Relatório VERSUS Nathalia Cabral Diário de Bordo Dia 07 Saímos de ônibus de Salvador no dia 07 em direção ao Assentamento Pátria Livre, próximo a Vitória da Conquista, e paramos em algumas cidades para receber mais colegas no ônibus. Tivemos a recepção do MST por Selma, que relatou sobre a conjuntura política atual do Brasil e seus impactos na sociedade, além de explicar sobre o que é o MST juntamente com Edinaldo. Pudemos aprender que a ocupação de terras é muito bem estudada antes de se iniciar a apropriação, pelo menos um ano antes já é estudado que tipo de produção pode ser realizada, quantas famílias podem garantir os lotes para então iniciar a ocupação, já que o movimento não almeja colocar em risco a vida das famílias em vão. Tomamos conhecimento de que é permitida a desapropriação de terras improdutivas para fins de reforma agrária no Brasil, sendo que o próprio latifundiário é indenizado depois. Edinaldo também nos trouxe sobre sua experiência de vida dos anos que viveu Cuba: a diferença do tratamento da saúde em Cuba e no Brasil (a facilidade em ser atendido, o modelo mais integralista de atendimento), como se dá a educação nos dois países, e nos contou sobre escola de agroecologia ( que disponibiliza cursos técnicos) como uma conquista pelo MST. Dia 08 A Coordenação Político Pedagógica (CPP) nos separou em Núcleos Base (NB) como forma de auto-gestão para a realização das tarefas. O conceito de Educação Popular foi discutido entre esses grupos, como forma de nos conscientizar para a formação de indivíduos que usem da criticidade para se impor perante a sociedade, que coloque seu contexto de vida em pauta e que os saberes popular e o científico possam atuar horizontalmente na construção do processo educacional. Com os ensinamentos de Paulo Freire, citado nos textos, pudemos refletir que é necessário tornar os conflitos de interesse explícitos, entendendo que educação é bem mais do que impor informações, é formar cidadãos conscientes para lutarem. Dia 09 Foi feito um mutirão para a realização de atividades em uma localidade próxima do assentamento, onde pudemos organizar o galpão e a praça locais para a celebração da cultural pelo MST. Esse foi um momento de grande importância pra mim, visto que pudemos retribuir a forma como fomos tão bem recebidos e também fazer parte da história daquele local, com a pintura do galpão e a organização da praça. Durante o dia tivemos maior contato com as pessoas que viviam nas casas (entrando nas casas) e as crianças, entendendo a importância da garantia daquelas terras pra quem mora ali, já que antes pertencia a apenas um latifundiário e hoje dá sustento e moradia a tantas famílias. Dia 10 A Reforma Sanitária no Brasil e a conjuntura política do SUS foram discutidas em uma linha do tempo desde o Brasil Colônia até os dias atuais contendo datas históricas importantes para a atenção a saúde pública como a Constituição de 1988, que decreta a a saúde como um direito universal do cidadão (pudemos perceber como a assistência a saúde era ainda mais seletiva antes de se ter o SUS). Dia 11 Fomos à Vitória da Conquista participar de uma manifestação juntamente com movimentos sociais como a UNE, CUT, o Movimento Estudantil, entre outros, contra o atual governo de Michel Temer, a PEC 55 e outros projetos como o “Escola sem Partido” que tanto ameaçam prejudicar os brasileiros. Além disso atuamos na paralização das atividades de uma fábrica de sapatos, onde diversos trabalhadores declararam péssimas condições de trabalho e exploração (mulheres indo chorar no banheiro pelo tratamento agressivo da gestão), vimos que a fábrica ameaçava cortar a janta dos trabalhadores, o que mostra como o poder manipulação da classe dominante coloca aqueles que ousam reivindicar seus direitos. Dia 12 O curso de “Como funciona a Sociedade” nos foi apresentado e discutimos temas como o conceito de valor, mais-valia, podendo refletir o quanto a classe trabalhadora dá de suas vidas em horas de trabalho para enriquecer os capitalistas alienadamente. Tivemos a oportunidade de conectar o que foi vivido no ambiente de paralização e o conteúdo teórico, de forma a tornar o ambiente de discussão mais rico e a reflexão mais crítica. Dia 13 Os temas de opressão sofrida por negros(as), a população LGBT e as mulheres foi rica em místicas, depoimentos marcantes dos viventes, e também conteúdo teórico como ferramenta de desconstrução de preconceitos inseridos em nós durante a vida. Nos foram lembrados muitos cidadãos que foram mortos inocentemente para que seja mantido um sistema capitalista comandado pela mesma classe dominante e sustentado pelo patriarcado, pelo racismo e LGBTfobia. Foi citado também o quanto a mulher é objetificada e representada como mercadoria para a mídia, o que acaba contribuindo para a criação de a cultura do estupro. A autoestima dessas mulheres é afetada e faz com que elas sejam vítimas do consumismo para que atinjam o padrão de beleza tão desejado e a lógica capitalista possa se manter. Dias 14 e 15 Fomos conhecer o assentamentos de Caldeirão e Cipó próximos. No Assentamento Caldeirão visitamos a Escola Municipal Fábio Henrique, onde, desde o início pudemos perceber o quanto a educação naquele lugar era diferenciada, haviam cartazes com temas de importante relevância política (como a Primavera Árabe, o modelo de educação de Paulo Freire) e que eu, por exemplo, só vim conhecer por vontade própria nos últimos anos. A diretora da escola nos explicou que há uma forte tentativa de vencer a educação bancária que se vê nas escolas em geral e que os temas abordados em sala tentam se aproximar da realidade dos alunos, de forma que pessoas da comunidade, e que fizeram história para o MST, têm um papel tão importante de educar as crianças quanto os professores. Ficamos bastante contente em notar que o que foi discutido a respeito de Educação Popular nas plenárias tem uma grande semelhança com o que pudemos ver na prática dessa escola. Uma figura que nos marcou muito foi o Seu Cordeiro, que nos trouxe uma sabedoria que escola ou universidade nenhuma pode nos dar. Nos relembrou que toda aquela terra que visitamos já com as casas, a escola e em pleno funcionamento foi fruto de muito sangue derramado para que as gerações atuais pudessem ter sua dignidade garantida e uma boa qualidade de vida, o que não deveria ser necessário se tivéssemos uma sociedade mais humana e justa. A agrovila consta tanto com o cultivo individual nos lotes quanto com o cultivo coletivo, no qual a arrecadação é revertida para todas as famílias novamente (o foco principal é a mandioca, que é utilizada na produção de farinha na Casa da Farinha que visitamos). Dia 16 Visitamos a Unidade de Saúde da Família no bairro do Vale das Pedrinhas em Vitória da Conquista (um dos bairros mais violentos da cidade), onde eu pude entender a diferença entre USF e uma Unidade Básica de Saúde. Na USF o foco é mais generalista, contando com uma equipe multidisciplinar para trabalhar com o paciente, tendo um acompanhamento mais próximo, visto que o atendimento é mediado por um agente de saúde que fica responsável pela visita aos domicílios. Lá era realizada a atenção primária para os pacientes, com a atuação de profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família, o NASF. São oferecidos diversos serviços como planejamento familiar, testes de HIV, AIDS além de contar com médicos, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos, dentista e uma educadora física que atendia todos os dias. Pudemos notar que mesmo com um alto índice de violência no bairro, o SUS nessa unidade não teve planejamento adequado para atuar nesse determinante de forma a criar uma prevenção na saúde dos moradores da região. Além disso os surtos de esquistossomose e dengue são indicadores de condições sanitárias mais precárias, que poderiam contar com campanhas de prevenção dessas doenças. No Centro Municipal de Atenção Especializada e Centro de Especialidades Odontológicas pude mudar minha visão com relação ao oferecimento de serviços pelo SUS, já que o local continha profissionais muito especializados (neuropediatra, pneumopediatra, entre outros) e ótima infraestrutura. Nos foi informado pela enfermeira Luciana que o modelo do CEMAE vem sendo estudado para aplicação em outros países, o que mostra o quanto temos que lutar para que o SUS funcione com qualidade onde ele vem sendo sucateado, e não seja vencido por interesses privados. O serviço oferecido no Centro Municipal Especializado em Reabilitação Física e Auditiva que visitamos, era de muita qualidade, contendo equipes multiprofissionais para atender os pacientes, uma infraestrutura completa. Haviam diversas salas de reabilitação, podendo fazer a simulações do ambiente de casa pra o paciente se locomover , com aparelhos, a utilização de ludoterapia , entre outros serviços. O CEMERF conta até com uma cadeira de rodas que nosso colega do Levante Popular da Juventude, Ítalo, teve o prazer de nos mostrar que já sabia usá-la muito bem, entrando na sala onde a enfermeira nos explicava sobre o funcionamento do centro e dando umas voltas. Dia 17 Pudemos conhecer o Hospital Municipal Esaú Matos onde a assistente social nos mostrou o um Banco de Leite e a Ala da Obstetrícia com ótimas infraestruturas. Pudemos conversar com ela também a respeito dos casos de aborto que chegam no Hospital, perguntamos qual era o procedimento deles com relação a esses casos, nos foi dito que a gestante é tratada sem julgamentos (apesar de sabermos que há um preconceito presente normalmente nos serviços médicos). Além disso ficamos sabendo que eles recebem muitos casos de violência e estupro contra as mulheres, e que nos casos de estupro a mulher tem o direito de fazer o procedimento do aborto com os medicamentos. Lá o projeto mãe-canguru é feito com os recém nascidos como uma forma de substituir o tempo de desenvolvimento dos recém-nascidos nas incubadoras pelo desenvolvimento corpoa-corpo com as mães que podem ficar no hospital para serem orientadas. Existem rodas de conversas com equipes multiprofissionais que orientam as mulheres desde a gestação até o puerpério, o que caracteriza bastante o modelo do SUS de fazer saúde. Dia 18 Visitamos o Centros de Atenção Psicossocial de Vitória da Conquista. No CAPs 1 pudemos conversar com a psicóloga responsável, que nos explicou que esse centro conta com equipes multiprofissionais em uma proposta de empoderamento do jovem (adolescente ou criança atendido) e também com os Grupos da Família, de forma que as famílias que contém uma criança em transtorno possam se apoiar entre si e estabelecer laços para vencerem as dificuldades juntas, trocando experiências. O CAPS AD (Álcool e outras Drogas) atende pessoas que desejam superar seus vícios ou minimiza-los, de forma que o atendimento só é feito se houver vontade do paciente. O tratamento é contínuo e a equipe multiprofissional (psicólogos, nutricionistas, assistente social) trabalham na tentativa de inserção social do paciente e com a reconciliação dos laços de família que muitas vezes são perdidos por conta do vício. Conclusão e Reflexões O VERSUS é um espaço onde nós, estudantes, podemos reconstruir nosso papel como cidadãos e rever nossa forma de atuação profissional no contexto de país em que nos encontramos. Através das vivências no SUS, o conhecimento de movimentos sociais como o MST e o levante popular da juventude é possível ter uma visão política mais ampliada nos capacitando e nos conscientizando lutar. Pude observar que conteúdo abordado durante os dias de vivência nunca se dissociava do comportamento prático. O espaço das plenárias que tínhamos para debatermos os assuntos era sempre organizado em círculo pra que todos pudessem se ver e ter seu lugar de fala respeitado; mesmo quando o facilitador iniciava o tema a ser debatido esse mesmo tema poderia ser transcorrido pelo restante dos estudantes que tinham conhecimento do tema ou dúvidas a respeito, em um processo de construção mútua do saber (seguindo o modelo de educação popular que se deseja). Durante as semanas cada Núcleo Base tinha atividades diárias, o que faria com que todos os núcleos fizessem as mesmas atividades em dias diferentes, zelando pelo esforço do outro e sendo solidário. Dessa forma foi possível organizarmos num modelo bem próximo da sociedade desejada que tanto debatemos ao longo dos 12 dias, uma sociedade em que não haja a superioridade do pensante com relação ao que faz atividade manual, onde todos sabíamos a importância do papel do outro, onde as diferenças eram tratadas com sua devida diferença (tentando não silenciar mulheres, negros, negras e LGBTs). Por fim gostaria de concluir agradecendo à organização do VER-SUS por todo o tratamento acolhedor e carinhoso que tivemos, por se preocuparem em colocar em contato conosco figuras tão incríveis como Selma, Didi, Seu Carneiro, os vários assentados do MST com quem tivemos contato e profissionais de saúde diferenciados. Durante essas duas semanas tive a oportunidade de conhecer pessoas de pensamento muito semelhante ao meu, ouvir histórias de vida de muita superação por pessoas fortes, dessa forma me motivar ainda mais a seguir com essa juventude na luta por um SUS de qualidade que atenda a todos e todas, e por uma sociedade que tenha seus direitos e dignidade garantidos. Ao meu NB Maria Felipa só tenho a agradecer pela sorte de ter ido parar nas mãos de pessoas tão incríveis como Aninha , que me mostrou que as vezes um rostinho meigo pode carregar por dentro uma voz tão forte e capaz de mudar a vida de outras mulheres ( vai ser pra sempre uma lembrança de que nós mulheres não podemos nos silenciar nunca) ; Bruno, um menino muito educado e sempre solícito, que construiu ótimos debates conosco; Raíssa , que foi meu porto seguro e colo pra muitos choros e alegrias, em quem tive muita confiança ; Igão , que enriquecia tanto nossos debates em conteúdo e boas risadas, além de ser um cara de muito amor pra dar e ainda pra receber desse NB todo. São muitas as amizades e experiências que encheram minha bagagem e hoje levo pra a vida. “Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só Mas sonho que se sonha junto é realidade...” (Raul Seixas) ABRASUS <3