O que estava pensando Lenin?

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O que estava pensando Lenin?
Por Tariq Ali, membro do comitê editorial da revista New Left
Review, é o autor, mais recentemente, de “The Dilemmas of
Lenin: Terrorism, War, Empire, Love, Revolution.” (“Os Dilemas
de Lenin: Terrorismo, Guerra, Império, Amor, Revolução”, sem
versão em português.)
Texto publicado originalmente no New York Times, dia 3/04/2017
Tradução para o Português por Pedro Lhullier Rosa.
Este é um ensaio na série “Red Century”, sobre o legado e a
história do comunismo 100 anos após a Revolução Russa.
O que estava pensando Vladimir Lênin na longa viagem à Estação
Finlândia de Petrogrado em 1917?
Como todo o mundo, ele tinha sido tomado de surpresa pela
velocidade em que havia se sucedido a Revolução de Fevereiro.
Enquanto cruzava a Europa de Zurique até a Rússia, a bordo de
um trem blindado, cortesia do Kaiser alemão, ele deve ter
refletido que esta não era uma oportunidade para ser perdida.
Que os fracos partidos liberais tinham dominado o novo governo
era de se esperar. O que o preocupava eram os relatórios de
que seus próprios bolcheviques estavam vacilando no caminho
adiante. A teoria os tinha aprisionado, junto com boa parte da
esquerda, à ortodoxia marxista de que, nesse estágio de
desenvolvimento, a revolução na Rússia podia apenas ser
democrático burguesa. O socialismo era possível apenas em
economias avançadas como a Alemanha, a França, ou até os
Estados Unidos, mas não na Rússia camponesa. (Leon Trotsky e
seu círculo intelectual estavam
discordavam dessa visão.)
entre
os
poucos
que
Já que o curso da revolução estava dessa maneira preordenado,
tudo o que os socialistas poderiam fazer era oferecer apoio ao
Governo Provisório enquanto este atravessava o primeiro
estágio da revolução e desenvolvia uma economia capitalista
completa. Uma vez que isso estivesse terminado, poderiam
agitar por uma revolução mais radical.
Essa combinação de dogmatismo e passividade enfurecia Lênin. O
levante de fevereiro tinha feito com que repensasse velhos
dogmas. Para progredir, ele agora acreditava, deveria haver
uma revolução socialista. Nenhuma outra solução era possível.
O estado czarista tinha que ser destruído desde a raiz. Assim
disse quando desembarcou do trem em Petrogrado: Nenhuma
harmonia ou acordo era possível com um governo que continuasse
a participar na guerra ou com os partidos que apoiassem tal
governo.
A palavra de ordem bolchevique que sintetizou seu pensamento
tático foi “pão, paz e terra.” Quanto à revolução, ele agora
argumentava que a corrente capitalista internacional quebraria
no elo mais fraco. Convencer os trabalhadores e camponeses
russos a construir um novo estado socialista levaria a
insurreições na Alemanha e em outros lugares. Sem isso,
argumentou, seria difícil construir
significativa de socialismo na Rússia.
qualquer
forma
Ele detalhou sua nova visão nas Teses de Abril, mas teve que
lutar para convencer o partido bolchevique. Denunciado por
alguns por virar as costas à doutrina marxista aceita, Lênin
parafrasearia Mefistófeles do Fausto de Goethe: “A teoria, meu
amigo, é cinza, mas verde é a eterna árvore da vida.” Uma das
primeiras apoiadoras foi a feminista Alexandra Kollontai. Ela,
também, rejeitava acordos e meios-termos, porque não
acreditava que algum fosse possível.
De fevereiro a outubro, de acordo com alguns o período mais
aberto na história russa, Lênin persuadiu seu partido, juntou
forças com Trotsky e se preparou para uma nova revolução. O
Governo Provisório de Alexandre Kerensky se recusou a desistir
da guerra. Agitadores bolcheviques entre as tropas no fronte
se aproveitaram de seus vacilos. Motins e deserções em larga
escala seguiram.
Dentro dos conselhos de trabalhadores e soldados, os soviets,
a estratégia de Lênin começou a fazer sentido para um grande
número de trabalhadores. Os bolcheviques ganharam maiorias nos
soviets de Petrogrado e Moscou, e o partido se desenvolvia
rapidamente em outros lugares. Essa junção entre as ideias
políticas de Lênin e a consciência de classe crescente entre
os trabalhadores produziu a fórmula para outubro.
Longe de ser uma conspiração, ou até um golpe, a Revolução de
Outubro foi talvez o levante mais publicamente planejado na
história. Dois dos camaradas mais antigos de Lenin no comitê
central do partido continuaram opostos a uma revolução
imediata e publicaram a data do evento. Embora seus detalhes
finais obviamente não tenham sido divulgados antes, a tomada
de poder foi rápida e envolveu um mínimo de violência.
Tudo mudou com a guerra civil consequente, na qual os inimigos
do nascente estado soviético receberam apoio dos antigos
aliados ocidentais do czar. Entre o caos resultantes e as
milhões de baixas, os bolcheviques obtiveram a vitória – mas
sob um custo político e moral terrível, incluindo a quase
extinção da classe trabalhadora que tinha originalmente feito
a revolução.
A escolha que seguiu a revolução de outubro de 1917 não foi,
então, entre Lênin e a democracia liberal. A escolha
verdadeira foi determinada por uma brutal luta pelo poder
entre os exércitos Branco e Vermelho, o primeiro liderado por
generais czaristas que não mantinham em segredo que, se
ganhassem, tanto bolcheviques quanto judeus seriam
exterminados. Massacres promovidos pelos Brancos erradicaram
vilarejos judeus inteiros. A maioria dos judeus russos
revidou, tanto como membros do Exército Vermelho quanto em
suas próprias unidades de guerrilha. Nem devemos esquecer que,
poucas décadas depois, foi o Exército Vermelho – originalmente
forjado na guerra civil por Trotsky, Mikhail Tukhachevsky e
Mikhail Frunze (os primeiros dois depois mortos por Stalin) –
que quebrou a força militar do Terceiro Reich nas grandes
batalhas de Kursk e Stalingrado. Nesse ponto, Lênin já estava
morto há duas décadas.
Enfraquecido por um derrame nos dois últimos anos antes de
morrer em 1924, Lênin teve tempo de refletir sobre as
conquistas da Revolução de Outubro. Ele não estava feliz. Ele
viu como o estado czarista e suas práticas, longe de serem
destruídos, tinham contaminado o bolchevismo. O ufanismo da
Grande-Rússia estava desenfreado e tinha que ser erradicado,
ele percebeu. O nível da cultura do partido era lamentável
após a perda humana da guerra civil.
“Nosso aparato de estado é tão deplorável, para não dizer
miserável,” ele escreveu no jornal Pravda “que a coisa mais
prejudicial seria contar com a presunção de que sabemos de
alguma coisa sequer.”.
“Não” ele concluiu “estamos ridiculamente em deficiência”. A
Revolução tinha que admitir seus erros e se renovar, ele
acreditava; de outra forma, iria falhar. Mas esta lição não
foi levada a cabo após sua morte. Seus escritos foram em boa
parte ignorados ou deliberadamente distorcidos. Nenhum líder
soviético veio à tona com a visão de Lênin.
“Sua mente era um instrumento notável.” escreveu Winston
Churchill, que não era suspeito de admirador do bolchevismo.
“Quando sua luz brilhava ela revelava o mundo inteiro, sua
história, suas tristezas, suas estupidezes, suas farsas, e,
acima de tudo, seus males.”.
De seus sucessores, nenhum dos reformadores notórios – Nikita
Khruschchev nos anos 50 e 60 e Mikhail Gorbachev na década de
80 – tinha a real capacidade de transformar o país. A implosão
da União Soviética devia quase tanto à sua cultura política
degradada – e, por vezes, à ridícula insuficiência de sua
elite burocrática – quanto à estagnação econômica e
dependência de recursos que se instalaram a partir dos anos
70. Obcecados com imitar os avanços tecnológicos dos Estados
Unidos, seus líderes cortaram o piso de sob seus pés. No
trágico capítulo final da revolução, não foram poucos os seus
burocratas que se redescobriram como milionários e oligarcas –
algo que Trotsky havia predito no exílio em 1936.
“A política é uma expressão concentrada da economia.” Lênin
afirmou certa vez. Enquanto o capitalismo vai tropeçando, seus
políticos e apoiadores oligarcas veem seus eleitores
desertando os partidos em massa. A tendência à direita na
política ocidental é uma revolta contra as coalizões
neoliberais que governam desde a queda da União Soviética.
Hoje, porém, os políticos não podem culpar o socialismo como
antes faziam – pois ele não existe.
Na Rússia nacional-conservadora de seu presidente, Vladimir V.
Putin, não haverão celebrações este ano da Revolução de
Fevereiro ou da de Outubro. “Não estão no nosso calendário.”
ele disse a um jornalista indiano conhecido meu no ano
passado.
“Depois da sua morte” Lênin escreveu sobre revolucionários
“tenta-se convertê-los em ídolos inofensivos, canonizá-los por
assim dizer, cercar o seu nome de uma auréola de glória, para
“consolo” das classes oprimidas e para o seu ludíbrio.” Depois
da sua morte, contra os protestos de sua viúva e irmãs, Lênin
foi mumificado, posto em exibição pública e tratado como um
santo bizantino. Ele tinha previsto seu próprio destino.
Mural of Vladimir Lenin. Credit Shepard Sherbell/Corbis SABA,
via Getty Images
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