Esse texto apresenta uma reflexão sobre alguns elementos

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DE ALGUNS PRINCÍPIOS DA PEDAGOGIA E 0S IMPASSES NA DEFINIÇÃO DESSE
CAMPO DE SABER PROFISSIONAL1
Jacques Therrien, UFC-CNPq
Esse trabalho, tendo como elemento de indagação um impasse conceitual que mobilizou
a comunidade dos educadores, particularmente no período pós-LDB ‟96, apresenta uma reflexão
sobre alguns elementos fundantes do campo da Pedagogia, vista na amplitude dos processos
educacionais. O Conselho Nacional de Educação (CNE) debruçou-se, nos últimos anos, na
definição de diretrizes curriculares nacionais para os diversos campos de saberes onde atuam as
instituições educacionais, abordando inclusive a dimensão de formação de professores. A
mobilização dos educadores que atuam em torno do campo da Pedagogia permitiu que, por
volta de 1999, fosse esta a primeira área a oferecer subsídios e indicadores para fundamentar a
compreensão e definição de elementos que delineiam os contornos essenciais de atuação desses
profissionais de Educação.
Os embates e impasses da breve história de formulação e promulgação das Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia, decorrida no período de 1999 a 2005,
produziram indagações não somente sobre os bastidores desse processo, como, em especial,
sobre dimensões focais de categorias que delineiam os princípios da pedagogia: a epistemologia
da prática, a interdisciplinaridade e a dialogicidade, elementos condicionantes da competência
do educador na sua práxis, seja no contexto da escola, seja em outros ambientes educacionais.
Como entender esses princípios nos bastidores dos embates que frearam a definição do campo
da Pedagogia e do trabalho dos seus profissionais?
SITUANDO A QUESTÃO FUNDAMENTAL
Tanto a comunidade educacional, atuante nos cursos de formação de professores nas
mais diversas licenciaturas, como os membros do Conselho Nacional de Educação dirigem
constantemente suas atenções sobre dimensões dos processos educacionais formatadas por
concepções pedagógicas, articuladas com referenciais científicos e práticos adquiridos nas suas
trajetórias de vida profissional e social, cujos fundamentos têm os mais diversos e heterogêneos
campos disciplinares da ciência. Os fenômenos abordados são vistos sob prismas
multidisciplinares e multirreferenciais, que buscam retratar o mundo da vida nas suas diferentes
expressões.
Aprender a ler as mensagens que a história da vida no mundo nos ensina e igualmente
aprender a participar na escrita da história do mundo atos constitutivos de uma referência que
expressa a Filosofia da Educação subjacente à proposta de Pedagogia da Libertação que Paulo
Freire formulou como caminho da dialogicidade necessária à emancipação humana.
A perspectiva da Filosofia da Educação, base de todo o processo educacional, permite
fundamentar o sentido das aprendizagens à vida no nosso mundo da (pós)-Modernidade: um
mundo cuja compreensão implica trans e interdisciplinaridade perpassadas por uma
multirreferencialidade, na busca de uma racionalidade que dê sentido e direção à prática humana
nas suas mais diversas expressões. Necessário se faz identificar o espaço objetivo ocupado pelo
1
In: CD-Rom. ANAIS XIII ENDIPE. Recife: 2006.
1
conhecimento ‟científico‟, bem como reconhecer o sujeito e sua consciência crítica, sempre
procurando compreender criticamente o sentido do trabalho cidadão para além do mercado
opressor do universo globalizado. O espaço da vida do mundo ultrapassa a subjetividade de uma
consciência fechada sobre si mesma e requer a intersubjetividade de um movimento de
coletividade onde a comunicação procura o entendimento, negando a pressão da
dominação/submissão que conduz à destruição e ao aniquilamento. Fundamenta-se, com efeito,
uma compreensão ampliada da emancipação humana e da racionalidade que lhe dá sustentação
(MARTINAZZO, 2005).
As racionalidades múltiplas e heterogêneas que moldam as visões do ser humano sobre
a vida no mundo resultam de processos históricos, confrontos, tensões e negações mediadas por
dimensões de poder. A modernidade, contudo, reinventou na história a busca da emancipação
do ser humano, embora com diversificadas e conflitantes compreensões. Nesse processo
entendemos que o campo pedagógico é igualmente moldado por uma racionalidade que lhe
confere especificidade fundante. Nossa concepção de racionalidade corresponde à definição de
Moraes (2003, p. 57), interpretando Habermas: “é a maneira como os sujeitos falantes e atuantes
adquirem e usam o conhecimento. Habermas distingue dois tipos de racionalidade: a cognitivoinstrumental, ou estratégica, e a racionalidade comunicativa”. É neste patamar que procuramos
entender a racionalidade fundante do ato pedagógico, particularmente na compreensão da
racionalidade comunicativa como dialógica.
A EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA
A polêmica em torno da formação do pedagogo vai continuar viva para além das
Diretrizes Curriculares Nacionais, a cargo do CNE. A busca de consensos no intenso „diálogo‟
entre concepções divergentes nem deve terminar com o soar do martelo decisivo do CNE. Nada
fácil juntar os pedaços de razão/racionalidade e de tendências ideológicas que diversos
cientistas, educadores e coletividades educacionais apresentam no debate sobre o campo da
Pedagogia. Mais difícil ainda é um parecer científico se sobrepor ao poder político. Esta é a
angústia, dizemos epistemológica, que nos persegue nestes últimos tempos.
Retornando de um estágio de pesquisa na Goethe Universität, em Frankfurt, berço da
Escola que marcou profundamente a Teoria Crítica, convivemos em contexto onde perdura a
reflexão/pesquisa sobre formação para a docência e o campo da Pedagogia. Logo do nosso
retorno ao Brasil, fomos também participar do V Colóquio Internacional Paulo Freire, no
Recife, num outro contexto de reflexões que serviram para aguçar ainda mais nossas
indagações.
Movido pelas questões que acerbam nos atuais embates sobre diretrizes de formação de
profissionais de Educação em contexto brasileiro, procuramos, na referida Universidade,
observar e entrevistar professores e estudantes de vários níveis de ensino, dirigindo nossa visão
para os rumos dos debates e das práticas sobre formação de professores e formação pedagógica.
Circulamos em contextos onde se travam outros debates sobre a formação de professores, a
Pedagogia e a busca de integrar a formação teórica com situações de práticas. Chamou nossa
atenção a reflexão crítica acerca das experiências da ação no mundo vivido e a elaboração de
saberes do profissional de Educação.
Na mesma seqüência, o „reencontro‟ com o Mestre pernambucano, no Colóquio Paulo
Freire, consolidou ainda mais algumas das intuições fundamentais que o Fórum de Diretores de
Faculdades e Centros de Educação de Instituições Públicas (FORUMDIR) defende acerca da
formação do pedagogo. Para Paulo Freire (1996), o princípio da epistemologia da prática
constituiu-se em fundamento de sua intuição de educador que desperta para a leitura e a escrita
da vida no mundo a partir da descoberta do significado da palavra contextualizada. Nisto,
didática e aprendizagem são compreendidas à luz da epistemologia da prática e da hermenêutica
da palavra descoberta na dialogicidade do processo educacional, tendo a humanização do ser
humano como horizonte.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores (Resolução
CNE/CP 1/2002), ao reafirmar o princípio da epistemologia da prática nesta atividade humana,
marcaram importante passo em direção ao desmonte da tradicional fragmentação teoria e
prática. A proposta da síntese teoria-prática no processo de formação para a docência marca o
reconhecimento de uma proposta objeto de construção do campo da Pedagogia. Este consenso,
fruto de históricas lutas dos educadores que nunca desistiram de atitude dialógica parece, por
mais contraditório que seja, não ter alcançado consenso ainda nos debates sobre a concepção de
formação do Pedagogo: permanece, neste patamar, o confronto da dicotomia teoria/pratica nos
termos bacharelado/licenciatura.
A contradição pode ser vislumbrada na afirmação que o campo da Pedagogia é um
campo de reflexão sistemática e científica sobre o trabalho pedagógico, essencialmente situado
e vivido no cotidiano de relações intersubjetivas da dialética da consciência sujeitoindivíduo/sujeito-coletivo. Trata-se de uma ciência indissociável de uma prática, da ação
circunscrita ao campo da Educação. A formação do pedagogo não pode se restringir à
construção de teorias e propostas de intervenção educacional fora do contexto onde adquirem
sentido. Como conceber a formação do pedagogo, profissional do campo da Pedagogia,
intérprete do trabalho pedagógico, da prática educativa, da docência, fora do mundo vivido dos
processos pedagógicos? Seria negar o princípio de que o saber é formulado e dominado em
contexto de ação.
Ao reconhecer o saber experiencial nos processos de formação inicial e contínua do
saber ensinar, ou seja, da competência docente, referidas Diretrizes atingem igualmente a
concepção do campo da Pedagogia e da própria formação dos seus profissionais. Parafraseando
Paulo Freire, Pedagogia significa a ciência e a arte de educar, investigando suas múltiplas
dimensões de autonomia, de esperança, de liberdade, de dialogicidade, entre outras. Sua
reflexão sobre a práxis educacional e sua compreensão da Pedagogia sempre refletiram a
estreita relação teoria-prática que ele vivenciou com grande intensidade. A dialogicidade, que dá
sentido e significado à palavra no ato educativo, é sempre situada e sua compreensão emerge do
contexto da ação. Ser pedagogo implica ser educador e nos remete à práxis em espaços
escolares e não escolares.
O momento atual carrega importante convite de reflexão e análise para avanços e
consolidação de nosso entendimento do campo da Pedagogia e da formação desse profissional.
Não vemos necessidade de repetir a importante literatura produzida por educadores brasileiros,
que definem clara e amplamente os horizontes desse campo de práxis, o qual requer uma
formação adequada e específica.
O reconhecimento da especificidade da licenciatura em Educação infantil e da
licenciatura para séries iniciais da Educação Fundamental, da mesma forma que existem as
outras licenciaturas, não ofusca a especificidade do campo da Pedagogia e da formação desse
profissional. São licenciaturas que não podem ser confundidas com a Pedagogia, campo
específico das ciências da Educação que não somente se volta para a formação de professores
em todos os níveis de ensino, inclusive universitário, como para todo tipo de trabalho
pedagógico. Infelizmente, essa clareza parece não chegar aos nossos legisladores.
Equívocos epistemológicos e hermenêuticos são sempre possíveis em processos de
elaboração científica em campos emergentes, mesmo que estes tenham história secular. Estudos
em torno do paradigma da „epistemologia da prática‟, oriundos de investigações sobre os
saberes docentes, particularmente os saberes „experienciais‟, apontam o campo da práxis ou do
trabalho situado como referência necessária para a reflexão pedagógica (TARDIF, 2002;
SCHÖN, 2000). O referencial de apoio de muitas práticas e intervenções educacionais no Brasil
está enraizado, desde o final dos anos ‟50, em práticas e intervenções inspiradas em Paulo
Freire. O grande Companheiro deixou sua marca indelével, por apoiar sua obra numa concepção
de epistemologia da prática conjugada com a hermenêutica da palavra, do sentido da
intencionalidade na busca dialógica da aprendizagem à leitura e escrita da vida no mundo.
Outros estudos com suporte na teoria crítica (HABERMAS, 1997) acrescentaram enorme
referencial científico de suporte para atividades de pesquisa nesta perspectiva.
Não há como conceber formação pedagógica como campo de saber teórico/reflexivo,
desvinculado e externo a uma intervenção situada de prática. Referenciar a docência na base da
formação pedagógica significa olhar para os processos educacionais escolares e em outros
espaços de aprendizagem. A base da Pedagogia é essencialmente o trabalho pedagógico. A
formação e a práxis do profissional de Pedagogia requerem condições de exercício da docência
e de outras formas de „intervenção‟ educacional em contextos escolares e não escolares.
Confrontamos-nos com uma legislação que, por condições históricas de uma
cientificidade herdada do iluminismo determinista, objetivista e normativo, originou uma
cultura que reduz a Pedagogia a um bacharelado. Essa mesma legislação, por outro lado, não
confere ao bacharel o direito de exercer a docência. Enfrentamos uma cultura legalista que não
aponta condições de ser revertida a curto prazo! Resta-nos, pelo menos, a esperança na luta pela
integração do pedagogo na práxis educacional cotidiana nas suas mais diversas expressões, o
que ao mesmo tempo requer uma formação adequada.
Cabe a nós desvendar o mito dessa concepção de ciência que nos faz vítimas até hoje:
não somente nossa legislação como partes dos nossos referenciais teóricos refletem uma cultura
muito arraigada a um iluminismo científico estreito, objetivista e técnico. É a mesma
racionalidade que afirma que „pedagogia‟ não é campo científico. Além disso, situa a formação
do pedagogo de modo desvinculado da prática educativa. Como não reconhecer a perpetuação
da dicotomia teoria e prática, justamente aquela mesma que denunciamos?
INTERDISCIPLINARIDADE E COMPLEXIDADE
A compreensão da complexidade do mundo contemporâneo passa por uma lógica que
deve incluir visões diferenciadas dos agentes da vida cotidiana, os quais são alimentados por
saberes múltiplos e diferenciados expressão da fragmentação e dos limites das partes que
compõem a totalidade que dá sentido à vida no mundo. Junto à explosão dos saberes, surge a
fragmentação das profissões como expressão de campos especializados na busca de
entendimento e explicação dos fenômenos do nosso universo.
Racionalidades as mais diversas perpassam os discursos e argumentações que dão
suporte às perspectivas diferenciadas, tanto dos campos que reivindicam cientificidade como
dos sujeitos que convivem no dia-a-dia do mundo da vida. Para o profissional cuja função é
desvendar a complexidade dos elementos que compõem os processos de aprendizagem para a
vida humana e propor direções teóricas e práticas para a gestão destes, ou seja, para o pedagogo,
que campo científico pode ser reivindicado, que saberes e que racionalidade podem caracterizar
seu campo de trabalho?
A área da Educação, por ser essencialmente humana e social, requer uma visão cujo
horizonte inclui a emancipação de um sujeito na sua coletividade de vida, ou seja, de um sujeito
cidadão. Para ilustrar o referencial epistemológico e a abordagem hermenêutica que
fundamentam essa concepção da identidade do pedagogo, recorremos à imagem freireana de um
campo profissional voltado para a aprendizagem da leitura e da escrita do mundo (FREIRE,
1987).
Partindo dessa compreensão, como referência da relação entre Pedagogia e
emancipação humana, algumas indagações devem ser formuladas. Por onde passa a formação de
um profissional cujo campo de práxis focaliza a compreensão dos atos educacionais de
mediação necessária para a aprendizagem da leitura e escrita da vida cotidiana? Que perfil de
formação deve apresentar o profissional dos processos pedagógicos que permeiam o itinerário
de vida de sujeitos em busca de emancipação social e profissional? Como proceder na
necessária iniciação profissional à leitura e à escrita desse mundo, construindo competência para
a gestão do trabalho pedagógico? Afinal, quais são os fins da Educação e por onde passa a
formação do profissional dos processos educacionais de aprendizagem?
Trata-se de uma profissão situada na intersecção da transdisciplinaridade porque requer
a aprendizagem da função mediadora da Educação para a leitura pluridimensional da realidade
do cotidiano, num mundo marcado por interesses e conflitos econômicos, políticos, culturais e
sociais em constantes confrontos.
A sociedade do conhecimento produz aceleradamente informações múltiplas,
heterogêneas, fragmentadas e parciais, oriundas dos mais diversos campos do conhecimento. A
racionalidade necessária para a compreensão e rearticulação da totalidade que constitui o nosso
mundo individual e coletivo é necessariamente complexa porque requer o domínio de uma
lógica que admite perspectivas diferenciadas (MORIN, 2000). O cotidiano do professor ou do
profissional de Educação, que a cada momento é confrontado a situações as mais diversas no
chão da sua sala de aula ou em outros ambientes de aprendizagem onde atua, devendo tomar
decisões pedagógicas cujos resultados são incertos, mas objetivamente intencionados, constitui
igualmente contexto de densa complexidade (PERRENOUD, 2002; VASCONCELOS, 2002).
Mesmo reconhecendo que os saberes transpõem os muros da escola e das instituições de ensino
(DANDURAND E OLLIVIER, 1991), é inegável que de uma forma ou de outra eles estão
constantemente presentes com todas as suas diversidades nos processos educacionais. O
trabalho docente, situado nos contextos mutantes e múltiplos da contemporaneidade, aponta
para a necessária busca de novas configurações de currículos escolares, assim como de novos
perfis de profissionais preparados para esse desafio.
A DIALOGICIDADE DA RACIONALIDADE PEDAGÓGICA
Como encontrar um paradigma pedagógico que permita assegurar unidade ao fazer na
diversidade? É inegável que existe na prática do cotidiano de formadores de cidadãos e de
outros formadores racionalidades diversas que fundamentam o pensar pedagógico. Não há
dúvida, igualmente, de que a Pedagogia penetra os mais diversos setores do mundo da vida.
Feitas essa considerações amplas, com olhar sobre o mundo da vida na sociedade
contemporânea, e alguns dilemas da prática pedagógica, vejamos como os saberes que dão
suporte ao trabalho do educador procedem por via de uma racionalidade própria.
Algumas implicações epistemológicas fundamentam nossa concepção de trabalho
pedagógico como práxis transformadora de um sujeito (educador) em interação situada com
outro sujeito (aprendiz), em que a produção de saberes e de significados em torno de conteúdos
de aprendizagem caracteriza e direciona a comunicação, a dialogicidade e o entendimento entre
ambos na direção de uma emancipação fundada no ser social. Nesta concepção, o trabalho
pedagógico é visto como um processo educativo de instrução e de formação humana, pela
mediação e interação do educador com os alunos, a partir dos conteúdos do ensino em direção
ao estabelecimento de uma sociabilidade verdadeiramente humana no qual sujeitos constituem
sua identidade no seio da uma coletividade.
A Educação procede num triângulo de interação de três pólos: o educador - o conteúdo o aprendiz. Os processos de aprendizagem são imbuídos de interações intersubjetivas em
contexto de cognição situada, que não exclui os múltiplos aspectos condicionantes que regulam
esse processo. A Educação, portanto, constitui um ato instrutivo e formador entre sujeitos, de
modo que a gestão da matéria permeada pela autonomia relativa do profissional de ensino e
regulada pelos determinantes sociais tem conotação moral e ética. O educador, ao mesmo em
que ensina conteúdos, forma o educando. Deste modo, podemos identificar uma dialogicidade
democrática em situação de práticas formadoras de cidadania.
Saberes múltiplos e heterogêneos circulam na complexidade da ecologia da classe e dos
ambientes educacionais de aprendizagem: têm origem nas experiências diversas de vida
cultural, social, familiar, escolar, além de expressarem os elementos curriculares, disciplinares e
pedagógicos dos seus diversos agentes. Neste contexto, o pedagogo é visto como um
profissional que trabalha com uma pluralidade de saberes, os quais constituem parte
insubstituível do repertório de informações de que deve dispor e dominar para o exercício de
sua profissão. Ele não somente domina saberes como também transforma e produz na sua práxis
cotidiana, como reconhecem diversos autores, entre os quais Tardif (2002) e Sacristan (1999).
Identificamos inicialmente um conjunto de saberes que lhe proporcionam condições de
leitura do mundo nos múltiplos modos de ver que a ciência desenvolve. Trata-se da
aprendizagem de saberes situados na confluência da Sociologia, da Psicologia, da Antropologia,
da Filosofia, da História, da Linguagem, das Ciências Exatas, da Natureza e da Saúde, para
exemplificar alguns dos campos da ciência nos quais deve ter iniciação. O campo científico da
Pedagogia requer a transdisciplinaridade, que permite proceder à leitura do mundo, edificando
um saber situado culturalmente.
O segundo conjunto de saberes próprios ao pedagogo e à profissão que exerce diz
respeito às dimensões específicas da Pedagogia, ou da gestão pedagógica. São aqueles que
caracterizam e fundamentam os processos de ensino-aprendizagem do trabalho pedagógico e
suas teorias, suas determinações legais e, particularmente, o conjunto de saberes necessários à
gestão educacional, que compreende a organização do trabalho pedagógico em termos de
planejamento, coordenação, acompanhamento e avaliação nos sistemas de ensino e processos
educativos escolares e não escolares, além do estudo e da formulação de políticas públicas na
área da Educação.
O terceiro patamar de saberes, integrados organicamente aos demais, refere-se às áreas
específicas de trabalho/práxis, onde o pedagogo exercita cotidianamente sua função pedagógica,
ampliando seu reservatório de experiências – seu saber experiencial – como profissional
aplicado à reflexão na pesquisa do cotidiano. Dizem respeito às áreas de Educação Infantil, de
séries iniciais do Ensino Fundamental, das disciplinas pedagógicas para a formação de
professores, de Educação de Jovens e Adultos, de Educação em Sistemas Sociais ou
Empresariais, de Educação Popular, entre outras.
Não podem ser negligenciados, finalmente, os saberes experienciais formulados no
cotidiano da trajetória pessoal de vida social e cultural, de formação e, particularmente, de
trabalho profissional, os quais moldam a identidade do repertório de saberes disponíveis.
Resta caracterizar a racionalidade que move ou deve mover o trabalho docente na
dinâmica de interação dos pólos que constituem a ecologia da classe e dos ambientes
educacionais. A formação do sujeito pedagógico passa pelos princípios: do
conhecimento/compreensão do seu universo social, do domínio de saberes múltiplos e
heterogêneos, da integração teoria/prática, do disciplinamento para a reflexão e a transformação
como professor-pesquisador, da interação, do trabalho cooperativo e colaborador, da
competência regulada pela autonomia profissional, da ética de uma profissão que tem identidade
fundada em saberes próprios, entre outros.
A racionalidade que fundamenta o campo pedagógico requer a intersubjetividade de um
movimento de coletividade, onde a comunicação busca a constituição do entendimento
intersubjetivo, da dialogicidade, da argumentação, da busca de consenso, da convergência de
sentidos e significados, enfim, da sociabilidade. Fundamenta-se, com efeito, uma compreensão
ampliada da emancipação humana e da racionalidade que lhe dá sustentação. Uma racionalidade
que, na qualidade de prática reflexiva, não deixa de dar sentido e direção à prática humana nas
suas mais diversas expressões, tanto identificando o espaço objetivo ocupado pelo
conhecimento ‟científico‟como reconhecendo o sujeito na individualidade de sua consciência
crítica. Trata-se, contudo, de uma racionalidade que compreende que o espaço da vida do
mundo ultrapassa a subjetividade de uma consciência fechada sobre si mesma, bem como a
objetividade de uma razão externa ao sujeito.
Penetrando os cenários da gestão pedagógica das instituições formadoras, da escola e
dos diversos ambientes de ensino-aprendizagem, é possível descobrir a complexidade e a
diversidade de elementos racionais presentes nos contextos educacionais de instrução e
formação. A reflexividade necessária à busca de sentidos e de significados nas práticas
educativas é condição para integrar uma gama de fatores, que incluem desde hábitos e
elementos afetivos até elementos da razão instrumental/normativa e da razão
comunicativa/interativa (HABERMAS, 1997). A integração desses fatores passa pela
linguagem, ou seja, pela dialogicidade intersubjetiva do entendimento que caracteriza a
racionalidade pedagógica como busca de consenso coletivo entre sujeitos. Nisso encontramos
uma racionalidade diferenciada da racionalidade predominante na sociedade hiper-moderna e
que cabe ao educador, ao formador de formadores, construir na prática do seu cotidiano
profissional.
A racionalidade pedagógica é inconcebível fora do contexto da epistemologia da
prática. Ela é o suporte de uma práxis educativa, como reflexão sistemática sobre a ação por
parte de sujeitos social e coletivamente voltados para a formação de conhecimentos e saberes
que refletem os significados e sentidos num horizonte de transformação do mundo da vida com
emancipação social.
A Pedagogia como gestão e transformação pedagógica/ética da matéria procede por
meio de uma racionalidade complexa, interativa, dialógica, do entendimento, que não exclui
a racionalidade normativa, cognitivo-instrumental, de determinados campos da ciência e da
tecnologia, mas que a integra num processo voltado para a emancipação humana e profissional
dos sujeitos em formação.
As indagações formuladas permitem identificar um dos pontos obscuros do campo
profissional da Pedagogia e da busca de sua identidade. Ousamos invocar uma racionalidade
pedagógica fundante dos processos educacionais e que molda a práxis docente. Aproximamos
essa racionalidade do que passamos a chamar de racionalidade democrática no contexto escolar.
É inconcebível uma busca de emancipação desvinculada da reflexão crítica e
transformadora que a pesquisa como princípio educativo proporciona. O paradigma da
racionalidade dialógica apresenta-se como síntese do exercício permanente e disciplinado,
focando as múltiplas visões possíveis de compreensão da vida do mundo natural e humano. Na
posição de sujeito hermenêutico, o pedagogo exerce uma função de intérprete dos processos de
ensino-aprendizagem voltados para a construção de sentidos e de significados. Diversos estudos
de autores brasileiros e de outros continentes, particularmente da área da Filosofia da Educação
(MARTINAZZO, 2005; MUHL, 1999; BOUFLEUER, 1996) defendem a perspectiva da
emancipação humana pela abordagem da racionalidade comunicativa e dialógica, tendo a
Educação como espaço de consolidação.
Na complexidade do mundo contemporâneo, a correspondente racionalidade complexa
é condicionante de uma práxis dialógica, argumentativa e de entendimento no estabelecimento
de consensos que refletem a interdisciplinaridade e a multirreferencialidade como expressão
científica de verdades e sentidos em constante reelaboração. O confronto de múltiplos saberes e
visões sobre o real é condição para elaborar novas compreensões da vida do mundo, ou seja, da
práxis do sujeito epistêmico.
O desenvolvimento da competência comunicativa, transformadora e emancipadora,
diga-se, da racionalidade pedagógica ou do entendimento intersubjetivo do profissional de
Educação, tem suas raízes na formação inicial e floresce na formação contínua como expressão
de práxis geradora de saberes experiências, críticos e transformadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A argumentação apresentada, objeto de estudo no projeto de pesquisa “Pedagogia por
Competência e Epistemologia da Prática” (THERRIEN, 2003) encontra, nos últimos embates
acerca dos princípios fundantes da Pedagogia, base da formação de professores, importantes
elementos de compreensão da racionalidade pedagógica que deve permear os processos de uma
educação que pretende humanizar o ser humano!
A compreensão do mundo da vida e a intervenção no mundo vivido, parafraseando o
campo do profissional de Educação e particularmente do campo pedagógico, requerem não
apenas uma leitura interdisciplinar dos fenômenos situados no cotidiano, mas, sobretudo, a
capacidade do diálogo interdisciplinar. Este, na compreensão de Paulo Freire, é o princípio
necessário à busca de entendimento para uma leitura das múltiplas perspectivas possíveis sobre
o real. O olhar pedagógico, necessário ao profissional desse campo de ciência, não decorre da
mera coexistência de profissionais com experiência e formação em diversos campos
disciplinares. A dialogicidade científica do educador, na formulação das diretrizes curriculares
para o campo da Pedagogia e a formação desses profissionais, rompe com os limites de
compreensões curriculares apoiadas em referenciais excludentes.
A dialogicidade multirreferencial e interdisciplinar necessária à formação de consensos
e entendimentos intersubjetivos, capazes de levar à compreensão da essência da atitude
pedagógica, situa-se muito além da racionalidade cognitivo-instrumental. Os embates e dilemas
do CNE com a diversidade de concepções do campo da Pedagogia e dos seus princípios passam
por estes debates com a comunidade dos educadores.
O momento é do diálogo! Deve nos mover a formulação de consensos homologados
pelo horizonte de uma nova emancipação „encharcada‟ de humanização. Não é romantismo,
nem utopia: é ciência humana, formulada intersubjetivamente na convergência das plurais
visões de educadores, cientistas, instituições, movimentos sociais, sem deixar de lado o CNE! A
luta é da essência da construção e da transformação!
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