O GLOBO ● SEGUNDO CADERNO ● PÁGINA 3 - Edição: 5/02/2012 - Impresso: 4/02/2012 — 02: 35 h Domingo, 5 de fevereiro de 2012 AZUL MAGENTA AMARELO PRETO SEGUNDO CADERNO O GLOBO ● 3 Fotos de divulgação/Silverstein Properties SIMULAÇÃO do futuro “skyline” de Nova York já com as novas torres do Marco Zero (em detalhe, à esquerda): o conjunto de edifícios foi inspirado na Estátua da Liberdade O poder de cura da arquitetura Daniel Libeskind, que assina o projeto da reconstrução do Marco Zero, em Nova York, fala das lições que aprendeu na profissão em palestra no Rio na terça-feira Divulgação/Michael Klinkhamer Cristina Tardáguila [email protected] A terrissa amanhã no Rio o homem que, há exatos nove anos, conduz em meio a muitas polêmicas e fortes atritos a reconstrução do Marco Zero — terreno de quase 65 mil metros quadrados que, até a manhã de 11 de setembro de 2001, abrigava, em Nova York, as duas gigantescas torres do World Trade Center. Daniel Libeskind, um polonês naturalizado americano de 65 anos que gosta de usar roupas pretas e acompanha à distância o surgimento de um edifício residencial com sua assinatura em São Paulo, fará uma palestra às 20h30m de terça-feira na principal sala do Midrash, centro cultural judaico situado no Leblon. Na pauta: planejamento urbano, design e, é óbvio, a experiência profissional no Marco Zero. Em entrevista ao GLOBO, de Nova York, Libeskind adianta parte de sua apresentação: — Os últimos nove anos foram muito intensos. Uma maratona — ele diz. — Bolar o masterplan do Marco Zero e viver sua construção foi emocionante. Convivi com altas doses de politicagem e aprendi que tudo sempre tem a ver com dinheiro. No processo, não ganhei todas as batalhas, mas acho que vou vencer a guerra. O que criei está saindo do papel e agradando aos nova-iorquinos. Já não tenho mais dúvidas de que a arquitetura tem o poder da cura. Torre da Liberdade Em fevereiro de 2003, a Lower Manhattan Development Corporation (LMDC), entidade que ficou responsável pela gestão do Marco Zero, anunciou que o projeto de Libeskind havia vencido a competição de arquitetos lançada seis meses antes para reocupar o terreno das Torres Gêmeas. O polonês derrotava estrelas como Norman Foster (que criou o Estádio de Wembley, em Londres) e Richard Meir (Pritzker Prize em 1984) com um projeto que previa a construção de cinco prédios, de um museu (que será aberto ao público em 2013) e de duas gigantescas piscinas de concreto que ficariam vazias para sempre e de cujas paredes jorraria água de forma intermitente (o memorial foi inaugurado no último aniversário dos atentados, na presença do presidente Barack Obama). — O futuro World Trade Center One (WTC 1), a torre mais alta do novo conjunto, será visto de longe. O skyline de Nova York não vai ficar só bonito, mas emblemático — avisa Libeskind. Esperteza ou não, o arquiteto DANIEL LIBESKIND: “Convivi com altas doses de politicagem” Divulgação/Crystal “VITRA”, em construção no Itaim Bibi, terá 14 apartamentos arrebatou o apoio de muitos americanos para seu projeto quando anunciou que a WTC 1 teria exatos 1.776 pés de altura (541 metros). Não se tratava de numerologia, mas de uma homenagem ao ano de 1776, quando foi assinada a Declaração da Independência americana, um dos pilares da construção do país. — Também determinei que os cinco edifícios formassem um arco decrescente, para lembrar a espiral da tocha da Estátua da Liberdade, e os dispus de forma a respeitar o ângulo dos raios solares que atingiam a área entre as 8h46m e as 10h28m do dia 11 de setembro de 2011 (quando dois aviões se chocaram contra as torres e mataram quase 3 mil pessoas). Não haverá sombra. Nos últimos dias de janeiro, os engenheiros do WTC 1 comemoraram a conclusão do 86 odos 92 andares previstos na planta. Mas, para pôr todo o masterplan de pé, Libeskind teve que vencer um turbilhão de debates com os parentes das vítimas, os governos de Nova York e Nova Jersey, as autoridades do metrô e da zona portuária. Foram doses cavalares de paciência e diplomacia, frente à discus- são que se travou também por meio dos jornais americanos. — Havia gente que não queria nenhuma construção com mais de dois andares, gente que sonhava em fazer uma réplica das torres derrubadas e gente que queria só um parque ou uma praça — lembra o arquiteto. — Mas, apesar de muitos amigos e até mesmo a imprensa terem proposto que eu abandonasse o projeto, nunca pensei em desistir dele. Vai ser por meio do Marco Zero que vou passar minha mensagem sobre arquitetura para o mundo: ela cria muito mais do que simples contêineres humanos. Ela nos une. E é com essa deixa que, na palestra de terça-feira, Libeskind pulará do tema Marco Zero para seu mais novo projeto: o anexo do Sheba Medical Center, o maior centro médico de Israel, nos arredores de Tel Aviv. — Será o primeiro instituto do mundo para tratamento de pacientes que sofrem de estresse pós-traumático. Não só soldados vindos da guerra, mas também civis afetados pelo terrorismo, por exemplo. O anexo se chamará The Hopeful Dawn House e poderá aten- der 40 pacientes ao mesmo tempo. Segundo Libeskind, a ideia é que ele marque uma mudança de paradoxo. — Construiremos menos quartos individuais e faremos mais espaços de convívio familiar. No século XIX, as escolas, as prisões e os hospitais seguiam a mesma filosofia, a de isolar indivíduos para educá-los, controlálos ou curá-los. Estamos numa nova era, num tempo em que transtornos pós-traumáticos são uma verdadeira epidemia. A arquitetura precisa refletir isso. O escritório de Daniel Libeskind não divulga qualquer imagem do futuro anexo, dizendo que ele ainda está em fase de formatação. Mas, nos últimos meses, o arquiteto foi convidado a participar de alguns eventos beneficentes que visam a angariar verbas para o “Sheba Project”. Aliás, a bilheteria de sua palestra no Rio (R$ 80 para quem assistir a ela na sala principal e R$ 30 para quem se contentar com o telão) será revertida para a causa, que ainda não tem data para sair do papel. Edifício milionário Depois do Rio, Libeskind irá a São Paulo. Na agenda, uma ida ao Itaim Bibi, bairro onde está sendo erguido um edifício residencial milionário de 15 andares planejado por ele. “Vitra” é o primeiro projeto de Libeskind na América do Sul (ele concorreu, mas perdeu a disputa pela construção do Museu da Imagem e do Som, no Rio) e terá 14 apartamentos com áreas entre 565 e 1.145 metros quadrados. Uma unidade na futura torre “multifacetada e brilhante” chega a custar R$ 8 milhões. — Temos um arquiteto no Brasil só para cuidar disso. Faço videoconferências frequentes com ele por conta do “Vitra”. É um projeto excitante, com muitos detalhes, e se encaixa com perfeição em São Paulo, uma cidade com muitos problemas, mas grande potencial. Quem escuta Libeskind falar (numa velocidade impressionante) desses três projetos acredita que ele tem um currículo extenso. Mas até 13 anos atrás, não havia nenhum edifício de projeção internacional assinado por ele, que vivia como professor e oscilava no mundo teórico da arquitetura. Em 1998, ele construiu o Felix Nussbaum Haus, que abriga, na Alemanha, o acervo do pintor que lhe dá nome. E partiu para projetos mais ousados. É de sua autoria por exemplo, o Museu Judaico de Berlim. O edifício cinzento e em ziguezague que não tem janelas, apenas rasgos nas fachadas para a entrada de luz, era, até seu envolvimento com o Marco Zero, seu maior projeto. ■ Divulgação/Guenter Schneider O MUSEU Judaico de Berlim: início da ascensão de Libeskind Os desafios das fraturas expostas na crise Fernando Serapião Especial para O GLOBO ● Aos 65 anos, Daniel Libeskind pertence a uma geração de arquitetos de vanguarda que iniciou a vida profissional contestando o movimento moderno, tendo a academia como trincheira (e ganha-pão) e conquistando a atenção de revistas especializadas com discursos e desenhos sedutores. Foi assim, ao longo dos anos 1980 e 1990, que, mesmo sem construir nada, esse grupo se afamou no ambiente arquitetônico, do Brasil ao Japão: nomes como o holandês Rem Koolhaas, o americano Frank Gehry e a anglo-iraquiana Zaha Hadid. Os projetos e a prosperidade vieram com a fartura econômica do fim do milênio: sobrou dinheiro para espaços culturais no Hemisfério Norte, e eles tinham respostas frescas. Apelidado de “starchitects”, o grupo virou pop: Gehry é personagem de um episódio dos Simpsons, e Zaha desenhou um modelo de sandália para a Melissa. A sorte grande de Libeskind veio quando, no fim dos anos 1980, ele ganhou o concurso do Museu Judaico de Berlim. Até então, levava uma dura vida de professor universitário. O projeto, que virou atração turística mesmo antes de ficar pronto, coube a ele como uma luva: polonês de origem judaica, ele carregava as feridas do Holocausto. Sua resposta ao terror nazista possui propositadamente circulação confusa, que remete ao medo, à perda e ao totalitarismo. A forma do edifício é em ziguezague como uma estrela de Davi fraturada. O projeto é desconstrutivista — tendência da qual ele era um dos principais representantes e que, grosso modo, se pautava por edifícios fraturados. Libeskind montou um escritório para atender a inúmeros convites semelhantes. O ápice de sua carreira parecia ter chegado em 2003, quando foi escolhido para desenhar a parte mais importante da reconstrução do World Trade Center. Novamente, suas fraturas foram respostas convincentes às feridas abertas — desta vez do terrorismo. Contudo, pouco a pouco, ele foi engolido pela lógica dos negócios imobiliários nova-iorquinos (o imbróglio teve direito a processo em nome dos honorários). Apesar de manter hábitos luxuosos, vivendo com a família em um confortável apartamento em Tribeca, Nova York, atualmente ele passa por fase difícil: o fim da fartura econômica levou os trabalhos de vulto, e hoje ele é obrigado a aceitar ofertas menores e a rodar as economias emergentes. No Brasil, projetou um edifício de apartamentos para milionários em São Paulo e participou do concurso do MIS no Rio. Na orla de Copacabana, seus volumes irregulares foram propostos em nome de quebrar a ortogonalidade do paredão da Avenida Atlântica. Para se aclimatar, citou em sua apresentação Carmem Miranda e um poema de Haroldo de Campos. Mas não convenceu os jurados com uma proposta que mais parecia uma caricatura de Libeskind criada por Joãosinho Trinta. FERNANDO SERAPIÃO é crítico de arquitetura e editor da revista “Monolito”