O espetáculo da dengue na mídia Luiz Marcelo Robalinho Ferraz1 Introdução A proposta deste artigo é analisar a construção dos discursos da mídia sobre a dengue, doença que vem afetando cada vez mais os brasileiros desde a segunda metade dos anos 80. Defendemos que a ocorrência da epidemia é um fator determinante para a espetacularização da notícia, influenciando diretamente na construção dos discursos sobre a dengue. Para isso, utilizamos o aparato teórico da Análise do Discurso (AD), aliando conceitos de noticiabilidade, como condicionante para escolha dos enfoques dados pela imprensa, e de espetáculo, para refletir a notícia como mercadoria simbólica e econômica e a maximização dos efeitos de sentido nas matérias jornalísticas que tratam de doenças nos dias de hoje. Para avaliar a dimensão dada pela mídia à dengue, selecionamos 74 edições do periódico pernambucano Jornal do Commercio (JC). O recorte – que representa todo o ano de 2002 (com exceção de maio, único mês em que não foram publicadas matérias sobre o assunto) – totaliza 139 textos produzidos pelo jornal. Neste artigo, daremos ênfase às matérias publicadas no primeiro semestre daquele ano (79,85% do total), sobretudo durante a fase de pico da epidemia, entre os meses de janeiro e abril, a fim avaliar a construção narrativa da dengue na mídia. Valor-Notícia da Dengue Dentre as várias doenças infecciosas, a dengue vem conquistando espaço no noticiário jornalístico por ser uma moléstia emergente que já se tornou um dos principais problemas de saúde pública do Brasil e do mundo2. Embora as primeiras referências no país sejam de 1846, a doença surgiu, de fato, com a reintrodução do Aedes aegypti (mosquito transmissor da febre amarela e da dengue), em 1976, levando à disseminação de epidemias em diversos estados da segunda metade da década de 80 para cá. Três dos quatro sorotipos (DEN-1, DEN-2 e DEN-3) circulam no Brasil3. O vírus não é perceptível a olho nu. Mas o mosquito vetor, sim. Por transmitir uma doença que preocupa cada vez mais, o Aedes se transformou para a imprensa no inimigo público nº 1 da saúde pública, reeditando a antiga luta contra os mosquitos, encampada no início do século XX pelo então diretor de Saúde Pública do Brasil, Osvaldo Cruz, para acabar com a febre amarela4. Para a epidemiologia, ciência considerada eixo da saúde pública, a ocorrência da doença em grande número de indivíduos ao mesmo tempo configura-se numa epidemia. Fenômeno coletivo, o processo epidêmico possui uma singularidade histórica que o individualiza no tempo e 1Mestrando no Programa de Pós Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM/UFPE) e bolsista do Programa Reuni de Assistência ao Ensino-UFPE. [email protected] . 2 Atualmente, a dengue atinge quase todos os continentes, com exceção da Europa, infectando entre 50 e 100 milhões de pessoas todos os anos em mais de 100 países e levando à hospitalização de 550 mil doentes e à morte de 20 mil indivíduos. Os países em desenvolvimento, como o Brasil, são os mais ameaçados, devido às dificuldades na implantação de medidas de controle. 3 Vivemos o risco de o DEN-4 ultrapassar a fronteira pela Venezuela, onde existe o quarto sorotipo, que pode provocar uma nova epidemia explosiva, como a que ocorreu em 2002, com a introdução do DEN-3, quando foram registrados 672.371 notificações e 2.090 óbitos por febre hemorrágica da dengue (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 10). 4 Acreditando que a transmissão da febre amarela era causada pelo mosquito, Osvaldo Cruz organizou em 1903 um sistema de saúde vinculado ao Poder Judiciário para que as medidas de controle fossem obedecidas e criou a polícia sanitária. Promoveu ainda o aterramento de áreas alagadas, coleta de lixo e demolição de cortiços, levando a um controle da epidemia no ano seguinte (UJVARI, 2003, p. 231-5). no espaço (FOUCAULT, 1980, p. 26) pelo caráter, acidental e imprevisto. Cada epidemia é única e não se repete. A visão negativa da sociedade diante do acontecimento, porém, prevalece, justificando a tomada de quaisquer medidas de controle. Em Pernambuco, o primeiro surto de dengue ocorreu em 1987 (2.118 casos). Depois disso, o Estado viveu uma nova epidemia sete anos depois, em 1995, quando foram notificados 9.982 casos, apresentando um pico em 1998 (52.633 registros). A epidemia de 2002, causada pela introdução do DEN-3, ocorreu de maneira explosiva, chamando a atenção do poder público e da imprensa, que divulgou amplamente o fato. Tomando como base os critérios enumerados por Sodré (2009, p. 75-6) que definem a noticiabilidade de um fato – novidade (atualidade), imprevisibilidade (singularidade), peso social (atenção coletiva), proximidade geográfica, hierarquia social dos personagens (identidade dos famosos), quantidade de pessoas e lugares envolvidos (magnitude do fato), impacto sobre o público e perspectivas de evolução do acontecimento – a epidemia de 2002 se enquadraria em quase todas as características da marcação, sobretudo no que tange à imprevisibilidade, ao peso social e à atualidade. O aspecto diferenciador da epidemia explosiva, “envolvendo em pouco tempo a quasetotalidade das pessoas atingidas” (ROUQUAYROL, 2003, p. 142), como aconteceu no início de 2002, levou a imprensa a divulgar bastante o assunto no primeiro semestre, como podemos observar no gráfico 1. Gráfico 1 Cobertura sobre a Dengue - Jornal do Commercio (2002) Núimero de textos publicados 60 50 40 30 20 10 Com a rápida progressão da epidemia, Pernambuco concentrou a maior parte das notificações (111.825) nos primeiros seis meses do ano. Isso representou 96,19% do total de casos. Quanto às notícias referentes ao assunto, embora a diferença percentual entre os dois semestres tenha sido um pouco menor, constatamos que o Jornal do Commercio seguiu, de forma parecida, a mesma tendência epidemiológica da doença, divulgando 79,85% das 139 notícias de todo o ano no primeiro semestre, conforme os dados apresentados nas tabelas 1 e 2. O pico da dengue entre janeiro e março, sobretudo, levou os governos a adotarem medidas de controle. Isso foi fundamental para despertar o interesse do jornal na publicação permanente de notícias no período mais crítico. Tabela 1 Notificações e percentual de registros de dengue por período em Pernambuco (2002) Total 1º Semestre 2º Semestre 116.245 (100%) 111.825 (96,19%) 4.420 (3,81%) FONTE: CORDEIRO; FREESE; NOGUEIRA, 2008, p. 67 Tabela 2 Matérias e percentual de publicações sobre dengue por período no JC (2002) Total 1º Semestre 2º Semestre 139 (100%) 111 (79,85%) 28 (20,15%) Para nós, a noção de acontecimento é importante para compreender a relação entre a ocorrência de uma epidemia e a construção da notícia sobre a dengue. Rodrigo Alsina diz que “a produção da notícia é um processo complexo que se inicia com um acontecimento” (2009, p. 114). O acontecimento representaria, dessa forma, uma ruptura das normas, um fenômeno social determinado histórica e culturalmente. “É claro que, cada sistema cultural vai concretizar quais são os fenômenos que merecem ser considerados como acontecimentos e quais passam despercebidos” (p. 115). Na visão do autor, a determinação dos acontecimentos está ligada ao processo de intertextualidade, pela relação de um fato com outros fatos. A noção de intertextualidade foi introduzida por Kristeva (1969), que tomou como base o conceito de dialogismo, desenvolvido por Mikhail Bakhtin para referir a relações entre textos. De acordo com Charaudeau e Maingueneau (2008), no Dicionário de Análise do Discurso, o termo trata ao mesmo tempo de “uma propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo de textos determinado mantém com outros textos” (p. 288). Neste artigo, avaliamos que é mais apropriado aplicar a noção de interdiscursividade do que a de intertextualidade, uma vez que no corpus analisado, mais que uma relação entre textos, há um entrecruzamento de discursos. Se tanto o interdiscurso como o intertexto mobilizam o que chamamos relações de sentido, (...) no entanto o interdiscurso é da ordem do saber discursivo, memória afetada pelo esquecimento, ao longo do dizer, enquanto o intertexto restringe-se à relação de um texto com outros textos. Nessa relação, a intertextual, o esquecimento não é estruturante, como o é para o interdiscurso. (ORLANDI, 2007, p. 34) Para compreender o tratamento dado pela imprensa à dengue, é importante levar em conta a construção dos discursos a fim de verificar as relações de sentido (re)criadas. Os discursos não nascem em nós. Como bem disse Orlandi (2007), eles são determinados pela forma como o homem se inscreve na língua e na história. A significação dos discursos vem dessa retomada de palavras já ditas, fazendo com que sentidos e sujeitos signifiquem de variadas maneiras. “Sempre as mesmas [palavras] mas, ao mesmo tempo, sempre outras” (p. 36). Narrativa Espetacularizada O fato de a dengue apresentar epidemias cíclicas, atingir todas as classes sociais e representar, principalmente, risco potencial de morte para quem se infecta mais de uma vez levou a doença a ter uma espécie de “tratamento vip” da imprensa. Especialmente em 2002, quando apresentou uma situação fora do normal, levando o poder público a adotar medidas emergenciais de controle. Desde então, a dengue faz parte da agenda midiática, sobretudo nos períodos em que ocorre aumento de casos, geralmente entre os meses de abril a julho em Pernambuco. Em 2002, a entrada do DEN-3 alterou um pouco o comportamento da doença, tendo a epidemia iniciado antes desse período. No Recife, desde dezembro, o Hospital Universitário Oswaldo Cruz vem recebendo pelo menos um paciente por dia com sintomas de dengue. Para eliminar focos do mosquito, devem-se evitar jarros com água e pneus velhos. (JC, 09/01/2002) Tendo como pressuposto que a notícia constitui uma narrativa, vemos que a imprensa vai construindo o enredo da dengue ao longo do tempo, tendo em vista a evolução da doença. A partir dos modos de dizer, a dengue vai tomando corpo no espaço geográfico do jornal e através dos discursos. A situação das chuvas, mais o isolamento do terceiro sorotipo do vírus da dengue no Rio e em Roraima, levaram o jornal a criar um cenário de preocupação diante do aumento inesperado de casos. As orientações de como acabar com os criadouros do mosquito (Para eliminar focos do mosquito, devem-se evitar jarros com água e pneus velhos) torna-se uma orientação importante a fim de evitar o “mal”. Trinta e um casos suspeitos de dengue e um de leptospirose foram notificados pela Secretaria de Saúde do Recife nos últimos 12 dias. As duas doenças preocupam porque podem se proliferar mais rapidamente em razão das chuvas que estão caindo no Estado. No caso da dengue, a saúde pública pede atenção especial da população, por causa do risco de introdução na cidade de um terceiro vírus causador da doença. Além de ter sido isolado há um ano em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, o Den3 contaminou duas pessoas em Boa Vista, Roraima, na Região Norte. (JC, 14/01/2002) Cinqüenta e seis novos casos de dengue clássica foram confirmados no Recife em 24 horas. O total acumulado, que na terça-feira era de 196, subiu ontem para 252, segundo boletim divulgado pela Secretaria Municipal de Saúde. A diretoria de Epidemiologia e Vigilância à Saúde, Tereza Lyra, avalia que os registros são maiores que os verificados no mês de janeiro dos três anos anteriores. (JC, 31/01/2002) Tomando como base as grandes epidemias infecciosas do passado e do presente, Ogrizek, Guillery e Mirabaud (1996) determinam três fatores que condicionam os medos sanitários na atualidade: a) O sentimento de proximidade do perigo: as doenças virais em particular estão na origem dos medos sanitários que podem levar à população a verdadeiras psicoses coletivas. Pelo desconhecimento dos modos de transmissão, as pessoas adotam condutas irracionais; b) A noção de prognóstico fatal e ausência de tratamento eficaz: algumas doenças são vistas como mortais, sem chance de cura. Foi assim com a Aids no início da epidemia; c) A mundialização midiática do “mal”: as mídias tendem a fazer uma imagem de mal planetário para determinadas doenças. A pandemia de gripe A(H1N1), que vem ocorrendo em 2009, é um bom exemplo. Guardadas as características particulares das diversas doenças, a dengue estaria inscrita nos três aspectos. No Jornal do Commercio, destacamos o primeiro fator, a proximidade, para construção e relevância da notícia no espaço do periódico, diante do contexto de epidemia. Segundo Labov & Waletsky (1967) e Labov (1972), a narrativa possui uma estrutura formada por resumo (espécie de síntese da história), orientação (contexto que situa o leitor no tempo e no espaço, identificando também os personagens e sua situação na história), complicação (a trama em si), resolução (o desenlace dos acontecimentos), avaliação (análise crítica sobre o acontecido) e coda (mecanismo que traz o leitor ao tempo presente, quando a narrativa teve início). Entre janeiro e fevereiro de 2002, a epidemia explosiva5 levou Pernambuco a vivenciar a complicação ao extremo. A cada dia, novas informações davam o tom da trama, na orientação do contexto relativo à doença no estado até a resolução, quando os casos reduziram drasticamente e o assunto deixou de ser pauta diária da imprensa. Além disso, outro aspecto importante observado na construção da narrativa jornalística foi um sincretismo do vilão na figura ora do vírus da dengue, ora da doença em si, ora do mosquito Aedes aegypti. Os enunciados dos títulos abaixo caracterizam nosso argumento: Chegada do vírus 3 ao Estado dificulta controle da dengue (JC, 27/02/2002) Epidemia: Jaboatão vai decretar emergência (JC, 27/02/2002) 843 pessoas infectadas em apenas um dia no Recife (JC, 01/03/2002) Dengue avança na Zona da Mata Norte (JC, 23/03/2002) Mais uma morte suspeita por dengue hemorrágica (JC, 25/03/2002) Dengue já atinge 163 municípios do Estado (JC, 12/04/2002) Número de mortos sobe para 5 (JC, 20/04/2002) Óbito provocado por mosquito (JC, 07/07/2002) Vírus 3 causou epidemia de dengue (JC, 23/11/2002) É curioso notar que o vírus, a epidemia, o mosquito e até a própria dengue são formas de dizer um mesmo personagem “vilão”. Ao avaliar o sistema de titulação das matérias, observamos que a construção dos enunciados se baseia na instalação da dengue no território (chegada do vírus, dengue já atinge, dengue avança) e da doença no corpo (843 pessoas infectadas, morte suspeita, óbito provocado por mosquito). A ideia de proximidade e instalação do perigo se faz presente no corpo das mídias, com destaque para os títulos – considerados “anúncios do texto” (LAGE, 2008, p. 15) – como estratégia de criar um efeito de pânico. Essa representação midiática nos remete às representações imagéticas de séculos passados que retratavam as doenças atuando sobre o território geográfico, a exemplo da figura 1. Figura 1 FONTE: UJVARI, 2003, p. 153 5 O que diferencia uma epidemia normal de uma epidemia explosiva é a velocidade da progressão da doença. Na epidemia explosiva, a manifestação da doença envolve em pouco tempo a quase-totalidade das pessoas atingidas. Para fins de compreensão de utilização do termo na mídia, vamos considerar surtos e epidemias em quaisquer intensidades a mesma coisa. Legenda 1: Litogravura publicada na Puck Magazine, de Nova Iorque, mostrando a cólera pegando carona numa embarcação e os esforços para evitar a sua chegada (século XIX). No passado, as embarcações eram responsáveis por levar determinadas epidemias para outros países. A cólera foi uma delas. Transmitida através da ingestão de água e alimentos contaminados pelo vibrião colérico (Vibrio colerae), a doença provoca diarréia intensa, podendo matar. Com a industrialização européia, que reduziu as distâncias no mundo, o transporte da bactéria ocorreu entre os séculos XIX e XX. A litogravura da página anterior retrata a cólera – representada como uma caveira simbolizando a própria morte – pegando carona numa embarcação e a população e os órgãos de saúde formando uma barreira para conter a entrada da doença. Independentemente do tempo, a forte carga simbólica que a noção de epidemia trouxe consigo ao longo dos séculos é fundamental para visualizar os efeitos de sentido sobre as doenças nas matérias jornalísticas que tratam de saúde nos dias de hoje. Em geral, as doenças que representam risco à população são motivo de preocupação, principalmente em contextos de calamidade. E as mídias, como geradoras de construção de realidades relevantes, fazem as pessoas viverem os acontecimentos por meio do discurso da informação. A nosso ver, o sentimento de proximidade da doença/epidemia e o risco de morte se fazem presente tanto na litogravura do século XIX (figura 1) quanto nos títulos das matérias da atualidade sobre doenças epidêmicas, como a dengue. Apesar de terem sido produzidos em épocas distintas, imagem e textos estabelecem um diálogo intertextual e interdiscursivo de perigo iminente e de possível situação de descontrole no espaço geográfico. Nas matérias que tratam da dengue, as fontes do campo da saúde pública têm preferência da imprensa por desencadearem as chamadas ações de combate. Diante da epidemia instalada, vemos que o esquema narrativo do jornal obedeceu à ordem proposta por Labov & Waletsky (1967) e Labov (1972), abordando a resolução do poder público e da sociedade civil, com objetivo de controlar a epidemia, como é possível visualizar em alguns trechos de matérias: Os grandes canteiros de obras do Recife serão alvos do trabalho de combate à dengue. A Secretaria Municipal de Saúde pretende iniciar antes do Carnaval uma ação ampla nesses locais para identificar e eliminar focos do mosquito Aedes aegypti, informou ontem a diretora de Epidemiologia e Vigilância à Saúde, Tereza Lyra. As obras de ampliação do Aeroporto Internacional dos Guararapes e do metrô do Recife estão incluídas no roteiro. (JC, 31/01/2002) Crianças e adolescentes da rede particular de ensino estão reforçando o exército de combate à dengue no Recife. A Escola Exponente, em Casa Amarela, foi a primeira a se engajar no projeto Escola Amiga do Recife Contra a Dengue, lançado ontem pela Secretaria Municipal de Saúde. Os estudantes desenvolveram atividades dentro do colégio e depois identificaram focos do mosquito na vizinhança. (JC, 05/03/2002) Ações de conscientização, controle e eliminação de focos da dengue foram intensificadas ontem em praticamente todos os municípios pernambucanos, com maior ênfase na Região Metropolitana do Recife. Os governos e a população entenderam a mensagem e se engajaram na luta contra a dengue no Dia D de combate à doença no Estado. (JC, 16/03/2002) Na estrutura narrativa jornalística, o poder público encarna, de certa maneira, o personagem do herói, seguindo o que propõe Vanoye (1998), para quem as narrativas, em geral, têm o herói, o vilão e a vítima. Ao herói, cabe planejar, executar e arregimentar voluntários para a luta contra o mosquito. No aspecto discursivo, observamos a relação dos enunciados construídos pela mídia com discursos de outros campos, a exemplo do campo militar, e os efeitos de sentidos produzidos através dessa relação interdiscursiva. O poder governamental é a principal voz a recorrer ao que chamamos de “militarização do combate à dengue”, com intuito de chamar a atenção da sociedade para o problema. Palavras como ação, controle e combate estão muito presentes nos discursos atuais da saúde pública, sendo necessária a implementação de verdadeiras “táticas” de guerra para conter a expansão do mosquito transmissor da doença. Duzentos soldados das Forças Armadas (100 do Exército e 100 da Aeronáutica) vão reforçar o combate à dengue em Jaboatão dos Guararapes, cidade onde foi confirmada a primeira morte por dengue este ano em Pernambuco. (JC, 23/02/2002) A Polícia Militar de Pernambuco entrou oficialmente, na manhã de ontem, no combate à dengue no Recife. A instituição terá a missão de apoiar os agentes de saúde ambiental durante visitas a imóveis que se encontram abandonados ou que os proprietários não permitem a fiscalização. (JC, 22/03/2002) Outros personagens – tais como as Forças Armadas, estudantes e a Polícia Militar – são incorporados à narrativa, com objetivo de vencer o “inimigo” e dando ainda mais ênfase ao discurso de guerra. No Brasil, é bom lembrar, o uso de metáforas bélicas remete às primeiras campanhas de vacinação, a exemplo da estratégia empreendida por Osvaldo Cruz no início do século XX para conter a epidemia de varíola. Os conceitos de contenção e vigilância, de inspiração militar, surgiram depois da Primeira Guerra Mundial, sendo utilizados pela saúde pública, que adotou a visão do “inimigo” para combater os problemas sanitários da época. A população, objeto da perturbação provocada pela epidemia, converte-se na principal vítima da história. Além de os enunciados darem ênfase às pessoas que sofrem e/ou morrem pela dengue, as matérias se convertem num espaço de luta, no sentido de mostrar a sociedade cobrando e denunciando os problemas ligados à saúde, mesmo com a intervenção das falas dos personagens por parte do jornal no processo de concepção da notícia. Por enquanto, a praça do Derby continua com água parada sem tratamento. “Acredito que peguei dengue aqui”, afirmou João Augusto de Oliveira, 65 anos, que tem uma barraca no entorno da praça. (JC, 02/03/2002) Garrafas plásticas, pneus velhos, tonéis, caixas de madeira e muitas latas vazias. Todos esses potenciais focos de dengue são encontrados num terreno baldio de 300 metros quadrados, localizado na Rua Oliveira de Goes, no Poço da Panela, um dos bairros mais nobres do Recife. Os moradores, revoltados, afirmam que várias pessoas já contraíram a doença e que nenhuma providência foi tomada pela Prefeitura do Recife, até o momento. (JC, 27/03/2002) Com o desenvolvimento da ciência, as pessoas puderam compreender melhor o processo de adoecimento, deixando de lado determinadas concepções supersticiosas que havia antigamente e transferindo a culpa para o aparecimento de moléstias para o nível da coletividade, provocada no caso da dengue pela falta de conscientização e desleixo dos vizinhos e da comunidade ou mesmo pelo descaso do governo. Na narração dos mais diversos aspectos que compõem a dengue, seja no âmbito público ou privado, a imprensa elege a espetacularização como um dos critérios mais recorrentes de noticiabilidade. Para Bourdieu (1997), o espetacular é o princípio de seleção dos meios de comunicação. A dramatização do acontecimento é enfatizada, acentuando, ao mesmo tempo, a gravidade e o seu caráter trágico. Os jornalistas têm “óculos” especiais a partir dos quais vêem certas coisas e não outras; e vêem de certa maneira as coisas que vêem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado. O princípio da seleção é a busca do sensacional, do espetacular. A televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico (p. 25). Para nós, a mesma lógica se aplica aos demais veículos, como o jornal impresso. Considerando um bem midiático por excelência, a notícia é espetacularizada por meio não só de imagens, mas também de textos. Debord (1997) afirma que o tempo espetacular é o tempo da realidade que se transforma e se vive ilusoriamente. No espetáculo, o mais importante não é o fato em si, mas a sua publicidade. Trazendo isso para o contexto midiático da dengue, quanto mais pessoas infectadas, mais mortes e mais ações de combate ao mosquito houver, melhor para a imprensa, que terá material para tornar a notícia mais espetacular possível, tendo em vista que as mídias apresentam uma finalidade ambígua, de tornar público as informações de interesse geral participando da construção da opinião pública e de captar o público dentro de uma lógica de concorrência com um produto economicamente rentável, que é a notícia (CHARAUDEAU, 2006, p. 58-9). Considerações Finais Nosso propósito foi discutir sobre o tratamento dado pela mídia à dengue no processo de construção da notícia e os efeitos de discurso produzidos, tendo a espetacularização como conceito-chave para compreender certo sensacionalismo que há na produção jornalística em contextos de epidemia. Atualmente, a dengue é um dos principais problemas de saúde pública do mundo, especialmente dos países em desenvolvimento, como o Brasil. Para nós, os discursos produzidos pela mídia dialogam, de certo modo, com a memória discursiva das enfermidades do passado, por meio de imagens e textos, influenciando diretamente nos efeitos de sentido criados pela imprensa. Observamos como a epidemia está atrelada à questão da dengue nos dias de hoje e como isso se revela nos discursos jornalísticos, relacionando-se interdiscursivamente com o discurso de guerra, face à dificuldade em se controlar a proliferação dos mosquitos e à entrada dos vírus. Embora estejamos cercados de moléstias, sejam elas novas ou milenares, podemos considerar a dengue a “doença do momento” para a mídia, especialmente pelo fato de atingir camadas sociais diversas, e não apenas os menos favorecidos, e apresentar ciclos de epidemias que representam risco constante para todos, independentemente de classe. Por esse motivo, a ideia do medo diante do chamado “perigo iminente” está presente na construção de uma narrativa espetacularizada da imprensa, que reforça as metáforas como forma de captar a audiência. A partir dos seus modos de dizer, o jornal vai construindo a dengue ao longo do tempo e, com isso, a própria noção de realidade no espaço público em relação às doenças. A dengue se corporifica no espaço do jornal e por meio dos discursos construídos, que revelam nossa própria experiência social e simbólica com a moléstia. Evidentemente, o espaço de um artigo como este é muito pouco para descrever e aprofundar essas reflexões. Mas, ao menos, é um ponto de partida para se pensar sobre a representação que as doenças têm num mundo intensamente midiatizado como o nosso. Referências BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. CHARAUDEAU, P. ; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. 2 ed., São Paulo: Contexto, 2008. CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. 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