a lírica moderna e a crise da linguagem: pessoa e eliot

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A LÍRICA MODERNA E A CRISE DA LINGUAGEM: PESSOA E ELIOT
Odorico Leal de Carvalho Júnior – UFMG
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Resumo: Este artigo parte de questões acerca do discurso filosófico da modernidade para discutir a
idéia da crise da linguagem tal como problematizada na lírica moderna, a partir das poéticas de
Fernando Pessoa e de T.S.Eliot.
Palavras-Chave: Modernidade; Linguagem; Pessoa; Eliot.
Abstract: This article starts from problems regarding the philosophical discourse of modernity in
order to discuss the idea of the crisis of language as it was problematized in modern liric, following
the poetics of Fernando Pessoa and T.S.Eliot.
Keywords: Modernity; Language; Pessoa; Eliot.
Os princípios universalmente válidos da comunicação literária são os seguintes:
1) devemos ter algo que precise ser comunicado; 2) devemos ter alguém a quem
possamos comunicá-lo; 3) devemos realmente comunicar, partilhá-lo com esse
alguém, e não apenas exprimir-nos a nós mesmos. Do contrário seria preferível
calar.
Schlegel
...every attempt
Is a wholly new start, and a different kind of failure
T.S.Eliot, East Coker
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já
É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.
És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.
Fernando Pessoa, Cancioneiro
Em O Discurso Filosófico da Modernidade, Jürgen Habermas aponta Hegel como o
filósofo que inaugura o discurso da modernidade, discurso que, já naquele primeiro
momento, se instaura enquanto crítica. Ao fixar a subjetividade como princípio dos novos
tempos, Hegel frisa sua tendência à crise. Trata-se de novos tempos marcados pelo que
Marx Weber chamou de desencanto do mundo: a progressiva racionalização da experiência
do homem, rompendo com a estrutura religiosa que sustentava os antigos modelos de
comunidade. A modernidade, por sua vez, “sem modelos, aberta ao futuro e ávida por
inovações, só pode extrair seus critérios de si mesma” (HABERMAS, 2002, p. 60), à luz de
rupturas informadas por experiências históricas como a Reforma, o Renascimento e o
começo da ciência natural moderna. A partir de Hegel, inaugura-se, portanto, uma nova
tradição filosófica, relacionada à idéia de uma autocertificação da modernidade, que, para
Hegel, é o tema fundamental da filosofia. Hegel, entretanto, não pretende, como o deseja,
na contemporaneidade, um pensador como Jacques Derrida, “ir para fora da filosofia” 1;
busca ainda resolver as contradições da modernidade a partir da própria modernidade. Para
Hegel, a subjetividade estabelece um estado de cisão, marcado pela reflexão e pela
liberdade, mas que é incapaz de substituir o poder de unificação da religião. A partir dessa
constatação, o filósofo desenvolverá seu conceito de absoluto, na esperança de que a razão
possa constituir um poder unificador. É com Nietzsche que o projeto moderno, centrado no
sujeito, será categoricamente rejeitado. Em O Nascimento da Tragédia, o jovem Nietzsche
escreve:
A origem da formação histórica – e sua contradição radical e intrínseca
com o espírito dos „novos tempos‟, de uma „consciência moderna‟ – essa
origem tem de voltar ela própria ser conhecida historicamente; a história
tem de resolver o problema da história; o saber tem de voltar o dardo
contra si mesmo – esse triplo tem de é o imperativo dos „novos tempos‟,
caso se encontre nele algo realmente novo, poderoso, vital e originário
(NIETZSCHE apud HABERMAS, 2002, p. 125).
Contra a razão, Nietzsche oferece o outro da razão, que o filósofo encontra no mito
de Dionísio. Nietzsche, entretanto, não pretende um retorno às origens míticas; tem
consciência de que tal retorno é impossível. Aposta, portanto, no futuro, o que fornece à sua
filosofia um caráter utópico, que informará, mais tarde, muito das experiências das artes de
1
Sobre esta questão, ver o ensaio “Estrutura, signo e jogo no discurso das ciências humanas”, em A escritura
e a diferença, de Jacques Derrida.
2
vanguarda no século XX, bem como a filosofia de Heidegger e, mais próximo de nós, o
supracitado Jacques Derrida.
Dentro desse contexto de reflexão acerca da modernidade, Habermas acentua o forte
intercâmbio entre o discurso filosófico, por um lado, e o discurso estético por outro. Dentro
do âmbito da lírica moderna, a discussão sobre a modernidade firma-se em meados do
século XIX, com as reflexões de Baudelaire sobre a dupla natureza da arte, que produziria
uma síntese entre o imutável e o transitório. O exemplo de Baudelaire, como, pouco antes
dele, o de Edgar Allan Poe, é exemplar no sentido de revelar uma das marcas essenciais da
poesia moderna: a relação entre crítica e criação. Se a filosofia da modernidade está voltada
para a discussão da própria modernidade, do tempo presente, e, com Nietzsche, para a
discussão da própria possibilidade da existência da filosofia tal como a concebeu a
civilização ocidental até aquele ponto, a poesia moderna, já em Poe e Baudelaire, será
marcada pela reflexão crítica acerca do lugar da poesia e, com o modernismo, da própria
possibilidade da poesia. Nesse sentido, Graham Hough, em ensaio inserido no clássico
Modernismo 1890-1930, aponta Baudelaire como o primeiro poeta moderno, pois o francês
é aquele que se coloca fora de qualquer papel estabelecido para o poeta pela tradição – “o
amante, o cortesão, o patriota, o sábio ou o contemplativo místico” (HOUGH, 1989, p.
255)–, que enuncia a partir de um lugar marginal, radicalmente novo, e cujo tema é
propriamente o conflito entre a possibilidade do Ideal e a constante interrupção dessa visão
pelo que o poeta nomeia de Spleen, o tédio, mas que, seguindo as reflexões de Irene
Ramalho dos Santos sobre a lírica moderna, em seu Atlantic Poets, poderíamos chamar de o
político2 ou, seguindo Wallace Stevens, no ensaio The Noble Rider and the Sound of Words
(STEVESN, 1951), podemos compreender como the preasure of reality.
Aqui cabe um excurso sobre o conceito de poesia moderna, tal como o utilizamos
neste ensaio. Graham Hough, como dissemos, vê em Baudelaire o primeiro poeta moderno.
Assim o compreende porque admite que é Baudelaire “o primeiro a aceitar a posição
desclassificada, desestabelecida do poeta, que não é mais o celebrador da cultura a que
pertence, o primeiro a aceitar a miséria e a sordidez do cenário urbano moderno”. Se
2
A definição do político para Irene Ramalho Santos é esta: “....naturalized structure of Western Society as it
shapes and conditions people‟s lives, and as they are made to perceive and experience it, rather than the
capacity to intervene in and change it for the better” (SANTOS, 2003, p. 222). A estudiosa afirma que a
interrupção da visão poética pelo político é o processo que possibilita a realização material do poema
moderno.
3
concordarmos com estes três critérios – a aceitação da posição desclassificada, a recusa da
celebração da cultura a que pertence e a aceitação do cenário urbano moderno -, Baudelaire
é de fato o primeiro poeta moderno. Entretanto, parece haver um critério mais amplo, dos
quais os três citados derivam. Como procuramos indicar, a grossíssimo modo, a partir do
discurso filosófico, na abertura deste artigo, a modernidade se estabelece como produto de
rompimentos com estruturas do passado, rompimentos estes derivados de um processo de
esclarecimento contínuo, que solaparam as bases religiosas das sociedades ocidentais. A
partir do estabelecimento dessas rupturas, cuja culminação é a própria sociedade moderna,
o poeta já não pode, tal como não o pode a própria sociedade moderna, recorrer a formas e
experiências do passado como sustentáculo para sua própria experiência.
Já no mais antigo programa sistemático do idealismo alemão, de fins do século
XVIII, Schelling, Hegel e Hölderlin propõem confiar à arte a religião, para renová-la e
garantir a totalidade ética que a religião tradicional já não conseguia garantir. Apesar da
ambição idealista, logo abandonada por Hegel, o que se infere dessa empreitada poéticofilosófica é a falência de uma estrutura de crenças compartilhadas pela comunidade, que
possa funcionar como espaço para a instalação da voz do poeta. Se Homero tinha atrás de si
a selvagem mitologia grega, se Dante tinha atrás de si o sistema filosófico-religioso de
Santo Tomás de Aquino, ou se mesmo Shakespeare, inserido num período de profunda
crise espiritual na Europa (o período maneirista, segunda Hauser), tinha ainda atrás de si
toda uma sustentação humanista, uma tradição clássica que abrangia tanto o nobre como o
grotesco, que transparecem numa peça como Rei Lear, o poeta moderno é aquele que, por
sua vez, não possui tradição que o ampare, que está desenraizado e deslocado, que deve
construir uma mitologia própria. O poeta mais exemplar, nesse sentido, parece ser William
Blake, que, estilhaçando a colossal empreitada judaico-cristã do Paraíso Perdido, de
Milton, constrói, a partir desses fragmentos e de suas próprias percepções, uma nova e
exótica mitologia (lamentada por Eliot, que jamais abandona a perspectiva cristã, e saudada
por Yeats, outro criador de uma mitologia profundamente individual).
Entretanto, é Wordsworth quem primeiro encarna por excelência esse dilema do
poeta moderno, destituído de mitos, que precisa encontrar no mundo uma fonte de
4
significado que sacie a necessidade humana por significado. É este o tema de sua obra3.
Toda a obra de Wordsworth, desde Tintern Abbey até o Prelude, configura um longo
esforço do poeta para resolver contradições eternas da experiência humana, mas agora
dentro de um contexto completamente novo, informado pela Revolução Francesa, que
alterara todo o modo mental da Europa. Para isso, o poeta conta apenas com a própria
mente e seu próprio poder imaginativo. O subtítulo de Prelude, que seria a abertura para
Recluse, a última e inacabada obra de Wordsworth, é “growth of a poet’s mind”, e, no
prefácio, de 1814, o poeta expressa “a determination to compose a philosophical Poem,
containing views of Man, Nature, and Society”, bem como “examine how far Nature and
Education had qualified him for such an employment”. Uma vez que o poeta está
irremediavelmente destituído de uma tradição, ele deve recolher-se (Recluse é o título do
poema por vir, que não veio de todo) dentro da própria mente e meditar sobre como a
natureza e a cultura lhe qualificariam para a empreitada. Para expor de modo mais
contundente o lastro dessa transformação, basta pensarmos no oposto imediato, em
Homero, e em como seus poemas eram para os gregos a base da própria educação, como
explica Curtius, no seu monumental Literatura Européia e Idade Média Latina. Curtius, ao
traçar a tradição que informa a literatura européia, através do estudo dos topoi, ressalta uma
continuidade que parte da literatura clássica, atravessa toda a Idade Média e alcança a Idade
Moderna. O filólogo, entretanto, ressalta que tal continuidade só pode ser verificada até
Goethe. Com a instauração das reflexões e da autoconsciência da modernidade, há uma
ruptura. Nesse ponto, encontramos Wordsworth. Sem uma tradição, o que lhe autoriza
enquanto poeta? A sua própria subjetividade? A partir desse momento, a arte transforma-se
em reflexão sobre a arte. Em Wordsworth, as idéias dos pensadores de Iena se realizam
profundamente. Sobre o grupo de Iena, Habermas explica:
Friedrich Schlegel e Friedrich Schiller , em seus trabalhos Estudos de
filosofia grega e (1797) e Poesia Ingênua e Sentimental (1796),
atualizaram a questão da querelle francesa, destacaram a peculiaridade da
poesia moderna e tomaram posição no dilema que se produzia quando era
necessário conciliar o modelo da arte antiga, reconhecido pelos
classicistas, com a superioridade da modernidade. Ambos descrevem de
modo semelhante a diferença de estilo como uma oposição entre o
3
Esta questão é discutida de modo brilhante, à luz da poesia modernista de Wallace Stevens, por Lucy
Beckett (1974).
5
objetivo e o interessante, a cultura natural e a artística, o ingênuo e o
sentimental. Contrapõem à imitação da natureza dos clássicos, a arte
moderna como um ato de liberdade e de reflexão. [...] Para o poeta
reflexivo da modernidade, a perfeição da poesia ingênua tornou-se, de
fato, inatingível; em vez disso, porém, a arte moderna aspira ao ideal de
uma unidade mediada com a natureza, e isto é „infinitamente preferível‟ à
meta que a arte antiga atingiu com a beleza da natureza imitada
(HABERMAS, 2002).
Hegel, na esteira do pensamento de Schiller, compreenderá a arte enquanto forma
sensível em que o absoluto é apreendido através da intuição, ao passo que, na religião e na
filosofia, o absoluto já se representaria. Desse modo, a arte clássica, mesmo com a sua
vitória estética, ao cristalizar-se em modelo, não apresenta o potencial de abordagem do
absoluto da arte romântica. Habermas, citando Hegel, conclui:
„A forma artística clássica atingiu com efeito o ponto mais alto a que a
sensibilização da arte é capaz de conduzir‟, falta, contudo, à sua
ingenuidade a reflexão sobre a limitação da esfera artística enquanto tal,
visivelmente saliente na tendência romântica à dissolução (HABERMAS,
2002).
É essa “reflexão sobre a limitação da esfera artística enquanto tal”, ou seja,
limitação da capacidade da linguagem de dar conta da experiência, que transparece já na
obra de Wordsworth e que informará toda a poesia moderna. O objetivo aqui, no entanto,
não é, está claro, defender Wordsworth como o primeiro poeta moderno (embora um crítico
como Harold Bloom não hesite em afirmar que, com Wordsworth, encontramos algo
completamente novo em poesia)4. A intenção por trás deste excurso era construir, ainda que
apenas em esboço, o panorama filosófico e cultural em que, a partir deste ponto,
procuraremos discutir as reações e os projetos de dois dos maiores poetas modernistas para
esse estado de cisão na sociedade moderna que, um século depois dos esforços de
Wordsworth, tornara-se ainda mais problemático. O cotejo dessas duas visões acerca da
poesia no contexto das primeiras décadas do século XX deverá ajudar na compreensão
desse período marcado por contradições cada vez mais sensíveis.
4
Bloom, Gênio, p.294
6
II
J. Alfred Prufrock5 já viu tudo: as manhãs, as tardes, os entardeceres. Todos os
argumentos lhe são entediantes. Conhece sobretudo os olhos que o fixam “in a formulated
phrase” – é ele próprio o paciente anestesiado sobre a mesa, da abertura de sua canção de
amor, a ser dissecado: “how his hair is growing thin!”. Assemelha-se ao Álvaro de Campos
da primeira fase, antes de conhecer seu mestre Caeiro, o Álvaro de Campos anestesiado
pelo ópio, na vida de bordo, que o a de matar, de quem se diz que sabe inglês
perfeitamente. Campos também viu tudo: “Pertenço a um gênero de portugueses que depois
de estar a Índia descoberta ficaram sem trabalho”. Atravessa essas duas personas
modernistas o cansaço da civilização, a atmosfera decadentista que Nietzsche tão
profundamente rejeitou. É com ironia e auto-depreciação que Prufrock comenta seu
“necktie rich and modest”. Campos, cujo próprio monóculo o faz parecer “um tipo
universal”, lança-se a viagens, mas desde sempre as sabe inúteis: “A terra é semelhante e
pequenina”, logo “não vale a pena ter ido ao Oriente”, como, para Prufrock, também não
valeria a pena “disturb the universe”. Antes deles, em “A Viagem”, Baudelaire escrevera:
“Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe? Au fond de l'Inconnu pour trouver
du nouveau !”. Também essa viagem ao fundo do desconhecido será desacreditada, e agora
já no pleno espírito de experimentação estética do modernismo, por Rimbaud, na sua
“Alchimie du verbe” – é com ironia que Rimbaud constrói, para recusar por fim (“Cela s'est
passé”), o modo mental do poeta enquanto savant:
Je rêvais croisades, voyages de découvertes dont on n'a pas de relations,
républiques sans histoires, guerres de religion étouffées, révolutions de
moeurs, déplacements de races et de continents : je croyais à tous les
enchantements. [...] J'écrivais des silences, des nuits, je notais
l'inexprimable. Je fixais des vertiges [...].
Nesta enumeração de visões, já se insinua a exaustão de que Prufrock (todo ele,
mais que visões, revisões) e Campos são os correlatos objetivos6. Se Wordsworth, no seu
5
Neste momento do artigo, trabalharemos uma leitura comparada de Love Song of J.Alfred Prufrock, de
T.S.Eliot, e Opiário, de Fernando Pessoa.
6
A expressão é de Eliot e é explicada no ensaio Hamlet.
7
esforço por significado, encontra, no espírito romântico de dispersão e comunhão com uma
Natureza transformada pela imaginação criativa, ou o poder esemplástico de Coleridge,
Prufrock e Campos experimentam no mundo natural não uma dispersão libertadora, mas
antes uma auto-destruição desejada e nunca realizada: “sonhos que dessem cabo de mim e
pregassem comigo nalgum lôdo”; “I should have been a pair of ragged claws scuttling
across the floors of silent seas”. Atravessa-os, afinal, a sensação inútil de vida
desperdiçada: “Nunca fiz mais do que fumar a vida”; “I have measured out my life with
coffee spoons”.
Nietzsche, em Crepúsculo dos Deuses, obra datada de 1888, coincidentemente o
ano do nascimento de Eliot e de Pessoa, afirma que só conseguimos encontrar palavras para
aquilo que em nossos corações já está morto. Tal reflexão aponta para um dos aspectos
fundamentais do modernismo: a crise da linguagem. Como explica Richard Sheppard, em
outro ensaio do clássico Modernismo 1890-1930, a idéia de uma crise da linguagem não é
exclusiva do modernismo. De nossa parte, podemos lembrar a insatisfação de Hamlet,
numa de suas citações mais recorrentes e sintéticas, pronunciada ao ser questionado por
Polonius sobre o que estava a ler: “words, words, words”, responde o príncipe. A própria
repetição enfadonha e desdenhosa sugere um desacordo entre linguagem e experiência,
como se a linguagem se constituísse apenas de repetições previsíveis, que não dessem conta
de exprimir o real, como se o real fosse sempre neutralizado na palavra, como se, seguindo
Nietzsche, o real, ao ser expresso, já estivesse morto. A crise da linguagem, no entanto, é,
num período de profunda diversidade como o período modernista, um aspecto comum, uma
ansiedade generalizada, é a discussão por excelência da arte modernista (embora, como o
vimos, também da arte moderna de modo mais geral), desde o gesto extremo de Duchamp,
rompendo definitivamente com a tradição que, contradita ou remodelada, ainda informava a
obra de um Picasso, até a música de John Cage ou a página branca de Mallarmé. Sobre essa
crise, Richard Sheppard escreve:
Essa sensação esmagadora da iminência da esterilização lingüística e da
morte da imaginação é um aspecto de um problema sociocultural muito
mais amplo: a substituição de uma ordem aristocrática, semifeudal,
humanista e agrária por uma ordem de classe média, democrática,
mecanicista e urbana. A transição [...] representava para esses poetas o
abandono de uma ordem cuja linguagem era poeticamente manipulável,
8
cujas estruturas eram espaçosas e globais, cujas formas impressionavam
em sua aparente permanência e arraigamento (SHEPPARD, 1989, p. 255).
É, portanto, parte do estado de cisão que, desde a primeira crítica à modernidade, a
de Hegel, é debatido, ora com fins a resolvê-lo, ora com fins a abandoná-lo por completo,
mas que, no período modernista propriamente dito, alcança, muito através da arte e da
teorização dos próprios artistas, o ápice de sua problematização.
Em “The Love Song of J. Alfred Prufrock”, a crise da linguagem instaura-se, para
usar os termos de outro poema de Eliot, no espaço entre a potência e a existência. Prufrock
gira de modo labiríntico ao redor de uma questão que jamais é pronunciada (“oh, but do not
ask „what is it‟”). Eliot desgostava do termo poesia lírica, preferia classificar sua própria
poesia como poesia meditativa, o que abarcaria muito da poesia escrita por Pessoa. No seu
último grande esforço, os “Four Quartets”, encontramos poesia meditativa – um longo
monólogo reflexivo sobre o tempo. Mas “Prufrock” não se trata de uma meditação, no
sentido de que um poema como “Among School Children”, de Yeats, é uma meditação.
Esta persona eliotiana mal chega a ser uma persona de fato: não tem contorno delimitado –
é a lírica a representar o fluxo de consciência, a revery, que marcará o experimento
modernista de Joyce e Woolf. O eu do poema é apenas uma função, um motivo, um ponto
de recomeço, diante da mesma questão impronunciada. Mas, se fôssemos desobedientes,
perguntaríamos: que questão é essa? Arrisco-me a supor que seja: como harmonizar
potência e existência, linguagem e experiência? Depois de vários recomeços hesitantes
(“and how should I begin?”), o hamletiano Prufrock, hamletiano no fato de ser uma
personagem que adia o trágico e instaura a reflexão, como Hamlet o é durante a maior parte
da peça de Shakespeare, conduz o momento para uma crise:
After the sunsets and the dooryards and the sprinkled streets,
After the novels, after the teacups, after the skirts that trail along the floor
And this, and so much more?
It is impossible to say just what I mean!
But as if a magic lantern threw the nerves in patterns on a screen
Aqui encontramos uma imagem ou, seguindo Eliot, um correlato objetivo eficiente
para expressar poeticamente a crise da linguagem de que falamos. Esta “canção de amor” (a
crise sugerida na própria falta de sincronia entre o gênero de canção que o poema pretende
ser e o conteúdo do próprio poema) é publicada pela primeira vez em 1915. A Grande
9
Guerra em andamento. Se a crise já era sentida, depois da experiência de devastação da
Europa, a realização mais macabra do projeto da modernidade, bem como a expressão mais
contundente de seu suposto fracasso, a linguagem do passado já não era capaz de dar conta
de comunicar a experiência contemporânea. É impossível dizer exatamente o que ele quer
dizer, nos fala Prufrock: seria preciso que uma lanterna mágica projetasse numa tela a
constelação de nervos. Eis uma imagem que comunicaria algo (imagem, aliás, que
compartilharia muito com as pinturas surrealistas). Para o poeta modernista, a poesia, como
o próprio Eliot afirma, precisa ser difícil7, e assim é porque já não pode falar diretamente, já
não pode referir-se comodamente a uma Tradição ou a uma Verdade, nem mesmo um poeta
como Eliot, cuja poesia já foi bastante lida como um processo de conversão ao cristianismo.
Mas, para Eliot, a fé é inseparável da dúvida, idéia muito bem realizada no poema “The
Journey of the Magi”.
À luz da intensificação dessa crise, é possível compreender melhor o fenômeno da
impessoalidade na poesia moderna, o progressivo desaparecimento do eu que, em
Wordsworth, ainda constituía o centro do poema. Na poesia de Eliot, este desaparecimento
do eu constitui-se na própria organização do poema. Em “The Waste Land”, o leitor
depara-se com uma sucessão de imagens urbanas que pretendem simular uma ordem
simultânea, através de uma linguagem encantatória que recupera vozes do corpus da
tradição, forçando-as a comunicarem sob a pressão do panorama contemporâneo. A mente
do poeta parece agir, como o próprio Eliot teoriza no célebre ensaio “Tradição e Talento
Individual”, como um catalisador, um meio onde esses fragmentos se agrupam num todo
sem centro (em Pessoa, o descentramento do sujeito é dramatizado para além do texto, na
explosão heteronímica). Nos “Four Quartets”, entretanto, o eu é reabilitado. Malgrado o
levante modernista, que Eliot protagonizara ao lado de Pound, contra a estética romântica –
os mandamentos imagistas de Pound, por exemplo, constituíam uma poética
simetricamente avessa à poética romântica –, Eliot retoma num poema de longo fôlego o
tom meditativo, que, embora utilize-se de técnicas propriamente modernistas – a
justaposição de tempos e espaços, a fantasmagoria urbana, a citação e a paródia –, remonta
à tradição reflexiva de Wordsworth. Em “Little Gidding”, o último quarteto, o eu lírico,
entre as ruas bombardeadas de Londres, durante a Segunda Guerra Mundial, encontra um
7
Ver o ensaio Os Poetas Metafísicos.
10
“familiar compound ghost”, o próprio fantasma da Tradição, que, para Eliot, jamais
significava uma cultura morta, mas que, pelo contrário, constituía um organismo vivo,
sempre em comércio com o presente. No final do diálogo, o fantasma diz:
And last, the rending pain of re-enactment
Of all that you have done, and been; the shame
Of motives late revealed, and the awareness
Of things ill done and done to others' harm
Which once you took for exercise of virtue.
Then fools' approval stings, and honour stains.
From wrong to wrong the exasperated spirit
Proceeds, unless restored by that refining fire
Where you must move in measure, like a dancer.
Este espírito exasperado, que prossegue, de erro em erro, por um momento nos
recorda a figura hesitante e andarilha de Prufrock. Prufrock, no entanto, não suporta o peso
da questão exasperadora, e esquiva-se dela a todo tempo, entre mulheres que vão e vêm, a
falar de Michelangelo. A questão que sugerimos, como harmonizar linguagem e
experiência, não encontra resposta fácil. Passa, entretanto, por uma síntese de contradições:
“you must move in measure, like a dancer” (verso que ecoa imagens de Yeats, outro poeta
moderno que procurou essa síntese entre Ideal e Real). Mas passa também pela memória e
pelo fracasso. Se Prufrock é uma sucessão de revisões, de interrupções e de adiamentos,
nos “Four Quartets”, o eu lírico já não se paralisa diante da repetição. Pelo contrário,
encontra o valor da repetição, digamos, a ousadia e a necessidade da repetição:
You say I am repeating
Something I have said before. I shall say it again.
Que, por sua vez, relaciona-se com o valor do fracasso:
every attempt
Is a wholly new start, and a different kind of failure
Because one has only learnt to get the better of words
For the thing one no longer has to say, or the way in which
One is no longer disposed to say it. And so each venture
Is a new beginning, a raid on the inarticulate
With shabby equipment always deteriorating
In the general mess of imprecision of feeling
Este trecho sintetiza de modo exemplar o complexo conflito que informa a crise da
linguagem, a dissociação entre experiência e expressão. No entanto, o pessimismo
11
decadentista de Prufrock é abandonado. Agora o fracasso é experimentado como jornada
sempre renovada. E, nessa jornada, a poesia precisa sempre se transformar, para resistir,
como o sugere Jean-Luc Nancy (2005), para se reinventar, para continuar sendo possível
dentro do político, para, como queria Schlegel, “realmente comunicar”, não apenas
exprimir um eu, mas compartilhar a experiência através da linguagem. Para Eliot, o jogo
lúdico com os significantes, o jogo do pós-estruturalismo, seria impensável. Como Nancy,
Eliot postula a dificuldade de alcançar o significado, não a ausência dele. Trata-se, afinal,
de uma resistência, não de uma desistência.
III
T.S.Eliot e Fernando Pessoa parecem partir, portanto, na década de dez, do mesmo
ponto. Pessoa viveu anos decisivos para sua formação cultural na África do Sul, quando
este país integrava o império britânico. Teve, portanto, uma educação vitoriana,
compartilhando, assim, com Eliot, a mesma tradição literária anglo-americana. Em termos
de estratégia discursiva, Pessoa e o primeiro Eliot (antes de “The Waste Land”), têm atrás
de si o mesmo precursor, Robert Browning, que aperfeiçoara a técnica do monólogo
dramático8. As visões interpretativas do mundo, entretanto, parecem opostas. Diante do
anúncio bélico de Nietzsche acerca da morte de Deus, Eliot e Pessoa alojam-se em
trincheiras antagônicas. Eliot jamais abandona a perspectiva cristã. Sua própria crítica tende
a valorizar autores cujas obras não são passíveis de serem deslocadas dessa perspectiva. É o
caso, por exemplo, de sua avaliação de Baudelaire, em cuja obra Eliot ressalta a
preocupação com o Pecado Original e a Queda. Para Pessoa, entretanto, a tradição cristã
parece por vezes representar um esgotamento. Através da obra poética de um Caeiro ou de
um Ricardo Reis ou dos textos críticos de Antônio Mora, Pessoa aponta para um
renascimento do paganismo, um paganismo, que, entretanto, é preciso ser compreendido
dentro do contexto que discutimos anteriormente, em que o poeta é forçado a criar uma
mitologia pessoal. Por outro lado, ainda, na obra do Ortônimo encontramos o elemento
cristão. Mas nessa própria recusa de uma Verdade ao redor do qual toda sua obra gire é
8
George Monteiro analisa a influência de Browning na obra pessoana, de modo brilhante, no estudo
Fernando Pessoa and 19th century anglo-american literature (2000).
12
expressivo do caráter moderno da poesia de Pessoa. Sua experiência literária parece
representar o estar no mundo do homem que já não se enxerga como essência, mas como
fenômeno e, enquanto tal, cambiável, descentrado. Por outro lado, é uma síntese dos
problemas e das supostas soluções para o que era sentido como o impasse da modernidade
e, enquanto obra, enquanto projeto, parece ter seu centro na figura do mestre Caeiro.
José Guilherme Merquior, de passagem, no seu clássico A Astúcia da Mimese,
sugere que o silêncio na obra de Mallarmé representa o estágio ontológico original da
palavra e que, nesse sentido, as obras de um Rilke ou de um Valérie seriam manifestações
particulares, como que instâncias manchadas dessa palavra pura. A obra de Caeiro, dentro
do projeto de Pessoa, e por outra estratégia, parece ter essa centralidade que a poesia de
Mallarmé representa para certa tradição da poesia moderna. Se pensarmos na crise da
linguagem de que falamos, à luz da tradição poética anglo-americana, que informa a obra
de Pessoa, temos, como sugerido, de retornar ao Romantismo. No Romantismo, o conflito
entre linguagem e experiência se intensifica9. É o tema central de um dos poemas canônicos
do Alto Romantismo inglês, a “Ode to a Nightingale”, de Keats. Neste poema, como
explica Pinsky, Keats dramatiza o conflito entre um impulso do eu que, a exemplo do
rouxinol, cuja pureza do canto jamais é violada pelo significado, deseja misturar-se à
natureza, e a consciência de que tal dispersão implica morte, desaparecimento. O eu lírico
de Keats é marcado por essa contradição, esta autoconsciência que, mais tarde, será
também o tema do poema de Pessoa sobre a ceifeira que canta no campo:
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção!
A ciência pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
9 9
Sobre esse tema, é valiosa a leitura do capítulo “The Romantic Persistence”, do livro The Situation of
Poetry (1978), de Robert Pinsky.
13
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Este conflito, presente na obra de Keats e Pessoa, pressupõe a nostalgia ilusória por
uma conformidade entre homem e natureza, um estágio primordial em que a consciência
humana não aparta o indivíduo do natural, onde a mente não representa uma prisão em que
o sujeito se encerra. A obra de Caeiro parece representar essa instância inaugural, esse
momento anterior ao conflito. Nesse sentido, é ele o Mestre, a consciência naturalizada, o
eu posto em acordo com o mundo, um acordo radical, tautológico, ao passo que os demais
heterônimos e o próprio Pessoa são instâncias secundárias, onde a concordância fora
rompida e passa a operar enquanto impulso subjacente seja na poética eletrificada de
Campos (que, na ficção pessoana, depois do ópio, conhece Caeiro e descobre um novo
misticismo, o misticismo das sensações) ou na plácida meditação à beira do rio de Ricardo
Reis. E, no entanto, mesmo o Mestre tem seu estado de concordância ameaçado pelo
político, a pressão da realidade:
XLIV
Acordo de noite subitamente.
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora,
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...
Aqui encontramos o Mestre subitamente deslocado, empurrado de volta para o
político a estrutura naturalizada da sociedade ocidental, simbolizada no relógio que abafa
toda a realidade, “a existência da terra e do céu”. Uma vez dentro do político, a linguagem,
o impulso lingüístico de produção contínua de significados que preencham o mundo, é
experienciada como um impulso perigoso, cujo fluxo é labiríntico: “Quase que me perco a
pensar o que isto significa”. A este fluxo, Caeiro contrapõe sua filosofia estática, em cada
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coisa é ela própria, onde o devir não se estabelece: “Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite
com os cantos da boca”.
Caeiro é uma voz poética que ocupa, portanto, uma posição única não apenas dentro
do universo pessoano, mas também dentro da poesia moderna como um todo. Wordsworth
ou Keats, Baudelaire ou Rimbaud, Yeats ou Eliot, todos enunciam de dentro do político,
vislumbrando o poético para além do político ou no próprio político. Caeiro, por sua vez,
está numa posição inversa: por mais anti-poético, em termos estéticos, que se revele, por
uma perspectiva filosófica, está imerso no poético, não compreendido apenas como
natureza, mas como percepção poética da natureza e da realidade, fora do político, o que,
entretanto, já não implica a totalidade desejada pela visão poética do Romantismo, mas
uma ciência da realidade de cada coisa, do que Wallace Stevens, no poema “The Man with
the Blue Guitar”, chama de “things as they are”:
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas idéias.
Caeiro rompe, portanto, tanto com o político quanto com o modo de percepção do
poético da tradição romântica. É sempre de dentro do poético visitado pelo político, o que
lhe coloca numa posição absolutamente particular na poesia moderna. Não por acaso não se
trata de um poeta de carne e osso, mas de uma ficção, de uma voz poética central no jogo
de espelhos da obra de Pessoa. Talvez também não por acaso Pessoa faça Caeiro morrer tão
cedo, em 1915, como que confirmando a intuição sombria de Keats no poema sobre o
rouxinol, em que a passagem para fora do político implica necessariamente dissolução,
morte, desistência. Parece ser a mensagem irônica de Pessoa e seu modo cético de
dispensar qualquer ilusão poética. É também prenúncio da Mensagem futura, o esforço
épico-elegíaco de Pessoa para revisitar a tradição e, como Eliot, forçá-la a comunicar
novamente, para a nova geração de portugueses, uma geração de Álvaros e Ricardos e
Bernardos, alheados do mundo e deles próprios.
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