Anjo Emprestado Cristina Magalhães [uma chancela do grupo LeYa] Rua Cidade de Córdova, n.° 2 - 2610 -038 Alfragide http://caderno.leya.com [email protected] © 2011, Cristina Magalhães Todos os direitos reservados. 1.ª Edição / Junho de 2011 ISBN : 978-989-23-1461-7 Depósito Legal n.º: 327221/11 Para ti, Pedro, o irmão fantástico e o filho de que qualquer pai se orgulharia; Para ti, Jorge, pai (literalmente) babado e companheiro de viagem imprescindível; E, sobretudo, para ti, Diogo, que me tens ensinado tanta coisa. Busco uma paz qualquer, uma palavra que apazigúe a dor. Um sentido para o que não tem sentido. «Não faça perguntas, porque não existem respostas. Talvez um dia, noutro patamar da nossa existência, entendamos a Verdade de tudo isto…» Quero acreditar que é possível, apesar de tudo, uma paz qualquer. Prefácio Há silêncios como gritos, e textos inacabados, por necessidade imperfeitos, na vontade de libertar o sofrimento que nos faz companhia. A dor é algo informe, sem esquadria que a limite, por isso só pode ser descrita em arremedos, como os soluços de quem chora. Por vezes sentimos que é bem-vinda, porque é o único testemunho de que continuamos vivos. A dor de ver um filho sofrer toma forma e volume, adquire espessura, sai de dentro de nós e passa a ser um terceiro elemento, algo mais com olhos de ver. É um ser misterioso, a que não conseguimos dar nome. Algo que se abate com o peso ANJO EMPRESTADO :: CRISTINA MAGALHÃES 9 de uma rocha, que nos pertence e no entanto nos é estranho. A dor genuína é apenas uma impressão. Quem a descreve em detalhe é um impostor. Senti este livro como se o rio galgasse margens e fossemos por ele arrastados num turbilhão em que falta o ar. Por vezes vimos à superfície, por um momento enchemos os pulmões e de novo imergimos na torrente, levados num percurso sem destino definido, sem porto onde acostar. Este livro fala da dor da mulher, que ao sofrer por um filho doente, apenas tem para oferecer como bálsamo o seu amor em estado puro, já que a enfermidade e as tecnologias impõem barreiras físicas que impedem o contacto da pele, ou a carícia de um beijo. Na Pietá, a mãe tem pelo menos o consolo de ter no seu colo o filho, que mesmo homem, pende inerte, como um recém-nascido que dorme. Neste livro sente-se o aconchego do colo que espera pela criança, mas os braços permanecem imóveis porque o menino não pode ser abraçado. O sentimento de impotência resulta também de o controlo da doença vir do exterior, dependendo da competência de outros, ou da disposição dos deuses, num rolar de dados lançados por mão estranha e que marcarão o destino de quem nos pertence. Ainda que mais tarde mãe filho se possam finalmente tocar, permanece a sensação que houve um tempo roubado que nunca poderá ser restituído. Por isso amor e dor são idênticos, ambos vividos por dentro, que o drama se passa num palco interior, que o sofrimento não vem da doença do próprio, e o afecto não pôde habitar o gesto que o demonstra. Não creio que haja experiência que de uma forma tão brutal interrogue o sentido da vida. Decerto nada é razoável ou justo, quando uma criança sofre os tormentos de uma carne invadida por instrumentos de tortura que são, em simultâneo, os braços da esperança. Quando a corrente abranda, e mãe e filho se unem, o rio desagua no silêncio que se segue à tormenta, e surge um sentimento de redenção, como se da experiência dolorosa tivesse emergido um bem maior, um valor mais alto, um sentimento mais puro porque despido da vaidade da aparência. Amo porque sim, porque é sentimento que não se interroga e aponta ao essencial, a uma existência que em mim se ori- ginou e que, de facto, nunca de mim se desprendeu. Este é um livro sobre a mulher, ou melhor, sobre a mãe, que generosa se revela, para que todos nós possamos compreender a grandeza épica da ligação primordial, e ao fazê-lo, demos de caras com o privilégio sublime de existirmos. Nuno Lobo Antunes “Escrevo meu livro à beira-mágoa.” Fernando Pessoa “Deixou de ser um mundo e foi um outro (…) Depois, Sem dó nem piedade a vida começou…” Miguel Torga I «Eu não sabia que as crianças podiam sofrer assim…» Olhas o meu filho no seu sono forçado, nos despojos da guerra, os destroços da batalha final. Olhas-me nos olhos, tu que também és mãe e desse lado do vidro velas o teu filho moribundo, já sem esperança. E sinto que tu sabes. Eu não sabia que as crianças podiam sofrer assim... Eu não sabia tanta coisa! E as tuas palavras unem-nos numa irmandade que não procuramos, numa comunhão de espantos e de dor, de incertezas sem encruzilhada, num entorpecimento atroz. ANJO EMPRESTADO :: CRISTINA MAGALHÃES 17 Eu não sabia nada… Na minha ”outra vida”, as crianças não morriam, muito menos sofriam dores impensáveis para conseguirem finalmente descansar. A minha ”outra vida” ficou para trás… E eu pensava que já tinha sofrido, que conhecia os espinhos, as rosas e os cardos… Mas não. Feliz de quem não sabe, de quem não chega nunca a saber, e mesmo assim se lamenta de qualquer coisa que faz parte desse “mundo lá fora” («Está frio? Faz sol?»). Feliz de quem não conhece esta “outra vida”. Aqui os dias são todos iguais e o sofrimento tem rosto, por vezes mascarado da loucura necessária para aguentar. A realidade parece uma coisa absurda («O meu filho está a morrer… Vamos tomar café?»), e finge-se que é apenas mais um dia e movemo-nos como autómatos e deixamo-nos levar. Inspira-se e expira-se, e o ar sufoca o grito que cresce e que não sai. Erva daninha onde antes era jardim. Sem solução. 18 Não há janelas para o mundo lá fora, não há palavras, e o nosso mundo há muito deixou de fazer sentido. É preciso fazer o que é possível e fazer o impossível, não pensar. Deixamos outros “lá fora” (Pedro!...) que contam connosco e não nos deixam desistir. E tu ainda cá estás… continuas a respirar, continuas a luta para a qual eu não estava preparada, uma luta desigual, na tua fragilidade de quase recém-nascido. Resta-me lutar contigo. ANJO EMPRESTADO :: CRISTINA MAGALHÃES 19 Cinco anos já lá vão, quase seis. Parece que foi ontem e há um século. As cenas surgem como num filme a que assisto e custa ver. Passam diante dos meus olhos em tela nítida demais, mas de forma alguma me reconheço protagonista, que me parece impossível resistir a tanto. Quero apagá-las? Não sei… Não quero deixar que as lições que aprendi (temos que aprender de qualquer maneira!) se percam, porque a minha força depende disso e não me é permitido esquecer. Do Hospital, as lembranças daqueles que hoje são anjos (Fábio, Pedro, Gonçalo, Francisca…) e das mães que foram heroínas na sua própria história, guerreiras sem armadura numa guerra que não escolheram. Lutaram para perder e viram-se obrigadas a sobreviver à derrota. Soubesse alguém como!... («Um filho nunca morre.»). Aquele aspeto de hospício, as paredes cinzentas, os corredores labirínticos, as casas de banho frias, cujo único ponto positivo reside no facto de 20 não terem espelhos onde possamos rever os nossos rostos marcados por noites quase em branco nos cadeirões da vigília. Trouxemos-te para casa, fizemos-te sorrir. Tinhas um ano já quando isso aconteceu (que razões tinhas tu para sorrir?), mas desde então o teu sorriso tem enchido as nossas vidas de luz. Aos poucos, aprendemos a viver outra vez, de outra maneira. Para quem já esteve no inferno, o purgatório torna-se menos difícil… E foi insuportável ver-te sofrer. ANJO EMPRESTADO :: CRISTINA MAGALHÃES 21