Contra o direito autoral Marco Antônio Sousa Alves1 Resumo: Este

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Contra o direito autoral
Marco Antônio Sousa Alves1
Resumo: Este trabalho apresenta algumas reflexões e sugestões contrárias ao instituto do direito
autoral, tal como previsto pelo direito brasileiro, e em defesa do acesso amplo à cultura e por
novas formas de fomento à criação artística, literária e científica. O texto desenvolve quatro tipos
de críticas ao direito de autor: morais, jurídicas, técnicas e sócio-econômicas.
Palavras-chave: Direito autoral; Filosofia do direito; No copyright; acesso à cultura.
Acredito que é papel da filosofia abalar as evidências, assumindo uma postura sempre
crítica e radical. Cabe a ela ir à raiz das questões e problematizar os nossos “saberes” e
“certezas” sobre a vida e o mundo. É isso que faz da reflexão filosófica uma atividade
subversiva, sempre aberta para o novo. A filosofia do direito, mantendo essa verve que anima a
filosofia em geral, possui o importante papel de refletir criticamente acerca do direito. Como
salienta BITTAR (2007:54), a filosofia do direito “tem uma forte capacidade de detectar a
opressão na vida social, os desrumos na prática jurídica, as distorções da ciência do direito,
para, a partir daí, indicar e pontuar caminhos para a fixação e afirmação legítima do direito”.
Assim, assumo uma visão da filosofia que se contrapõe à tradicional imagem do pensador
à margem da sociedade, distante de tudo, envolto em grandes abstrações e especulações
metafísicas. Sem desmerecer esse papel conceitual da filosofia, há também espaço em seu
interior, e sobretudo na filosofia do direito, para uma reflexão da praxis humana, das questões
sociais, do poder estabelecido e do direito vigente. A filosofia reage à tendência de se aceitar as
coisas como são, assumindo uma função transformadora que, muitas vezes, atinge imponentes
poderes políticos e econômicos, como atesta a história da filosofia desde a condenação à morte
de Sócrates. Dentro dessa perspectiva de uma filosofia do direito voltada para uma apreciação
crítica, atenta à realidade, aos modos de dominação social e às perversões do direito, gostaria de
1
Bacharel em Direito e Mestre em Filosofia pela UFMG. Professor das Faculdades Promove e Milton Campos
refletir, nesse artigo, sobre a proteção hoje conferida ao autor e à criação artística, literária e
científica no direito brasileiro.
Além da previsão constitucional, que estabelece em seu artigo 5º, XXVII, que “aos
autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras,
transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”, o Brasil é signatário de várias
Convenções Internacionais, como a Convenção de Berna de 1886, ratificada em 1975, e possui
também uma legislação específica sobre o tema, a Lei de Direito Autorais (LDA) ou lei n.
9.610/98. Não pretendo, nesse artigo, aprofundar o conteúdo desses textos legais, mas apenas
ressaltar que o Brasil, seguindo a tradição do droit d’auteur francês, abriga prerrogativas de
natureza moral e um direito de ordem patrimonial, um monopólio de utilização temporário (cada
vez mais duradouro) que permite ao autor explorar sua obra no mercado.
De início, manifesto a minha posição: sou radicalmente contra o direito autoral, ou, para
ser mais exato, critico sobretudo o direito patrimonial do autor, tal como ele é reconhecido pela
legislação brasileira e por praticamente todo o mundo. Acredito que muita confusão paira sobre
essas questões. Apesar de ser um tema em voga, geralmente o tratamento dado ao assunto é
estritamente técnico-jurídico ou, quando muito, levanta questões sob uma ótica somente
comercial e econômica, sem que se atente para a dimensão ética e política envolvida. Entretanto,
estamos falando de arte, saber, cultura e ciência, e não de simples produtos ou mercadorias.
Apesar de a grande maioria da doutrina brasileira defender acriticamente o direito autoral, já
percebemos, contudo, alguns posicionamentos críticos, como o adotado por Guilherme Carboni,
que salienta:
A crítica a um instituto jurídico qualquer começa com a constatação de sua eventual
função negativa, o que exigiria mudanças no sistema. Portanto, a compreensão do
fenômeno jurídico passaria, hoje, pelo exame dos seus aspectos políticos, sociais e
econômicos (...). Esse é o caso dos direitos de propriedade intelectual e, mais
especificamente, do direito de autor, na medida que visam estimular uma determinada
prática social, que é o incremento da atividade criativa do homem, para o
desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico da sociedade. As transformações
sociais advindas, principalmente, das novas tecnologias, levaram a uma mudança de
função do direito de autor: de mecanismo de estímulo à produção intelectual, ele passou
a representar uma poderosa ferramenta da indústria dos bens intelectuais para a
apropriação da informação enquanto mercadoria, ocasionando uma redução da esfera da
liberdade de expressão e se transformando em um obstáculo a formas mais dinâmicas de
criação e circulação de obras intelectuais. (CARBONI, 2006:229).
É sobre esse direito de transformar uma obra cultural (texto, imagem ou som) em
mercadoria que gostaria de tratar. Simpatizo com um movimento radical de crítica ao direito
autoral, conhecido por no copyright, que vai além da postura moderada adotada pelo copyleft
attitude. O copyleft defende apenas modificações nos princípios do direito autoral, como é o caso
do movimento do software libre (GNU-Linux), encabeçado por Richard Stallman, e do creative
commons, idealizado por Lawrence Lessig. Já o no copyright defende a difusão gratuita da
cultura como um dever moral e coloca em questão as idéias, originárias de um mito romântico,
de autor como gênio criador e de obra como criação inédita e original (cf. FARCHY, 2003:7481). Infelizmente, não me sinto capaz, no momento, de abordar todos os pontos que merecem ser
tratados sobre essa questão, mas gostaria, ao menos, de contribuir com algumas reflexões e
sugestões. Abordarei, a seguir, quatro argumentos contra o direito autoral, um moral, outro
técnico, um terceiro de natureza jurídica e um quarto e último de ordem sócio-econômica.
Do ponto de vista moral, deveríamos colocar a questão: é correto transformar objetos
culturais em mercadoria? Ou ainda: é justo cercearmos economicamente o acesso à cultura? A
minha resposta a essas questões é um enfático NÃO. A cultura deveria (percebam o peso moral
desse dever) ser acessível a todos. É claro que muitos poderiam questionar a necessidade de o
autor viver de sua obra. Apesar de querer também proteger os autores, é importante perceber que
a questão acerca de como irão sobreviver os artistas e intelectuais ainda não se coloca nesse nível
moral. É claro que esse é um problema, mas ele se coloca em outro nível, o de como tornar
viável isso que é um dever moral. Confundir essas questões leva à precipitada conclusão de que a
única forma de sobreviver e de estimular a produção de algo é transformando o fruto do trabalho
em mercadoria. A própria experiência histórica mostra diferentes maneiras de lidar com a
produção cultural, que não a capitalista. De qualquer forma, ainda que não seja plenamente
possível o acesso amplo e irrestrito à cultura, é preciso que cada restrição seja bem justificada. O
que ocorre hoje é exatamente o contrário. O monopólio de exploração econômica é a regra geral
e as exceções são interpretadas restritivamente (a citação, a adaptação para deficientes visuais, a
reprodução para uso particular, as paráfrases e paródias, dentre outras). Como se o mais
importante fosse o ganho financeiro, às vezes de milhões, e não o interesse público de acesso ao
conhecimento e à cultura. Aliás, a mercantilização das obras não impede ou cerceia apenas o
acesso às obras, mas também a criação de novas obras, que se vêem limitadas em sua criação por
uma série de conteúdos protegidos. Tratar a cultura e o conhecimento como negócio, aliás, um
grande business, priva milhares de pessoas de sua maioridade intelectual, para usar a expressão
de Kant, reproduzindo formas históricas de dominação e exclusão.
Para ilustrar esse ponto, ofereço uma comparação. Pensemos nos cientistas e laboratórios
que desenvolvem remédios. É, com certeza, uma tarefa importantíssima e uma atividade
extremamente digna. Imaginemos que seja desenvolvida uma cura para o câncer e que, sob o
argumento de que os cientistas e laboratórios precisam sobreviver (ou ainda ganhar rios de
dinheiro), eles deixem que milhares de doentes morram. Ora, ter a possibilidade de evitar a morte
de alguém e não fazê-lo por causa de dinheiro é manifestamente imoral. É curioso que todos
achem isso normal e não percebam a diferença entre a atividade digna de pesquisar a cura para
uma doença, ou de produzir uma obra cultural, e a imoralidade patente de limitar, pelo dinheiro,
o acesso a isso, buscando nessa venda a sua sobrevivência. Hoje em dia, a moral capitalista do
trabalho está tão arraigada que as pessoas têm dificuldade de perceber o grau de perversão que
esse sistema gera em várias áreas, como na saúde e na cultura. Só para ilustrar essa deturpação,
que é decorrência de deixarmos essas áreas ao jogo do mercado, basta observar a quantidade de
recursos gastos pelos laboratórios em pesquisas de medicamentos para a calvície, o
emagrecimento e os cosméticos em geral. Ora, por que se gasta uma fortuna em dinheiro e um
incontável esforço humano nessas pesquisas, enquanto doenças letais típicas de países tropicais
não merecem sequer um centésimo do empenho dos cientistas? É bem claro que o que move
esses laboratórios é o lucro, e a população da floresta amazônica e dos cantões da África e da
Ásia não proporcionam o mesmo retorno que a grande massa de calvos endinheirados e
gordinhas paranóicas que povoam os Estados Unidos. Olhando para esse quadro, coloco a
questão: uma civilização que emprega dessa forma seus recursos e esforços estará fazendo bom
uso de seu conhecimento e capacidade produtiva? Ou ainda: será que é defensável a tese de que
o mercado é o melhor regulador e que a transformação de remédio em mercadoria é a melhor
maneira de fomentar a pesquisa científica? Voltando para a questão do direito autoral, coloco a
mesma pergunta: será que é defensável a tese de que o mercado é o melhor regulador e que a
transformação de obras artísticas e científicas em mercadoria é a melhor maneira de fomentar a
criação artística e o conhecimento? Além da perversão gerada pela privação do acesso a milhares
de pessoas, essa lógica traz ainda um segundo problema, não menos grave, acerca do tipo de
obra que esse sistema fomenta. Assim como a busca do lucro incentiva, nos laboratórios, a
pesquisa em cosméticos e em medicamentos para a calvície e o emagrecimento, que estão longe
de ser uma prioridade, também no campo da criação cultural assistimos a uma deturpação desse
tipo, pois obras sem o menor valor estético ou científico são facilmente financiadas em função do
apelo mercantil que possuem, enquanto grandes artistas e cientistas ficam à míngua por não
proporcionarem o mesmo resultado econômico. A esse processo, Jean-Robert Alcaras encontrou
a feliz denominação de vampirização econômica e mercantil (vampirisation économique et
marchande), que submete a criação cultural à necessidade e aos imperativos comerciais e
econômicos (cf. ALCARAS, 2007). Se quisermos defender a arte e a ciência, talvez a estratégia
do direito de autor de conferir um direito de propriedade à obra e permitir uma exploração
econômica da mesma não seja a melhor opção, pois, ao invés de servir de combustível
indispensável à criação artística, literária e científica, essa estratégia fomenta a criação da
pseudo-cultura e o desenvolvimento da indústria cultural. Assim como acontece com a
reprovação social da comercialização do sexo, não devemos prostituir a cultura, vendendo algo
que é imoral que seja vendido. É ainda mais imoral tentar lucrar com as idéias e obras, pois priva
o outro de algo mais importante que o próprio corpo e que poderia, por sua própria natureza, ser
compartilhado e tornado acessível a todos.
Quanto ao aspecto jurídico, devem ser lembradas as limitações que nossa própria
Constituição impõem a propriedade privada. No inciso III do artigo 170 da Constituição, a
função social emerge como condição fundamental de exercício da propriedade. Ora, a que se
refere essa declamada restrição imposta pela função social, se ela não consegue sequer proteger o
acesso amplo e irrestrito aos bens culturais, cujo desfrute é condição essencial para o exercício
da cidadania? Reina ainda na maior parte da doutrina uma visão estritamente subjetivista,
individualista e privatista do direito de autor. Essa visão contaminou o direito de autor a ponto de
se desvirtuar completamente esse instituto, que hoje protege qualquer conteúdo comercializável e
está atento muito mais à proteção do investimento do que propriamente ao autor de uma obra,
como atesta a inclusão do software e das bases de dados no rol das “obras” protegidas. Para que
se torne um instrumento a serviço do desenvolvimento da cultura e da tecnologia, Guilherme
Carboni aponta a necessidade de uma reinterpretação da propriedade intelectual no seio do
direito brasileiro:
A Constituição Federal brasileira e a nossa atual legislação de direito de autor não
contêm dispositivos adequados para solucionar as situações envolvendo conflitos entre
direito de autor e liberdade de expressão, direito de livre acesso à informação e à cultura
e direito ao desenvolvimento tecnológico. Na ausência de regulamentação adequada,
deverão ser aplicados ao caso concreto, o princípio da proporcionalidade, as normas
relativas à função social da propriedade e de abuso de direito e, eventualmente, as
normas relativas à desapropriação do componente patrimonial do direito de autor”
(CARBONI, 2006:239).
Quanto ao argumento técnico, é importante observar que os novos meios digitais de
difusão cultural permitem o fim da escassez. Os arquivos digitais (textos, imagens e sons) podem
ser copiados e difundidos a custo zero, ou quase zero. Se na época moderna os iluministas
editaram seus livros, foi porque a impressão era a maneira mais eficaz de difundir seus textos.
Hoje, as editoras e gravadoras não cumprem mais esse papel e sobrevivem apenas como
parasitas que sugam o sangue do autor e do público, explorando ambos e ficando com a maior
fatia do bolo (cf. GUEIROS Jr., 2005). O copyright cria artificialmente uma escassez para que os
objetos culturais mantenham seu valor econômico e, assim, o capitalismo vai transformando tudo
em mercadoria, até idéias, genes e algoritmos. A internet permite que toda criação humana esteja
imediatamente ao alcance de todos. É possível, por exemplo, recriar a biblioteca de Alexandria,
com toda a produção cultural da humanidade digitalizada e acessível gratuitamente ao mundo
inteiro. O custo dessa empreitada é bastante baixo em comparação com outras iniciativas
internacionais de fomento à cultura e à educação e geraria um resultado fabuloso: o livre acesso
ao conhecimento, para todo o mundo, e não apenas aos estudantes de Harvard ou de Oxford. Há
algo de errado em uma civilização que impede que isso aconteça. Ou há algum grande equívoco
na ordem dos valores, ou talvez estejam todos de má-fé, pensando em seu proveito pessoal.
Por fim, gostaria de concluir essa breve reflexão com um argumento de ordem sócioeconômica, que se volta para os reflexos sociais da exclusão que a propriedade intelectual gera
em nosso mundo. Gostaria de ressaltar o aspecto mais global dessa exclusão, que atinge um
grupo maior do que o dos miseráveis e pobres, que estão privados até mesmo de condições
mínimas de existência e dignidade. Nós brasileiros, com uma renda média em termos globais
muito baixa, com uma moeda desvalorizada e sem uma estrutura educacional pública de
qualidade, com boas bibliotecas, estamos simplesmente à margem, impedidos de termos uma
formação realmente aprofundada. E quando digo “nós”, refiro-me não apenas aos brasileiros,
mas à maioria absoluta dos habitantes deste planeta. Para um americano ou europeu, o acesso a
boas bibliotecas públicas e o valor relativo de sua moeda permitem um acesso bastante
privilegiado à cultura. Imagino que todos aqueles que buscam se formar intelectual e
culturalmente do lado de baixo do equador devem constantemente se ver na posição de lutar para
obter textos e obras indispensáveis à sua formação e pesquisa. Todos sabem, pelo menos quem já
passou por uma universidade nesse país, que é impossível a qualquer brasileiro formar-se sem
recorrer às criminosas cópias. Mas, afinal, quem está cometendo um crime nesse caso? E contra
quem?
Bibliografia
ALCARAS, Jean-Robert. La protection des droits de propriété peut-elle favoriser la création
culturelle? In: BRUGUIÈRE, Jean-Michel (ed.). Droit d’auteur et culture. Paris: Dalloz, 2007.
pp.55-74.
BITTAR, Eduardo C. B. Filosofia crítica e filosofia do direito: por uma filosofia social do
direito. Cult – Revista Brasileira de Cultura, n. 112, ano 10, abril de 2007, pp.53-55.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.
BRASIL. Lei n. 9610, de 19 de fevereiro de 1998. Diário Oficial da União, Brasília, 20 fev.
1998.
CARBONI, Guilherme. Função social do direito de autor. Curitiba: Juruá, 2006.
FARCHY, Joëlle. Internet et le droit d’auteur: la culture Napster. Paris: CNRS Éditions, 2003.
GUEIROS JR., Nehemias. O direito autoral no show business. v. 1: A música. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Gryphus, 2005.
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