O espetáculo da dengue na mídia

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O espetáculo da dengue na mídia
Luiz Marcelo Robalinho Ferraz1
Introdução
A proposta deste artigo é analisar a construção dos discursos da mídia sobre a dengue,
doença que vem afetando cada vez mais os brasileiros desde a segunda metade dos anos 80.
Defendemos que a ocorrência da epidemia é um fator determinante para a espetacularização da
notícia, influenciando diretamente na construção dos discursos sobre a dengue. Para isso,
utilizamos o aparato teórico da Análise do Discurso (AD), aliando conceitos de noticiabilidade,
como condicionante para escolha dos enfoques dados pela imprensa, e de espetáculo, para
refletir a notícia como mercadoria simbólica e econômica e a maximização dos efeitos de sentido
nas matérias jornalísticas que tratam de doenças nos dias de hoje.
Para avaliar a dimensão dada pela mídia à dengue, selecionamos 74 edições do periódico
pernambucano Jornal do Commercio (JC). O recorte – que representa todo o ano de 2002 (com
exceção de maio, único mês em que não foram publicadas matérias sobre o assunto) – totaliza
139 textos produzidos pelo jornal. Neste artigo, daremos ênfase às matérias publicadas no
primeiro semestre daquele ano (79,85% do total), sobretudo durante a fase de pico da epidemia,
entre os meses de janeiro e abril, a fim avaliar a construção narrativa da dengue na mídia.
Valor-Notícia da Dengue
Dentre as várias doenças infecciosas, a dengue vem conquistando espaço no noticiário
jornalístico por ser uma moléstia emergente que já se tornou um dos principais problemas de
saúde pública do Brasil e do mundo2. Embora as primeiras referências no país sejam de 1846, a
doença surgiu, de fato, com a reintrodução do Aedes aegypti (mosquito transmissor da febre
amarela e da dengue), em 1976, levando à disseminação de epidemias em diversos estados da
segunda metade da década de 80 para cá. Três dos quatro sorotipos (DEN-1, DEN-2 e DEN-3)
circulam no Brasil3. O vírus não é perceptível a olho nu. Mas o mosquito vetor, sim. Por transmitir
uma doença que preocupa cada vez mais, o Aedes se transformou para a imprensa no inimigo
público nº 1 da saúde pública, reeditando a antiga luta contra os mosquitos, encampada no início
do século XX pelo então diretor de Saúde Pública do Brasil, Osvaldo Cruz, para acabar com a
febre amarela4.
Para a epidemiologia, ciência considerada eixo da saúde pública, a ocorrência da doença
em grande número de indivíduos ao mesmo tempo configura-se numa epidemia. Fenômeno
coletivo, o processo epidêmico possui uma singularidade histórica que o individualiza no tempo e
1Mestrando
no Programa de Pós Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM/UFPE) e bolsista
do Programa Reuni de Assistência ao Ensino-UFPE. [email protected] .
2 Atualmente, a dengue atinge quase todos os continentes, com exceção da Europa, infectando entre 50 e 100
milhões de pessoas todos os anos em mais de 100 países e levando à hospitalização de 550 mil doentes e à morte
de 20 mil indivíduos. Os países em desenvolvimento, como o Brasil, são os mais ameaçados, devido às dificuldades
na implantação de medidas de controle.
3 Vivemos o risco de o DEN-4 ultrapassar a fronteira pela Venezuela, onde existe o quarto sorotipo, que pode
provocar uma nova epidemia explosiva, como a que ocorreu em 2002, com a introdução do DEN-3, quando foram
registrados 672.371 notificações e 2.090 óbitos por febre hemorrágica da dengue (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002,
p. 10).
4 Acreditando que a transmissão da febre amarela era causada pelo mosquito, Osvaldo Cruz organizou em 1903 um
sistema de saúde vinculado ao Poder Judiciário para que as medidas de controle fossem obedecidas e criou a
polícia sanitária. Promoveu ainda o aterramento de áreas alagadas, coleta de lixo e demolição de cortiços, levando
a um controle da epidemia no ano seguinte (UJVARI, 2003, p. 231-5).
no espaço (FOUCAULT, 1980, p. 26) pelo caráter, acidental e imprevisto. Cada epidemia é única
e não se repete. A visão negativa da sociedade diante do acontecimento, porém, prevalece,
justificando a tomada de quaisquer medidas de controle.
Em Pernambuco, o primeiro surto de dengue ocorreu em 1987 (2.118 casos). Depois
disso, o Estado viveu uma nova epidemia sete anos depois, em 1995, quando foram notificados
9.982 casos, apresentando um pico em 1998 (52.633 registros). A epidemia de 2002, causada
pela introdução do DEN-3, ocorreu de maneira explosiva, chamando a atenção do poder público
e da imprensa, que divulgou amplamente o fato.
Tomando como base os critérios enumerados por Sodré (2009, p. 75-6) que definem a
noticiabilidade de um fato – novidade (atualidade), imprevisibilidade (singularidade), peso social
(atenção coletiva), proximidade geográfica, hierarquia social dos personagens (identidade dos
famosos), quantidade de pessoas e lugares envolvidos (magnitude do fato), impacto sobre o
público e perspectivas de evolução do acontecimento – a epidemia de 2002 se enquadraria em
quase todas as características da marcação, sobretudo no que tange à imprevisibilidade, ao
peso social e à atualidade.
O aspecto diferenciador da epidemia explosiva, “envolvendo em pouco tempo a quasetotalidade das pessoas atingidas” (ROUQUAYROL, 2003, p. 142), como aconteceu no início de
2002, levou a imprensa a divulgar bastante o assunto no primeiro semestre, como podemos
observar no gráfico 1.
Gráfico 1
Cobertura sobre a Dengue - Jornal do Commercio (2002)
Núimero de textos publicados
60
50
40
30
20
10
Com a rápida progressão da epidemia, Pernambuco concentrou a maior parte das
notificações (111.825) nos primeiros seis meses do ano. Isso representou 96,19% do total de
casos. Quanto às notícias referentes ao assunto, embora a diferença percentual entre os dois
semestres tenha sido um pouco menor, constatamos que o Jornal do Commercio seguiu, de
forma parecida, a mesma tendência epidemiológica da doença, divulgando 79,85% das 139
notícias de todo o ano no primeiro semestre, conforme os dados apresentados nas tabelas 1 e 2.
O pico da dengue entre janeiro e março, sobretudo, levou os governos a adotarem medidas de
controle. Isso foi fundamental para despertar o interesse do jornal na publicação permanente de
notícias no período mais crítico.
Tabela 1
Notificações e percentual de registros de dengue por período em Pernambuco (2002)
Total
1º Semestre
2º Semestre
116.245 (100%)
111.825 (96,19%)
4.420 (3,81%)
FONTE: CORDEIRO; FREESE; NOGUEIRA, 2008, p. 67
Tabela 2
Matérias e percentual de publicações sobre dengue por período no JC (2002)
Total
1º Semestre
2º Semestre
139 (100%)
111 (79,85%)
28 (20,15%)
Para nós, a noção de acontecimento é importante para compreender a relação entre a
ocorrência de uma epidemia e a construção da notícia sobre a dengue. Rodrigo Alsina diz que “a
produção da notícia é um processo complexo que se inicia com um acontecimento” (2009, p.
114). O acontecimento representaria, dessa forma, uma ruptura das normas, um fenômeno
social determinado histórica e culturalmente. “É claro que, cada sistema cultural vai concretizar
quais são os fenômenos que merecem ser considerados como acontecimentos e quais passam
despercebidos” (p. 115).
Na visão do autor, a determinação dos acontecimentos está ligada ao processo de
intertextualidade, pela relação de um fato com outros fatos. A noção de intertextualidade foi
introduzida por Kristeva (1969), que tomou como base o conceito de dialogismo, desenvolvido
por Mikhail Bakhtin para referir a relações entre textos. De acordo com Charaudeau e
Maingueneau (2008), no Dicionário de Análise do Discurso, o termo trata ao mesmo tempo de
“uma propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas
que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros textos” (p. 288). Neste
artigo, avaliamos que é mais apropriado aplicar a noção de interdiscursividade do que a de
intertextualidade, uma vez que no corpus analisado, mais que uma relação entre textos, há um
entrecruzamento de discursos.
Se tanto o interdiscurso como o intertexto mobilizam o que chamamos relações de
sentido, (...) no entanto o interdiscurso é da ordem do saber discursivo, memória
afetada pelo esquecimento, ao longo do dizer, enquanto o intertexto restringe-se à
relação de um texto com outros textos. Nessa relação, a intertextual, o esquecimento
não é estruturante, como o é para o interdiscurso. (ORLANDI, 2007, p. 34)
Para compreender o tratamento dado pela imprensa à dengue, é importante levar em
conta a construção dos discursos a fim de verificar as relações de sentido (re)criadas. Os
discursos não nascem em nós. Como bem disse Orlandi (2007), eles são determinados pela
forma como o homem se inscreve na língua e na história. A significação dos discursos vem
dessa retomada de palavras já ditas, fazendo com que sentidos e sujeitos signifiquem de
variadas maneiras. “Sempre as mesmas [palavras] mas, ao mesmo tempo, sempre outras” (p.
36).
Narrativa Espetacularizada
O fato de a dengue apresentar epidemias cíclicas, atingir todas as classes sociais e
representar, principalmente, risco potencial de morte para quem se infecta mais de uma vez
levou a doença a ter uma espécie de “tratamento vip” da imprensa. Especialmente em 2002,
quando apresentou uma situação fora do normal, levando o poder público a adotar medidas
emergenciais de controle. Desde então, a dengue faz parte da agenda midiática, sobretudo nos
períodos em que ocorre aumento de casos, geralmente entre os meses de abril a julho em
Pernambuco. Em 2002, a entrada do DEN-3 alterou um pouco o comportamento da doença,
tendo a epidemia iniciado antes desse período.
No Recife, desde dezembro, o Hospital Universitário Oswaldo Cruz vem recebendo pelo menos um
paciente por dia com sintomas de dengue. Para eliminar focos do mosquito, devem-se evitar jarros com
água e pneus velhos. (JC, 09/01/2002)
Tendo como pressuposto que a notícia constitui uma narrativa, vemos que a imprensa vai
construindo o enredo da dengue ao longo do tempo, tendo em vista a evolução da doença. A
partir dos modos de dizer, a dengue vai tomando corpo no espaço geográfico do jornal e através
dos discursos. A situação das chuvas, mais o isolamento do terceiro sorotipo do vírus da dengue
no Rio e em Roraima, levaram o jornal a criar um cenário de preocupação diante do aumento
inesperado de casos. As orientações de como acabar com os criadouros do mosquito (Para
eliminar focos do mosquito, devem-se evitar jarros com água e pneus velhos) torna-se uma
orientação importante a fim de evitar o “mal”.
Trinta e um casos suspeitos de dengue e um de leptospirose foram notificados pela Secretaria de
Saúde do Recife nos últimos 12 dias. As duas doenças preocupam porque podem se proliferar mais
rapidamente em razão das chuvas que estão caindo no Estado. No caso da dengue, a saúde pública
pede atenção especial da população, por causa do risco de introdução na cidade de um terceiro
vírus causador da doença. Além de ter sido isolado há um ano em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, o Den3 contaminou duas pessoas em Boa Vista, Roraima, na Região Norte. (JC, 14/01/2002)
Cinqüenta e seis novos casos de dengue clássica foram confirmados no Recife em 24 horas. O total
acumulado, que na terça-feira era de 196, subiu ontem para 252, segundo boletim divulgado pela
Secretaria Municipal de Saúde. A diretoria de Epidemiologia e Vigilância à Saúde, Tereza Lyra, avalia que
os registros são maiores que os verificados no mês de janeiro dos três anos anteriores. (JC,
31/01/2002)
Tomando como base as grandes epidemias infecciosas do passado e do presente,
Ogrizek, Guillery e Mirabaud (1996) determinam três fatores que condicionam os medos
sanitários na atualidade:
a) O sentimento de proximidade do perigo: as doenças virais em particular estão na
origem dos medos sanitários que podem levar à população a verdadeiras
psicoses coletivas. Pelo desconhecimento dos modos de transmissão, as pessoas
adotam condutas irracionais;
b) A noção de prognóstico fatal e ausência de tratamento eficaz: algumas doenças
são vistas como mortais, sem chance de cura. Foi assim com a Aids no início da
epidemia;
c) A mundialização midiática do “mal”: as mídias tendem a fazer uma imagem de mal
planetário para determinadas doenças. A pandemia de gripe A(H1N1), que vem
ocorrendo em 2009, é um bom exemplo.
Guardadas as características particulares das diversas doenças, a dengue estaria inscrita
nos três aspectos. No Jornal do Commercio, destacamos o primeiro fator, a proximidade, para
construção e relevância da notícia no espaço do periódico, diante do contexto de epidemia.
Segundo Labov & Waletsky (1967) e Labov (1972), a narrativa possui uma estrutura
formada por resumo (espécie de síntese da história), orientação (contexto que situa o leitor no
tempo e no espaço, identificando também os personagens e sua situação na história),
complicação (a trama em si), resolução (o desenlace dos acontecimentos), avaliação (análise
crítica sobre o acontecido) e coda (mecanismo que traz o leitor ao tempo presente, quando a
narrativa teve início).
Entre janeiro e fevereiro de 2002, a epidemia explosiva5 levou Pernambuco a vivenciar a
complicação ao extremo. A cada dia, novas informações davam o tom da trama, na orientação
do contexto relativo à doença no estado até a resolução, quando os casos reduziram
drasticamente e o assunto deixou de ser pauta diária da imprensa.
Além disso, outro aspecto importante observado na construção da narrativa jornalística foi
um sincretismo do vilão na figura ora do vírus da dengue, ora da doença em si, ora do mosquito
Aedes aegypti. Os enunciados dos títulos abaixo caracterizam nosso argumento:
Chegada do vírus 3 ao Estado dificulta controle da dengue (JC, 27/02/2002)
Epidemia: Jaboatão vai decretar emergência (JC, 27/02/2002)
843 pessoas infectadas em apenas um dia no Recife (JC, 01/03/2002)
Dengue avança na Zona da Mata Norte (JC, 23/03/2002)
Mais uma morte suspeita por dengue hemorrágica (JC, 25/03/2002)
Dengue já atinge 163 municípios do Estado (JC, 12/04/2002)
Número de mortos sobe para 5 (JC, 20/04/2002)
Óbito provocado por mosquito (JC, 07/07/2002)
Vírus 3 causou epidemia de dengue (JC, 23/11/2002)
É curioso notar que o vírus, a epidemia, o mosquito e até a própria dengue são formas de
dizer um mesmo personagem “vilão”. Ao avaliar o sistema de titulação das matérias, observamos
que a construção dos enunciados se baseia na instalação da dengue no território (chegada do
vírus, dengue já atinge, dengue avança) e da doença no corpo (843 pessoas infectadas, morte
suspeita, óbito provocado por mosquito).
A ideia de proximidade e instalação do perigo se faz presente no corpo das mídias, com
destaque para os títulos – considerados “anúncios do texto” (LAGE, 2008, p. 15) – como
estratégia de criar um efeito de pânico. Essa representação midiática nos remete às
representações imagéticas de séculos passados que retratavam as doenças atuando sobre o
território geográfico, a exemplo da figura 1.
Figura 1
FONTE: UJVARI, 2003, p. 153
5
O que diferencia uma epidemia normal de uma epidemia explosiva é a velocidade da progressão da doença. Na
epidemia explosiva, a manifestação da doença envolve em pouco tempo a quase-totalidade das pessoas atingidas.
Para fins de compreensão de utilização do termo na mídia, vamos considerar surtos e epidemias em quaisquer
intensidades a mesma coisa.
Legenda 1: Litogravura publicada na Puck Magazine, de Nova Iorque,
mostrando a cólera pegando carona numa embarcação e os esforços
para evitar a sua chegada (século XIX).
No passado, as embarcações eram responsáveis por levar determinadas epidemias para
outros países. A cólera foi uma delas. Transmitida através da ingestão de água e alimentos
contaminados pelo vibrião colérico (Vibrio colerae), a doença provoca diarréia intensa, podendo
matar. Com a industrialização européia, que reduziu as distâncias no mundo, o transporte da
bactéria ocorreu entre os séculos XIX e XX. A litogravura da página anterior retrata a cólera –
representada como uma caveira simbolizando a própria morte – pegando carona numa
embarcação e a população e os órgãos de saúde formando uma barreira para conter a entrada
da doença.
Independentemente do tempo, a forte carga simbólica que a noção de epidemia trouxe
consigo ao longo dos séculos é fundamental para visualizar os efeitos de sentido sobre as
doenças nas matérias jornalísticas que tratam de saúde nos dias de hoje. Em geral, as doenças
que representam risco à população são motivo de preocupação, principalmente em contextos de
calamidade. E as mídias, como geradoras de construção de realidades relevantes, fazem as
pessoas viverem os acontecimentos por meio do discurso da informação. A nosso ver, o
sentimento de proximidade da doença/epidemia e o risco de morte se fazem presente tanto na
litogravura do século XIX (figura 1) quanto nos títulos das matérias da atualidade sobre doenças
epidêmicas, como a dengue. Apesar de terem sido produzidos em épocas distintas, imagem e
textos estabelecem um diálogo intertextual e interdiscursivo de perigo iminente e de possível
situação de descontrole no espaço geográfico.
Nas matérias que tratam da dengue, as fontes do campo da saúde pública têm preferência
da imprensa por desencadearem as chamadas ações de combate. Diante da epidemia instalada,
vemos que o esquema narrativo do jornal obedeceu à ordem proposta por Labov & Waletsky
(1967) e Labov (1972), abordando a resolução do poder público e da sociedade civil, com
objetivo de controlar a epidemia, como é possível visualizar em alguns trechos de matérias:
Os grandes canteiros de obras do Recife serão alvos do trabalho de combate à dengue. A Secretaria
Municipal de Saúde pretende iniciar antes do Carnaval uma ação ampla nesses locais para identificar
e eliminar focos do mosquito Aedes aegypti, informou ontem a diretora de Epidemiologia e Vigilância à
Saúde, Tereza Lyra. As obras de ampliação do Aeroporto Internacional dos Guararapes e do metrô do
Recife estão incluídas no roteiro. (JC, 31/01/2002)
Crianças e adolescentes da rede particular de ensino estão reforçando o exército de combate à
dengue no Recife. A Escola Exponente, em Casa Amarela, foi a primeira a se engajar no projeto Escola
Amiga do Recife Contra a Dengue, lançado ontem pela Secretaria Municipal de Saúde. Os estudantes
desenvolveram atividades dentro do colégio e depois identificaram focos do mosquito na vizinhança. (JC,
05/03/2002)
Ações de conscientização, controle e eliminação de focos da dengue foram intensificadas ontem em
praticamente todos os municípios pernambucanos, com maior ênfase na Região Metropolitana do
Recife. Os governos e a população entenderam a mensagem e se engajaram na luta contra a dengue no
Dia D de combate à doença no Estado. (JC, 16/03/2002)
Na estrutura narrativa jornalística, o poder público encarna, de certa maneira, o
personagem do herói, seguindo o que propõe Vanoye (1998), para quem as narrativas, em geral,
têm o herói, o vilão e a vítima. Ao herói, cabe planejar, executar e arregimentar voluntários para
a luta contra o mosquito. No aspecto discursivo, observamos a relação dos enunciados
construídos pela mídia com discursos de outros campos, a exemplo do campo militar, e os
efeitos de sentidos produzidos através dessa relação interdiscursiva. O poder governamental é a
principal voz a recorrer ao que chamamos de “militarização do combate à dengue”, com intuito
de chamar a atenção da sociedade para o problema. Palavras como ação, controle e combate
estão muito presentes nos discursos atuais da saúde pública, sendo necessária a
implementação de verdadeiras “táticas” de guerra para conter a expansão do mosquito
transmissor da doença.
Duzentos soldados das Forças Armadas (100 do Exército e 100 da Aeronáutica) vão reforçar o
combate à dengue em Jaboatão dos Guararapes, cidade onde foi confirmada a primeira morte por
dengue este ano em Pernambuco. (JC, 23/02/2002)
A Polícia Militar de Pernambuco entrou oficialmente, na manhã de ontem, no combate à dengue no
Recife. A instituição terá a missão de apoiar os agentes de saúde ambiental durante visitas a imóveis que se
encontram abandonados ou que os proprietários não permitem a fiscalização. (JC, 22/03/2002)
Outros personagens – tais como as Forças Armadas, estudantes e a Polícia Militar – são
incorporados à narrativa, com objetivo de vencer o “inimigo” e dando ainda mais ênfase ao
discurso de guerra. No Brasil, é bom lembrar, o uso de metáforas bélicas remete às primeiras
campanhas de vacinação, a exemplo da estratégia empreendida por Osvaldo Cruz no início do
século XX para conter a epidemia de varíola. Os conceitos de contenção e vigilância, de
inspiração militar, surgiram depois da Primeira Guerra Mundial, sendo utilizados pela saúde
pública, que adotou a visão do “inimigo” para combater os problemas sanitários da época.
A população, objeto da perturbação provocada pela epidemia, converte-se na principal
vítima da história. Além de os enunciados darem ênfase às pessoas que sofrem e/ou morrem
pela dengue, as matérias se convertem num espaço de luta, no sentido de mostrar a sociedade
cobrando e denunciando os problemas ligados à saúde, mesmo com a intervenção das falas dos
personagens por parte do jornal no processo de concepção da notícia.
Por enquanto, a praça do Derby continua com água parada sem tratamento. “Acredito que peguei dengue
aqui”, afirmou João Augusto de Oliveira, 65 anos, que tem uma barraca no entorno da praça. (JC,
02/03/2002)
Garrafas plásticas, pneus velhos, tonéis, caixas de madeira e muitas latas vazias. Todos esses potenciais
focos de dengue são encontrados num terreno baldio de 300 metros quadrados, localizado na Rua Oliveira
de Goes, no Poço da Panela, um dos bairros mais nobres do Recife. Os moradores, revoltados, afirmam
que várias pessoas já contraíram a doença e que nenhuma providência foi tomada pela Prefeitura do
Recife, até o momento. (JC, 27/03/2002)
Com o desenvolvimento da ciência, as pessoas puderam compreender melhor o processo
de adoecimento, deixando de lado determinadas concepções supersticiosas que havia
antigamente e transferindo a culpa para o aparecimento de moléstias para o nível da
coletividade, provocada no caso da dengue pela falta de conscientização e desleixo dos vizinhos
e da comunidade ou mesmo pelo descaso do governo.
Na narração dos mais diversos aspectos que compõem a dengue, seja no âmbito público
ou privado, a imprensa elege a espetacularização como um dos critérios mais recorrentes de
noticiabilidade. Para Bourdieu (1997), o espetacular é o princípio de seleção dos meios de
comunicação. A dramatização do acontecimento é enfatizada, acentuando, ao mesmo tempo, a
gravidade e o seu caráter trágico.
Os jornalistas têm “óculos” especiais a partir dos quais vêem certas coisas e não
outras; e vêem de certa maneira as coisas que vêem. Eles operam uma seleção e
uma construção do que é selecionado. O princípio da seleção é a busca do
sensacional, do espetacular. A televisão convida à dramatização, no duplo sentido:
põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a
gravidade, e o caráter dramático, trágico (p. 25).
Para nós, a mesma lógica se aplica aos demais veículos, como o jornal impresso.
Considerando um bem midiático por excelência, a notícia é espetacularizada por meio não só de
imagens, mas também de textos. Debord (1997) afirma que o tempo espetacular é o tempo da
realidade que se transforma e se vive ilusoriamente. No espetáculo, o mais importante não é o
fato em si, mas a sua publicidade. Trazendo isso para o contexto midiático da dengue, quanto
mais pessoas infectadas, mais mortes e mais ações de combate ao mosquito houver, melhor
para a imprensa, que terá material para tornar a notícia mais espetacular possível, tendo em
vista que as mídias apresentam uma finalidade ambígua, de tornar público as informações de
interesse geral participando da construção da opinião pública e de captar o público dentro de
uma lógica de concorrência com um produto economicamente rentável, que é a notícia
(CHARAUDEAU, 2006, p. 58-9).
Considerações Finais
Nosso propósito foi discutir sobre o tratamento dado pela mídia à dengue no processo de
construção da notícia e os efeitos de discurso produzidos, tendo a espetacularização como
conceito-chave para compreender certo sensacionalismo que há na produção jornalística em
contextos de epidemia. Atualmente, a dengue é um dos principais problemas de saúde pública
do mundo, especialmente dos países em desenvolvimento, como o Brasil.
Para nós, os discursos produzidos pela mídia dialogam, de certo modo, com a memória
discursiva das enfermidades do passado, por meio de imagens e textos, influenciando
diretamente nos efeitos de sentido criados pela imprensa. Observamos como a epidemia está
atrelada à questão da dengue nos dias de hoje e como isso se revela nos discursos jornalísticos,
relacionando-se interdiscursivamente com o discurso de guerra, face à dificuldade em se
controlar a proliferação dos mosquitos e à entrada dos vírus.
Embora estejamos cercados de moléstias, sejam elas novas ou milenares, podemos
considerar a dengue a “doença do momento” para a mídia, especialmente pelo fato de atingir
camadas sociais diversas, e não apenas os menos favorecidos, e apresentar ciclos de epidemias
que representam risco constante para todos, independentemente de classe. Por esse motivo, a
ideia do medo diante do chamado “perigo iminente” está presente na construção de uma
narrativa espetacularizada da imprensa, que reforça as metáforas como forma de captar a
audiência.
A partir dos seus modos de dizer, o jornal vai construindo a dengue ao longo do tempo e,
com isso, a própria noção de realidade no espaço público em relação às doenças. A dengue se
corporifica no espaço do jornal e por meio dos discursos construídos, que revelam nossa própria
experiência social e simbólica com a moléstia. Evidentemente, o espaço de um artigo como este
é muito pouco para descrever e aprofundar essas reflexões. Mas, ao menos, é um ponto de
partida para se pensar sobre a representação que as doenças têm num mundo intensamente
midiatizado como o nosso.
Referências
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CHARAUDEAU, P. ; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. 2 ed., São Paulo:
Contexto, 2008.
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OGRIZEK, M. ; GUILLERY, J. ; MIRABAUD, C. La commucation médicale. Paris: Presses
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