. A manipulação estado-unidense da política árabe é
de evidente sucesso: entre 1940 e 1967, as empresas estado-unidenses aumentaram o controle
das reservas de petróleo do Oriente Médio de 10% até chegar aos 67%, ao mesmo tempo em
que as reservas britânicas caíram de 72% para 30% na mesma época (Harvey, 2013). Ou seja:
a partir da segunda metade do século XX, o Oriente Médio se tornou o ponto nevrálgico das
ações do capitalismo imperialista monopolista dos Estados Unidos.
Porém, um porto seguro, um aliado estável e confiável era essencial para a manutenção
do poder estado-unidense na região, e Israel aos poucos se mostrou o candidato perfeito. Em
1948, após a criação do Estado de Israel e a chamada “guerra de independência” do estado
sionista, que resultou no massacre e expulsão de centenas de milhares de palestinos da Palestina,
as Forças Armadas estado-unidenses consideraram Israel uma potência militar na região, com
a qual uma aliança seria muito útil para os interesses dos EUA no Oriente Médio. Na década
de 1950 o governo dos EUA consideravam Israel e o Irã do Xá os “patrulheiros da região”,
e em 1958 o Conselho de Segurança Nacional dos EUA avaliou que era necessário apoiar
Israel para criar uma barreira contra o crescente nacionalismo árabe, que poderia escapar ao
controle estado-unidense e deslocar a região para a esfera de influência da URSS (Chomsky,
2003). Aos poucos, a aliança EUA-Israel se constituiu em uma das bases para o domínio dos
EUA sobre a região (Chomsky, 2003). Depois da Guerra dos Seis Dias (junho de 1967) a
ajuda militar estado-unidense a Israel aumentou enormemente, fazendo do estado sionista um
agente poder dos EUA no Mundo Árabe (Kolko, 2006). Proteger Israel e manter o suprimento
de petróleo se tornaram os dois objetivos principais dos Estados Unidos na região (Halliday,
2012). Esses dados serão importantes para mais adiante compreendermos o papel do Egito
nessa configuração geopolítica.
O EGITO: TRAJETÓRIA GEOPOLÍTICA
A história das ingerências imperiais na região que hoje é o Egito começa em 30 a.C., quando a
última rainha do reino helenista Ptolomaico, Cleópatra, foi derrotada pelo imperador romano
Augusto Otaviano, cujas legiões invadiram Alexandria e transformaram a região em um
protetorado do Império Romano. Nos próximos séculos, os egípcios enfrentaram as invasões
dos bizantinos, dos persas, dos exércitos islâmicos do profeta Mohamed, e, no século XVI, do
Império Turco Otomano. Os otomanos mantiveram o Egito como uma província semiautônoma
de 1517 a 1867 (com a exceção do período de ocupação napoleônica entre 1798 e 1801) e depois
como estado otomano autônomo de 1867 a 1914. Depois dessa data o Egito se transformou em
um protetorado britânico.
Mas a burguesia europeia começou a adentrar o Egito ainda na época otomana, sob
a forma de investimentos franceses. Na década de 1850, o governo da França concebeu o
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
258
A FUNÇÃO DO EGITO NO PROJETO IMPERIALISTA DOS ESTADOS UNIDOS PARA O MUNDO ÁRABE: LINHAS GERAIS
projeto do Canal de Suez, para ligar o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho e facilitar as rotas
comerciais. A construção, levada a cabo com capital francês e egípcio (e mão de obra egípcia),
durou 10 anos e foi concluída em 1869. O Império Britânico também passou a investir no Egito
nessa época, especialmente em campos de algodão. Por meio de várias negociações comerciais
vantajosas para a Inglaterra, esta acabou endividando o Egito, que para pagar parte do que
devia, entregou suas ações do Canal à Grã Bretanha, que via nessa construção uma ferramenta
fundamental para a manutenção de seu Império, com potencial para auxiliar o comércio marítimo
britânico e melhor proteger, através da construção de bases militares na região, os domínios no
subcontinente asiático (Hourani, 2004).
A transferência de recursos do Egito para a Europa causou uma queda na qualidade
de vida geral da população, resultando em revoltas, instabilidade e no surgimento de grupos
nacionalistas. França e Grã Bretanha, preocupadas com o prejuízo potencial dessas insurgências,
passaram a intervir cada vez mais nos assuntos egípcios, inicialmente de forma diplomática e
depois por meio da força, culminando no ataque e ocupação militar do país pela Inglaterra em
1882. A partir daí os britânicos virtualmente governaram o Egito8, mesmo que a dominação não
fosse expressa formalmente (Hourani, 1994).
Na Segunda Guerra Mundial, vários movimentos organizados, que aproveitaram o
declínio britânico para contestar a condição de protetorado imposta a seu país. A presença
britânica no Egito, materializada no controle da zona do Canal e na propriedade legal anglofrancesa do próprio Canal, era cada vez menos tolerada (Halliday, 2012). O exército egípcio
tomou o poder em julho de 1952 e proclamou a república, sob o comando do coronel Gamal
Abdel Nasser. A partir daí o Egito tornou-se palco de um processo de radicalização política que
afetaria todo o Oriente Médio e viria a inserir definitivamente a região na Guerra Fria.
Nasser nacionalizou o Canal de Suez em 1956. Inglaterra e França reagiram atacando o
Egito com auxílio israelense e bombardeando o Cairo. Temendo a escalada do conflito, EUA e
URSS, que já há algum tempo tentavam atrair o Egito para suas respectivas áreas de influência,
intervieram e ordenaram que os países agressores cessassem os ataques. A nacionalização
foi bem sucedida e Nasser se tornou uma figura popular e um líder do nacionalismo árabe,
colocando seu país na vanguarda da busca árabe por liberdade e unidade em uma grande nação
independente do colonialismo, porém com inegável influência soviética.
O prestígio de Nasser começou a fraquejar depois da humilhante derrota na Guerra
dos Seis Dias, em junho de 1967, quando diversas questões pendentes culminaram em um
conflito entre vários países árabes e Israel. O Egito e seus aliados sofreram significativas perdas
territoriais. O país foi tomado por forte sentimento de revanchismo, e quando Nasser morreu, em
1970, foi sucedido por Anwir al Sadat, que ficou a cargo da desforra na Guerra do Yom Kipur.
Em outubro de 1973, o Egito e a Síria atacaram as forças israelenses. Os países árabes levaram
vantagem no início, mas rapidamente os EUA enviaram carregamentos de armas para Israel e a
situação foi revertida. Sem interesse pelo prolongamento da guerra, EUA e URSS intervieram
8 Ainda que, lembremos, o domínio ainda fosse oficialmente dos turcos-otomanos.
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
259
FELIPE ALEXANDRE SILVA DE SOUZA
em Israel e no Egito, respectivamente, levando a um equilíbrio de forças e ao acordo de cessarfogo (Hourani, 1994). Em retaliação à ajuda dos EUA ao estado sionista, a Organização de
Países Exportadores de Petróleo (Opep), composta majoritariamente de países árabes, sustou as
remessas de petróleo para os países ocidentais, agravando a situação da economia mundial, que
adentrava uma grande crise de superprodução (Harvey, 2012, Mészáros, 2002).
No Egito, a crise rebaixou as condições de vida da população, o que por sua vez retirou
credibilidade interna que Sadat angariou depois da Guerra do Yom Kipur. A partir do cessar-fogo,
o Egito passou a se alinhar progressivamente aos interesses estadunidenses. O plano de Sadat era,
a priori, acabar pragmaticamente com uma sequência de guerras que, segundo ele acreditava,
os árabes não tinham chances de vencer (Hourani, 1994). Mas também havia um objetivo mais
amplo: uma vez consolidada a paz com Israel, o Egito tinha potencial para se tornar um grande
aliado dos Estados Unidos, “com todas as consequências que disso poderiam resultar, tanto em
apoio econômico quanto numa atitude americana mais favorável para as reivindicações dos
árabes palestinos (Hourani, 1994, p.419)”. A URSS foi paulatinamente afastada do Egito, seu
lugar foi substituído pelos EUA e uma das consequências foi o alinhamento egípcio com os
israelenses. Isso abalou o prestígio de Sadat entre grande parte da população, entre setores do
exército, que o consideravam um traidor da pátria.
A consolidação do alinhamento pró-ocidental egípcio foi em 1979, quando Sadat e o
premier israelense Menachem Begin assinaram, mediados por Jimmy Carter, o famoso acordo
de paz de Camp David, em setembro de 1978, entre seus respectivos países. O tratado destruiu
o que restava da popularidade de Sadat. Em outubro de 1981, Sadat foi assassinado durante uma
parada militar por soldados dissidentes. Seu sucessor, Hosni Mubarak, não alterou as linhas
políticas principais que estavam em curso.
O governo Mubarak foi marcado pelo constante estado policial justificado pelos
embates entre as autoridades e grupos islâmicos de oposição (Sharp, 2009)
e também pelo progressivo desmonte das estruturas de amparo social — em
especial acesso à moradia, educação, saúde e empregos estáveis no setor público
— construídas durante o período de Nasser (Kandil, 2011). No início do século
XXI, o desmonte estava quase completo, e o Partido Democrático Nacional, base
política de Mubarak, teve seus cargos ocupados por membros da alta burguesia
egípcia e intelectuais neoliberais (Kandil, 2011).
Em 2005, as taxas para os grandes industriais foram cortadas pela metade e os impostos
para a população em geral aumentaram vertiginosamente (Kandil, 2011). Em 2008 houve
uma disparada no preço dos alimentos, que se somou como fator de descontentamento e foi o
estopim de várias manifestações. A escalada nas tensões continuou no início de 2011, quando
terroristas islâmicos realizaram um atentado contra uma igreja católica no Cairo, elevando a
repressão estatal. Os egípcios se insurgiram, contando com a participação de vários segmentos
da população, inclusive da classe operária fabril9, especialmente em Alexandria, em cuja
9 Apesar da repressão exercida pelo governo Mubarak, a classe operária egípcia foi relativamente ativa:
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
260
A FUNÇÃO DO EGITO NO PROJETO IMPERIALISTA DOS ESTADOS UNIDOS PARA O MUNDO ÁRABE: LINHAS GERAIS
periferia estão instaladas muitas fábricas de grande porte (Kandil, 2011). Revoltas semelhantes
estavam acontecendo em países da região, e o Egito acabou adentrando esse contexto e se
tornou o país principal do processo que viria a ser conhecido como Primavera Árabe. Em 11 de
fevereiro de 2011, Mubarak foi obrigado a renunciar, e o governo do país foi provisoriamente
administrado por uma junta militar até junho de 2012, quando Mohamed Mursi, membro da
organização fundamentalista Irmandade Muçulmana, foi eleito como presidente. O governo de
Mursi não foi popular e suas medidas baseadas em tradições islâmicas revoltaram grande parte
da população, que apoiou a deposição de Mursi pelo Exército Egípcio em junho de 2013. Em
outubro de 2013, a instabilidade social no Egito continua.
O PAPEL DO EGITO COMO ESTADO-SATÉLITE DOS EUA (1981-2011)
O governo de Hosni Mubarak estreitou relações com os Estados Unidos, que proporcionaram
constante ajuda econômica e militar (Hourani, 1994). O Egito, depois dos acordos de Camp
David, se tornou o segundo maior destino de auxílio econômico dos EUA depois de Israel
(Sharp, 2009). Além da ajuda econômica, as relações comerciais entre os dois países são
significativas: o Egito é um dos maiores mercados para trigo americano e um grande importador
de equipamentos agrícolas; além disso, os EUA são o segundo maior investidor estrangeiro no
Egito, principalmente no setor de óleo e gás (Sharp, 2009).
O eixo principal das relações EUA-Egito é a estratégia militar. Levando em conta que um
dos principais objetivos dos Estados Unidos no Oriente Médio é a proteção de Israel, o acordo
de paz entre Cairo e Tel Aviv transformou o Egito em um satélite estado-unidense fundamental.
O fato de o Egito fazer fronteira com Israel confere proteção ao estado sionista e proporciona
aos Estados Unidos fácil acesso ao Oriente Médio, facilitando a manutenção do fornecimento
de petróleo, cujo transporte depende em grande parte da passagem pelo Canal de Suez. Além
disso, o Egito foi considerado, pelo menos até 2011, um agente moderador e promotor da
estabilidade na região — em várias ocasiões, Mubarak e seu vice, Omar Suleiman, serviram
como mediadores nas negociações entre israelenses e palestinos (Sharp, 2009).
Durante a administração de George W. Bush (2001-2008) começaram alguns atritos
entre os dois países, em grande parte devido à recusa por parte do Egito em apoiar as invasões
estadunidenses no Afeganistão (2001) e Iraque (2003), e pelo fato de Mubarak ter começado a
quatro dias antes da queda de Mubarak, houve greves no Cairo e em Alexandria. “[Essas greves] foram
comuns nos últimos anos: estima-se que cerca de dois milhões de trabalhadores se envolveram em algum
tipo de atividade grevista ao longo da última década. Mas as greves foram, em sua grande maioria, apolíticas,
restritas a demandas de salário, resistência a demissões, pressão por aposentadorias; e elas foram estritamente
locais—nunca houve uma tentativa de qualquer ação industrial em escala nacional. Isso se deu em parte
porque a vigilância era tão rígida que os operários apenas organizaram greves com aqueles que eles
conheciam e confiavam [...]. E, enquanto as demandas eram apenas por melhorias econômicas modestas,
o regime as tolerava.Mas uma vez que a insurreição começou, todas as greves adquiriram força política e
deram momentum para a revolta. Nos últimos dias antes da queda de Mubarak, lideres grevistas começaram
a clamar pela criação de uma confederação trabalhista nacional independente, em substituição aos sindicatosfantoche da ditadura.” (Kanzil, 2011, pp.24/5, tradução nossa)
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
261
FELIPE ALEXANDRE SILVA DE SOUZA
expressar opiniões mais independentes quanto à ocupação sionista na Palestina (Sharp, 2009). Ao
mesmo tempo, um dos principais estandartes ideológicos da Guerra ao Terror era a exportação
da democracia para o Oriente Médio. Nesse clima, Washington começou a pressionar o Cairo
por maior abertura política e mais respeito aos direitos humanos. O Congresso estado-unidense
começou a discutir a respeito da continuidade do auxílio ao Egito e, em 2008, parte do auxílio
militar foi temporariamente bloqueada (Sharp, 2009). No primeiro mandato de Barak Obama
(2008-2012) houve sinais de boa vontade das duas partes em amenizar a tensão. Em 2009 os
EUA liberaram para o Egito 1,3 bilhão de dólares em auxílio militar e 250 bilhões de dólares
em ajuda econômica10.
Desde a queda de Mubarak, os Estados Unidos agem de forma ambígua à crise social
e política egípcia, recusando-se a apoiar ou condenar explicitamente qualquer envolvido no
processo. No dia 09 de outubro de 2013, o governo estado-unidense anunciou que vai suspender
parte do acordo militar com o Egito. De um total de U$ 1,3 bilhão em envio anual ao país,
os EUA vão reter U$ 650 milhões. O motivo alegado são os casos de violência do exército
contra manifestantes. O bloqueio do dinheiro seria uma forma de pressionar por aberturas
democráticas11.
CONCLUSÃO
A sobrevivência da burguesia estado-unidense depende do controle do fluxo de petróleo do
Oriente Médio, e para esse objetivo ser atingido, é vital proteger seu aliado mais importante na
região, o Estado de Israel. E o Egito foi, especialmente durante o governo Mubarak, um aliado
fundamental para os Estados Unidos para o cumprimendo desses objetivos. Sua produção de
petróleo não é significativa, mas o Canal de Suez torna o país importante para o fluxo dos
carregamentos de combustível fóssil. Sua posição geográfica, fazendo fronteira com Israel, é
essencial para a proteção do Estado sionista, protegendo as fronteiras terrestres a sudoeste de
Israel e as fronteiras marítimas a oeste.
Além disso, o governo Mubarak agiu como mediador dos conflitos na região, ajudando
a evitar que a situação escapasse ao controle dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o território
egípcio serve de base para qualquer ataque que os Estados Unidos precisem lançar aos países
do Mundo Árabe. A parceria não se desenvolveu sem atritos, como mostraram as duas últimas
décadas, quando o governo Mubarak deu sinais de estar começando a seguir uma linha
independente dos EUA, dificultando o controle do Cairo por parte de Washington.
Porém, a forma ambígua com a qual o governo Obama vem tratando as insurreições
egípcias — mesmo nos momentos mais duros, Washington não ameaça cortar mais da metade
10 Os valores estão em documento divulgado pelo Wikileaks em 2009, intitulado “President Mubarak’s
visit to Washington”. Disponível em: http://www.wikileaks.ch/cable/2009/05/09CAIRO874.html. Acesso
em 23 de novembro de 2012.
11 Segundo reportado no site noticioso Opera Mundi: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/
noticias/31721/por+causa+de+violencia+eua+anunciam+suspensao+de+parte+de+acordo+militar+com+eg
ito.shtml Acesso em 09/10/2013, às 22h.
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
262
A FUNÇÃO DO EGITO NO PROJETO IMPERIALISTA DOS ESTADOS UNIDOS PARA O MUNDO ÁRABE: LINHAS GERAIS
do auxílio militar do Cairo — é um termômetro da importância que o Egito ainda tem para
o capitalismo dos Estados Unidos. Os eventos ainda estão se desenrolando e por enquanto
é impossível fazer uma análise integral, mas o fenômeno que veio a ser conhecido como
Primavera Árabe tem uma importância que extrapola em muito as fronteiras do Oriente Médio.
O modo de produção capitalista como um todo passa por uma crise que, ao que tudo indica, terá
desdobramentos sem precedentes (Mészáros, 2002), e, portanto, o que ocorre em um dos pontos
nevrálgicos de ação do capital monopolista imperialista pode ter conseqüências devastadoras a
longo prazo. O Egito é o país de maior importância geopolítica dentre os incluídos na Primavera
Árabe, e, portanto, os processos históricos que protagoniza são mais importantes do que pode
parecer à primeira vista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRIGHI, Giovanni. The long twentieth century: Money, Power and the origins of our
times. London, Verso. 2010.
CHOMSKY, Noam. Contendo a democracia. Rio de Janeiro, Record, 2003.
HALLIDAY, Fred. The Middle East in international relations: power, politics and ideology.
Cambridge, Cambridge University Press, 2012.
HARVEY, David. Condição pós moderna. São Paulo, Edições Loyola, 2012.
HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo, Edições Loyola, 2013.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo, Companhia
das Letras, 1995.
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo, Companhia das
Letras, 2007.
HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
KANDIL, Hazem. Revolt in Egypt. The New Left Review, 2011.
KOLKO, Gabriel. The age of war: The United States confronts the World. London, Lynne
Rienner Publishers, 2006.
LENIN, Vladmir Ilich. Estado e revolução. São Paulo, Expressão Popular, 2013.
LENIN, Vladmir Ilich. Imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo, Expressão
Popular, 2012.
MARX, Karl. Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, Boitempo,
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
263
FELIPE ALEXANDRE SILVA DE SOUZA
2008.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1, 2 volumes. São Paulo, Difel,
1985.
MÉSZÁROS, István. O século XXI: socialismo ou barbárie?. São Paulo, Boitempo, 2006.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria de transição. São Paulo,
Boitempo, 2002.
SHARP, Jeremy M. Egypt: background and U.S. relations. Washington,
Congressional Research Service, 2009. Disponível em http://www.dtic.mil/cgi-bin/GetT
RDoc?Location=U2&doc=GetTRDoc.pdf&AD=ADA501061. Acesso em 30 de novembro de
2012.
Anais do XI Seminário de Ciências Sociais - 21 a 25 de Outubro de 2013
Ciências Sociais em foco: faces do Brasil no mundo contemporâneo
Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais
264
Download