García Lorca, de autor e diretor a alvo dos fascistas espanhóis

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García Lorca, de autor e diretor
a alvo dos fascistas espanhóis
Luciana Montemezzo
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Brasil
Resumo: A Guerra Civil Espanhola (1936–1939) foi um dos maiores exemplos de conflito ideológico que o mundo moderno teve a oportunidade de vivenciar e assistir. A polarização entre
nacionalistas – também denominados fascistas – e republicanos produziu grandes baixas em
vários setores. Uma das primeiras vítimas desta guerra do foi o poeta e dramaturgo Federico
García Lorca (1898-1936), violentamente assassinado no primeiro mês do levante fascista.
Este trabalho busca explicitar os motivos que levaram o grupo nacionalista a identificar em
García Lorca um de seus principais alvos, a ponto de abatê-lo com urgência.
Palavras-chave: Guerra Civil Espanhola; Literatura Espanhola; Teatro Lorquiano.
Abstract: The Spanish Civil War (1936-1939) was one of the greatest examples of ideological
conflict the modern world could experience and watch. The polarization between nationalists – also called fascists – and republicans produced many casualties in several sectors. One
of the first victims of this war was the poet and dramaturge Federico García Lorca (18981936), violently murdered in the first month of the fascist rebellion. This paper aims to explain the motives which led the nationalist group to identify García Lorca as one of their
main targets to the point of slaughtering him so urgently.
Keywords: Spanish Civil War; Spanish Literature; Lorca’s Theater.
“Espanha, 1931, 503.061 Km de terra, quase a França. Uma população de 24
milhões de pessoas. Doze milhões de analfabetos. E oito milhões de pobres.
A propriedade da terra toda é dividida entre 20.000 pessoas, enquanto
mais de dois milhões de camponeses não possuem um palmo de terreno.
Províncias inteiras são possuídas por apenas um só homem. Salário médio
do trabalhador: uma a três pesetas diárias. Um quilo de pão custa uma
peseta. 21 mil monges, 31 mil pobres, 60 mil religiosos e 5 mil conventos;
15 mil oficiais dentre os quais 800 generais. Um oficial para seis homens
e um general para cem soldados. E um rei, Alfonso XIII, o décimo quarto
soberano depois de Isabel, a Católica”.
(Introdução do documentário Morrer em Madrid1).
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In tr o d u ç ã o
Em abril de 1939 terminava um dos mais sangrentos capítulos do século
XX, a Guerra Civil Espanhola. O conflito, que levou a Espanha ao caos social
e econômico teve origem na disputa travada entre republicanos e nacionalistas que, desde 1931, alternavam-se no governo, travando uma contenda
ideológica que ocasionou grandes perdas humanas. É preciso lembrar que,
diferentemente da maioria dos países europeus à época, a Espanha ainda
era um país essencialmente agrário e atrasado e que setenta por cento de
sua população era composta de analfabetos. Os trinta por cento restantes
eram formados, sobremaneira, em escolas religiosas, com predomínio da
ordem jesuítica. As escolas laicas eram minoria.
Grandes extensões de terra estavam em mãos de poucas famílias que
as mantinham a custas de tradições familiares que não permitiam a mobilidade social, muitas delas que remontavam, ainda, o sistema feudal. A
sociedade espanhola, portanto, estava organizada tradicionalmente sobre
dois pilares fundamentais: a manutenção da terra – única fonte de riqueza
– nas mãos de poucas famílias e a precária – para não dizer inexistente – escolaridade de sua população que, quando tinha oportunidade de estudar,
em grande parte, era acolhida por escolas religiosas. A fé católica, sempre
tão presente na cultura espanhola, desde a Reconquista – que expulsou
da Espanha os mouros e judeus, marcando o país com a intolerância e trazendo para a América a cobiça e a exploração – era o sustentáculo para
que este sistema social se mantivesse, ao longo dos tempos, na sociedade
espanhola, apesar da onda desenvolvimentista e libertária que a Europa
experimentava.
Diante desse quadro social, os setores de esquerda – comunistas, socialistas, anarquistas, entre outros, sob a denominação generalizada de “re1 Dirigido por Frédéric Rossif, 1962.
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publicanos” – inspirados sobretudo nos ideais da Revolução Russa (1917)
e nos ares de liberdade advindos da França, desejavam ver a Espanha
ingressar em uma época de maior mobilidade social. Dando especial ênfase ao desenvolvimento intelectual da população, acreditavam na construção de uma sociedade em que as injustiças sociais já não fossem mais
evidentes, em que houvesse distribuição igualitária de terras e em que o
analfabetismo fosse erradicado. Defendiam, também, a legitimidade dos
trabalhadores, os sindicatos e a organização dos movimentos sociais. O
projeto republicano tinha fortes vínculos com o setor cultural, uma vez
que buscava popularizar a cultura, levando-a aos lugares mais afastados
dos grandes centros.
O teatro de García Lorca, assim como já tinha sido o de seu antecessor
mais imediato, Ramón del Valle-Inclán (1866–1936)2, era uma reação ao
teatro de entretenimento e atacava veementemente as formas mais pasteurizadas de arte, feitas por encomenda, com o único objetivo de distrair
o público, tais como a zarzuela3, muito em voga no cenário cultural das
grandes cidades naquele momento.
Esta reação estava, na verdade, dirigida em sentido amplo às tradições muito bem alicerçadas na sociedade espanhola, sobretudo àquelas
de ordem moral e religiosa, que mantinham o status quo das famílias e
impediam a mobilidade social desejada pelos republicanos. Os nacionalistas – também denominados fascistas, ou franquistas, depois da ascensão
do general Francisco Franco (1892–1975) – estavam convencidos que a Espanha não precisava de mudanças. Ao contrário, era necessário proteger
as terras e as tradições que sempre mantiveram as coisas nos seus devidos
lugares, todos eles bem determinados: os homens com suas atribuições, as
mulheres com as suas, sem que haja espaço para outros tipos de conduta.
O que há é apenas a norma social, que deve ser seguida. O que não é norma,
não deve existir, e se ousar existir, deve ser reprimido. Nesse contexto,
não há liberdade. Era preciso, portanto, que a grande massa da população
continuasse sem instrução, que continuasse trabalhando de sol a sol para
minimamente comer. Para ganhar de uma a três pesetas por dia, enquan2 O teatro de Valle-Inclán, paralelo e opositor às formas popularescas, enfatizava a sátira
aos costumes tradicionais da sociedade espanhola e, com isso, apontava para os desvios que
esta mesma sociedade não queria ver. Por meio do conceito de espento, o dramaturgo galego
punha em xeque as contradições de uma Espanha retrógrada que, diferente dos demais países europeus à época, negava-se a evoluir. Sobre o autor e sua obra, é importante fonte de
consulta o trabalho organizado por Ferraz (2001).
3 Muito popular na Espanha do final do século XIX, a zarzuela é uma mescla de diálogos,
cantos, danças e música (Reizábal: 1998) que incorporou, a medida que se popularizava, elementos realistas e da comédia de costumes, atingindo seu auge no início do século XX.
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to um quilo de pão custa – como se vê em epígrafe – uma peseta.
Num ambiente social de marcada oposição como o que se configurou,
ambos os bandos se alternaram no poder a partir de 1931, até que em fevereiro de 1936, os republicanos venceram uma eleição direta, dando uma
inesperada demonstração de força que pôs o lado nacionalista em alerta.
De fevereiro a julho, organizaram-se contra o novo governo, comandado
pelo representativo e histórico líder Manuel Azaña (1880-1940), que além
de político era escritor e, em 18 de julho de 1936 os nacionalistas sublevaram-se em um golpe que modificou definitivamente os rumos da Espanha
que se queria construir por via democrática.
García L orca, d ire to r d e L a Barraca
O setor cultural espanhol foi, sem dúvida, um dos mais afetados pelo massacre promovido pela Guerra Civil Espanhola. O ódio fascista, quando dirigido aos artistas ligados à causa republicana, era ainda mais feroz e pontual. Uma das primeiras mortes, ainda no início do levante, quando o bando
nacionalista inda disputava espaço entre si – por isso não se pode afirmar
que a ordem foi dada por Franco – foi a do poeta e dramaturgo andaluz
Federico García Lorca (1898–1936). Ferrenho opositor de tudo que havia
de mais retrógrado no país, embora nunca tenha se filiado ao Partido Comunista – como o fizeram vários de seus pares – García Lorca mantinha,
desde o início dos anos 1930, uma postura assaz libertária e rebelde que o
destacava no mundo das artes e da cultura espanhola.
A partir da estada em Nova Iorque (1929), onde acompanhou as misérias provocadas pelo crack da bolsa de valores e pode ver a Espanha de
fora, como nuca houvera visto. Até então, sua produção era regida pelo
telurismo, em que se sobressaiam tonalidades de exotismo que deixavam
antever o grande amor que tinha pelo seu país e por seus compatriotas. A
viagem a Nova Iorque lhe proporcionou ainda, uma curta estadia na ilha
de Cuba, onde conheceu os ritmos caribenhos e se encantou – uma vez que,
antes de tudo teria sido músico, não fosse a repressão familiar – com a cultura do país. Relacionou-a com a cultura andaluza, repleta de sonoridade
e coloridos intensos. Em Cuba, escreveu a peça O Público (1930), segundo
ele, uma peça irrepresentável4.
A partir da experiência em Nova Iorque, García Lorca percebeu o paradoxo que havia entre a riqueza secular legada à Espanha pela presença
4 A peça trata explicitamente do tema da homossexualidade o que, à época, era um considerado tabu. Por isso, o dramaturgo a julgava irrepresentável. Atualmente, entretanto, está
nos palcos, inclusive no Brasil.
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moura e judia, especialmente na Andaluzia, seu lugar de origem, e o atraso
do país: a pobreza do povo, sua falta de instrução, fator que o impedia de
conhecer toda a grandiosidade com que a cultura espanhola brindava o
mundo. Enquanto em Madri fervilhavam as ideias vanguardistas, os pequenos povoados espanhóis seguiam com suas tradições seculares inquestionáveis, a maioria delas fundamentadas em crenças católicas já superadas pela ciência.
Na volta de Nova Iorque, a produção literária lorquiana é tomada de
um intenso tom político. Os críticos de sua obra são unânimes ao tratar
esse retorno como o momento que marca uma reorientação fundamental
na sua literatura. Após a estada em Nova Iorque, a obra lorquiana, em
especial o seu teatro, jamais voltará a adquirir o contorno ingênuo que
mantinha até então. Embora ainda esteja permeada de telurismo e imagens poéticas que remetem à Andaluzia – imagens essas que irão, pouco a
pouco, diminuindo de intensidade na sua obra dramática – toda a sua produção virá sempre perpassada de um tom político contundente e áspero,
de uma poética da dor.
Aliada à sua própria produção dramática, García Lorca teve uma intensa atividade junto ao governo da segunda república, como diretor na companhia de teatro universitário La Barraca. A concepção do grupo era a de
promover a cultura nos lugares mais afastados do país, onde não houvesse
salas de espetáculos, oferecendo à população peças de teatro em praça
pública, de graça. Acreditavam os republicanos que o teatro era a arte que
poderia aproximar-se da população com mais facilidade, devido ao seu
didatismo e pela proximidade que naturalmente desfruta com relação ao
espectador. Nesse sentido, lançavam mão de uma estratégia a muito utilizada na história da cultura: o poder ora acomodador, ora desacomodador
que a arte teatral tem em sociedades que precisam ser alteradas5.
Outro aspecto bastante revolucionário de La Barraca era a adesão à causa do teatro. Seu diretor apregoava que, para formar parte do grupo não
era necessário desejar ser artista, muito menos querer representar. Todos
eram bem vindos. Afinal, o grupo andava pelo interior da Espanha, sobre
um caminhão, com subvenção estatal, encenando peças do teatro clássico
espanhol. Assim, além de atores, eram necessárias pessoas que soubessem
dirigir caminhão, cozinhar, fazer instalações elétricas, enfim, havia lugar
para todos que se identificassem com a causa.
Um projeto como esse, certamente, era muito mal visto pelos setores mais tradicionais. Um bando de universitários que levava às praças
5 Exemplos disso são o teatro de catequese ou seu oposto, o teatro produzido por dramaturgos como García Lorca.
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das pequenas cidades as obras dramáticas de Pedro Calderón de la Barca
(1600–1681) e Félix Lope de Vega (1562–1635), por exemplo, adaptando-as
quando lhes parecia necessário não era por si só revolucionário e inconveniente? Retomar os clássicos do Século de Ouro espanhol e dá-los ao público menos instruído era, indubitavelmente, um ato de grande atrevimento,
sobretudo numa época em que se popularizavam nos grandes centros os
espetáculos que visavam o mero entretenimento, levados à cena sob encomenda.
Como explicar que as figuras dos reis católicos, quase mitológicas
na cultura tradicional espanhola, fossem simplesmente suprimidas das
apresentações de Fuenteovejuna (1610), como aconteceu na sua estréia
em Valência, em 31 de maio de 1933 (Gibson, 1989: 400). E, mais ainda,
qual o sentido de atualizar o figurino, fazendo o espectador pensar que
estava vendo uma trama que se passava nos dias atuais? A intenção era
exatamente mostrar que a denúncia explicitada pelo mestre Lope de Vega,
no século XVII, e que remontava, na ficção, a época dos reis católicos e
ao abominável direito de pernada – prerrogativa que garantia ao senhor
feudal o direito de desvirginar suas servas – ainda era cabível na Espanha
do século XX, estagnada no tempo. Por meio da atualização dos figurinos,
dava-se a identificação com o público. A supressão dos reis católicos era
uma maneira direta de aludir à necessidade de retirar da Igreja o poder
que sempre representara no país.
A Fuenteovejuna da Barraca desagradou sobremodo a direita, não menos pela
supressão de toda referência a Fernando e Isabel, venerados pelas “forças
da lei e da ordem” como paladinos do catolicismo, artífices da unidade espanhola e fautores do descobrimento do Novo Mundo. A reação contra versão
de Lorca começou nesse verão na cidade de Albacete, onde ela foi atacada
na imprensa local, e nos anos seguintes cresceu com veemência. (Gibson,
1989: 400).
Evidentemente, os opositores direitistas identificaram García Lorca
como um de seus principais inimigos. No entanto, não havia como atacar
a qualidade de seu trabalho. As únicas críticas que lhe eram dirigidas eram
de ordem moral, referentes à sua homossexualidade e à suposta conduta
libertina dos estudantes que faziam parte de La Barraca.
O trabalho auto ral
Paralelo ao trabalho com La Barraca, Lorca escrevia a “Trilogia Dramática
da Terra Espanhola”, composta de Bodas de Sangue (1932), Yerma (1934) e A
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Casa de Bernarda Alba (1936), as três peças que o consagraram como grande
dramaturgo. O sucesso alcançado por Bodas de Sangue na Espanha ecoou
rapidamente na América, fazendo com que, em 1933, a peça fosse encenada em Buenos Aires. Nos palcos portenhos, assim como havia acontecido
na Espanha, a tragédia protagonizada por personagens dominados pelos
instintos vitais, mas presos a normas sociais sufocantes, foi igualmente
ovacionada. A recepção da peça deste lado do Atlântico foi tão efusiva que
o próprio García Lorca foi convidado a vir participar de algumas apresentações. Embora a princípio muito mais interessado em manter-se na
Espanha, por causa dos projetos republicanos que dirigia, o dramaturgo
convenceu-se de participar das atividades na Argentina.
A viagem de ida a Buenos Aires incluiu uma parada no porto de Santos,
da qual apenas se tem notícia por meio de informações biográficas. Não há
registros na imprensa brasileira sobre esse acontecimento. A estadia em
Buenos Aires, que a princípio deveria ser curta, devido ao trabalho deixado na Espanha, acabou prolongando-se por seis meses. Em terras portenhas, o autor, além de trabalhar com a companhia de Lola Membrives,
e encantou o público com uma imagem muito diferente do estereótipo
de espanhol conquistador e explorador que os hispano-americanos têm
construída em relação aos europeus. Teoria y juego del duende, uma de suas
mais famosas conferências, foi escrita no navio, para driblar o medo que
de morrer afogado (Gibson, 1989: 402), a caminho da Argentina, e lida pela
primeira vez em Buenos Aires. Em 02 de março de 1934, o poeta faz uma
leitura do primeiro quadro de Yerma para, em seguida, despedir-se dos
argentinos. Sua fala, antes da leitura, demonstra toda a afeição que uniu
o poeta a seu público:
De todos modos, me cuesta arrancar. “¿Cuándo se va usted?” me preguntan.
Y rotundamente contesto: “El seis”.
Pasan días, pasan noches y un mes y medio, pero… como dice el viejo romance, “yo permanezco…” salto del seis al veinte, y al treinta y al uno del
mes, ¡nada! Sigo aquí, como me ven ustedes. Y es… que Buenos Aires tiene
algo de vivo y personal, algo lleno de dramático latido, algo inconfundible
y original en medio d e sus mil razas que atrae al viajero y lo fascina. Para
mí ha sido suave y galán, cachador y lindo y he d mover por eso un pañuelo
oscuro, de donde salga una paloma de misteriosas palabras en el instante
de mi despedida.
Ahora vamos a leer. Es la primera vez que lo hago y me sabría mal dar una
lata.
¡Gracias a todos y salud!, que no canse.
O sucesso de Bodas de Sangue levou o autor também a Montevidéu, em
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uma tentativa de dar férias à atriz Lola Membrives, exaurida pelas apresentações na Argentina. Não obstante, também no Uruguai, ambos foram
reconhecidos, aplaudidos e homenageados. Curiosamente, apesar de todo
o sucesso na Argentina e no Uruguai, não há referências à sua passagem
por estes países na imprensa brasileira.
Na viagem de volta à Espanha, García Lorca passou outra vez pelo Brasil, dessa vez pelo Rio de Janeiro. Num esforço de divulgação artística, o
diplomata e escritor mexicano Alfonso Reyes levou o poeta e dramaturgo,
em companhia do pintor Manuel Fontanals à redação do jornal A Noite. Na
edição de 31/04/1934 do referido jornal apareceu a primeira notícia sobre
García Lorca no Brasil6.
Ao chegar à Espanha, Lorca publicou Yerma, uma peça bem mais explícita em termos políticos do que Bodas de Sangue. Embora a primeira peça
contivesse elementos profundamente questionadores, referentes à moral e ao cerceamento das liberdades individuais dos seres humanos em
nome da coletividade, tais referências vinham ainda mascaradas por um
ambiente telúrico bastante comum ao universo espanhol. Dessa maneira,
muitas dessas referências sequer foram questionadas por grande parte do
público e da crítica.
O próprio autor, em entrevista para o jornal El Mercantil Valenciano7,
em 15 de novembro de 1935, afirmava que seu teatro estava subdivido, de
maneira a atingir públicos distintos, conforme suas capacidades de entendimento:
Mi teatro tiene dos planos: una vertiente del poeta, que analiza y que hace
que sus personajes se encuentren para producir la idea subterránea8, que
6 “GARCIA LORCA PASSOU PELO RIO
O ilustre poeta e o pintor Fonatanals visitaram A NOITE, em companhia do embaixador do
México
A bordo do “Conte Biancamano” que hoje tocou o nosso porto, passaram pelo Rio duas figuras muito estimadas nas letras e nas artes espanholas: García Lorca e Manuel Fontanals. García Lorca tem lugar destacado entre os poetas da nova geração de sua pátria. As suas produções literárias, os poemas líricos e as comédias de factura moderna cedo lhe deram o renome
e a fama que goza hoje, e que já transpuseram as fronteiras da Espanha para repercutirem
e se espalharem no estrangeiro. (...) Lorca e Fontanals regressam de brilhante turnê à América do Sul, e associados, obtiveram nas Repúblicas dessa parte do nosso continente os mais
brilhantes sucessos. O embaixador mexicano falou-nos de ambos com entusiasmo. Acerca
de García Lorca, disse-nos que é hoje, talvez, o mais festejado dos poetas moços da Espanha.
As obras de Lorca, acrescentou o distinto diplomata, alcançam sempre os maiores êxitos de
livraria, não só na terra pátria, mas em todos os países onde se fala a língua castelhana. (...).”
7 Citado por Martín (1989: 42).
8 Grifo nosso. A expressão merece destaque especial porque resume a noção de que os textos dramáticos lorquianos estão construídos sobre um subtexto – não menos importante
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yo doy al “buen entendedor”, y el plano natural de la línea melódica, que
toma el público sencillo para quien mi teatro físico es un gozo, un ejemplo y
siempre una enseñanza. (…)
O universo telúrico marcadamente andaluz, as danças e os cantos flamencos que sobejam em Bodas de Sangue, de certa maneira colaboraram
para que a peça tenha sido recebida sem a devida atenção por parte daqueles que poderiam censurá-la ou atentar para ao perigo que o teatro lorquiano representava. As discussões sobre a questão agrária – presentes na
escolha que a Noiva é obrigada a fazer entre o Noivo e Leonardo – parece
passar despercebida diante do tom artístico e da plasticidade que a obra
encerra em seu aspecto geral. Da mesma maneira, a opção por nomear as
personagens por seus papéis sociais, à exceção de Leonardo – a personagem que subverte a ordem pré-estabelecida e promove o desfecho trágico
– também é ignorada. A designação das personagens por nomes comuns diz
respeito ao conflito essencial das personagens lorquianas, sempre divididos entre a antítese entre dois princípios básicos: princípio de autoridade
– ordem, tradição, realidade, coletividade – e princípio de liberdade – desejo, imaginação, individualidade –, que são antagônicos e irreconciliáveis
entre si (Ruiz Ramón, 1986: 177).
Contudo, esta mesma postura não foi possível diante de Yerma, não
somente porque as referências telúricas já não eram mais evidentes, mas
também porque a crítica social tornava-se muito mais aguda e explícita. O
drama da mulher empobrecida pela falta de um filho, que é levada, pouco
ao pouco, ao delírio e à insanidade e que alcança seu ápice em uma tradicional procissão que leva, todos os anos, milhares de mulheres inférteis,
aos pés do Cristo del Paño, na localidade de Moclín, no interior de Granada,
desde o século XVII até os dias de hoje.
A personagem lorquiana é levada por suas amigas, em busca de cura
para sua suposta infertilidade, à romaria. Entretanto, encontra ali a Velha
Pagã, quem lhe garante que o Cristo não cura nada e quem engravida as
mulheres são os homens que vêm de fora. Afirma, ainda, a Velha que Yerma não engravida porque seu marido não tem boa semente, dizendo-lhe,
finalmente, que vá encontrar-se com seu filho, esse sim, bom procriador,
que certamente a engravidará. Ofendida, Yerma alega ser uma mulher
honrada e acrescenta que, por ser casada, somente poderá ter um filho de
seu próprio marido. O final trágico da peça acontece na romaria, cenário
que o texto explícito – que estabelece uma rede de significações, através da qual se podem
atribuir significações mais profundas em relação à totalidade de sua produção literária. Essa
idéia já havia sido explorada em El Público (1930), em que se estabelece a oposição entre “teatro bajo la arena” (o verdadeiro teatro) e “teatro al aire libre” (o falso teatro).
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real para muitos espanhóis até os dias de hoje.
No dia seguinte à estréia de Yerma em Madri, a imprensa de direita, que
já identificara García Lorca como um provável inimigo, filho de uma família abastada que resolvera fazer arte para incomodar, apontava-o como
veemente hostilidade. A partir de Yerma, o dramaturgo granadino passou
a ser considerado o principal alvo dos fascistas espanhóis. O ataque ao
catolicismo, ponto de sustentação das tradições espanholas desde a reconquista era, sem sombra de dúvida, uma afronta imperdoável.
Contudo, a crítica direitista não encontrava argumentos para atacar a
obra em si. A qualidade do trabalho autoral, assim como acontecera com
La Barraca, nunca conseguia ser posta em dúvida. As únicas questões levantadas diziam respeito à inserção de poesia no texto dramático. Além
delas, evidentemente, sobressaiam-se, ainda, ironias acerca dos aspectos
morais relativos à conduta do autor e dos atores que encenavam suas peças. Ainda assim, tais observações incomodavam o poeta, que se esforçou
para produzir uma peça “livre de poesia”, segundo suas próprias palavras.
Em julho de 1936, em Madri, fez a leitura dramática de A Casa de Bernarda
Alba, sua última peça, aquela que encerraria não só a “Trilogia Dramática
da Terra Espanhola”, mas também – e desafortunadamente – sua breve e
exitosa vida de artista.
Bernarda Alba, uma matriarca de 60 anos, encerra suas cinco filhas e
sua mãe no interior de sua casa, onde, segundo ela, – por força da tradição
– devem guardar luto por oito anos, por causa da morte do segundo marido de Bernarda. Além delas, vivem na casa duas empregadas, que estão
livres do luto, e funcionam na peça como a voz da coletividade. São elas
que informam ao espectador/leitor sobre as relações familiares pré-estabelecidas. Três das irmãs disputam um único homem, Pepe Romano – que
sequer consta no Dramatis Personae e, portanto, não é uma personagem – e
se consomem nessa disputa, que é ignorada pela matriarca. A mais velha
das irmãs, Angustias, tem 39 anos – é, portanto, velha para se casar – mas é
a única que tem herança, porque é filha do primeiro casamento de Bernarda. Por isso, foi pedida em casamento por Pepe. Martírio, de 24 anos, que é
feia e corcunda, e Adela, de 20 anos, que é bonita e jovem, também amam
Pepe. Bernarda acredita perceber tudo o que acontece na casa, e ter tudo
sob controle, contudo, não se dá conta do processo de rebelião que vai, aos
poucos, tomando conta de sua família. Pôncia, a governanta, tenta avisála, mas ela ignora os avisos, acreditando ter total domínio da situação, que
se torna insustentável e eclode no trágico final.
A terceira peça da “Trilogia Dramática da Terra Espanhola” pode ser
vista, portanto, como uma metáfora da Espanha dos anos 1930, oscilando
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entre a Monarquia e a República, sempre ameaçada pela ideologia fascista.
As filhas de Bernarda, todas subjugadas e ameaçadas pela mãe dominadora, cada uma com suas características específicas, tentam ajustar-se ao
poder da matriarca e seguir vivendo. Contudo, nem todo o esforço é capaz,
em alguns casos, de salvar a vida daqueles que subvertem a ordem vigente.
Da mesma maneira que Leonardo, em Bodas de Sangue, ou que Yerma,
no drama homônimo, também Adela em A Casa de Bernarda Alba escapa da
ordem vigente por uma das duas vias que, nas palavras de Ruiz Ramón
(1986: 208), são as únicas possíveis para as personagens lorquianas que
ousam desafiar o papel social que lhe é designado: a loucura – como no
caso de Yerma – ou a morte – como no caso de Leonardo ou Adela. Assim,
a lucidez e a vida são o grande castigo, a que ficam condenados os que se
submetem9. Um mês depois, as balas fascistas alcançaram o poeta, que
nunca viu A Casa de Bernarda Alba ser levada aos palcos. Assim como Leonardo, Yerma e Adela, Federico García Lorca foi morto porque não se
submeteu às convenções que a sociedade espanhola lhe impunha.
Co ns i dera ç ões fina is
Seria reducionista afirmar que a morte de García Lorca está relacionada diretamente com sua ficção, em sentido premonitório, como fez uma
parcela da crítica brasileira, ao receber sua obra, no início dos anos 1940,
no Brasil10. Ainda que a aproximação da biografia do poeta e dramaturgo
com sua ficção seja evidente e inevitável, como pode ser comprovado por
meio do teatro por ele produzido nos anos 1930, nada pode ser dito além
de que se trata de uma infeliz coincidência entre ficção e realidade, orquestrada por mãos fascistas.
O que, sim, é plausível afirmar é que o poeta foi perseguido e assassinado brutalmente entre os dias dezesseis e dezenove de agosto de 1936
por causa de sua militância republicana – sobretudo vinculada ao teatro,
tanto em La Barraca como no trabalho autoral – e por sua homossexualidade. Embora nunca tenha se filiado ao Partido Comunista, como fizeram
9 Evidentemente, neste caso, os termos loucura e lucidez mereceriam uma análise mais
aprofundada, sobretudo se incluíssemos neste estudo a personagem Maria Josefa (mãe de
Bernarda Alba). Entretanto, este não é o objeto deste trabalho.
10 Interessantes são as opiniões contidas na Edição Comemorativa à estréia de Bodas de Sangue nos palcos cariocas, em 1944, da Revista Leitura, em especial os textos de Rachel de Queiroz e de Cecília Meireles. O primeiro deles aproxima bastante a ficção à biografia do poeta e
dramaturgo enquanto que o segundo rechaça tal posição. Vale salientar, por fim, que Cecília
Meireles foi a primeira tradutora de Bodas de Sangue e Yerma no Brasil.
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muitos de seus amigos, tais como Salvador Dalí e Pablo Neruda, García
Lorca declarava-se republicano. Mais do que isso, enquanto vários artistas
saíam da Espanha, para produzir sua arte de forma segura – como Dalí, refugiado na França, ou falavam desde um lugar absolutamente acautelado
– como Neruda, que era diplomata na Espanha àquela época – García Lorca
tomava a frente de uma companhia de teatro com fins didáticos e buscava
instruir a grande massa da população espanhola, alijada dos bancos escolares e das salas de espetáculo. Sua prática era muito mais revolucionária
do que muita teoria então em voga, por isso incomodava tanto os generais
fascistas que já sabiam quem deveria ser morto. Em entrevista ao jornal El
Sol, em 10 de junho de 1936, García Lorca declarou, uma vez mais, a certeza
que o impulsionava para trabalhar com o teatro didático:
A ideia da arte pela arte seria uma coisa cruel se não fosse, felizmente, tão
ridícula. Nenhuma pessoa decente continua a acreditar em toda essa tolice
de arte pela arte.
Nesse momento dramático, o artista deve rir e chorar com o povo. É preciso
largar o molho de lírios e mergulhar até a cintura na lama para ajudar os
que buscam os lírios. De minha parte, tenho uma necessidade genuína de me
comunicar com os outros. Por isso bati às portas do teatro e agora dedico a
ele todos os meus talentos. (Gibson, 1989: 487)
Naquele momento, em que a Espanha estava prestes a cair nas mãos
dos militares fascistas – o golpe orquestrado pelos nacionalistas espanhóis
aconteceu em 18 de julho de 1936 – o poeta e dramaturgo estava convencido de que a sua arte tinha, antes de tudo, um valor social. Porém, o seu
trabalho autoral e as suas declarações, especialmente aquela dada ao Mercantil Valenciano, que divide seu trabalho em Plano Natural e Vertente
do Poeta, permite afirmar que seu teatro supera o mero objetivo didático,
graças em parte ao lirismo inerente, à preocupação plástica com a montagem dos cenários – própria de um autor que também era diretor e artista
plástico –, e à inserção dos coros aos moldes gregos, fruto da familiaridade
que o dramaturgo desfrutava desde criança com a música.
Além desses aspectos formais, que garantem encantamento a platéias
cronológica e historicamente distantes da Espanha dos anos 1930 que García Lorca queria atacar e didatizar, também há as tramas bem articuladas,
todos causados pela incomunicação pela oposição entre as forças que regem os conflitos individuais e inerentes aos seres humanos e se chocam
com as expectativas da coletividade. Para aqueles que ficam vivos – e que,
via de regra, são as mulheres, resta a solidão da espera pela morte. Assim,
a morte e a loucura convertem-se em uma espécie de liberdade. A vida, em
Letras, Santa Maria, v. 19, n. 1, p. 117–130, jan./jun. 2009
oposição, torna-se prisão, a que estão condenados os que não ousam dar
vazão a seus desejos. Farão, assim, o que dizem os Lenhadores, no Coro
de Bodas de Sangue (Terceiro Ato): deixarão que o sangue de seus instintos
mais elementares apodreça em suas veias, em nome das expectativas sociais, tradicionalmente forjadas desde a idade Média por uma sociedade
estagnada e fechada em si mesma.
Um mês depois de fazer uma leitura dramática de A Casa de Bernarda
Alba, sem nunca tê-la visto encenada11, García Lorca foi preso e cruelmente
assassinado pelos generais fascistas, ainda nos primeiros momentos do
levante que faria de Francisco Franco ditador por quase 40 anos na Espanha. Seu corpo foi jogado em uma vala comum, entre Víznar e Alfacar, na
província de Granada, com mais três outros corpos de prisioneiros executados na mesma madrugada, de onde até hoje não foi retirado12. Em seu
atestado de óbito, somente emitido em 1940, consta que foi morto “em
agosto de 1936, por causa de ferimentos produzidos por fato de guerra”
(Gibson, 1989: 415).
Recebido em 31 de outubro de 2009 / Aprovado em 22 de dezembro de 2009
11 A peça foi representada pela primeira vez na Espanha em 1964.
12 Depois de uma tratativa judicial entre a família García Lorca e as outras três famílias,
decidiu-se pela exumação dos cadáveres. Os familiares do poeta sempre se declararam contrários à retirada do corpo do lugar onde foi morto, justificando que tal ato seria uma maneira de apagar uma memória que não deve ser esquecida. Contudo, vencida em juízo, a família
García Lorca recentemente autorizou a exumação, iniciada no final de outubro de 2009.
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García Lorca,
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Introdutório, tradução e notas e Joyce Rodrigues Ferraz. Brasília:
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