1 HOMOSSEXUALIDADE E GUETO: A EXPRESSÃO DO PRECONCEITO ENTRE HOMOSSEXUAIS MASCULINOS QUE FREQUENTAM ESPAÇOS DE CONVIVÊNCIA GLBTT1 Márcio Alessandro Neman do Nascimento2 Unesp/Assis Fernando Silva Teixeira Filho3 Unesp/Assis∗ RESUMO: A cultura pode ser entendida como um conjunto de manifestações que inclui crenças, artes, leis, costumes e moralidade, além de outros elementos presentes numa sociedade, que surgem das necessidades, criações e regulamentações fornecidas pelos membros de cada comunidade que compõe esta sociedade. Para o enfoque da antropologia cultural, esta seria uma das premissas básicas de qualquer vivência e é, a partir deste enfoque, se analisa a manifestação do preconceito (segregação e diferenciação intragrupal) entre homens que se identificam orientados pela homossexualidade e que freqüentam espaços de convivência GLBTT denominados de guetos. Estes ambientes, de certa forma, “admitem” a expressão de condutas homoeróticas. A linguagem apresentada nos guetos gays, muitas vezes, remetida de forma irônica, utiliza expressões que reproduzem de maneira “caricata” à desvalorização ou ridicularização cotidiana sofrida por muitas pessoas. Entretanto, também é fato que a violência sofrida pelos homossexuais, sugere um novo caráter expressivo e crescente – a relação de poder e hierarquização entre os mesmos. O objetivo deste trabalho é de descrever as relações estabelecidas entre homossexuais que freqüentam guetos gays e o sentido que estes espaços teve e vem adquirindo ao longo de suas existências. Para tal pesquisa, realizaram-se observações participativas nestes locais no município de Londrina-PR. As implicações destas observações participativas levaram a reflexão que o sentido atual dos guetos gays podem ter duas funções: ora o papel de fato de acolhimento, aceitação, cumplicidade e proteção contra as normativas sociais, ora de um espaço de convivência que se reúnem pessoas um espaço em comum, entretanto, com a perpetuação da segregação, diferenciação e expressões de preconceito dentro da própria diversidade sexual. PALAVRAS-CHAVE: Preconceito, Homossexualidade e Gueto. 1 Sigla que designa e representa o movimento social e político de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. 2 Psicólogo, mestrando em Psicologia. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 3 Psicólogo, psicanalista, professor Assistente Doutor junto ao Departamento de Psicologia Clínica. E-mail: [email protected] ∗ [email protected] 2 HOMOSSEXUALIDADE E GUETO: A EXPRESSÃO DO PRECONCEITO ENTRE HOMOSSEXUAIS MASCULINOS QUE FREQUENTAM ESPAÇOS DE CONVIVÊNCIA GLBTT Márcio Alessandro Neman do Nascimento - Unesp/Assis Fernando Silva Teixeira Filho - Unesp/Assis Tanto Spencer (1999) quanto Ariès (1986) indicam que a experiência homossexual está presente em todas as épocas da cultura ocidental. Ainda, Áries (1986) aponta que, as relações sexuais entre homens que fazem sexo com homens são ilustradas pela literatura, ao longo do desenvolvimento da humanidade, em um período em que as representações sociais da homossexualidade não tinham sido capturadas pelos aparelhos interditores do Estado e da Igreja. Katz (1996) indica que o termo homossexual foi usado pela primeira vez em 1869. Costa (1995), além de corroborar de que a idéia do “nascimento” do homossexual seja datada no século XIX, sugere um esforço conjunto da ficção médica e da literatura da época, onde se descreviam os sentimentos, realizações ou decepções afetivo-sexuais, onde acreditavam descrever a natureza psicológica do homossexual a partir do próprio referencial. A visão da homossexualidade varia ao longo da história e a sua aceitação, segundo Weeks (1999), é diferente em cada uma das diversas culturas existentes. O julgamento moral da prática da homossexualidade dentro de uma dada cultura advém de como esta manifesta suas crenças, tabus, preconceitos, produção científica e artística, leis, costumes e exercício dos direitos humanos de seus membros. De acordo com Castañeda (1999), os países latinos, onde se inclui o Brasil, constituem os povos mais homofóbicos do ocidente devido a sua sociedade ser pautada no modelo patriarcal, machista e heterossexista, o que sugere que a busca de espaços 3 urbanos que aceitam e protegem as vivências das práticas homossexuais tenha se tornado uma necessidade. Castells (1999) analisa que, no processo de construção da identidade, um indivíduo ou um ator coletivo pode ter identidades múltiplas, sendo que desenvolve diversos papéis sociais de acordo com os espaços que freqüenta ou pertence ou dos contextos em que os fatos ocorrem. Partindo deste referencial, recorre-se à análise de Castañeda (1999), que afirma que diferentemente do heterossexual, o homossexual nem sempre é homossexual, uma vez que deve “representar” ser heterossexual, dependendo do contexto e situação em que está inserido e com quem esteja, que podem refletir em ameaça e falta de aceitação, entre outras conseqüências vivenciais típicas das pessoas que vivem em sociedade que rejeita a condição homossexual. O termo aplicado aos gays e lésbicas suscita polêmicas devido o gueto envolver questões referentes à sexualidade e, conseqüentemente, à expressão de condutas homoeróticas. Esses espaços, muitas vezes identificados como boates, bares, parques, saunas, praias, pontos de prostituição, segundo Costa (1999), entre outros pontos “subversivos”, possibilita demonstrações públicas de afetos, como, por exemplo, beijar, tocar, flertar, entre outros comportamentos que acontecem somente no âmbito privado, ou seja, como se diz na linguagem própria, “escondido dentro do armário”. Sobre a cultura no gueto, Pollak (1986) expõe que a clandestinidade nos guetos produz características marcantes na cultura homossexual, tais como a linguagem e o humor. A linguagem apresentada nestes ambientes, muitas vezes remetida de forma irônica, utiliza conotações pejorativas, ocasionando uma reprodução da desvalorização ou ridicularização sofrida por muitos homossexuais. O mesmo autor ainda sugere que esta ironia e piadas possuem a função de minimizar a opressão e o mal-estar sofrido por muitos homossexuais. Mesmo na ausência de heterossexuais, a propagação de 4 significados pejorativos é difundida ironicamente, no cotidiano, em solidariedade às humilhações vivenciadas em outras situações. O termo “gueto”, segundo consta no Dictionnaire des Cultures Gays et Lesbiennes de Haboury (2003), designa os bairros onde os judeus tiveram suas residências assinaladas, sendo que o seu sentido foi ampliado para espaços urbanos onde se agrupam certas comunidades, observando o estado de segregação do qual eles são vítimas. Já o Dictionnaire de L’Homophobie de Louis-Georges Tin (2003) acrescenta, citando Tim Madesclaire, que disse em 1995 que o gueto é um “lugar onde a minoria é separada do resto da sociedade”, e completa dizendo que o gueto se porta “como uma metáfora geográfica da condição dos gays” (p. 195). Ainda é encontrado neste dicionário que o termo é controverso, uma vez que a crítica dos militantes gays franceses sugere que ele é uma negação do universal, um “circuito fechado”, um “mundo artificial” e conformista, que limita gays e lésbicas a uma sociedade à parte. Em defesa do gueto, aparecem argumentos que consideram o mesmo como um ambiente que favorece para assumir e expressar a sexualidade e, portanto, permite-os sentirem-se libertos. Ao tratar dos estudos da subcultura homoerótica, Costa (1999) se refere ao gueto como sendo “cultura clandestina” e “formado por um circuito de locais de encontros exclusivos de homossexuais” (p. 96). Ainda, este autor diz que os sujeitos que freqüentam o gueto estão insatisfeitos, pois a liberdade neste lugar é precária e, em um certo sentido, artificial. Entretanto, não podem deixar de freqüentar estes espaços, pois não vislumbram outra alternativa para suas vidas sexuais, tendo, portanto, uma conotação negativa e defensiva do ponto de vista comunitário/social e defensivo. Costa (1999) é taxativo quando afirma que, no gueto, é unânime a busca de uma “transa”. 5 A partir das observações participativas realizadas, pode-se constatar que o conceito “gueto” é um termo histórico, portanto não cristalizado. Para se remeter ao termo, é necessário situá-lo na história e estudar a cultura sobre o assunto e a sociedade naquele dado contexto onde ele aparece (cultura macro-micro-social, relevância, em que condições se estabeleceu e se manteve). Ainda é pertinente considerar o sentido e o significado pessoal (expressão subjetiva) dado a este espaço pelas pessoas que o freqüentam. Durante as observações, recorreu-se, muitas vezes, a algumas conversas informais com pessoas que ali estavam, freqüentadores assíduos e outros que começaram há pouco tempo a freqüentá-lo, diferentes idades, crenças, raças/etnias, classes sociais e escolaridade (embora a grande parte tenha curso superior ou estejam cursando uma faculdade). Vale lembrar que estas observações ocorreram no município de Londrina, em um bar e em uma boate famosos no meio homossexual, não recorrendo a outros espaços para relatar tal estudo. Ainda, em relação às conversas informais travadas, recorreu-se a quatro perguntas rápidas que foram suficientes para revelar a plasticidade destes ambientes, assim como para conhecer um pouco do sentido e significado ao gueto dado pelos freqüentadores, que são: “Para quê você vem ao gueto?”; “O que acontece e o que encontra aqui?”; “O que você gosta daqui?” e, “O que você não gosta aqui?”. Na análise das observações participativas, concomitante a análise dos discursos dos freqüentadores, nota-se a existência da violência velado e expressiva do preconceito e a hierarquização do poder dentro do gueto gay, ou seja, entre os próprios homossexuais. Se antes, segundo Pollak (1986), a linguagem e o humor nos guetos denotavam cumplicidade e amenização da angústia dos sujeitos, atualmente, os discursos expressam significados e identificações de situações e de indivíduos de forma 6 pejorativa, na forma estendida e potencializada da reprodução da valoração moral (preconceito e estigma e classificações) de maneira interditiva da cultura heterossexista. Em relação ao significado do gueto, é notório que a maioria busca parceiros sexuais neste espaço, no entanto, este fato não é extremamente único como afirma Costa (1999), pois é fato em observações e relatos que a sociabilidade é muito procurada e possível nestes espaços. Relatam saber que a falta de aceitação social dificulta o relacionamento, seja no campo da amizade ou afetivo-sexual. Remetem-se ao gueto também como um espaço facilitador para a expressão sexual e da cumplicidade entre pessoas em um mesmo ambiente social. Relevam o desejo de poderem se comportar, como o fazem nos guetos, em ambientes como o shopping, por exemplo, e que nem sempre o gueto é acolhedor e aceita os diferentes estilos de vida e condutas homoeróticas. Por fim, respeitando-se as condições explicadas anteriormente que a pesquisa foi realizada conclui-se que, os guetos gays observados podem ter duas funções: ora o papel de fato de acolhimento, aceitação, cumplicidade e proteção contra as normativas sociais, ora de um espaço de convivência que se reúnem pessoas um espaço em comum, entretanto, com a perpetuação da segregação, diferenciação e expressões de preconceito dentro da própria diversidade sexual. Referências Bibliográficas ARIÈS, Philippe. Reflexões sobre a história da homossexualidade. In: ARIÈS, Philippe & BÉJIN, André (orgs.) Sexualidades Ocidentais: contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. Tradução de Lygia Araújo Watanabe e Thereza Christina Ferreira Stummer. 2º ed., São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 77-92. CASTAÑEDA, Marina. Comprendre l'homosexualité : Des clés, des conseils pour les homosexuels, leurs familles, leurs thérapeutes. (Collection Réponses) Paris : Editions Robert Laffont, 1999. CASTELLS, Manuel, O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, v.2, 1999. 7 COSTA, Jurandir Freire. A face e o verso – estudos sobre o homoerotismo II, São Paulo: Ed. Escuta, 1995. HABOURY, Frédéric. Dictionnaire des cultures gays et lesbiennes. Paris: Larousse, 2003. KATZ, Jonathan Ned. A invenção da heterossexualidade. Tradução Clara Fernandes. RJ: Ediouro, 1996. POLLAK, Michael. A homossexualidade masculina, ou: a felicidade do gueto? In: ARIÈS, Philippe & BÉJIN, André (orgs.) Sexualidades Ocidentais: contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. Tradução de Lygia Araújo Watanabe e Thereza Christina Ferreira Stummer. 2º ed., São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 54-76. SPENCER, Colin. Homossexualidade: uma história. Tradução de Rubem Mauro Machado. 2º ed., Rio de Janeiro: Record, 1999. TIN, Louis-Georges. Dictionnaire de l’homophobie. Paris: Presses Universitaires de France, 2003. WEEKS, Jeffrey. O corpo e a Sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 35-82.