DESENHO DE CIDADE O projeto do Conjunto Nacional1 FERNANDO FELIPPE VIÉGAS RESUMO O edifício do Conjunto Nacional, projetado por David Libeskind em 1955, é referência arquitetônica em São Paulo. Esse objeto desperta maior interesse quando entendido não como fato isolado, mas como manifestação da cultura brasileira da década de 1950 e como concretização de um desejo coletivo. O presente artigo busca identificar suas características e qualidades, especialmente a partir da leitura do projeto. PALAVRAS-CHAVE: Conjunto Nacional (São Paulo); arquitetura brasileira; urbanismo. SUMMARY The Conjunto Nacional building, designed by David Libeskind in 1955, is an importam architectural reference in São Paulo. This object raises a larger interest when seen not as an isolated fact, but as a manifestation of 1950's Brazilian culture and as realization of a collective aspiration. This article seeks to identify its characteristics and qualities, particularly from reading the architect's project. KEYWORDS: Conjunto Nacional (SãoPaulo);Brazilian architecture; urbanism. [1] Este artigo foi elaborado a partir de Viégas, Fernando F. ConjuntoNacional a construção do Espigão Central. São Paulo: dissertação de mestrado, FAU-USP, 2003. Passados cinqüenta anos do projeto original do Conjunto Nacional, situado na esquina da avenida Paulista com a rua Augusta, em São Paulo, a distância no tempo suscita uma leitura do edifício que permite oferecer parâmetros para a reflexão sobre a arquitetura contemporânea. Para as gerações de arquitetos mais jovens, formadas posteriormente aos debates dos anos 1970 e à onda pósmoderna dos anos seguintes, o afastamento em relação à década de 1950 induz à retomada de questões suspensas e possibilita uma visada crítica ante certa produção que muitas vezes elege temas alheios à realidade urbana do país. De lá para cá o Brasil passou a ter população predominantemente urbana e as metrópoles atingiram grandes extensões territoriais, englobando cidades vizinhas. As ocupações periféricas, pensadas naquele momento como provisórias, constituem atualmente a maior parte da paisagem urbana. De acordo com Roberto Schwarz, na década de 1950 a sociedade brasileira "lutava para se completar no plano econômico e social" e tinha o impulso de pensar a questão da formação nacional, enquanto hoje "parece razoável dizer que o projeto de completar a sociedade brasileira não se extinguiu, mas ficou suspenso num clima de impotência, ditado pelos constrangimentos da mundialização"2. Em face da complexidade dos problemas atuais, cabe aos arquitetos estabelecer parâmetros técnicos e estéticos que revelem novas formas de compreensão dos fenômenos urbanos, bem como assumir a responsabilidade de reformular os próprios enunciados e reinserir a arquitetura no plano da cultura brasileira. Atividade de interesse público, ela está relacionada à discussão da qualidade do ambiente construído, independentemente da escala de cada trabalho. [2] Schwarz, Roberto. "Os sete fôlegos de um livro". In: Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.56. O edifício do Conjunto Nacional, projeto do arquiteto David Libeskind, é íntimo de muitos paulistanos. Basta um passeio para perceber que se trata de um espaço diferente na cidade. Cruza-se pelo interior da quadra, num ambiente animado por lojas de discos, livrarias, restaurantes, butiques, cinemas. Quem chega de carro pode estacionar embaixo e aflorar por uma rampa elíptica que continua subindo até um jardim, no terceiro andar. Em cada uma das quatro ruas que o circundam há pelo menos uma entrada para pedestres, todas se dirigindo a uma praça central. Nesse espaço há telefones públicos, caixas eletrônicos, cafés, bancos para uma pausa e elevadores que conduzem aos escritórios. Moradores estacionam seus carros no subsolo ou entram a pé pela recepção do prédio, diretamente da rua. A simples descrição desses percursos aponta valores urbanos aos quais todos deveriam ter direito. Diante desse modelo de ocupação é difícil entender por que existem tão poucos exemplos de edifícios na cidade baseados nesses princípios ou tão poucas cidades baseadas nos princípios desse edifício. O Conjunto Nacional ocupa um quarteirão inteiro, o que amplia suas possibilidades de configuração espacial. Idealizado com base na idéia da quadra como mínima fração urbana, logrou incorporar um desenho que revela menos a idéia de um monumento independente do que o desejo de construir espaços de uso coletivo. Foi, ainda, fundamental na construção da nova paisagem metropolitana ao acentuar o Espigão Central de São Paulo, por onde circulam milhares de pessoas diariamente. O edifício, cujas características permitem que seja associado ao tema da dimensão urbana da arquitetura, pode levantar questões cruciais para a compreensão dos problemas metropolitanos, transcendendo assim a obra e seu sítio3. Insere-se ainda num processo de urbanização que expõe as contradições oriundas do embate entre a [3] Giulio Carlo Argan comenta que "Vasari foi o primeiro a observar que a cúpula de Santa Maria Del Fiore não devia ser relacionada apenas ao espaço da catedral e respectivos volumes, mas ao espaço de toda a cidade, ou seja, a um horizonte circular, precisamente ao perfil das colinas em torno de Florença" ("O significado da cúpula" [1977]. In: História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 95). [4] A compreensão da produção do espaço urbano nas cidades brasileiras está vinculada às noções de modernização e modernidade. Segundo Raymundo Faoro, "a modernidade compromete, no seu processo, toda a sociedade, ampliando o raio de expansão de todas as classes, revitalizando e removendo seus papéis sociais, enquanto a modernização, pelo seu toque voluntário, se não voluntarista, chega à sociedade por meio de um grupo condutor que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes" ("A questão nacional: a modernização". Revista de Estudos Avançados, n° 14,vol. 6,1992, p. 7). [5] No terreno havia a residência de Horácio Belfort Sabino, cujo projeto foi realizado por Victor Dubugras, arquiteto francês formado na Argentina. Construída entre 1902 e 1904, era considerada "a mais bela casa artnouveau de São Paulo" (Xavier, Alberto, Lemos, Carlos e Corona Eduardo. Arquitetura moderna paulistana. São Paulo: Pini, 1983, p. 37). modernização promovida pelas classes dominantes e a real modernidade do confronto cultural vivido por toda a sociedade4. O SÍTIO O terreno do Conjunto Nacional possui 14.600 m2 e é delimitado ao norte pela avenida Paulista, ao sul pela alameda Santos, a oeste pela rua Augusta e a leste pela rua Padre João Manoel. Foi adquirido pelo empreendedor José Tijurs em 19525. Imigrante judeu e ex-motorista de táxi, Tijurs era então proprietário da maior rede hoteleira do país. Num momento em que a classe empresarial mantinha proximidade com bons arquitetos brasileiros, Oscar Niemeyer, Franz Heep, Rino Levi e o próprio Libeskind, entre outros, participaram da construção desses hotéis. Tijurs dizia que sua intenção era transformar a Paulista na 5a Avenida: o modelo de grande empreendimento para a época era o Rockefeller Center, de Nova York, e muitos arranha-céus norte-americanos fundiam num único edifício programas distintos, simbolizando cidades inteiras. Vários estudos de projeto foram feitos para o terreno do Conjunto Nacional. O primeiro foi realizado em janeiro de 1952 pelo escritório de Gregori Warchavchik, que dois meses depois desenvolveu um segundo estudo (com o apoio de Carlos Lodi, Jacob Ruchti, Giancarlo Fongaro e Salvador Cândia) para atingir os padrões requeridos pela legislação municipal. Em 1953 foi aberto processo de aprovação na prefeitura com um terceiro projeto, que previa uma área construída de 100.214 m2. No mesmo ano, a junta consultiva formada pela prefeitura para avaliar a aprovação do empreendimento (da qual participou o arquiteto Rino Levi), emitiu parecer favorável. Todavia, o então prefeito Jânio Quadros resolveu cassar o alvará concedido, com o intuito de assegurar o uso residencial de elite na região. Dada a impossibilidade de implantar aquele projeto, Tijurs encomendou outros estudos. O projeto de David Libeskind foi aprovado dois anos depois, sem aumento de área em relação ao projeto anterior. O ARQUITETO Nascido em Ponta Grossa, Paraná, em 1928, David Libeskind cursou Arquitetura em Belo Horizonte. Estagiou no escritório do arquiteto Eduardo Mendes Guimarães Jr. e foi aluno de Sylvio de Vasconcellos, que desempenhou importante papel intelectual no meio arquitetônico brasileiro. Trabalhou em órgãos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tomando contato com a obra de figuras fundamentais da vanguarda arquitetônica nacional, como Lúcio Costa, Rodrigo Mello Franco de Andrade e Oscar Niemeyer. Ainda em Minas Gerais, freqüentou as aulas de desenho de Alberto da Veiga Guignard, tendo como colega de classe Amilcar de Castro6. Desse encontro e da amizade que estabeleceu com personalidades como Franz Weissmann pode ter nascido a ligação de sua obra arquitetônica com as artes plásticas. Ele conta que a princípio imaginou trabalhar como pintor, mas quando visitou pela primeira vez as construções de Niemeyer para o conjunto arquitetônico da Pampulha em Belo Horizonte decidiu estudar arquitetura. Seu ingresso na profissão já indicava o interesse pela arquitetura como expressão artística. O arquiteto manteria produção paralela como artista plástico: participou de três edições da Bienal de São Paulo e da mostra "Tradição e ruptura" (Fundação Bienal de São Paulo, 1984), além de exposições individuais em galerias. [6] Rodrigo Naves observa que repercutiu na obra do escultor "a necessidade de clareza defendida por Guignard nas aulas de desenho, a insistência para que os alunos usassem lápis duro, que, por produzir sulcos no papel, exigiam decisão no traço, pois os erros não tinham conserto" ("Uma ética do risco". In: Tassinari, Alberto (org.). Amilcar de Castro. São Paulo: Cosac & Naify, 1997, p. 20). Resta imaginarmos a influência sobre o arquiteto. Ao chegar à capital paulista à procura de trabalho, Libeskind foi recebido por Luis Saia, que o apresentou a vários colegas do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), ponto de encontro de sua geração. Ao tomar conhecimento do convite de José Tijurs a alguns profissionais para elaborar o projeto no terreno da Paulista, o jovem arquiteto bateu à porta do empresário. Precedido por um primeiro esboço, apresentado em fins de 1954, o projeto do Conjunto Nacional foi concluído em 1955: Libeskind tinha então 26 anos. Os trabalhos por ele desenvolvidos durante a década de 1960 revelam a influência de Richard Neutra, filiação que o aproximou da obra do arquiteto paulista Oswaldo Bratke. O seu conjunto de obras é hoje amplamente reconhecido, mas o Conjunto Nacional permanece como o seu trabalho mais divulgado. REFERÊNCIAS Antes da construção do Conjunto Nacional já ocorria na avenida Paulista um processo de verticalização. Em 1941 os irmãos Marcelo e Milton Roberto projetaram na esquina com a avenida Angélica o edifício Anchieta. Em frente, na rua da Consolação, localizaram-se em 1954 os edifícios residenciais Gibraltar e Chipre, com projeto de Giancarlo Palanti. São de 1953 dois projetos do arquiteto Abelardo de Souza: o edifício Três Marias, na esquina com a rua Haddock Lobo, e o Nações Unidas, em que primeiro se desenhou na Paulista uma lâmina horizontal ligada à rua para o comércio e outra vertical para as habitações. Anteriormente fora construído na rua Barão de Itapetininga, com projeto de Oscar Niemeyer, o edifício Califórnia, com uma galeria comercial e um cinema no térreo. Segundo Regina Meyer, ao longo dos anos 1950 [t]anto o edifício-galeria quanto o edifício-conjunto reproduziram-se na metrópole, atestando uma relação positiva entre espaço público e espaço privado. Sem estar presente nos programas oficiais ou na legislação urbanística de forma específica, assistiu-se [nesses] projetos a uma valorização simbólica do espaço público na área central7. [7] Meyer, Regina M. P. Metrópole e urbanismo — São Paulo anos 50. São Paulo: tese de doutoramento, FAUUSP, 1991, p. 44. [8] "O projeto era característico da arquitetura brasileira daquela época, com ênfase no terraço-jardim e nos pilotis" (cf. depoimento em lacocca, Angelo. A conquista da Paulista: Conjunto Nacional. São Paulo, Peirópolis, 1998, p. 58). [9] Segundo Maria Arminda do Nascimento Arruda, a capital paulista "deixa de ser apenas aglomeração, espaço de relações mercantis ou de produção industrial, passando a ser fundamentalmente um conjunto cultural a exprimir modos diversos de significação, de exercício de poder, de emergência e de acomodações de conflitos. [...] As comemorações do IV Centenário [...] decantam o conjunto das questões referentes às noções de modernização, modernidade, modernismo. [...] O evento exprimia, na verdade, o desejo de projetar uma imagem da São Paulo progressista e moderna" (Metrópole e cultura: São Paulo no meio século XX. Bauru: Edusc, 2001, p. 70). [10] Segundo Fernanda Barbara, no Copan "aparece a proposição do pilotis ocupado, com um programa de comércio e serviços no térreo, o que leva a uma nova resolução formal. Nesse caso, não é a estrutura do edifício que atinge o solo, deixando o térreo livre e permeável. O pilotis se desdobra num embasamento" (O conjunto Ana Rosa e o edifício Copan. São Paulo: dissertação de mestrado, FAU-USP, 2004, p. 274). [1l] Cf. Colquhoun, Alan. Modem architecture. Nova York: Oxford University Press, 2002, p. 239. As declarações de David Libeskind acerca de sua formação apontam como principais referências projetuais diretas e indiretas do Conjunto Nacional as de Le Corbusier, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa: Corbusier é visto como um mestre, e de sua obra se ressalta o conceito de "unidade de habitação"; Niemeyer, como vimos, influenciou Libeskind até mesmo em sua escolha profissional; Lúcio Costa é admirado pelo trabalho no Iphan e pela tradução que fez das teorias de Le Corbusier. Nos depoimentos do arquiteto também fica explícita a intenção de realizar trabalhos com as características do que era identificado à época como "arquitetura brasileira"8. A repercussão desta no exterior, evidenciada na exposição "Brazil builds", de 1943, e no livro Modern architecture in Brazil (no qual foi reproduzida a maquete do projeto do Conjunto Nacional), de 1956, reforçou o clima nacionalista vigente e posteriormente foi tida como expressão do nacional-desenvolvimentismo. Contudo, a qualidade de muitos trabalhos superou essa filiação, assegurando-lhes a condição de marco no campo arquitetônico brasileiro. Já na década de 1940 o ambiente urbano de São Paulo passara a expressar a intenção da sociedade paulista de transformar a cidade na grande metrópole brasileira. Os arquitetos de vanguarda contribuíram para a construção desse intento, que teve seu ápice nas comemorações do IV Centenário da cidade, em 19549. Vários arquitetos foram seduzidos pelo clima de prosperidade da metrópole, onde a concentração de grandes investimentos gerava intensa oferta de trabalho. Passaram a se estabelecer em São Paulo vários arquitetos estrangeiros (na maioria europeus) e cariocas, a exemplo do próprio Niemeyer, que abriu escritório na cidade e assinou, entre outros, os projetos do parque público no Ibirapuera, dos edifícios Copan e Califórnia e da fábrica Duchen. Parece evidente a influência exercida pelos projetos de Niemeyer na concepção original do Conjunto Nacional, uma vez que o arquiteto já vinha desenvolvendo uma nova tipologia que aliava uma lâmina vertical a uma horizontal. Basta examinar os projetos do Copan e do conjunto Juscelino Kubitschek de Belo Horizonte, ambos de 1951, e o projeto para o concurso do Paço Municipal de São Paulo, de 1954. Enquanto Libeskind trabalhava no projeto do Conjunto Nacional, o Copan estava em obras: não é difícil imaginar a importância dessa construção para um arquiteto brasileiro recém-formado10. O projeto que ficou internacionalmente associado a essa tipologia foi o edifício Lever House, em Nova York, de autoria do escritório Skidmore, Owings and Merrill, que contava com Gordon Bunschaft como arquiteto colaborador. Desenvolvido em 1951-52, o edifício foi um dos primeiros a materializar as visões do pré-guerra de Mies van der Rohe e Le Corbusier — além do edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde Pública no Rio de Janeiro (1936-45), do qual teria derivado aquele, segundo Alan Colquhoun11. Curiosamente, David Libeskind afirmou que não conhecia o projeto do Lever House antes da realização do projeto do Conjunto Nacional (mas conhecia muito bem o projeto do Ministério). Como esses, muitos outros edifícios construídos em distintos países durante a década de 1950 seguiram partidos de implantação semelhantes. O PROJETO O primeiro estudo de Libeskind para o Conjunto Nacional já afirmava claramente o partido do projeto final: duas lâminas que pareciam não se tocar, uma vertical, que abrigaria os apartamentos, e outra horizontal para uma área comercial, cuja cobertura seria um imenso jardim. As fachadas da lâmina vertical tinham proteção com elementos vazados, compondo desenhos geométricos. Sobre o jardim superior à lâmina horizontal pousava um volume que, em planta, tinha a forma de um losango. A cúpula geodésica cobrindo o conjunto de rampas ainda não estava presente no primeiro estudo. Tijurs aprovou esse projeto uma semana depois da entrega, após consultar amigos dos ramos de construção e hotelaria. Alguns ajustes foram solicitados, e o segundo estudo ficou conhecido como o projeto original do Conjunto Nacional. O empreendedor contratou a construtora de Warchavchik e do engenheiro Walter Neumann, o qual viria a conduzir as obras até 1957, ano em que faleceu. Tijurs havia pedido somente o centro comercial, mas o arquiteto propôs conjugar a ele um bloco residencial. A lâmina horizontal com o bloco comercial, que já ocupava toda a projeção do lote, foi desenhada elevada do chão, possibilitando que no térreo funcionasse uma galeria de lojas e de serviços, tais como supermercado, lavanderia, correios, agências bancárias, restaurantes, salão de festas. O organismo administrativo geral previa telefonia nos apartamentos e nas lojas, gerador de força e luz, abastecimento de água suplementar e próprio, central de gás liquefeito e garagem para todos os apartamentos. O catálogo de vendas do empreendimento enfatizava a idéia do grande centro comercial: "Um só lugar onde se compra de uma agulha a um avião". Foram concebidas quatro ruas internas para acesso às lojas e também como passagem urbana, ligando as vias circundantes. Essas galerias se cruzam num hall central onde se localizam as prumadas de circulação vertical, compostas por um conjunto de rampas, elevadores e escadas rolantes. No nível do terraço-jardim as rampas foram cobertas por uma cúpula geodésica, de modo a permitir passagem de luz natural. O seu desenho foi inspirado nos trabalhos que Buckminster Fuller vinha desenvolvendo nos Estados Unidos, mas a transposição não era simples: o cálculo da estrutura, toda de alumínio e com aproximadamente trinta metros de vão, demandava grande precisão. O engenheiro Hans Eger viu publicado o anteprojeto de Libeskind e o procurou para oferecer seus trabalhos, logo aceitos. A partir de um módulo hexagonal foi montada toda a volumetria da cobertura, arrematada com uma única peça pentagonal de concreto no topo. Essa peça se apóia no bloco elíptico que concentra a circulação vertical. Placas de plástico e lã de vidro foram moldadas especialmente para o projeto. Segundo o arquiteto, foi a primeira cúpula geodésica com tais dimensões construída no Brasil. O projeto localizava em todas as ruas circundantes algum acesso importante aos vários programas do edifício. As largas calçadas da avenida Paulista davam entrada ao grande cinema, posteriormente transferido para a alameda Santos. Pela rua Padre João Manuel chegava-se aos subsolos, que abrigavam um estacionamento público e o serviço de carga e descarga. Junto à alameda Santos, uma grande área coberta em continuidade com a calçada permitiria aos pedestres entrar nos blocos residenciais, que tinham torres de circulação vertical com escadas e elevadores independentes do interior do conjunto. A entrada dos veículos para atender à carga e descarga dos moradores ficaria nesse recuo, onde se daria o acesso à garagem própria dos condôminos, no nível inferior; uma escada elíptica ligaria o subsolo a esse nível. No entanto, o recuo foi suprimido da construção para dar lugar ao cinema, criando-se ali uma empena para a rua. Na rua Augusta, por fim, ficou localizada a portaria do bloco residencial, chamado edifício Guayupiá. Do térreo para baixo o programa se desenvolve em dois subsolos, com uma grande área de estacionamentos e serviços de apoio à manutenção do prédio (depósitos, geradores, bombas, cabines de transformação, entradas da companhia telefônica). No andar superior, entre o térreo e o terraço, foi previsto um centro de exposições para a promoção e venda de produtos industriais. Com pé-direito duplo, o andar permitiria a construção de dois níveis de lojas. As fachadas desse andar foram protegidas da exposição excessiva ao sol por brises horizontais. Essas peças foram especificadas em alumínio, mas em virtude do seu alto custo foram substituídas por lâminas de concreto. Quando da compra do terreno, firmou-se um compromisso entre José Tijurs e os antigos proprietários de que seria mantido o jardim que ali se encontrava. Para cumprir o trato, o projeto previu sobre a lâmina horizontal um teto-jardim com quase toda a dimensão do lote. Uma pequena marquise liga a cúpula geodésica ao salão de recepções, cujo volume se solta como uma caixa suspensa. Na lâmina vertical, o programa geral se completava com as habitações. Os apartamentos tinham as superfícies maiores com insolação predominantemente norte/sul. Assim, a maior parte dos dormitórios e as salas de estar ficavam a norte e os serviços e as circulações verticais a sul. O projeto propunha oito apartamentos por andar-tipo; as áreas internas variavam, bem como o número de dormitórios (de dois a quatro). As fachadas leste e oeste eram praticamente cegas. A face sul recebia um tratamento homogêneo, com elementos cerâmicos vazados. O plano para o norte era sombreado pelos mesmos componentes, mas seu desenho era mais complexo e estabelecia uma composição geométrico-abstrata para a fachada. Nessa face todos os caixilhos eram recuados, resultando em uma varanda protegida e contínua. Em razão da necessidade de comercialização das unidades, surgiu a idéia de conjugar residências e escritórios. A lâmina já estava sendo concebida na forma de três blocos com independência estrutural, o que permitia a construção por etapas. Com a mudança do programa, o único bloco de apartamentos se manteve com entrada independente, pela rua Augusta. As prumadas de escritórios passaram a ter acesso pelas galerias internas. O bloco horizontal foi inaugurado em 1958, mas nesse momento Libeskind já não se fazia presente em todas as soluções. O salão de festas no terraço, por exemplo, foi desde o início administrado pelo restaurante Fasano, que o transformou em local para recepções. O Fasano abriu ainda uma confeitaria no andar térreo, voltada para as largas calçadas da avenida Paulista. Mas as maiores interferências no projeto original ocorreram no nível do terraço-jardim: ao bloco horizontal foram acrescentados um galpão paralelo ao salão de festas e um restaurante colado à lâmina vertical, próximo à alameda Santos. Essas construções prejudicaram sensivelmente o uso imaginado para o terraço. Posteriormente acrescentou-se mais um outro galpão e fecharam-se os pilotis originais, atualmente ocupados por uma academia de ginástica12. Em virtude das várias mudanças sofridas pelo programa do edifício, os elementos vazados da fachada norte nunca foram executados. As varandas permaneceram somente no bloco residencial, construído e inaugurado antes das prumadas de escritórios. Com o passar dos anos as galerias internas do térreo foram loteadas e vários obstáculos foram construídos. Na década de 1970 o condomínio passou por um grave problema de gestão, e em conseqüência de ocupações irregulares ocorreu em 1978 um incêndio de grandes proporções na madrugada do dia 4 de setembro, em que felizmente não houve nenhuma vítima. A partir de 1984 uma nova administração conduziu um longo processo de reformas e restauração para recuperar o imóvel. Esse trabalho, do qual Libeskind participou apenas parcialmente, foi de grande importância para a segurança e atualização da edificação. Infelizmente, porém, nem todas as modificações condizem com a importância do edifício. Está em andamento um processo de tombamento do Conjunto Nacional. Ainda não se sabe quais serão os seus critérios, mas é certo que algumas intervenções poderiam resgatar qualidades espaciais fundamentais para a compreensão desse importante exemplo da arquitetura paulista. APONTAMENTOS SOBRE O PROJETO As descrições até aqui apresentadas fornecem dados suficientes para compreendermos as principais razões para que o Conjunto Nacional constitua uma importante referência projetual para os arquitetos de [12] Nas palavras de Libeskind: "Apesar de ousado e inteligente, Tijurs não tinha sensibilidade estética. Talvez por isso tenha deturpado o projeto do edifício. [...] Durante a construção, ávido por ganhar mais dinheiro, ele começou a invadir as áreas comuns do condomínio com construções extraprojeto" (Iacocca, op. cit., p. 66). São Paulo. É a partir da leitura das sugestões advindas do próprio desenho do projeto que surgem os apontamentos feitos a seguir. MODELO DE CIDADE As fotos do terreno em 1955 mostram como a implantação do Conjunto Nacional alteraria o padrão de urbanização da área. A partir de uma composição abstrata, com uma lógica intrínseca à própria obra e ao seu sítio, o projeto propõe um modelo de ocupação das áreas adjacentes à avenida Paulista. O desenho não se restringe ao objeto isolado, sugerindo uma composição volumétrica que dialogasse com futuras ocupações. De fato, já se imaginava então uma avenida que poderia adquirir outro porte, com a escala das grandes avenidas nova-iorquinas. Uma das maiores qualidades do projeto é a profunda compreensão do futuro da metrópole e do sítio onde foi implantado. [13] Veja-se nesse sentido o depoimento de Paulo Mendes da Rocha: "A cidade é um desenho que existe na cabeça do homem antes de sua concretização. Portanto, ela pode ser justamente projetada. [Por exemplo,] na avenida Paulista a melhor quadra é a do Conjunto Nacional. É a única em que você não encontra automóvel saindo da calçada — eles saem pela rua secundária. É [...] uma questão de disposição espacial. O Conjunto Nacional é misto, ficaram escritórios e habitações, e ali há comércio e metrô. [...] O urbanismo é menos coisa feita do que associação dos homens" (Bravo, nº 72, set. 2003, p. 32). Fica explícita a intenção do arquiteto em estabelecer relações de continuidade com o passeio público e o tecido urbano. A calha da rua foi assumida como espaço público por excelência, de acordo com as formas históricas de uso da cidade e a morfologia existente. Essa postura se diferenciava do enunciado de negação das ruas de Le Corbusier. A idéia do edifício elevado para a passagem dos jardins (pilotis) adquiria outra característica: a continuidade com o contexto urbano. Todas as representações gráficas do projeto original — desenhos e fotos de maquete — inserem a nova construção no tecido existente. A espacialidade proposta para o térreo advém de um desenho integral da quadra, livre de resquícios da estrutura fundiária fracionada em lotes. Foi da observação da estrutura e do funcionamento da metrópole que surgiu sua implantação, apesar da nova escala que a construção impôs ao entorno13. COMPREENSÃO DAS ESCALAS URBANAS O projeto procura estabelecer relações apropriadas com as diversas escalas urbanas em que se insere: a rua, a quadra, a avenida e a metrópole. A volumetria do conjunto estabelece noções de referência do espaço a partir de vários pontos de vista. A marquise, que separa a caixilharia da vitrine em duas partes (uma para o público e outra superior, a sobreloja), estabelece a escala para o pedestre. As lâminas horizontais, com o tratamento volumétrico homogêneo obtido pelos brises, aumentam a noção de profundidade da quadra em perspectiva, conferindo-lhe a noção de movimento em velocidade. Acentua-se assim a nova percepção da dinâmica da vida urbana, na qual os veículos motorizados começam a estabelecer outras noções espaciais. Já o volume do restaurante e do salão de festas se debruça sobre a avenida Paulista de modo a estabelecer uma relação recíproca de apreciação do espetáculo urbano. Colocada sobre o jardim, a construção desfaz a simetria do conjunto, e suas fachadas, perpendiculares à avenida, garantem a visão em perspectiva da Paulista, fazendo desse volume um ponto focal da pista. Por fim, a lâmina [Foto a partir da esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta. O edifício com sua conformação original.] [Fotomontagem da maquete do projeto, de 1955.] [Inserção de imagem do projeto em foto da Avenida Paulista.] vertical independente do terraço superior revela a situação geográfica privilegiada da construção, numa leitura precisa da topografia da cidade que pretendia ser metrópole. O skyline do Espigão Central começava a ser definido e a assumir o papel de marco perene da paisagem paulistana, que só encontrava sua referência visual natural no Pico do Jaraguá. O edifício, de oitenta metros de altura, praticamente dobra o espigão, já que este tem uma diferença média de cotas de cem metros em relação às margens dos rios Pinheiros e Tietê. Estava em construção uma nova geografia paulistana, e o Conjunto Nacional veio a ser uma referência emblemática dessa nova paisagem. PERCURSOS As plantas do projeto indicam diversos caminhos a serem percorridos pelos transeuntes, e a apreensão total do conjunto só é possível através dessas travessias. O desenho do pavimento térreo tem intenção de dar continuidade ao percurso da rua para o interior da quadra, protegido do sol e da chuva. Essa permeabilidade só foi possível com a elevação do volume sobre o piso de mosaicos de pedra, deixando os conjuntos de lojas soltos no espaço interno. Os alinhamentos dessas lojas configuram galerias de aproximadamente onze metros de largura por cinco de altura. Pode-se perguntar por que não se fez as entradas do edifício nas esquinas. Se isso tivesse ocorrido, poder-se-ia perder a idéia de configuração da quadra; assim, todas as esquinas foram ocupadas, estabelecendo unidade ao conjunto. As ruas-galeria confluem para o espaço central, que configura uma praça em torno da qual os caminhos determinam um movimento de rotação. Todas as ruas que compõem o quarteirão têm no mínimo uma entrada para o interior, e todos os blocos de apartamentos, desde o primeiro estudo, têm entradas diretas por essas vias, o que garante um endereço preciso. Com os passeios cobertos e as lojas, as calçadas externas foram valorizadas. A continuidade do passeio arquitetural é sugerida pelo conjunto das rampas e do volume elíptico, que materializam esse movimento. Essa construção central abriga os elevadores, ligando as cotas do 2º subsolo ao terraço-jardim do 3º andar. As rampas, em volta do volume, conferem fluidez vertical ao percurso sugerido pelas ruas internas e têm grande importância visual para o edifício. Seus planos inclinados, escultóricos, refletem a luz do sol e deixam passar luminosidade pela fresta que estabelece com a torre de circulação. A presença desse volume fechado, construído para abrigar os elevadores do bloco horizontal, prejudica a continuidade visual. Talvez isso explique que haja certa intimidação ao acesso aos andares superiores ou desconhecimento da continuidade do passeio. O terraçojardim ficou um pouco isolado das atividades de caráter coletivo que ocorrem no térreo, talvez por não ter sido executado como uma grande área livre, conforme o projeto original. As escadas rolantes, posi- cionadas próximas às rampas, poderiam fazer essa transição, mas em razão da mesma restrição visual não indicam os acontecimentos nos andares contíguos. Cabe constatar que uma cobertura geodésica daquelas dimensões poderia trazer grande luminosidade ao piso térreo, ou seja, à praça central. Isso poderia ter acontecido caso a passagem de luz não fosse obstruída. DESENHO DO ESPAÇO COLETIVO A distinção entre projetar para o poder público e para a iniciativa privada se anula no caso do Conjunto Nacional. Embora seja um empreendimento privado, ele confirma a missão do arquiteto como agente de transformação do espaço urbano coletivo. A separação entre arquitetura e urbanismo também se torna improfícua, ou no mínimo duvidosa, ante a sua capacidade de explicitar tamanha reflexão crítica sobre os rumos de construção da cidade. A organização dos programas, permeados por ruas, passagens, praças, jardins e infra-estrutura, confere ao edifício qualidades próprias de espaços urbanos que sugerem uma cidade mais generosa e menos excludente14. Naquele momento o arquiteto atuava com a responsabilidade de sugerir programas, dimensionamentos e possibilidades inéditas de construção dos espaços para o convívio social, e nessa missão tinha o respaldo de importantes setores da sociedade que acreditavam na arquitetura não apenas como atividade de interesse público, mas também como uma manifestação cultural. COMPLEXIDADE PROGRAMÁTICA Como já mencionado, a idéia de conciliar o centro comercial desejado por José Tijurs à habitação partiu de David Libeskind. O desenvolvimento dessa idéia possibilitou então que uma quadra inteira fosse pensada como um modelo de cidade em que pudesse emergir da justaposição de programas diferentes a qualidade da vida urbana idealizada para a grande metrópole brasileira em formação. Com a complexidade funcional proposta para o Conjunto Nacional imaginava-se dar continuidade ao vetor de crescimento da cidade afirmado pela rua Augusta. De certa forma, o edifício negou a setorização das funções urbanas propugnada pela Carta de Atenas. O Conjunto Nacional foi projetado para amparar tecnicamente todas as necessidades do cidadão, correspondendo a uma verdadeira unidade de habitação. Embora não tenham sido realizadas exatamente como previstas no projeto, as idéias de Libeskind "indicam uma revolução no atendimento da atividade de morar"15. HABITAÇÃO Libeskind não queria construir um edifício de apartamentos monumental, apesar de suas grandes dimensões. Para tanto, foi transformado em pano de fundo de todo o conjunto, ressaltando a volumetria dos blocos mais próximos do chão. Na primeira versão, a fachada para a Paulista foi concebida como um enorme plano com uma composição geométrica de cheios e vazios. [14] "A dádiva mais celebrada que uma cidade em construção, como São Paulo, pode oferecer à sua população é a qualidade pretendida por alguma da sua arquitetura ampliada pelo gesto de, com breves intervenções, gerar um espaço urbano como um todo regenerador [...], progredir no sentido da inauguração de mais lugares que contenham em si uma idéia de cidade e um ideal de coletivo" (Milheiro, Ana V. "O lugar a que chamamos São Paulo". Revista D'Art (Centro Cultural São Paulo), nº 9/10, 2002, p. 45). [15] Mendonça, Denise X. de. Arquitetura metropolitana — São Paulo década de 50. São Carlos: dissertação de mestrado, EESC-USP, 1999, p. 67. [16] "O cobogó tem o caráter de elemento de justaposição, sua escala é artesanal e é uma variante das treliças, que protegem o interior das casas coloniais. Do lado externo, o efeito do rendilhado adquire o valor de uma superfície e, portanto, de vedação. Como é claro, o seu encantamento maior se produz pela vista interior, ao difundir uma luminosidade rebaixada e íntima. [...] O brisesoleil, invenção de Le Corbusier, é, ao contrário, um recurso para manter a noção de exterioridade, de abertura para fora, sem prejuízo da proteção contra o sol" (Telles, Sophia S. "Lúcio Costa: monumentalidade e intimismo". Novos Estudos, n° 25, 1989, p. 85). Predominantemente voltada para o norte, propiciaria para o interior dos apartamentos uma luminosidade controlada por elementos vazados, aproximando-se da luminosidade criada pelos cobogós e diferenciando-se dos brises de concreto da lâmina horizontal16. Essa membrana de proteção externa ficaria solta da caixilharia do edifício, pois tanto os dormitórios quanto a sala (com vista para a avenida) se abririam para varandas. Revelava-se em Libeskind uma forte intenção de construir casas brasileiras a uma cota nunca antes imaginada, com base na tradição de Lúcio Costa e nos estudos que ele próprio fizera enquanto trabalhava no Iphan. Esse procedimento de introspecção atesta uma preocupação com o intenso ritmo de crescimento da metrópole. A fachada não apresenta diferenciação entre apartamentos menores e maiores. Imaginava-se que famílias de diversas faixas de poder aquisitivo poderiam viver sob o mesmo endereço. Esse conceito arquitetônico-habitacional — tão diferente daquele hoje predominante — tem no edifício Copan e no conjunto Juscelino Kubitschek os seus exemplos mais radicais. OUTRAS COTAS: INFRA-ESTRUTURA A cobertura da lâmina horizontal se constituiu num novo térreo, multiplicando-se assim a área do terreno. Nesse solo criado se desenvolve uma composição volumétrica com procedimentos semelhantes aos do edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública, onde a lâmina vertical se suspende sobre o terreno. O terraço-jardim foi concebido como um espaço com características de uso público: uma praça elevada. A cota dessa praça, correspondendo a cerca de quatro andares, permitiria uma ampla visão da paisagem paulista. A vista era desimpedida em todas as direções, pois a lâmina vertical ficava elevada em relação ao plano horizontal. O acesso principal é feito por rampas que ligam todos os andares, desde o subsolo até o nível do terraço. Essa solução permite uma continuidade do passeio público, permeando os andares inferiores que passavam a fazer parte do desdobramento do térreo, ou seja, das ruas. A largura da rampa possibilita a passagem de um automóvel à cota do jardim elevado. As sugestões espaciais são inúmeras. Imaginar-se-ia uma cidade onde os deslocamentos verticais auxiliassem a resolução de novas questões urbanas. O espaço descoberto no terraço funciona como outra fachada do edifício, observando e sendo observada de diversos pontos de vista. O desenho sugere a continuidade deste patamar em outras construções — quadras que seriam ligadas por passarelas sobre as ruas laterais. O desejo de criação de novas espacialidades se manifesta também na solução encontrada para o desenho dos subsolos. Tomando-se como parâmetro esse projeto, em que as garagens ocupam todo o subsolo da quadra e as entradas estão localizadas em ruas menos movimentadas, fica clara a precariedade do modelo de cidade predominante em São Paulo. Aqui, o fato de o motorista poder estacionar o veículo e se dirigir coberto a qualquer ponto da quadra constitui uma exceção. Nas quadras vizinhas, por exemplo, percebe-se que cada edifício resolve seus problemas isoladamente em seus lotes: os níveis das lajes dos estacionamentos não coincidem uns com outros, e a avenida é repleta de guias rebaixadas para a entrada de automóveis, que cruzam o espaço destinado ao pedestre. A solução encontrada para os estacionamentos e serviços complementares nos leva a pensar em uma cidade construída com infra-estrutura racionalizada, na qual o subsolo pudesse servir como conexão a outras atividades urbanas17. O mesmo raciocínio, que imagina uma cidade funcionando com um novo solo em uma cota de nível a mais de dez metros do chão, poderia conceber um subsolo conectado a redes de transporte subterrâneo e a toda a infra-estrutura, utilizada como um precioso instrumento de desenho urbano. LEGISLAÇÃO O projeto do Conjunto Nacional só pôde ser realizado porque foi aprovado na prefeitura antes da promulgação da Lei nº 5.261 de 1957. Essa legislação estabeleceu um coeficiente de aproveitamento que limitou a área construída a 6 vezes a área do terreno para prédios comerciais e a 4 vezes para edifícios de habitação coletiva, bem como limitou a taxa de ocupação a 600 habitantes por hectare. A intenção era desadensar, mas hoje sabemos que um dos maiores problemas da cidade é a baixa densidade das regiões providas de infraestrutura. A limitação dos coeficientes de aproveitamento não resultou em respostas satisfatórias aos seus pressupostos. A extensão da mancha urbana acarretou problemas estruturais de locomoção, redes de serviços e administração para sustentar a especulação imobiliária. Atualmente, o Conjunto Nacional ultrapassaria os limites de coeficiente de aproveitamento e taxa de ocupação estabelecidos desde aquela lei. Os recuos obrigatórios também não seriam respeitados, impossibilitando que o projeto fosse aprovado pela legislação urbanística. O edifício se torna, portanto, um exemplo de desenho urbano negado pela própria cidade: após quase cinco décadas de sua construção, convém reavaliar procedimentos de projeto que pudessem oferecer outros desenhos à cidade. DIMENSÃO URBANA Edifícios como o Conjunto Nacional, que abriga uma população diária de aproximadamente 35.000 pessoas18, demandam uma organização administrativa compatível com seu porte. De fato, funcionam com a dinâmica de um trecho da cidade. O projeto de arquitetura permitiu que o edifício mantivesse a integridade de seu partido apesar de todas as intervenções, revisões e acidentes por que passou. Como um plano diretor que conseguisse se adaptar às transformações sociais e técnicas de uma cidade, ele foi concebido com intenção clara: desenho. Ao ser perguntado sobre qual teria sido o ano da inauguração final da obra, Libeskind respondeu que a obra nunca terminara. [17] Guilherme Wisnik aponta "a existência de uma relação evidente entre o brutalismo paulista e as investigações megaestruturais, visível na escala de seus edifícios, concebidos como formas legíveis que pudessem incorporar os equipamentos urbanos" (Formalismo e tradição: a arquitetura moderna brasileira e sua recepção crítica. São Paulo: dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 2003, p. 96). A obra de Libeskind não se enquadra nessa classificação, mas o projeto do Conjunto Nacional indica caminhos posteriormente desenvolvidos pelos arquitetos paulistas. [18] Cf. Iacocca, op. cit., p. 112. CONSIDERAÇÕES FINAIS O projeto do Conjunto Nacional suscita maior interesse quando entendido no processo cultural brasileiro em curso na década de 1950. A obra é exemplo preciso da qualidade de uma produção arquitetônica que dialogava com outras manifestações sociais e artísticas de seu tempo. Os projetos expressavam uma visão otimista quanto ao futuro das cidades, que por meio da técnica construiriam a espacialidade do hábitat humano no seu território. Dessa forma, o exercício da arquitetura assumia um compromisso social, deslocando antigos focos de interesse da profissão. A formulação desses problemas por parte dos arquitetos exigia como resposta ações projetuais contundentes, o que acabou por conferir qualidade aos seus trabalhos — daí a grande quantidade de exemplos do período que se tornaram referências arquitetônicas. [19] Cf. Viégas, op. cit., onde se apresentam em apêndice transcrições de depoimentos do arquiteto. A própria trajetória pessoal de David Libeskind — que retomamos aqui brevemente — reflete o momento cultural vivido pelo país, cujo clima influenciaria decisivamente a concepção do projeto do Conjunto Nacional. A leitura desse projeto sugere que um arquiteto de 26 anos só conseguiria conceber um projeto dessa qualidade e complexidade se estivesse interpretando um desejo coletivo. Talvez isso responda à dificuldade de Libeskind em comentar seu próprio trabalho: "Eu só tive uma semana para entregar o estudo ao Tijurs — esse é o meu projeto mais simples"19. Se no projeto de modernização revelavam-se as contradições de um país atrasado e injusto, a ação de alguns setores da sociedade permitiu ao Brasil se imaginar de forma diferente. E suas conquistas, apesar de restritas, foram efetivas. Como afirma Giulio Cario Argan, [se] a arquitetura moderna brasileira ainda é expressão de uma sociedade capitalista, é preciso reconhecer que, no interior daquela sociedade, ela representa as instâncias de progresso contra as instâncias mais mesquinhas do [20] Argan, Giulio Carlo. "Arte moderna no Brasil". In Xavier, Alberto (org.). Depoimento de uma geração — arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. pp. 173-74. [21] Mammì, Lorenzo. "Uma promessa ainda não cumprida". Folha de S. Paulo, "Caderno Mais!", 10/12/ 2000. conservadorismo, a cultura contra a especulação20. Lorenzo Mammì aponta na mesma direção ao dizer que a bossa nova, uma das expressões artísticas mais marcantes do Brasil dos anos 1950, era expressão de uma sociedade mais articulada, e essa sociedade representava a elite — não a elite do poder, mas a elite da cultura, a mesma que se reconhecia na arquitetura de Niemeyer, nos jardins de Burle Marx, nos relevos espaciais de Hélio Oiticica, na prosa de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Pela primeira vez o Brasil oferecia ao mundo uma imagem que não era apenas sedutora pelo exotismo, mas relevante pelo projeto modernizador que propunha. [...]A partir de 1964 a utopia foi aparentemente enterrada por uma industrialização brutal e totalitária, mas continua ressurgindo teimosa, nas músicas, nos livros, nos projetos arquitetônicos, nas obras de arte [...]21. A contrapelo da idéia de engavetamento de uma produção, o presente trabalho buscou mostrar que a leitura do projeto de David Libeskind para o Conjunto Nacional pode suscitar questões que interessam ao esforço de restabelecer rumos e parâmetros para a atividade do arquiteto no Brasil de hoje. Nesse sentido, podem ser inspiradoras para a arquitetura contemporânea do país estas palavras de Paulinho da Viola acerca da música brasileira: Mas vou lhe dizer: não sinto saudade. Não preciso sentir saudade. A música brasileira me parece uma coisa tão, tão recente... Uma mistura de várias coisas, na situação mais adversa, algo de extremamente diversificado e rico, num espaço muito curto de tempo. Não dá para sentir saudades. Nossa música popular de massa tem o quê? Uns 70 anos. Meu pai tem 83! Então, não tenho saudade. A música está presente22. FERNANDO FELIPPE VIÉGAS é mestre em Arquitetura pela FAU-USP. [22] Entrevista a Arthur Nestrovski e Nuno Ramos. Folha de S. Paulo, caderno "Mais", 25/08/2002, pp. 11-12. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais A REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS (RBCS) existe desde 1986 e já se consolidou como o periódico mais importante na área de ciências sociais stricto sensu. Assinar a RBCS é estar em contato com os temas atuais e as pesquisas recentes realizadas na Antropologia, na Ciência Política e na Sociologia por pesquisadores do país e bons autores estrangeiros. É um espaço de encontro das inovações na reflexão e no discurso das ciências sociais em que a herança dos clássicos da teoria social é desafiada pelos problemas postos à pesquisa contemporânea. A REVISTA BRASILEIRA DE INFORMAÇÃO BIBLIOGRÁFICA EM CIÊNCIAS SOCIAIS (BIB) é uma publicação semestral que já conta com 55 números que oferecem balanços criteriosos, elaborados pelos mais eminentes cientistas sociais, da bibliografia corrente sobre Antropologia, Ciência Política e Sociologia. Resumos das teses defendidas, perfis de programas de pós-graduação e centros de pesquisa apresentados a cada edição transformam a BIB em ponto de partida para a investigação e para o conhecimento das instituições voltadas para as ciências sociais.