1 Ricardo Avellar - O Circo, o Concreto e o Corpo Jorge de Freitas1 O bom fotógrafo desdobra-se em múltiplos pontos de vista. Oferece diversas facetas do objeto ao seu expectador, mas nunca dá de graça a intenção expressiva como um todo. Vilém Flusser aproxima o gesto fotográfico do gesto do caçador que espreita a sua presa. Onde o gesto fotográfico obriga o fotógrafo a se desdobrar em diversos pontos de vista, isto é, em uma sequência de saltos, regidos pelo espaço temporal do aparelho. Mas, o bom fotógrafo, aquele que trata o aparelho não como um passatempo ou um limite, mas sim como uma extensão de seus gestos corporais, é capaz de transpor esse espaço temporal regido pelo aparelho e criar, através de seus múltiplos pontos de vista, um espaço temporal próprio. O fotógrafo mineiro Ricardo Avellar é um desses casos que consegue romper com as barreiras impostas pelo aparelho e atribuir às suas fotografias o seu próprio tempo. Pontos de vistas que se desdobram em Avellar dentro de múltiplas séries imagéticas paradoxais que atiçam o imaginário daquele que as contemplam. Paradoxais, sim, extremamente paradoxais no seu transitar pelas séries que apresentam imagens quase vazias, compostas por um único objeto que se lamenta de sua solidão para o seu expectador, e séries que contemplam o caos humano de uma estação de metrô em seu horário de pico na metrópole de São Paulo. Imagens coloridas e vivas de um espetáculo circense que se contempladas devolvem o olhar com uma promessa de alegria posicionam-se em oposição às imagens em preto e branco de moradores de rua e vendedores ambulantes a margem dessa alegria. O circo e a urbanidade são os caminhos de mediação para interpretar a estética desse artista, uma estética ainda em construção e transitória como a grande metrópole paulista, figurante cinzenta em suas imagens e, colorida, alegre no conteúdo que explora a atmosfera lúdica oferecida pelo circo. A junção entre o acinzentado da metrópole e o 1 Jorge de Freitas é mestrando em Estética e Filosofia da Arte pelo PPG da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Possui graduação em Filosofia (Bacharelado) pela mesma instituição. Email: [email protected] ALEGRAR nº10 - dez/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 2 colorido circense serve de matéria prima para a subjetividade pertencente ao fotógrafo romper com os limites da representação. Em uma de suas séries imagéticas intituladas como “Quase deu certo”, Avellar atordoa o expectador com a questão, mas o que foi aqui que quase deu certo? Não se sabe o que está em jogo nessas imagens, não é possível responder o que ali está certo e o que está errado, a única sensação que fica é justamente a incerteza que a imagem lhe devolve ao ser contemplada. É nessa pequena série composta por sete fotografias que a junção entre o lúdico e o concreto posta-se de maneira mais exuberante, suscitando uma espécie de dualismo entre os fenômenos coloridos e lúdicos do circo e a concretude espessa da cidade, cuja unificação dessa tensão ocorre em um terceiro elemento que surge em ambas temáticas, o corpo. O corpo em Avellar sugere que algo naquelas imagens possui voz e quer falar por si mesmo. No circo o corpo desafia seus limites, não se sujeita às limitações da altura ou aos temores da queda. Ele assume uma posição de desafio perante as leis naturais e, também, dá forma às plurais cores que transbordam no arco-íris alegre dos palhaços. Avellar capta com perfeição, em sua abordagem imagética do circo, a essência lúdica presente nesse rompimento das barreiras por meio da ação do corpo. Isso se revela na conjunção excelente das cores na fotografia que “quase deu certo” do palhaço que ao utilizar uma bexiga vermelha alongada em forma de extensão de seu corpo rompe com o escuro que o rodeia. Embora, monocromáticas e sem o apelo caloroso das cores, as visões da metrópole de Avellar mantêm o corpo como uma espécie de quebra das barreiras da concretude visual e palpável da realidade que o rodeia. O corpo da bailarina, ao se contorcer dentro de um ônibus metropolitano abandonado, objeto expressivo da transitoriedade inerente a nossa época, brinda o expectador com tamanha sensualidade que tudo ali é deixado para trás. Esquecemo-nos do ambiente instrumentalizado em que esse corpo está inserido, e o deleite advém da possibilidade de ouvir o que aquela imagem praticamente nos impõe, aprecia-me. ALEGRAR nº10 - dez/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br