desenho de cidade - Revista Novos Estudos

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DESENHO DE CIDADE
O projeto do Conjunto Nacional1
FERNANDO FELIPPE VIÉGAS
RESUMO
O edifício do Conjunto Nacional, projetado por David Libeskind em
1955, é referência arquitetônica em São Paulo. Esse objeto desperta maior interesse quando entendido não como fato isolado, mas como
manifestação da cultura brasileira da década de 1950 e como concretização de um desejo coletivo. O presente artigo busca identificar
suas características e qualidades, especialmente a partir da leitura do projeto.
PALAVRAS-CHAVE: Conjunto Nacional (São Paulo); arquitetura brasileira; urbanismo.
SUMMARY
The Conjunto Nacional building, designed by David Libeskind in
1955, is an importam architectural reference in São Paulo. This object raises a larger interest when seen not as an isolated fact, but as a
manifestation of 1950's Brazilian culture and as realization of a collective aspiration. This article seeks to identify its characteristics and
qualities, particularly from reading the architect's project.
KEYWORDS: Conjunto Nacional (SãoPaulo);Brazilian architecture; urbanism.
[1] Este artigo foi elaborado a partir
de Viégas, Fernando F. ConjuntoNacional a construção do Espigão Central. São Paulo: dissertação de mestrado, FAU-USP, 2003.
Passados cinqüenta anos do projeto original do Conjunto Nacional, situado na esquina da avenida Paulista com a rua
Augusta, em São Paulo, a distância no tempo suscita uma leitura do
edifício que permite oferecer parâmetros para a reflexão sobre a arquitetura contemporânea. Para as gerações de arquitetos mais jovens,
formadas posteriormente aos debates dos anos 1970 e à onda pósmoderna dos anos seguintes, o afastamento em relação à década de
1950 induz à retomada de questões suspensas e possibilita uma visada
crítica ante certa produção que muitas vezes elege temas alheios à
realidade urbana do país.
De lá para cá o Brasil passou a ter população predominantemente
urbana e as metrópoles atingiram grandes extensões territoriais, englobando cidades vizinhas. As ocupações periféricas, pensadas naquele
momento como provisórias, constituem atualmente a maior parte da
paisagem urbana. De acordo com Roberto Schwarz, na década de 1950
a sociedade brasileira "lutava para se completar no plano econômico e
social" e tinha o impulso de pensar a questão da formação nacional,
enquanto hoje "parece razoável dizer que o projeto de completar a
sociedade brasileira não se extinguiu, mas ficou suspenso num clima de
impotência, ditado pelos constrangimentos da mundialização"2. Em
face da complexidade dos problemas atuais, cabe aos arquitetos estabelecer parâmetros técnicos e estéticos que revelem novas formas de
compreensão dos fenômenos urbanos, bem como assumir a
responsabilidade de reformular os próprios enunciados e reinserir a
arquitetura no plano da cultura brasileira. Atividade de interesse
público, ela está relacionada à discussão da qualidade do ambiente
construído, independentemente da escala de cada trabalho.
[2] Schwarz, Roberto. "Os sete fôlegos de um livro". In: Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p.56.
O edifício do Conjunto Nacional, projeto do arquiteto David
Libeskind, é íntimo de muitos paulistanos. Basta um passeio para
perceber que se trata de um espaço diferente na cidade. Cruza-se pelo
interior da quadra, num ambiente animado por lojas de discos, livrarias, restaurantes, butiques, cinemas. Quem chega de carro pode estacionar embaixo e aflorar por uma rampa elíptica que continua
subindo até um jardim, no terceiro andar. Em cada uma das quatro ruas
que o circundam há pelo menos uma entrada para pedestres, todas se
dirigindo a uma praça central. Nesse espaço há telefones públicos, caixas eletrônicos, cafés, bancos para uma pausa e elevadores que conduzem aos escritórios. Moradores estacionam seus carros no subsolo
ou entram a pé pela recepção do prédio, diretamente da rua. A simples
descrição desses percursos aponta valores urbanos aos quais todos
deveriam ter direito. Diante desse modelo de ocupação é difícil entender
por que existem tão poucos exemplos de edifícios na cidade baseados
nesses princípios ou tão poucas cidades baseadas nos princípios desse
edifício.
O Conjunto Nacional ocupa um quarteirão inteiro, o que amplia
suas possibilidades de configuração espacial. Idealizado com base na
idéia da quadra como mínima fração urbana, logrou incorporar um
desenho que revela menos a idéia de um monumento independente do
que o desejo de construir espaços de uso coletivo. Foi, ainda, fundamental na construção da nova paisagem metropolitana ao acentuar o
Espigão Central de São Paulo, por onde circulam milhares de pessoas
diariamente. O edifício, cujas características permitem que seja associado ao tema da dimensão urbana da arquitetura, pode levantar
questões cruciais para a compreensão dos problemas metropolitanos,
transcendendo assim a obra e seu sítio3. Insere-se ainda num processo
de urbanização que expõe as contradições oriundas do embate entre a
[3] Giulio Carlo Argan comenta que
"Vasari foi o primeiro a observar que
a cúpula de Santa Maria Del Fiore
não devia ser relacionada apenas ao
espaço da catedral e respectivos volumes, mas ao espaço de toda a cidade, ou seja, a um horizonte circular,
precisamente ao perfil das colinas
em torno de Florença" ("O significado da cúpula" [1977]. In: História da
arte como história da cidade. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 95).
[4] A compreensão da produção do
espaço urbano nas cidades brasileiras está vinculada às noções de modernização e modernidade. Segundo
Raymundo Faoro, "a modernidade
compromete, no seu processo, toda a
sociedade, ampliando o raio de expansão de todas as classes, revitalizando e removendo seus papéis sociais, enquanto a modernização, pelo
seu toque voluntário, se não voluntarista, chega à sociedade por meio de
um grupo condutor que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes" ("A questão nacional: a modernização". Revista de Estudos Avançados, n° 14,vol. 6,1992, p. 7).
[5] No terreno havia a residência de
Horácio Belfort Sabino, cujo projeto
foi realizado por Victor Dubugras,
arquiteto francês formado na Argentina. Construída entre 1902 e 1904,
era considerada "a mais bela casa artnouveau de São Paulo" (Xavier, Alberto, Lemos, Carlos e Corona Eduardo. Arquitetura moderna paulistana.
São Paulo: Pini, 1983, p. 37).
modernização promovida pelas classes dominantes e a real modernidade do confronto cultural vivido por toda a sociedade4.
O SÍTIO
O terreno do Conjunto Nacional possui 14.600 m2 e é delimitado
ao norte pela avenida Paulista, ao sul pela alameda Santos, a oeste pela
rua Augusta e a leste pela rua Padre João Manoel. Foi adquirido pelo
empreendedor José Tijurs em 19525. Imigrante judeu e ex-motorista de
táxi, Tijurs era então proprietário da maior rede hoteleira do país. Num
momento em que a classe empresarial mantinha proximidade com bons
arquitetos brasileiros, Oscar Niemeyer, Franz Heep, Rino Levi e o
próprio Libeskind, entre outros, participaram da construção desses
hotéis. Tijurs dizia que sua intenção era transformar a Paulista na 5a
Avenida: o modelo de grande empreendimento para a época era o
Rockefeller Center, de Nova York, e muitos arranha-céus norte-americanos fundiam num único edifício programas distintos, simbolizando cidades inteiras.
Vários estudos de projeto foram feitos para o terreno do Conjunto
Nacional. O primeiro foi realizado em janeiro de 1952 pelo escritório
de Gregori Warchavchik, que dois meses depois desenvolveu um
segundo estudo (com o apoio de Carlos Lodi, Jacob Ruchti, Giancarlo
Fongaro e Salvador Cândia) para atingir os padrões requeridos pela
legislação municipal. Em 1953 foi aberto processo de aprovação na
prefeitura com um terceiro projeto, que previa uma área construída de
100.214 m2. No mesmo ano, a junta consultiva formada pela prefeitura
para avaliar a aprovação do empreendimento (da qual participou o
arquiteto Rino Levi), emitiu parecer favorável. Todavia, o então prefeito Jânio Quadros resolveu cassar o alvará concedido, com o intuito
de assegurar o uso residencial de elite na região. Dada a impossibilidade
de implantar aquele projeto, Tijurs encomendou outros estudos. O
projeto de David Libeskind foi aprovado dois anos depois, sem aumento de área em relação ao projeto anterior.
O ARQUITETO
Nascido em Ponta Grossa, Paraná, em 1928, David Libeskind cursou Arquitetura em Belo Horizonte. Estagiou no escritório do arquiteto Eduardo Mendes Guimarães Jr. e foi aluno de Sylvio de Vasconcellos, que desempenhou importante papel intelectual no meio arquitetônico brasileiro. Trabalhou em órgãos do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tomando contato com a obra de
figuras fundamentais da vanguarda arquitetônica nacional, como
Lúcio Costa, Rodrigo Mello Franco de Andrade e Oscar Niemeyer.
Ainda em Minas Gerais, freqüentou as aulas de desenho de
Alberto da Veiga Guignard, tendo como colega de classe Amilcar de
Castro6. Desse encontro e da amizade que estabeleceu com personalidades como Franz Weissmann pode ter nascido a ligação de
sua obra arquitetônica com as artes plásticas. Ele conta que a
princípio imaginou trabalhar como pintor, mas quando visitou pela
primeira vez as construções de Niemeyer para o conjunto arquitetônico da Pampulha em Belo Horizonte decidiu estudar arquitetura.
Seu ingresso na profissão já indicava o interesse pela arquitetura
como expressão artística. O arquiteto manteria produção paralela
como artista plástico: participou de três edições da Bienal de São
Paulo e da mostra "Tradição e ruptura" (Fundação Bienal de São
Paulo, 1984), além de exposições individuais em galerias.
[6] Rodrigo Naves observa que repercutiu na obra do escultor "a necessidade de clareza defendida por
Guignard nas aulas de desenho, a
insistência para que os alunos usassem lápis duro, que, por produzir
sulcos no papel, exigiam decisão no
traço, pois os erros não tinham conserto" ("Uma ética do risco". In: Tassinari, Alberto (org.). Amilcar de
Castro. São Paulo: Cosac & Naify,
1997, p. 20). Resta imaginarmos a
influência sobre o arquiteto.
Ao chegar à capital paulista à procura de trabalho, Libeskind foi
recebido por Luis Saia, que o apresentou a vários colegas do Instituto
de Arquitetos do Brasil (IAB), ponto de encontro de sua geração. Ao
tomar conhecimento do convite de José Tijurs a alguns profissionais
para elaborar o projeto no terreno da Paulista, o jovem arquiteto bateu
à porta do empresário. Precedido por um primeiro esboço, apresentado
em fins de 1954, o projeto do Conjunto Nacional foi concluído em
1955: Libeskind tinha então 26 anos. Os trabalhos por ele desenvolvidos durante a década de 1960 revelam a influência de Richard
Neutra, filiação que o aproximou da obra do arquiteto paulista
Oswaldo Bratke. O seu conjunto de obras é hoje amplamente reconhecido, mas o Conjunto Nacional permanece como o seu trabalho
mais divulgado.
REFERÊNCIAS
Antes da construção do Conjunto Nacional já ocorria na avenida
Paulista um processo de verticalização. Em 1941 os irmãos Marcelo e
Milton Roberto projetaram na esquina com a avenida Angélica o
edifício Anchieta. Em frente, na rua da Consolação, localizaram-se em
1954 os edifícios residenciais Gibraltar e Chipre, com projeto de
Giancarlo Palanti. São de 1953 dois projetos do arquiteto Abelardo de
Souza: o edifício Três Marias, na esquina com a rua Haddock Lobo, e
o Nações Unidas, em que primeiro se desenhou na Paulista uma lâmina
horizontal ligada à rua para o comércio e outra vertical para as
habitações. Anteriormente fora construído na rua Barão de
Itapetininga, com projeto de Oscar Niemeyer, o edifício Califórnia,
com uma galeria comercial e um cinema no térreo. Segundo Regina
Meyer, ao longo dos anos 1950
[t]anto o edifício-galeria quanto o edifício-conjunto reproduziram-se na
metrópole, atestando uma relação positiva entre espaço público e espaço
privado. Sem estar presente nos programas oficiais ou na legislação urbanística
de forma específica, assistiu-se [nesses] projetos a uma valorização simbólica
do espaço público na área central7.
[7] Meyer, Regina M. P. Metrópole e
urbanismo — São Paulo anos 50. São
Paulo: tese de doutoramento, FAUUSP, 1991, p. 44.
[8] "O projeto era característico da
arquitetura brasileira daquela época,
com ênfase no terraço-jardim e nos
pilotis" (cf. depoimento em lacocca,
Angelo. A conquista da Paulista:
Conjunto Nacional. São Paulo, Peirópolis, 1998, p. 58).
[9] Segundo Maria Arminda do Nascimento Arruda, a capital paulista
"deixa de ser apenas aglomeração,
espaço de relações mercantis ou de
produção industrial, passando a ser
fundamentalmente um conjunto cultural a exprimir modos diversos de
significação, de exercício de poder,
de emergência e de acomodações de
conflitos. [...] As comemorações do
IV Centenário [...] decantam o conjunto das questões referentes às noções de modernização, modernidade, modernismo. [...] O evento exprimia, na verdade, o desejo de projetar
uma imagem da São Paulo progressista e moderna" (Metrópole e cultura: São Paulo no meio século XX.
Bauru: Edusc, 2001, p. 70).
[10] Segundo Fernanda Barbara, no
Copan "aparece a proposição do pilotis ocupado, com um programa de
comércio e serviços no térreo, o que
leva a uma nova resolução formal.
Nesse caso, não é a estrutura do edifício que atinge o solo, deixando o
térreo livre e permeável. O pilotis se
desdobra num embasamento" (O
conjunto Ana Rosa e o edifício Copan. São Paulo: dissertação de mestrado, FAU-USP, 2004, p. 274).
[1l] Cf. Colquhoun, Alan. Modem architecture. Nova York: Oxford University Press, 2002, p. 239.
As declarações de David Libeskind acerca de sua formação apontam
como principais referências projetuais diretas e indiretas do Conjunto
Nacional as de Le Corbusier, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa: Corbusier
é visto como um mestre, e de sua obra se ressalta o conceito de "unidade
de habitação"; Niemeyer, como vimos, influenciou Libeskind até mesmo em sua escolha profissional; Lúcio Costa é admirado pelo trabalho
no Iphan e pela tradução que fez das teorias de Le Corbusier.
Nos depoimentos do arquiteto também fica explícita a intenção de
realizar trabalhos com as características do que era identificado à época
como "arquitetura brasileira"8. A repercussão desta no exterior, evidenciada na exposição "Brazil builds", de 1943, e no livro Modern
architecture in Brazil (no qual foi reproduzida a maquete do projeto do
Conjunto Nacional), de 1956, reforçou o clima nacionalista vigente e
posteriormente foi tida como expressão do nacional-desenvolvimentismo. Contudo, a qualidade de muitos trabalhos superou essa
filiação, assegurando-lhes a condição de marco no campo arquitetônico brasileiro.
Já na década de 1940 o ambiente urbano de São Paulo passara a
expressar a intenção da sociedade paulista de transformar a cidade na
grande metrópole brasileira. Os arquitetos de vanguarda contribuíram
para a construção desse intento, que teve seu ápice nas comemorações
do IV Centenário da cidade, em 19549. Vários arquitetos foram seduzidos pelo clima de prosperidade da metrópole, onde a concentração de
grandes investimentos gerava intensa oferta de trabalho. Passaram a se
estabelecer em São Paulo vários arquitetos estrangeiros (na maioria
europeus) e cariocas, a exemplo do próprio Niemeyer, que abriu escritório na cidade e assinou, entre outros, os projetos do parque público
no Ibirapuera, dos edifícios Copan e Califórnia e da fábrica Duchen.
Parece evidente a influência exercida pelos projetos de Niemeyer na
concepção original do Conjunto Nacional, uma vez que o arquiteto já
vinha desenvolvendo uma nova tipologia que aliava uma lâmina
vertical a uma horizontal. Basta examinar os projetos do Copan e do
conjunto Juscelino Kubitschek de Belo Horizonte, ambos de 1951, e o
projeto para o concurso do Paço Municipal de São Paulo, de 1954.
Enquanto Libeskind trabalhava no projeto do Conjunto Nacional, o
Copan estava em obras: não é difícil imaginar a importância dessa
construção para um arquiteto brasileiro recém-formado10.
O projeto que ficou internacionalmente associado a essa tipologia
foi o edifício Lever House, em Nova York, de autoria do escritório
Skidmore, Owings and Merrill, que contava com Gordon Bunschaft
como arquiteto colaborador. Desenvolvido em 1951-52, o edifício foi
um dos primeiros a materializar as visões do pré-guerra de Mies van der
Rohe e Le Corbusier — além do edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde Pública no Rio de Janeiro (1936-45), do qual teria derivado aquele, segundo Alan Colquhoun11. Curiosamente, David
Libeskind afirmou que não conhecia o projeto do Lever House antes da
realização do projeto do Conjunto Nacional (mas conhecia muito bem
o projeto do Ministério). Como esses, muitos outros edifícios construídos em distintos países durante a década de 1950 seguiram partidos
de implantação semelhantes.
O PROJETO
O primeiro estudo de Libeskind para o Conjunto Nacional já afirmava claramente o partido do projeto final: duas lâminas que pareciam
não se tocar, uma vertical, que abrigaria os apartamentos, e outra
horizontal para uma área comercial, cuja cobertura seria um imenso
jardim. As fachadas da lâmina vertical tinham proteção com elementos
vazados, compondo desenhos geométricos. Sobre o jardim superior à
lâmina horizontal pousava um volume que, em planta, tinha a forma de
um losango. A cúpula geodésica cobrindo o conjunto de rampas ainda
não estava presente no primeiro estudo. Tijurs aprovou esse projeto
uma semana depois da entrega, após consultar amigos dos ramos de
construção e hotelaria. Alguns ajustes foram solicitados, e o segundo
estudo ficou conhecido como o projeto original do Conjunto Nacional.
O empreendedor contratou a construtora de Warchavchik e do engenheiro Walter Neumann, o qual viria a conduzir as obras até 1957, ano
em que faleceu.
Tijurs havia pedido somente o centro comercial, mas o arquiteto
propôs conjugar a ele um bloco residencial. A lâmina horizontal com o
bloco comercial, que já ocupava toda a projeção do lote, foi desenhada
elevada do chão, possibilitando que no térreo funcionasse uma galeria
de lojas e de serviços, tais como supermercado, lavanderia, correios,
agências bancárias, restaurantes, salão de festas. O organismo administrativo geral previa telefonia nos apartamentos e nas lojas, gerador
de força e luz, abastecimento de água suplementar e próprio, central de
gás liquefeito e garagem para todos os apartamentos. O catálogo de
vendas do empreendimento enfatizava a idéia do grande centro
comercial: "Um só lugar onde se compra de uma agulha a um avião".
Foram concebidas quatro ruas internas para acesso às lojas e
também como passagem urbana, ligando as vias circundantes. Essas
galerias se cruzam num hall central onde se localizam as prumadas de
circulação vertical, compostas por um conjunto de rampas, elevadores e
escadas rolantes. No nível do terraço-jardim as rampas foram cobertas
por uma cúpula geodésica, de modo a permitir passagem de luz natural.
O seu desenho foi inspirado nos trabalhos que Buckminster Fuller
vinha desenvolvendo nos Estados Unidos, mas a transposição não era
simples: o cálculo da estrutura, toda de alumínio e com aproximadamente trinta metros de vão, demandava grande precisão. O engenheiro Hans Eger viu publicado o anteprojeto de Libeskind e o procurou para oferecer seus trabalhos, logo aceitos. A partir de um módulo
hexagonal foi montada toda a volumetria da cobertura, arrematada
com uma única peça pentagonal de concreto no topo. Essa peça se
apóia no bloco elíptico que concentra a circulação vertical. Placas de
plástico e lã de vidro foram moldadas especialmente para o projeto.
Segundo o arquiteto, foi a primeira cúpula geodésica com tais dimensões construída no Brasil.
O projeto localizava em todas as ruas circundantes algum acesso
importante aos vários programas do edifício. As largas calçadas da
avenida Paulista davam entrada ao grande cinema, posteriormente
transferido para a alameda Santos. Pela rua Padre João Manuel
chegava-se aos subsolos, que abrigavam um estacionamento público e
o serviço de carga e descarga. Junto à alameda Santos, uma grande área
coberta em continuidade com a calçada permitiria aos pedestres entrar
nos blocos residenciais, que tinham torres de circulação vertical com
escadas e elevadores independentes do interior do conjunto. A entrada
dos veículos para atender à carga e descarga dos moradores ficaria nesse
recuo, onde se daria o acesso à garagem própria dos condôminos, no
nível inferior; uma escada elíptica ligaria o subsolo a esse nível. No
entanto, o recuo foi suprimido da construção para dar lugar ao cinema,
criando-se ali uma empena para a rua. Na rua Augusta, por fim, ficou
localizada a portaria do bloco residencial, chamado edifício Guayupiá.
Do térreo para baixo o programa se desenvolve em dois subsolos,
com uma grande área de estacionamentos e serviços de apoio à manutenção do prédio (depósitos, geradores, bombas, cabines de
transformação, entradas da companhia telefônica). No andar superior,
entre o térreo e o terraço, foi previsto um centro de exposições para a
promoção e venda de produtos industriais. Com pé-direito duplo, o
andar permitiria a construção de dois níveis de lojas. As fachadas desse
andar foram protegidas da exposição excessiva ao sol por brises
horizontais. Essas peças foram especificadas em alumínio, mas em
virtude do seu alto custo foram substituídas por lâminas de concreto.
Quando da compra do terreno, firmou-se um compromisso entre José
Tijurs e os antigos proprietários de que seria mantido o jardim que ali
se encontrava. Para cumprir o trato, o projeto previu sobre a lâmina
horizontal um teto-jardim com quase toda a dimensão do lote. Uma
pequena marquise liga a cúpula geodésica ao salão de recepções, cujo
volume se solta como uma caixa suspensa.
Na lâmina vertical, o programa geral se completava com as habitações. Os apartamentos tinham as superfícies maiores com insolação
predominantemente norte/sul. Assim, a maior parte dos dormitórios e
as salas de estar ficavam a norte e os serviços e as circulações verticais a
sul. O projeto propunha oito apartamentos por andar-tipo; as áreas
internas variavam, bem como o número de dormitórios (de dois a
quatro). As fachadas leste e oeste eram praticamente cegas. A face sul
recebia um tratamento homogêneo, com elementos cerâmicos vazados.
O plano para o norte era sombreado pelos mesmos componentes, mas
seu desenho era mais complexo e estabelecia uma composição
geométrico-abstrata para a fachada. Nessa face todos os caixilhos eram
recuados, resultando em uma varanda protegida e contínua. Em razão
da necessidade de comercialização das unidades, surgiu a idéia de
conjugar residências e escritórios. A lâmina já estava sendo concebida
na forma de três blocos com independência estrutural, o que permitia a
construção por etapas. Com a mudança do programa, o único bloco de
apartamentos se manteve com entrada independente, pela rua Augusta.
As prumadas de escritórios passaram a ter acesso pelas galerias internas.
O bloco horizontal foi inaugurado em 1958, mas nesse momento
Libeskind já não se fazia presente em todas as soluções. O salão de
festas no terraço, por exemplo, foi desde o início administrado pelo
restaurante Fasano, que o transformou em local para recepções. O
Fasano abriu ainda uma confeitaria no andar térreo, voltada para as
largas calçadas da avenida Paulista. Mas as maiores interferências no
projeto original ocorreram no nível do terraço-jardim: ao bloco horizontal foram acrescentados um galpão paralelo ao salão de festas e um
restaurante colado à lâmina vertical, próximo à alameda Santos. Essas
construções prejudicaram sensivelmente o uso imaginado para o terraço. Posteriormente acrescentou-se mais um outro galpão e fecharam-se
os pilotis originais, atualmente ocupados por uma academia de
ginástica12.
Em virtude das várias mudanças sofridas pelo programa do edifício, os elementos vazados da fachada norte nunca foram executados.
As varandas permaneceram somente no bloco residencial, construído e
inaugurado antes das prumadas de escritórios. Com o passar dos anos
as galerias internas do térreo foram loteadas e vários obstáculos foram
construídos. Na década de 1970 o condomínio passou por um grave
problema de gestão, e em conseqüência de ocupações irregulares ocorreu
em 1978 um incêndio de grandes proporções na madrugada do dia 4 de
setembro, em que felizmente não houve nenhuma vítima.
A partir de 1984 uma nova administração conduziu um longo processo de reformas e restauração para recuperar o imóvel. Esse trabalho,
do qual Libeskind participou apenas parcialmente, foi de grande importância para a segurança e atualização da edificação. Infelizmente,
porém, nem todas as modificações condizem com a importância do
edifício. Está em andamento um processo de tombamento do Conjunto
Nacional. Ainda não se sabe quais serão os seus critérios, mas é certo
que algumas intervenções poderiam resgatar qualidades espaciais fundamentais para a compreensão desse importante exemplo da
arquitetura paulista.
APONTAMENTOS SOBRE O PROJETO
As descrições até aqui apresentadas fornecem dados suficientes para
compreendermos as principais razões para que o Conjunto Nacional
constitua uma importante referência projetual para os arquitetos de
[12] Nas palavras de Libeskind:
"Apesar de ousado e inteligente, Tijurs não tinha sensibilidade estética. Talvez por isso tenha deturpado o
projeto do edifício. [...] Durante a
construção, ávido por ganhar mais
dinheiro, ele começou a invadir as
áreas comuns do condomínio com
construções extraprojeto" (Iacocca,
op. cit., p. 66).
São Paulo. É a partir da leitura das sugestões advindas do próprio
desenho do projeto que surgem os apontamentos feitos a seguir.
MODELO DE CIDADE As fotos do terreno em 1955 mostram como a
implantação do Conjunto Nacional alteraria o padrão de urbanização
da área. A partir de uma composição abstrata, com uma lógica
intrínseca à própria obra e ao seu sítio, o projeto propõe um modelo de
ocupação das áreas adjacentes à avenida Paulista. O desenho não se
restringe ao objeto isolado, sugerindo uma composição volumétrica
que dialogasse com futuras ocupações. De fato, já se imaginava então
uma avenida que poderia adquirir outro porte, com a escala das
grandes avenidas nova-iorquinas. Uma das maiores qualidades do
projeto é a profunda compreensão do futuro da metrópole e do sítio
onde foi implantado.
[13] Veja-se nesse sentido o depoimento de Paulo Mendes da Rocha:
"A cidade é um desenho que existe
na cabeça do homem antes de sua
concretização. Portanto, ela pode ser
justamente projetada. [Por exemplo,]
na avenida Paulista a melhor quadra é
a do Conjunto Nacional. É a única
em que você não encontra automóvel
saindo da calçada — eles saem pela
rua secundária. É [...] uma questão de
disposição espacial. O Conjunto Nacional é misto, ficaram escritórios e
habitações, e ali há comércio e metrô.
[...] O urbanismo é menos coisa feita
do que associação dos homens"
(Bravo, nº 72, set. 2003, p. 32).
Fica explícita a intenção do arquiteto em estabelecer relações de
continuidade com o passeio público e o tecido urbano. A calha da rua
foi assumida como espaço público por excelência, de acordo com as
formas históricas de uso da cidade e a morfologia existente. Essa postura se diferenciava do enunciado de negação das ruas de Le Corbusier.
A idéia do edifício elevado para a passagem dos jardins (pilotis) adquiria outra característica: a continuidade com o contexto urbano. Todas
as representações gráficas do projeto original — desenhos e fotos de
maquete — inserem a nova construção no tecido existente. A espacialidade proposta para o térreo advém de um desenho integral da
quadra, livre de resquícios da estrutura fundiária fracionada em lotes.
Foi da observação da estrutura e do funcionamento da metrópole que
surgiu sua implantação, apesar da nova escala que a construção impôs
ao entorno13.
COMPREENSÃO DAS ESCALAS URBANAS O projeto procura estabelecer
relações apropriadas com as diversas escalas urbanas em que se insere:
a rua, a quadra, a avenida e a metrópole. A volumetria do conjunto
estabelece noções de referência do espaço a partir de vários pontos de
vista. A marquise, que separa a caixilharia da vitrine em duas partes
(uma para o público e outra superior, a sobreloja), estabelece a escala
para o pedestre. As lâminas horizontais, com o tratamento volumétrico
homogêneo obtido pelos brises, aumentam a noção de profundidade
da quadra em perspectiva, conferindo-lhe a noção de movimento em
velocidade. Acentua-se assim a nova percepção da dinâmica da vida
urbana, na qual os veículos motorizados começam a estabelecer outras
noções espaciais. Já o volume do restaurante e do salão de festas se
debruça sobre a avenida Paulista de modo a estabelecer uma relação
recíproca de apreciação do espetáculo urbano. Colocada sobre o jardim,
a construção desfaz a simetria do conjunto, e suas fachadas, perpendiculares à avenida, garantem a visão em perspectiva da Paulista,
fazendo desse volume um ponto focal da pista. Por fim, a lâmina
[Foto a partir
da esquina da
Avenida Paulista
com a Rua Augusta.
O edifício com
sua conformação
original.]
[Fotomontagem
da maquete do
projeto, de 1955.]
[Inserção de
imagem do projeto
em foto da Avenida
Paulista.]
vertical independente do terraço superior revela a situação geográfica
privilegiada da construção, numa leitura precisa da topografia da
cidade que pretendia ser metrópole.
O skyline do Espigão Central começava a ser definido e a assumir o
papel de marco perene da paisagem paulistana, que só encontrava sua
referência visual natural no Pico do Jaraguá. O edifício, de oitenta
metros de altura, praticamente dobra o espigão, já que este tem uma
diferença média de cotas de cem metros em relação às margens dos rios
Pinheiros e Tietê. Estava em construção uma nova geografia paulistana,
e o Conjunto Nacional veio a ser uma referência emblemática dessa
nova paisagem.
PERCURSOS As plantas do projeto indicam diversos caminhos a
serem percorridos pelos transeuntes, e a apreensão total do conjunto só
é possível através dessas travessias. O desenho do pavimento térreo tem
intenção de dar continuidade ao percurso da rua para o interior da
quadra, protegido do sol e da chuva. Essa permeabilidade só foi possível com a elevação do volume sobre o piso de mosaicos de pedra,
deixando os conjuntos de lojas soltos no espaço interno. Os alinhamentos dessas lojas configuram galerias de aproximadamente onze metros de largura por cinco de altura.
Pode-se perguntar por que não se fez as entradas do edifício nas
esquinas. Se isso tivesse ocorrido, poder-se-ia perder a idéia de configuração da quadra; assim, todas as esquinas foram ocupadas, estabelecendo unidade ao conjunto. As ruas-galeria confluem para o espaço
central, que configura uma praça em torno da qual os caminhos determinam um movimento de rotação. Todas as ruas que compõem o quarteirão têm no mínimo uma entrada para o interior, e todos os blocos de
apartamentos, desde o primeiro estudo, têm entradas diretas por essas
vias, o que garante um endereço preciso. Com os passeios cobertos e as
lojas, as calçadas externas foram valorizadas.
A continuidade do passeio arquitetural é sugerida pelo conjunto
das rampas e do volume elíptico, que materializam esse movimento.
Essa construção central abriga os elevadores, ligando as cotas do 2º
subsolo ao terraço-jardim do 3º andar. As rampas, em volta do volume,
conferem fluidez vertical ao percurso sugerido pelas ruas internas e têm
grande importância visual para o edifício. Seus planos inclinados,
escultóricos, refletem a luz do sol e deixam passar luminosidade pela
fresta que estabelece com a torre de circulação.
A presença desse volume fechado, construído para abrigar os elevadores do bloco horizontal, prejudica a continuidade visual. Talvez
isso explique que haja certa intimidação ao acesso aos andares superiores ou desconhecimento da continuidade do passeio. O terraçojardim ficou um pouco isolado das atividades de caráter coletivo que
ocorrem no térreo, talvez por não ter sido executado como uma grande
área livre, conforme o projeto original. As escadas rolantes, posi-
cionadas próximas às rampas, poderiam fazer essa transição, mas em
razão da mesma restrição visual não indicam os acontecimentos nos
andares contíguos. Cabe constatar que uma cobertura geodésica
daquelas dimensões poderia trazer grande luminosidade ao piso térreo,
ou seja, à praça central. Isso poderia ter acontecido caso a passagem de
luz não fosse obstruída.
DESENHO DO ESPAÇO COLETIVO A distinção entre projetar para o poder
público e para a iniciativa privada se anula no caso do Conjunto
Nacional. Embora seja um empreendimento privado, ele confirma a
missão do arquiteto como agente de transformação do espaço urbano
coletivo. A separação entre arquitetura e urbanismo também se torna
improfícua, ou no mínimo duvidosa, ante a sua capacidade de
explicitar tamanha reflexão crítica sobre os rumos de construção da
cidade. A organização dos programas, permeados por ruas, passagens,
praças, jardins e infra-estrutura, confere ao edifício qualidades próprias
de espaços urbanos que sugerem uma cidade mais generosa e menos
excludente14. Naquele momento o arquiteto atuava com a responsabilidade de sugerir programas, dimensionamentos e possibilidades inéditas de construção dos espaços para o convívio social, e
nessa missão tinha o respaldo de importantes setores da sociedade que
acreditavam na arquitetura não apenas como atividade de interesse
público, mas também como uma manifestação cultural.
COMPLEXIDADE PROGRAMÁTICA Como já mencionado, a idéia de
conciliar o centro comercial desejado por José Tijurs à habitação partiu
de David Libeskind. O desenvolvimento dessa idéia possibilitou então
que uma quadra inteira fosse pensada como um modelo de cidade em
que pudesse emergir da justaposição de programas diferentes a
qualidade da vida urbana idealizada para a grande metrópole brasileira
em formação. Com a complexidade funcional proposta para o Conjunto Nacional imaginava-se dar continuidade ao vetor de crescimento
da cidade afirmado pela rua Augusta. De certa forma, o edifício negou
a setorização das funções urbanas propugnada pela Carta de Atenas. O
Conjunto Nacional foi projetado para amparar tecnicamente todas as
necessidades do cidadão, correspondendo a uma verdadeira unidade
de habitação. Embora não tenham sido realizadas exatamente como
previstas no projeto, as idéias de Libeskind "indicam uma revolução no
atendimento da atividade de morar"15.
HABITAÇÃO Libeskind não queria construir um edifício de
apartamentos monumental, apesar de suas grandes dimensões. Para
tanto, foi transformado em pano de fundo de todo o conjunto,
ressaltando a volumetria dos blocos mais próximos do chão. Na
primeira versão, a fachada para a Paulista foi concebida como um
enorme plano com uma composição geométrica de cheios e vazios.
[14] "A dádiva mais celebrada que
uma cidade em construção, como São
Paulo, pode oferecer à sua população
é a qualidade pretendida por alguma
da sua arquitetura ampliada pelo gesto de, com breves intervenções, gerar
um espaço urbano como um todo
regenerador [...], progredir no sentido da inauguração de mais lugares
que contenham em si uma idéia de
cidade e um ideal de coletivo" (Milheiro, Ana V. "O lugar a que chamamos São Paulo". Revista D'Art (Centro Cultural São Paulo), nº 9/10,
2002, p. 45).
[15] Mendonça, Denise X. de. Arquitetura metropolitana — São Paulo década de 50. São Carlos: dissertação
de mestrado, EESC-USP, 1999, p. 67.
[16] "O cobogó tem o caráter de elemento de justaposição, sua escala é
artesanal e é uma variante das treliças, que protegem o interior das casas coloniais. Do lado externo, o efeito do rendilhado adquire o valor de
uma superfície e, portanto, de vedação. Como é claro, o seu encantamento maior se produz pela vista
interior, ao difundir uma luminosidade rebaixada e íntima. [...] O brisesoleil, invenção de Le Corbusier, é,
ao contrário, um recurso para manter
a noção de exterioridade, de abertura
para fora, sem prejuízo da proteção
contra o sol" (Telles, Sophia S. "Lúcio Costa: monumentalidade e intimismo". Novos Estudos, n° 25,
1989, p. 85).
Predominantemente voltada para o norte, propiciaria para o interior
dos apartamentos uma luminosidade controlada por elementos vazados, aproximando-se da luminosidade criada pelos cobogós e diferenciando-se dos brises de concreto da lâmina horizontal16.
Essa membrana de proteção externa ficaria solta da caixilharia do
edifício, pois tanto os dormitórios quanto a sala (com vista para a
avenida) se abririam para varandas. Revelava-se em Libeskind uma
forte intenção de construir casas brasileiras a uma cota nunca antes
imaginada, com base na tradição de Lúcio Costa e nos estudos que ele
próprio fizera enquanto trabalhava no Iphan. Esse procedimento de
introspecção atesta uma preocupação com o intenso ritmo de crescimento da metrópole. A fachada não apresenta diferenciação entre
apartamentos menores e maiores. Imaginava-se que famílias de diversas
faixas de poder aquisitivo poderiam viver sob o mesmo endereço. Esse
conceito arquitetônico-habitacional — tão diferente daquele hoje predominante — tem no edifício Copan e no conjunto Juscelino
Kubitschek os seus exemplos mais radicais.
OUTRAS COTAS: INFRA-ESTRUTURA A cobertura da lâmina horizontal se
constituiu num novo térreo, multiplicando-se assim a área do terreno.
Nesse solo criado se desenvolve uma composição volumétrica com
procedimentos semelhantes aos do edifício do Ministério da Educação
e Saúde Pública, onde a lâmina vertical se suspende sobre o terreno. O
terraço-jardim foi concebido como um espaço com características de
uso público: uma praça elevada. A cota dessa praça, correspondendo a
cerca de quatro andares, permitiria uma ampla visão da paisagem
paulista. A vista era desimpedida em todas as direções, pois a lâmina
vertical ficava elevada em relação ao plano horizontal.
O acesso principal é feito por rampas que ligam todos os andares,
desde o subsolo até o nível do terraço. Essa solução permite uma
continuidade do passeio público, permeando os andares inferiores que
passavam a fazer parte do desdobramento do térreo, ou seja, das ruas. A
largura da rampa possibilita a passagem de um automóvel à cota do
jardim elevado. As sugestões espaciais são inúmeras. Imaginar-se-ia
uma cidade onde os deslocamentos verticais auxiliassem a resolução de
novas questões urbanas.
O espaço descoberto no terraço funciona como outra fachada do
edifício, observando e sendo observada de diversos pontos de vista. O
desenho sugere a continuidade deste patamar em outras construções —
quadras que seriam ligadas por passarelas sobre as ruas laterais.
O desejo de criação de novas espacialidades se manifesta também
na solução encontrada para o desenho dos subsolos. Tomando-se como
parâmetro esse projeto, em que as garagens ocupam todo o subsolo da
quadra e as entradas estão localizadas em ruas menos movimentadas,
fica clara a precariedade do modelo de cidade predominante em São
Paulo. Aqui, o fato de o motorista poder estacionar o veículo e se dirigir
coberto a qualquer ponto da quadra constitui uma exceção. Nas quadras vizinhas, por exemplo, percebe-se que cada edifício resolve seus
problemas isoladamente em seus lotes: os níveis das lajes dos estacionamentos não coincidem uns com outros, e a avenida é repleta de
guias rebaixadas para a entrada de automóveis, que cruzam o espaço
destinado ao pedestre.
A solução encontrada para os estacionamentos e serviços complementares nos leva a pensar em uma cidade construída com infra-estrutura racionalizada, na qual o subsolo pudesse servir como conexão a
outras atividades urbanas17. O mesmo raciocínio, que imagina uma
cidade funcionando com um novo solo em uma cota de nível a mais de
dez metros do chão, poderia conceber um subsolo conectado a redes de
transporte subterrâneo e a toda a infra-estrutura, utilizada como um
precioso instrumento de desenho urbano.
LEGISLAÇÃO O projeto do Conjunto Nacional só pôde ser realizado
porque foi aprovado na prefeitura antes da promulgação da Lei nº
5.261 de 1957. Essa legislação estabeleceu um coeficiente de aproveitamento que limitou a área construída a 6 vezes a área do terreno para
prédios comerciais e a 4 vezes para edifícios de habitação coletiva, bem
como limitou a taxa de ocupação a 600 habitantes por hectare.
A intenção era desadensar, mas hoje sabemos que um dos maiores
problemas da cidade é a baixa densidade das regiões providas de infraestrutura. A limitação dos coeficientes de aproveitamento não resultou
em respostas satisfatórias aos seus pressupostos. A extensão da
mancha urbana acarretou problemas estruturais de locomoção, redes de
serviços e administração para sustentar a especulação imobiliária.
Atualmente, o Conjunto Nacional ultrapassaria os limites de coeficiente de aproveitamento e taxa de ocupação estabelecidos desde aquela
lei. Os recuos obrigatórios também não seriam respeitados, impossibilitando que o projeto fosse aprovado pela legislação urbanística. O
edifício se torna, portanto, um exemplo de desenho urbano negado
pela própria cidade: após quase cinco décadas de sua construção, convém reavaliar procedimentos de projeto que pudessem oferecer outros
desenhos à cidade.
DIMENSÃO URBANA Edifícios como o Conjunto Nacional, que abriga
uma população diária de aproximadamente 35.000 pessoas18, demandam uma organização administrativa compatível com seu porte.
De fato, funcionam com a dinâmica de um trecho da cidade. O projeto
de arquitetura permitiu que o edifício mantivesse a integridade de seu
partido apesar de todas as intervenções, revisões e acidentes por que
passou. Como um plano diretor que conseguisse se adaptar às
transformações sociais e técnicas de uma cidade, ele foi concebido com
intenção clara: desenho. Ao ser perguntado sobre qual teria sido o ano
da inauguração final da obra, Libeskind respondeu que a obra nunca
terminara.
[17] Guilherme Wisnik aponta "a
existência de uma relação evidente
entre o brutalismo paulista e as investigações megaestruturais, visível
na escala de seus edifícios, concebidos como formas legíveis que pudessem incorporar os equipamentos
urbanos" (Formalismo e tradição: a
arquitetura moderna brasileira e sua
recepção crítica. São Paulo: dissertação de mestrado, FFLCH-USP,
2003, p. 96). A obra de Libeskind
não se enquadra nessa classificação,
mas o projeto do Conjunto Nacional
indica caminhos posteriormente desenvolvidos pelos arquitetos paulistas.
[18] Cf. Iacocca, op. cit., p. 112.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O projeto do Conjunto Nacional suscita maior interesse quando
entendido no processo cultural brasileiro em curso na década de 1950.
A obra é exemplo preciso da qualidade de uma produção arquitetônica
que dialogava com outras manifestações sociais e artísticas de seu
tempo. Os projetos expressavam uma visão otimista quanto ao futuro
das cidades, que por meio da técnica construiriam a espacialidade do
hábitat humano no seu território. Dessa forma, o exercício da arquitetura assumia um compromisso social, deslocando antigos focos de
interesse da profissão. A formulação desses problemas por parte dos
arquitetos exigia como resposta ações projetuais contundentes, o que
acabou por conferir qualidade aos seus trabalhos — daí a grande quantidade de exemplos do período que se tornaram referências arquitetônicas.
[19] Cf. Viégas, op. cit., onde se apresentam em apêndice transcrições de
depoimentos do arquiteto.
A própria trajetória pessoal de David Libeskind — que retomamos
aqui brevemente — reflete o momento cultural vivido pelo país, cujo
clima influenciaria decisivamente a concepção do projeto do Conjunto
Nacional. A leitura desse projeto sugere que um arquiteto de 26 anos só
conseguiria conceber um projeto dessa qualidade e complexidade se
estivesse interpretando um desejo coletivo. Talvez isso responda à
dificuldade de Libeskind em comentar seu próprio trabalho: "Eu só tive
uma semana para entregar o estudo ao Tijurs — esse é o meu projeto
mais simples"19.
Se no projeto de modernização revelavam-se as contradições de um
país atrasado e injusto, a ação de alguns setores da sociedade permitiu
ao Brasil se imaginar de forma diferente. E suas conquistas, apesar de
restritas, foram efetivas. Como afirma Giulio Cario Argan,
[se] a arquitetura moderna brasileira ainda é expressão de uma sociedade
capitalista, é preciso reconhecer que, no interior daquela sociedade, ela
representa as instâncias de progresso contra as instâncias mais mesquinhas do
[20] Argan, Giulio Carlo. "Arte moderna no Brasil". In Xavier, Alberto
(org.). Depoimento de uma geração
— arquitetura moderna brasileira.
São Paulo: Cosac & Naify, 2003. pp.
173-74.
[21] Mammì, Lorenzo. "Uma promessa ainda não cumprida". Folha
de S. Paulo, "Caderno Mais!", 10/12/
2000.
conservadorismo, a cultura contra a especulação20.
Lorenzo Mammì aponta na mesma direção ao dizer que a bossa nova,
uma das expressões artísticas mais marcantes do Brasil dos anos 1950,
era expressão de uma sociedade mais articulada, e essa sociedade
representava a elite — não a elite do poder, mas a elite da cultura, a mesma
que se reconhecia na arquitetura de Niemeyer, nos jardins de Burle Marx, nos
relevos espaciais de Hélio Oiticica, na prosa de Guimarães Rosa e Clarice
Lispector. Pela primeira vez o Brasil oferecia ao mundo uma imagem que não
era apenas sedutora pelo exotismo, mas relevante pelo projeto modernizador
que propunha. [...]A partir de 1964 a utopia foi aparentemente enterrada por
uma industrialização brutal e totalitária, mas continua ressurgindo teimosa,
nas músicas, nos livros, nos projetos arquitetônicos, nas obras de arte [...]21.
A contrapelo da idéia de engavetamento de uma produção, o
presente trabalho buscou mostrar que a leitura do projeto de David
Libeskind para o Conjunto Nacional pode suscitar questões que
interessam ao esforço de restabelecer rumos e parâmetros para a
atividade do arquiteto no Brasil de hoje. Nesse sentido, podem ser
inspiradoras para a arquitetura contemporânea do país estas palavras
de Paulinho da Viola acerca da música brasileira:
Mas vou lhe dizer: não sinto saudade. Não preciso sentir saudade. A música
brasileira me parece uma coisa tão, tão recente... Uma mistura de várias
coisas, na situação mais adversa, algo de extremamente diversificado e rico,
num espaço muito curto de tempo. Não dá para sentir saudades. Nossa
música popular de massa tem o quê? Uns 70 anos. Meu pai tem 83! Então, não
tenho saudade. A música está presente22.
FERNANDO FELIPPE VIÉGAS é mestre em Arquitetura pela FAU-USP.
[22] Entrevista a Arthur Nestrovski e
Nuno Ramos. Folha de S. Paulo, caderno "Mais", 25/08/2002, pp. 11-12.
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