Rev. Panam Infectol 2006;8(2):32-34 RELATO DE CASO/RELATO DE CASO Hiperinfecção por Strongyloides stercoralis em paciente com Aids Hiperinfection Strongyloides stercoralis in Aids patient Sérgio Cimerman1 Maria Cecilia Teixeira1 Daniela Girio2 Thaís de Oliveira Vieira2 Edenilson Eduardo Calore3 Luis Alberto Costa Barra1 Resumo Os autores relatam um caso de paciente com Aids e hiperinfecção por Strongyloides stercoralis que evoluiu a óbito por septicemia e com o encontro das larvas em pulmão, linfonodo e fígado. São discutidos os dados encontrados comparando com a literatura. Palavras-chave: Aids, Hiperinfecção, Strongyloides stercoralis. Médicos Infectologistas da Primeira Unidade de Internação do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, em São Paulo, SP. 2 Médicos Residentes do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, em São Paulo, SP. 3 Médico Patologista do Serviço de Anatomia Patológica do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, em São Paulo, SP. Abstract The authors described a case of a patient with AIDS and Strongyloides stercoralis hyperinfection. Larvae were found in lungs, lymph nodes, and liver, and patient died due to sepsis. Clinical findings are discussed and compared with the literature. Key words: Aids, Hiperinfection, Strongyloides stercoralis. 1 Rev Panam Infectol 2006;8(2):32-34 Conflicto de intereses: ninguno Recibido en 9/2/2006. Aceptado para publicación en 20/5/2006. 32 Introdução A estrongiloidíase é uma helmintose intestinal endêmica em vários países tropicais e que assumiu importância no contexto da epidemia da Aids, principalmente nos casos de hiperinfecção da doença. O causador desta doença é um nematódeo que apresenta um complexo ciclo de vida, incluindo um potencial para auto-infecção(1). A sua prevalência em pacientes com Aids no Brasil varia dependendo de cada localidade, podendo ser de 2,5% a 21,9%(2,-4). A insistência na pesquisa de larvas de S. stercoralis no conteúdo fecal aumenta consideravelmente seu achado, fazendo com que se pense no seu poder de eclodir em outros sítios, como: pulmão, cérebro, linfonodos, fígado, entre outros órgãos(5). Devido ao diminuto relato de casos na literatura médica dessa associação Aids e hiperinfecção por S. stercoralis, notamos a necessidade de discutir aspectos correlacionados à evolução de paciente em nossa instituição. Relato do caso Paciente de 56 anos, solteiro, natural de Iguatu (Ceará, Região Nordeste do Brasil), morando na cidade de São Paulo (Região Su- Cimerman S, et al. Hiperinfecção por Strongyloides stercoralis em paciente com Aids deste) há 2 anos, que referia ser homossexual e negava uso de drogas endovenosas, procurou o Instituto de Infectologia Emílio Ribas (IIER), com queixa de apresentar episódios diarréicos (3 a 4x/dia) acompanhados de cólica abdominal difusa há 15 dias de sua entrada no setor da emergência do hospital. Referia um passado de tuberculose pulmonar tratado em outro serviço com sucesso há mais de 20 anos. Este dado se tornou importante na história clínica, pois o paciente apresentou também no momento de seu ingresso manifestação pulmonar com tosse seca e adinamia. Realizada análise do exame de escarro com resultado positivo para larvas de S. stercoralis (figura 1) e uma radiografia de tórax bastante inespecífica, com um discreto infiltrado intersticial. Como considerações clínicas, o paciente ainda apresentava um quadro de início súbito de confusão mental e sonolência, que fez a equipe médica solicitar uma tomografia computadorizada de crânio, com evidências de atrofia cortical e subcortical sem lesões parenquimatosas. Ao exame físico, desidratação severa, febril, caquético, candidíase oral, rigidez de nuca e micropoliadenopatia cervical. Diante dos comemorativos clínicos, realizouse o teste rápido do HIV com resultando reagente. Optou-se pela coleta do líquido cefalorraquídeo com o aspecto turvo, presença de neutrófilos em 76% das células, uma proteína elevada e a presença de bactérias Gram-negativas ao Gram, caracterizando uma meningite bacteriana. Como conduta prescreveu-se ceftriaxona para o quadro meníngeo, ivermectina para a estrongiloidíase, hidratação parenteral e azólico Figura 1. Lâmina de escarro com presença de larva filarióide de S. stercoralis com coloração por Gram. Figura 3. Material da necropsia com a presença de larva filarióide de S. stercoralis em linfonodo corado pela hematoxilina eosina (x 440). Figura 2. Material de necropsia com a presença de larva filarióide de S. stercoralis em pulmão corado pela hematoxilina eosina (x 440). Figura 4. Observe na porção central desta figura a presença de 2 vermes no interior dos sinusóides hepáticos (Hematoxilina-eosina –x 220). 33 Rev. Panam Infectol 2006;8(2):32-34 para a candidíase oral. O paciente evolui com piora do estado geral rapidamente, com clínica de sepse e óbito em quatro dias de internação hospitalar. Houve crescimento de E. coli em hemocultura e o paciente não revelava eosinofilia periférica em exame de hemograma. A autópsia demonstrou o achado de larvas de S. stercoralis em pulmão com hemorragia e em outros sítios, como linfonodo abdominal e fígado, conforme podemos notar nas figuras (figuras 2, 3 e 4). Nos outros órgãos, como coração, foi vista apenas uma hipertrofia de fibras musculares, uma necrose com áreas focais em pâncreas, porém sem resposta inflamatória. Em rim, verificou-se necrose de epitélio de alguns túbulos renais. Discussão Em pacientes imunodeprimidos, a literatura revela altos índices de mortalidade de hiperinfecção de S. stercoralis e Aids ao redor de 70 a 87%(6). A hiperinfecção por S. stercoralis tem se mostrado de difícil controle e com relato de coortes de pacientes que evoluem para óbito a despeito de tratamento específico com drogas antiparasitárias, como por exemplo tiabendazol e ivermectina. Em uma série de pacientes que apresentavam o relato da associação das doenças, o uso do tiabendazol foi ineficaz em quase sua totalidade(7), porém em uma outra casuística notou-se que com a administração de ivermectina na dose de 200 microgramas/kg, estes pacientes foram considerados curados(8). Em nosso relato, optamos também pelo uso da ivermectina na dose preconizada, sem sucesso, e por tempo insuficiente devido à evolução fatal. Infelizmente, o paciente não coletou o exame de células linfocíticas CD4 e da mensuração da viremia plasmática por questões de falecer antes da solicitação. Com quase toda a certeza esse indivíduo devia apresentar uma imunodeficiência severa abaixo de 100 células/mm3, como a literatura nos mostra. Nosso caso mostrou o achado de bacteremia por Gram-negativo, corroborando outros relatos na literatura(5). A eosinofilia periférica, que em casos de estrongiloidíase intestinal aparece com freqüência, não foi observada em nosso relato, por se tratar de infestação maciça. Esta afirmação pode ser vista em outros estudos, além de evidenciar uma mortalidade elevada como achado(6). O encontro documentado das larvas de S. stercoralis em outros sítios em material de necropsia 34 pode explicar a severidade do caso e fazer vir à tona a necessidade de se pesquisar outros locais que não o intestino. Em conclusão, queremos chamar a atenção para que se inclua aos vários diagnósticos diferenciais a possibilidade de hiperinfecção por estrongiloidíase nos pacientes com Aids a fim de se evitar óbitos precoces e instituir terapêutica precoce. Referências 1. Concha R, Harrington Jr. W, Rogers AI. Intestinal strongyloidiasis - recognition, management, and determinants of outcome. J Clin Gastroenterol 2005;39:203-211. 2. Cimerman S, Cimerman B, Lewi DS. Prevalence of intestinal parasitic infections in patients with acquired immunodeficiency syndrome in Brazil. Int J Infect Dis 1999;3:203-206. 3. Cimerman S, Castañeda CG, Iuliano WA, Palácios R. Perfil das enteroparasitoses diagnosticadas em pacientes com infecção pelo vírus HIV na era da terapia antiretroviral potente em um centro de referência em São Paulo, Brasil. Parasitol Latinoam 2002;57:111-119. 4. Silva CV, Ferreira MS, Borges AS, Costa-Cruz JM. Intestinal parasitic infections in HIV/Aids patients: experience at a teaching hospital in central Brazil. Scand J Infect Dis 2005;37:211-215. 5. Keiser PB, Nutman TB. Strongyloides stercoralis in the immunocompromised population. Clin Microbiol Rev 2004;17:208-217. 6. Ferreira MS, Nishioka S de A, Borges AS, Costa-Cruz JM, Rossin IR, Rocha A et al. Strongyloidiasis and infection due to human immunodeficiency virus: 25 cases at a Brazilian teaching hospital, including seven cases of hyperinfection syndrome. Clin Infect Dis 1999;28: 154-155. 7. Lessnau KD, Can S, Talavera N. Disseminated Strongyloides stercoralis in human immunodeficiency virus infected patients. Treatment failure and a review of the literature. Chest 1993;104:119-122. 8. Torres JR, Isturiz R, Murillo J, Guzman M, Contreras R. Efficacy of ivermectin in the treatment of strongyloidiasis complicating Aids. Clin Infect Dis 1993;17: 900-902. Correspondência: Dr. Sérgio Cimerman R. Zacarias de Góis, 966 - apto. 41 CEP 04610-002 - São Paulo - SP - Brasil. e-mail: [email protected]