CONTAGEM DOS PONTOS INTEIROS DE UM POLITOPO JOSÉ AGAPITO R ESUMO . O propósito deste artigo é ilustrar mediante exemplos e desenhos fáceis de entender um fenómeno interessante que é válido em qualquer dimensão: a soma de funções racionais que representam séries infinitas dá origem a um polinómio que representa uma série finita. Este resultado conhecido como o Teorema de Brion apresenta uma forma de fazer a contagem dos pontos inteiros de um polítopo convexo. A BSTRACT. The purpose of this article is to illustrate through easy examples and pictures an interesting phenomenon that is valid in any dimension: the sum of rational functions representing infinite series gives rise to a polynomial representing a finite series. This result known as Brion’s theorem shows a way of counting lattice points of a convex polytope. 1. A FÓRMULA DE B RION Comecemos por considerar os pontos inteiros na recta real. A cada número inteiro m ∈ Z associamos o monomio xm , com x ∈ C, de modo que para um intervalo I qualquer em R associamos a soma (1) σI (x) = X xm , m∈I∩Z que chamaremos função geratriz de I. Por exemplo, os pontos inteiros no intervalo I = [10, 48] são representados pelo polinómio σI (x) = x10 + x11 + . . . + x47 + x48 . Usando álgebra elementar obtém-se (2) x10 + x11 + . . . + x47 + x48 = 1 x10 − x49 . 1−x 2 JOSÉ AGAPITO Se prestarmos um pouco de atenção, estamos a comparar em (2) um polinómio que está definido para qualquer x ∈ C com uma função racional que não está definida em x = 1. Embora a equação (2) não seja totalmente correcta, para efeitos de contagem dos pontos inteiros em I, serve tanto uma como a outra. Por exemplo, temos que x10 − x49 = 39 = σI (1) . x→1 1−x lim Uma vantagem evidente da representação racional sobre a polinomial é que a primeira é mais compacta. Por outro lado, formalmente (sem nos preocupar por questões de convergência) podemos rescrever x10 x48 x10 − x49 = + , 1−x 1 − x 1 − x−1 (3) onde as funções racionais na soma à direita da equação (3) representam as funções geratrizes das semi-rectas [10, ∞) e (−∞, 48] respectivamente, vale dizer, σ[10,∞) (x) = X xm = m≥10 X x10 x48 e σ(−∞,48] (x) = xm = . −1 1−x 1 − x m≤48 Deste modo, conclui-se que (4) σ[10,48] = σ[10,∞) + σ(−∞,48] . Analíticamente, a equação (4) não faz sentido para nenhum x ∈ C; a série infinita σ[10,∞) converge para |x| < 1, a série infinita σ(−∞,48] converge para |x| > 1, enquanto a série finita σ[10,48] converge para todo x ∈ C. Ainda assim, o fenómeno que nos interessa salientar é o seguinte: a soma de funções racionais que representam séries infinitas dá origem a um polinómio que representa uma série finita. Similarmente, evitando sempre questões analíticas, temos que (5) 1 1 + − 1 = 0. 1 − x 1 − x−1 CONTAGEM DOS PONTOS INTEIROS DE UM POLÍTOPO 3 Portanto, se definimos σ(−∞,∞) = 0, na terminologia de funções geratrizes a identidade (5) escreve-se σ[0,∞) + σ(−∞,0] − σ{0} = σ(−∞,∞) . (6) Fazer que σ(−∞,∞) = 0, não é uma má definição, uma vez que em (6) cada monómio xm (e portanto cada m ∈ Z) é contado só uma vez, que é o que nos interessa (ver Figura 1). Logo, podemos também escrever (4) como σ[10,48] = σ[10,∞) + σ(−∞,48] − σ(−∞,∞) . (7) b + b b b b = b b b b b b b b b 48 − b b 10 b b b b 10 b ... b b b b b b 48 F IGURA 1. 1[10,∞) + 1(−∞,48] − 1(−∞,∞) = 1[10,48] O leitor seguramente se perguntará se será possível encontrar uma identidade similar a (4) em dimensões maiores que 1. Vejamos o seguinte exemplo. Consideremos o triângulo ∆ com vértices A, B e C ilustrado na Figura 2. Cb b b b b b b b b b b b b b b b A B F IGURA 2. Triângulo de vértices A = (0, 0), B = (3, 0) e C = (0, 3) 4 JOSÉ AGAPITO Em analogia com a definição dada em (1), a função geratriz de ∆ é X σ∆ (x, y) = xm y n = x0 y 0 + x1 y 0 + x2 y 0 + x3 y 0 + (m,n)∈∆∩Z2 + x0 y 1 + x1 y 1 + x 2 y 1 + x0 y 2 + x1 y 2 + x0 y 3 = 1 + x + x2 + x3 + y + xy + x2 y + y 2 + xy 2 + y 3 . Por outro lado, as semi-rectas do exemplo anterior são substituidas neste caso por cones gerados pelos lados do triângulo com vértices iguais aos vértices de ∆. Assim, temos os seguintes cones: CA = (0, 0) + R≥0 (1, 0) + R≥0 (0, 1) , CB = (3, 0) + R≥0 (−1, 0) + R≥0 (−1, 1) , CC = (0, 3) + R≥0 (0, −1) + R≥0 (1, −1) , e as funções geratrizes associadas a eles são respectivamente σCA (x, y) = x0 y 0 · = m≥0 X (x0 y 1 )n n≥0 X (x−1 y 0 )m · m≥0 X (x−1 y 1 )n n≥0 x3 y 0 , (1 − x−1 y 0 )(1 − x−1 y 1 ) σCB (x, y) = x0 y 3 · = (x1 y 0 )m · x0 y 0 , (1 − x1 y 0 )(1 − x0 y 1 ) σCB (x, y) = x3 y 0 · = X X (x0 y −1 )m · m≥0 X (x1 y −1 )n n≥0 x0 y 3 . (1 − x0 y −1 )(1 − x1 y −1 ) Ao somar formalmente todas elas obtemos (8) σCA (x, y) + σCB (x, y) + σCC (x, y) = σ∆ (x, y) . O fenómeno que observámos em dimensão 1 repete-se em dimensão 2. CONTAGEM DOS PONTOS INTEIROS DE UM POLÍTOPO b b b b b b b b b b Fb b b b b b b b b b b b b b b b b b 5 E b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b D F IGURA 3. Triângulo de vértices D = (0, 0), E = (3, 1) e F = (2, 3) Contudo, alguém suspicaz podia pensar que a identidade (8) é uma feliz coincidência devida ao facto de termos escolhido um caso muito especial. De facto, se considerarmos o triângulo ∆ de vértices D, E e F ilustrado na Figura 3, temos que σ∆ (x, y) = 1 + xy + x2 y + x3 y + x2 y 2 + x2 y 3 , e por analogia com o exemplo anterior, provavelmente diremos que as funções geratrizes dos cones CD = (0, 0) + R≥0 (3, 1) + R≥0 (2, 3) , CE = (3, 1) + R≥0 (−3, −1) + R≥0 (−1, 2) , CF = (2, 3) + R≥0 (−2, −3) + R≥0 (1, −2) , são respectivamente σCD (x, y) = (9) σCE (x, y) = σCF (x, y) = x0 y 0 , (1 − x3 y 1 )(1 − x2 y 3 ) x3 y , (1 − x−3 y −1 )(1 − x−1 y 2 ) x2 y 3 . (1 − x−2 y −3 )(1 − xy −2 ) 6 JOSÉ AGAPITO Não obstante, constatamos que σCD (x, y) + σCE (x, y) + σCF (x, y) 6= σ∆ (x, y) . Este problema aparente é fácil de ultrapassar. Se repararmos bem, nas funções racionais em (9) não estamos a contar os pontos do triângulo contidos nos paralelogramos fundamentais semi-abertos gerados pelos lados de cada cone. Por exemplo, o paralelogramo semi-aberto associado ao cone CD é PD = D + λ1 (3, 1) + λ2 (2, 3) com 0 ≤ λ1 , λ2 < 1 , e o módulo do determinante da matriz formada pelos geradores de CD é 3 1 = 7, 2 3 que é igual ao número de pontos inteiros contidos em PD . Destes sete pontos, só quatro estão contidos no triângulo ∆ (ver Figura 3). Similarmente, pode-se verificar que PE e PF tem também sete pontos inteiros dos quais quatro deles estão contidos em ∆ (isto sim é uma feliz coincidência). Logo, se incluirmos os monómios correspondentes a estes pontos inteiros nas funções racionais mostradas em (9), podemos agora sim ter a plena certeza que σCD (x, y) = (10) σCE (x, y) = σCF (x, y) = x0 y 0 +xy + x2 y + x2 y 2 , (1 − x3 y 1 )(1 − x2 y 3 ) x3 y+xy + x2 y + x2 y 2 , (1 − x−3 y −1 )(1 − x−1 y 2 ) x2 y 3 +xy + x2 y + x2 y 2 , (1 − x−2 y −3 )(1 − xy −2 ) de modo que desta vez se verifica (11) σCD (x, y) + σCE (x, y) + σCF (x, y) = σ∆ (x, y) . Observe-se que no caso do triângulo de vértices A, B e C, os paralelogramos fundamentais correspondentes têm cada um deles só um ponto inteiro; precisamente os vértices do triângulo (ver Figura 2). CONTAGEM DOS PONTOS INTEIROS DE UM POLÍTOPO 7 Em geral, para d ≥ 1, diremos que um cone C com vértice v em Rd é racional e simples se pode ser escrito na forma C=v+ d X R≥0 wi , i=1 onde v ∈ Qd e os vectores w1 , . . . , wd ∈ Zd são linearmente independentes, o que equivale a dizer que o determinante da matriz formada por w1 , . . . , wd é um número inteiro não nulo, como ocorre com os cones CD , CE e CF . Se para além disso, os vectores w1 , . . . , wd geram o retículo Zd ; ou equivalentemente, o determinante da matriz formada por eles é 1 ou −1, diremos que o cone é unimodular, tal como acontece com os cones CA , CB e CC . A função geratriz de um cone racional e simples pode ser escrita como a função racional σC (x) = (1 − σP (x) w x 1 ) · · · (1 − xwd ) , onde P é o paralelepípedo fundamental semi-aberto P =v+ d X com 0 ≤ λi < 1 . λi wi i=1 Note-se aqui que para x = (x1 , . . . , xd ) ∈ Cd e m = (m1 , . . . , md ) ∈ Zd , a md 1 m2 notação xm significa xm 1 x2 · · · xd . Um cone racional C genérico tem a forma C=v+ n X R≥0 wi , i=1 com n ≥ d, v ∈ Qd e w1 , . . . , wn ∈ Zd . Este cone pode ser decomposto em cones racionais simples C1 , . . . , Cl com interiores disjuntos dois a dois (ver por exemplo [Ba]), todos eles com o mesmo vértice v e gerados por d dos vectores w1 , . . . , wn . Logo, resulta natural concluir que (12) σC (x) = l X σCi (x), i=1 ou seja, a função geratriz do cone racional genérico C é é também uma função racional. Porém, aparentemente há termos no lado direito de (12) que são 8 JOSÉ AGAPITO contados mais de uma vez (aqueles que correspondem a pontos de Zd na fronteira comum a dois dos cones simples da decomposição de C). Em [BHS], tal problema é evitado trasladando todos os cones simultáneamente na mesma direcção. Ora bem, triângulos e intervalos fechados são exemplos de polítopos convexos. Um polítopo convexo em Rd , com d ≥ 1 é definido como o invólucro convexo de um número finito de pontos ou como a intersecção finita e limitada de semiespaços fechados em Rd . A dimensão de um polítopo é a dimensão do espaço afim gerado por ele. Assim, por exemplo, qualquer intervalo fechado em R é um polítopo de dimensão 1, todo polígono (e portanto qualquer triângulo) é um 2-polítopo, uma pirâmide é um 3-polítopo, etc. Diremos também que um polítopo convexo em Rd é racional quando os seus vértices têm componentes racionais e os seus lados -faces de dimensão 1- são gerados por vectores em Zd . A generalização da magia das identidades (4), (8) e (11) a dimensões maiores que 1 e 2 deve-se ao matemático Michel Brion. Teorema de Brion ([Br]). Para qualquer d-polítopo convexo racional ∆ em Rd cumpre-se que σ∆ (x) = X σCv (x) . v a vertex of ∆ Brion provou o seu célebre resultado usando o teorema de Lefschetz-RiemannRoch na K-teoria equivariante, mas de facto, o mesmo resultado pode ser provado de maneira mais simples usando únicamente ferramentas de geometria discreta baseadas na contagem apropriada de pontos inteiros [BHS]. 2. C OMENTÁRIOS E OBSERVAÇÕES GERAIS O Teorema de Brion não é o único da sua espécie. Lawrence [L] e Varchenko [V] encontraram uma fórmula similar onde expressam a função geratriz de um polítopo simples em Rd (um polítopo de dimensão d onde d lados convergem para cada um dos seus vértices) como uma soma alternada de funções geratrizes de cones (também simples) associados aos vértices do CONTAGEM DOS PONTOS INTEIROS DE UM POLÍTOPO 9 polítopo. A diferença do resultado de Brion, todas as funções geratrizes envolvidas na fórmula de Lawrence e Varchenko têm uma região de convergência comum (para mais detalhes ver [BHS]). Os cones utilizados nos exemplos anteriores, à excepção da recta, são todos estritamente convexos. Uma recta, como o intervalo (−∞, ∞) ilustrado na Figura 1, é também um cone convexo mas num sentido lato. Em geral, um cone convexo genérico em Rd pode conter rectas (como acontece com os cones CDE , CDF , CEF e CDEF da Figura 4). Ao igual que a recta em dimensão 1, pode-se provar que a função racional que representa a função geratriz de um cone convexo que contém rectas é a função nula [BHS]. b b b b b b b b b b b Fb b b b b b b b b Fb b b b b b b b b b CF b b b b b b b b b Fb b b b b b b CEF b b b b b b b b E b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b Fb b b b E b b b b b D b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b CD b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b b E b b b b b b D CE D b b b b b b b b b CDE b b b b b b b b b b b b b b b b E E CDEF b b D Fb b CDF b b b b b b b b b D F IGURA 4. 1∆DEF = 1CD + 1CE + 1CF − 1CDE − 1CDF − 1CEF + 1CDEF A identidade da Figura 1 em termos de funções características ilustra em dimensão 1, um resultado conhecido como o Teorema de Brianchon-Gram [B, G], que se verifica para qualquer d-polítopo convexo (não necessáriamente racional) em Rd . A Figura 4 ilustra este teorema em dimensão 2. Podemos pensar no Teorema de Brion como a versão do Teorema de Brianchon-Gram em termos de funções geratrizes racionais, onde as funções características dos cones que contém rectas são apagadas. 10 JOSÉ AGAPITO R EFERÊNCIAS [B] C.J. Brianchon, Théorème nouveau sur les polyèdres, J. École (Royale) Polytechnique 15 (1837), 317–319. [Ba] A.I. Barvinok, A course in convexity, Graduate Studies in Mathematics, vol. 54, American Mathematical Society, Providence, RI, (2002). [Br] M. Brion, Points entiers dans les polyèdres convexes, Ann. Sci. École Norm. Sup. 21 (1988), no. 4, 653–663. [BHS] M. Beck, C. Haase and F. Sottile, Formulas of Brion, Lawrence, and Varchenko on rational generating functions for cones, Math. Intelligencer 31 (2009), no. 1, 9–17. [G] J.P. Gram, Om rumvinklerne i et polyeder, Tidsskrift for Math. (Copenhagen) 4 (1874), no. 3, 161–163. [L] J. Lawrence, Polytope volume computation, Math. Comp. 57 (1991), no. 195, 259–271. [V] A.N. Varchenko, Combinatorics and topology of the arrangement of affine hyperplanes in the real space, Funktsional. Anal. i Prilozhen. 21 (1987), no. 1, 11–22.