I - Introdução 1. A revolução tecnológica e suas conseqüências - Visão geral. O presente estudo se destina à análise de um tipo contratual, já extremamente difundido e largamente utilizado a nível mundial, qual seja o contrato de adesão de licença de programa de computador. Para uma abordagem sistemática sobre o assunto e para que possamos entender os motivos que levaram os detentores de direitos autorais de programa de computador a optar por esse tipo de contrato no intuito de proteger seus direitos, é necessário que se faça, de início, uma breve retrospectiva sobre o que é a “era da informática”. Outrossim, também se faz necessária a análise sobre quais as mudanças, tanto de ordem prática quanto de ordem jurídica, introduzidas em função dessa nova revolução, que se iniciou em meados desse século, prosseguindo até os dias de hoje. De fato, referida revolução tecnológica trouxe consigo não só mudanças e evoluções técnicas, como também toda uma nova forma de entender o mundo e de se relacionar em sociedade em face do fenômeno da globalização, ao qual já nos acostumamos. As transformações passaram a ocorrer principalmente no campo das ciências, gerando reflexos efetivos e inegáveis nas áreas econômica, social e política, criando um novo ambiente cultural que há alguns anos se convencionou chamar de “Sociedade Global da Informação”1. A junção de recursos da informática e das telecomunicações jogou por terra as fronteiras físicas até então conhecidas, ensejando o surgimento do que se denominou de “aldeia global”, derivando dessa revolução tecnológica digital uma “infra-estrutura da informação global” 2, que transformou-se em um novo meio pelo qual as pessoas passaram a interagir socialmente. 1 SANTOS, M. J. P. dos, e ROSSI, M. D. - Aspectos Legais do Comércio Eletrônico - Contratos de Adesão, p.2. 2 COVAS, S. - O Contrato no Ambiente Virtual. Contratação por meio de Informática, p.103. As inovações tecnológicas tiveram reflexo imediato, principalmente na informática, setor de vanguarda no campo das novas tecnologias. Essa área é considerada de importância inquestionável, haja vista que todos os campos do interesse humano podem, de maneira direta ou indireta, se beneficiar de tais adventos. Nesse mesmo sentido, o setor das telecomunicações foi drasticamente atingido, surgindo dessas inovações, como uma de suas conseqüências, um dos mais incríveis e inovadores meios de comunicação inventados até hoje: a Internet. Essa nova rede de computadores, que se converteu de “simples” rede de comunicações em um sistema mundial de comunicação multifacetada3, passou a ter sua relevância incrementada com a popularização do uso dos computadores 4. Nesse fim de século, o computador pessoal deixou de ser equipamento de alto custo apenas acessível às grandes corporações, transformando-se em quase um eletrodoméstico, muitas vezes mais facilmente operado por uma criança do que por um adulto. A Internet criou um ambiente novo, intangível, “virtual”, denominado de espaço cibernético, “cyberspace” ou ciberespaço 5. Esse novo “ambiente”, onde as pessoas podem interagir, permitiu a criação de um verdadeiro mundo paralelo virtual. Com a supressão virtual das distâncias6, surgiram inúmeras oportunidades de utilização da Internet, tais como lojas virtuais, salas de “bate-papo” (chats), acesso a universidades, bibliotecas, museus, órgãos governamentais, cirurgias médicas a distância, operações bancárias, reservas de hotéis e passagens aéreas, entre outras. Dessa profusão de “sites” e formas de utilização da rede, surgiu a oportunidade de se fazer negócios por meio da Internet. Não se espera que seja fácil a adaptação do homem comum a um ambiente onde os objetos são intangíveis e onde não há fronteiras territoriais. Ocorre que tal situação já é uma realidade, ingressando na vida das pessoas de forma definitiva, trazendo consigo, por 3 SANTOS, M. J. P. dos, e ROSSI, M. D. - Aspectos Legais do Comércio Eletrônico - Contratos de Adesão, p. 3. 4 LAVIERI, J. V. - O Comércio Eletrônico na Internet, p.1. 5 SANTOS, M. J. P. dos, e ROSSI, M. D. - op. cit., p. 3. 6 LAVIERI, J. V. - op. cit., p.1. conseqüência, inúmeras modificações nos costumes, valores e conceitos, demandando uma nova forma de aplicar o Direito e adequando-o à nova realidade7. Nasce, então, também como conseqüência das inovações tecnológicas e da própria contratação em massa, o denominado Comércio Eletrônico, forma nova de negociar a distância e contratar dentro do ambiente digital e virtual8. Este novo mecanismo fez com que o Direito, como ciência dinâmica que é, viesse regular os negócios jurídicos entre aqueles que se utilizam de tal meio para transacionar, seja como fornecedor de produtos e serviços, seja como consumidor. De fato, a Internet, via comércio eletrônico, trouxe inúmeras alterações ao nosso dia a dia, fazendo com que o aplicador do direito busque cada vez mais a adequação dos fatos às possibilidades jurídicas disponíveis, seja por meio de novos conceitos técnicos e novas legislações, seja por meio da própria doutrina e jurisprudência. Assim sendo, todos os contratos - novos e antigos - que venham a ser celebrados pela rede mundial serão atingidos, carecendo de revisão o modo de sua elaboração quando inseridos nesse ambiente virtual9. É nesse novo ambiente de inovações tecnológicas, economia massificada e comércio eletrônico que se insere o nosso estudo, abordando os diversos interesses quando do licenciamento de “software”. 2. As contratações em massa, o comércio eletrônico e os contratos. No início das transformações dos princípios científicos envolvendo a tecnologia desenvolvida para os computadores, o que se deu em meados desse século, os maiores - e até então únicos - usuários dessa nova tecnologia eram as grandes corporações, que dispunham apenas de máquinas enormes e caríssimas denominadas “mainframes”, que 7 COVAS, S. - O Contrato no Ambiente Virtual. Contratação por meio de Informática, p. 101. SANTOS, M. J. P. dos, e ROSSI, M. D. - Aspectos Legais do Comércio Eletrônico - Contratos de Adesão, p. 1. 9 MOYSE, P. - Internet, Droit des Obligations et droit D'auteur, p. 1. 8 consistiam basicamente em máquinas de processamento de dados, que por vezes ocupavam salas inteiras. Essas máquinas, assim como as mais modernas de hoje, necessitavam ser programadas para atender às necessidades de utilização exigidas e efetivamente produzir resultados. Referida programação se dava por meio da criação e aplicação do “software”, cujo resultado final aplicável, o “programa de computador”10, é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contido em algum tipo de suporte físico 11. O “software”, considerado como a linguagem codificada usada por uma máquina, era então desenvolvido exclusivamente para ser usado naquela determinada máquina, bem como para atender aos anseios de quem a utilizava, sendo totalmente customizado, ou seja, desenvolvido e adaptado apenas para aquele uso específico que se procurava12. O processo de desenvolvimento do “software”, bem como sua própria customização, eram extremamente caros, como toda tecnologia nova, refletindo diretamente no preço final da aplicação necessária para que a máquina funcionasse. De fato, traçando-se um paralelo com a indústria automobilística, era como se houvesse a necessidade de se criar um combustível específico para cada tipo de carro produzido. Dessa forma, por se tratar de um negócio que envolvia milhões de dólares, havia a necessidade de se elaborar meios de proteção, os quais quase sempre eram feitos por meio da preservação dos segredos de negócio. Essa preservação se dava, necessariamente, por 10 As expressões “software” e “programa de computador” não são sinônimas, apesar de serem amplamente usadas como tal. De fato, o “software” representa uma rotina de procedimentos altamente técnicos, que englobam a sua criação intelectual - a idéia -, seguida da fase de desenvolvimento, quando o software é efetivamente “escrito” em linguagem técnica, culminando com o programa de computador propriamente dito, que é a parte “visível” do software. Logo, o programa de computador é o resultado da criação do “software”, compreendendo uma parte significantemente menor do que o “software” como um todo. Entretanto, para fins deste trabalho, usaremos as expressões como equivalentes uma vez que assim são empregadas na prática generalizada. 11 Artigo 1º da Lei no 9.609 de 19 de fevereiro de 1998 - Lei do software. 12 BENDER, D. - Computer Law - software Protection, p.4A-90.7 e ss. meio de contratos, que via de regra eram passíveis de negociação e elaborados por advogados. Logo, as empresas que necessitassem de referido produto tinham que se valer de assistência jurídica para viabilizar o negócio, sendo certo que os contratos, bem como a participação de advogados nos trâmites da negociação, eram parte do dia a dia dessas transações 13. Esses contratos eram firmados com cada um dos usuários e estabeleciam os critérios e limites pelos quais o usuário era autorizado a utilizar o “software”. O usuário, então chamado de Licenciado, tinha a possibilidade de discutir os termos do contrato, participando de forma efetiva da elaboração de seu conteúdo, finalizando toda uma seqüência de tratativas. Por fim, havendo concordância com os termos e limites estabelecidos no contrato, o mesmo passava a ser considerado concluído, ocorrendo a entrega efetiva do programa de computador pelo desenvolvedor ao usuário. Tais instrumentos ainda são costumeiramente usados, constituindo-se num dos meios de contratação mais comuns, quando se trata de licenciamento de programas de computador de grande porte e programas que não são vendidos em larga escala. Com o avanço da tecnologia, o preço das máquinas diminuiu e surgiu então o computador pessoal ou “PC” (“personal computer”), o que gerou não só uma revolução na forma de ver essa nova tecnologia, como também um novo mercado, onde tais equipamentos e serviços se tornaram objeto comum. Logo, passaram a ser vendidos aos milhares, às vezes milhões, de unidades que, necessariamente, precisavam do programa de computador para funcionar. Para as empresas que produziam esses programas, as chamadas “softwarehouses”, a transformação do computador numa ferramenta de trabalho comum, e até em objeto doméstico, foi uma “mina de ouro”. Viram, os desenvolvedores de “software”, a 13 BENDER, D. - Computer Law - software Protection, p.4A-90.7 e ss. oportunidade de tornar o seu produto uma necessidade corriqueira, passando a ofertá-los ao mercado de uma forma muito mais ampla e generalizada, tendo como usuários pessoas físicas e não só empresas. Dessa popularização do computador e, consequentemente, do “software”, surgiu um novo mercado que ansiava por novos programas. As empresas desenvolvedoras, por sua vez, começaram a reduzir custos, tornando os preços dos programas de computador muito mais acessíveis. Com a expansão mundial da utilização da microinformática, inúmeros programas de computador foram lançados no mercado e passaram a ser largamente licenciados. Havia surgido a contratação em massa na informática. De fato, desde a revolução industrial e com o incremento do comércio mundial em todos os níveis, a sociedade passou a carecer de mecanismos legais que regulassem as inúmeras transações do dia a dia que, com o aumento da população mundial e a profusão de novos negócios, pareciam impossíveis de se proteger por meio de contratos convencionais. A realidade mostrava que seria impossível para uma “softwarehouse” negociar isoladamente cada contrato com cada usuário que pretendesse usar seus produtos - assim como era impossível ao transportador ou fornecedor de eletricidade negociar cada contrato de transporte ou fornecimento de energia isoladamente, por exemplo -, já que as contratações passaram a se dar aos milhões. Por outro lado, havia a necessidade e interesse das “softwarehouses” de consolidarem o exercício de seu direito impondo certas restrições aos consumidores de seus produtos 14. Como se não bastassem as inúmeras e recentes transformações, surge ainda o comércio eletrônico como forma virtual de se fazerem transações comerciais, sem as conhecidas barreiras territoriais. Nesse meio virtual também havia a necessidade de se proteger os direitos autorias dos produtores de “software”, haja vista que nas negociações por esse meio nem sequer o contato com o usuário ocorre. 14 MOYSE, P. - Internet, Droit des Obligations et droit D'auteur, p. 6. Nessas hipóteses, qualquer que fosse o conteúdo digital (“software”, fotos, banco de dados, sons), o computador seria inclusive responsável pela entrega do produto ou serviço adquirido, vez que não só o meio de transação mas a própria coisa objeto da negociação são inerentes ao meio digital15. É nesse cenário de contratações em massa, economia globalizada e comércio eletrônico que surge a necessidade de se criar um mecanismo de proteção ao direito autoral do programa de computador que fosse efetivo, mas que ao mesmo tempo se adequasse às necessidades de ordem prática, no momento da disponibilização do produto ao mercado. A essa altura, já se conheciam os mecanismos legais de proteção nas contratações em massa quando da elaboração dos contratos de transporte, seguros, fornecimento de luz, entre outros, os chamados contratos de adesão - ou por adesão, conforme veremos adiante. A indústria da informática encontrou nesse mecanismo a forma segura de proteger seus interesses. Nasce, daí, o contrato de adesão de licença de programa de computador, a “Shrinkwrap License”, seguida por seu similar no meio eletrônico, a “Clickwrap License”, que são o objeto principal deste estudo. Referidos contratos surgiram da necessidade de se viabilizar um número enorme de contratações e, ao mesmo tempo, de se estabelecer um vínculo contratual com o usuário, que passa a ter direitos e obrigações em relação ao titular do direito autoral do programa de computador. Dessas inovações tecnológicas, bem como do advento da chamada massificação dos contratos, resultou a transformação da própria forma de encarar os contratos. Antigamente, baseavam-se os contratos na igualdade entre as partes, igualdade essa que deixou de existir face às novas regras nas relações de consumo16, já que nessas relações o consumidor é sempre - ou quase sempre - a parte mais fraca e o fornecedor a parte poderosa. Logo, o antes inabalável princípio da autonomia da vontade já não se apresenta mais tão absoluto. 15 16 COVAS, S. - O Contrato no Ambiente Virtual. Contratação por meio de Informática, p.104. DONNINI, R. F. - A Revisão dos Contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, p.147. É inegável que o instituto do contrato passou por inúmeras transformações, como há de ser quando se trata de uma ciência dinâmica. A sociedade mudou e com ela as formas de contratar, quer seja em relação ao conteúdo dos contratos, quer seja nas suas próprias funções 17 . Nesse sentido, caberá, no futuro, cada vez mais ao técnico do direito, ou “redator de contratos”, determinar com precisão o objeto dos contratos, definido-se assim as formas mecânicas pelas quais as obras - direitos autorais - poderão ser exploradas, prevendo, ainda, as formas de proteção sobre os meios de exploração ainda não inventados18. Entretanto, nem sempre houve consenso sobre a manutenção e a eficácia dessa modalidade contratual nas relações negociais de massa. Adam Ruttenberg, por exemplo, em artigo publicado na Internet sobre o tema, chegou a afirmar que a “vida” da “Shrinkwrap License” seria curta, entendendo que, apesar de ser difícil, se não impossível, visualizar o futuro, todos os fatos apontavam na perda da “Shrinkwrap License” como um método eficaz de proteção contra a cópia desautorizada19. Mas a história mostra o contrário. Nota-se que os motivos principais que fizerem Ruttenberg desacreditar o sucesso dessa modalidade de contratação de licenciamento são justamente os pontos principais do nosso estudo, quais sejam a validade e a eficácia de tais contratos. O entendimento anterior era no sentido de que as dificuldades em considerar a licença concedida por essa modalidade de contrato válida e eficaz acabariam reduzindo sua executabilidade e, por conseqüência, diminuindo também sua utilização. 3. Localização e importância do tema. 17 DONNINI, R.F. - A Revisão dos Contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, p.147. MOYSE, P. - Internet, Droit des Obligations et droit D'auteur, p.1. 19 RUTTENBERG, A. - Dimishing Enforceability of Shrink-Wrap Licenses, p.1. 18 Para a completa compreensão do assunto, faz-se necessário situá-lo dentro do nosso ordenamento jurídico, determinando quais os institutos de Direito aplicáveis ao exame da matéria. De início, cabe estabelecer a distinção entre direito natural e direito positivo. O direito natural decorre da perene insatisfação do homem com seu meio e seus mecanismos de controle. É o direito ideal, utópico, correspondendo a uma justiça superior, que se prestaria a exercer e aplicar o direito da forma absolutamente justa - dar a cada um aquilo que é seu. Já o direito positivo se configura, de fato, no que realmente temos nas mãos, ou seja o ordenamento jurídico em vigor, em local e tempo determinados (jus in civitate positium) 20. Portanto, dentro da esfera do direito positivo, o tema em questão, um determinado tipo de contrato, se insere na esfera do direito civil privado, que é o direito destinado a regular as relações e interesses entre os homens. Referido direitos tem como base o interesse particular do indivíduo ou a ordem pública21. A distinção entre direito público e privado tem sido alvo de críticas, haja vista que cada vez mais o estado interfere nas relações individuais, gerando o entendimento de que o direito busca satisfazer a interesses gerais da coletividade, ainda que preservando interesses pessoais 22, como no caso do direito de família e direito do consumidor. Para efeitos desse estudo, não cabe um aprofundamento maior na matéria. Seguindo-se nessa linha de raciocínio, conclui-se, ainda, que se trata de direito subjetivo, já que o mesmo se perfaz completo quando do exercício, por parte do detentor de tal direito, de suas prerrogativas legais (facultas agendi) com a finalidade de obter determinado resultado, utilizando-se para tal a regra de direito preexistente (esse sim direito objetivo - norma agendi) 23. Logo, as licenças aqui discutidas configuram-se nos meios legais de se tornar efetivos determinados interesses do homem, tendo como base para o exercício de tal privilégio a 20 MONTEIRO, W. de B. - Curso de Direito Civil, p. 7. RODRIGUES, S. - Direito Civil, p.8. 22 RODRIGUES, S. - Idem, ibidem, citando em nota Orlando Gomes. 23 RODRIGUES, S. - Idem, p. 7. 21 norma imposta (direito objetivo). O direito subjetivo só existirá mediante uma regra previamente imposta a todos, derivando, necessariamente, dessa regra oponível a terceiros para que possa ser exercido 24. Consideram-se, por conseqüência, as licenças objeto desse estudo como mecanismos aptos a proteger determinados direitos positivos, privados e subjetivos. Mas que direitos seriam esses? De fato, até 1987, ano de promulgação da primeira lei do “software” no país (Lei no 7.646 de 18 de dezembro de 1987), não havia no Brasil qualquer disposição específica que se prestasse a proteger juridicamente o “software”, cabendo aos profissionais da área se utilizarem dos institutos de direito já preexistentes, bem como dos tratados internacionais, para exercer tal proteção. Entretanto, com o advento da Lei acima referida, o Brasil aproximou-se do modelo francês de proteção autoral, qual seja, o de adotar a legislação que aplica o Direito Autoral para proteger o “software”, com as devidas alterações em função da especificidade da matéria. De fato, praticamente todas as legislações nacionais aplicam o Direito Autoral ao “software”, como, por exemplo, as da Austrália, Canadá e EUA 25. Internacionalmente, tal proteção decorre da adoção da legislação que equipara o “software” às demais obras intelectuais26. Como forma de tentar acompanhar, ainda que não de perto, os avanços da tecnologia, foram promulgadas no Brasil duas leis em 1998 que regulam de maneira clara a matéria. A Lei no 9.609 de 19 de fevereiro de 1998 (Lei do “software”) que veio em substituição à Lei no 7.646/87 e, ainda, a Lei no 9.610, também de 19 de fevereiro de 1998 (Lei do Direito Autoral), promulgada em substituição à Lei no 5.988/73, antigo diploma regulador da matéria autoral, que sofreu modernização. Apesar da expressa referência contida no artigo 2o da Lei do “software”, determinando que o “regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o 24 MONTEIRO, W. de B. - Curso de Direito Civil, p. 8. SANTOS, M. J. P. dos - A Nova Lei do software: Aspectos Controvertidos da Proteção Autoral, p. 22. 26 SANTOS, M. J. P. dos - Idem, p. 21. 25 conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País”, ainda pairam dúvidas sobre o exato tratamento a ser dispensado, haja vista o disposto no parágrafo primeiro do artigo 7o da Lei 9.610/98 (Lei do Direito Autoral) que diz que “Os programas de computador são objeto de legislação específica, observadas as disposições desta Lei que lhes sejam aplicáveis.” Conclui-se, portanto, que, apesar do disposto no artigo 2o da Lei do “software” acima mencionada, os programas de computador continuam tendo uma lei específica que lhes dá tratamento, não sendo assimiladas às obras literárias. Portanto, os mesmos não são protegidos como obra literária, ainda que sejam obras intelectuais protegidas pelo direito autoral27. Tais direitos estão submetidos, ainda, às normas internacionais que regulam a matéria, como, por exemplo, a Convenção de Berna, a Convenção Universal de Paris, o acordo resultante da Rodada do Uruguai do GATT em 1993 - TRIPs (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights e o Tratado da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) de 1996 sobre Direitos de Autor. Logo, tendo a nova lei do “software” sido inspirada no TRIPs 28, acordo acima referido, a mesma se mostrou extremamente atualizada e em consonância com as demais normas e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário 29. Dessa forma, podemos concluir que os direitos inseridos nos contratos de adesão de licença de programa de computador estão na esfera dos direitos positivos, configurando-se em direitos privados subjetivos, com tratamento dado pela legislação autoral, mas regidos pela legislação específica, qual seja, a Lei do “software”, submetido, ainda, às normas internacionais mencionadas. A importância do tema se dá em várias áreas, atingindo tanto ao estudioso do Direito, quanto ao usuário de computador. Neste final de século e ingresso no novo milênio, o 27 SANTOS, M. J. P. dos - A Nova Lei do software: Aspectos Controvertidos da Proteção Autoral, p. 23. SANTOS, M. J. P. dos - Idem, p. 22. 29 SANTOS, M. J. P. dos - Idem, ibidem. 28 “software” se mostrou ferramenta utilíssima em todas as áreas de atuação humana. Ao uso do “software”, seja num hospital, salvando vidas, seja aprimorando mecanismos num carro de competição, seja quando utilizado por uma dona de casa dentro de um supermercado para saber o preço da mercadoria, não há como negar sua necessidade quase fundamental. Como exemplo de quão difundido e importante é o uso de “software” na nossa sociedade atual, temos o evento do “bug” do milênio, já bem conhecido de todos. De fato, foram gastos em todo o mundo milhões de dólares no intuito de sanar referido problema, sendo certo que todos os setores da economia mundial poderiam por ele ter sido afetados, demonstrando, de forma clara, o quanto estamos suscetíveis à influência do “software” no nosso dia a dia. Por outro lado, conforme dito anteriormente, as relações de consumo se tornaram imediatas, sendo certo que o número de relações jurídicas envolvendo o “software” é, hoje, inimaginável. Portanto, determinar a validade ou não dos contratos de adesão de programa de computador significa atingir milhões de relações de consumo no mundo todo. A questão da eficácia dos contratos de adesão de programa de computador se mostra igualmente importante, vez que será por meio da distinção de quais cláusulas são eficazes e quais não são, que a doutrina e a jurisprudência poderão passar a determinar os direitos aplicáveis na análise dos casos concretos, quando houver omissão das leis. 4. Objetivo do trabalho. De início cabe determinar os limites do presente estudo. O objetivo é direcionar a monografia à análise e posterior compreensão dos Contratos de Adesão de Licença de Programas de Computador, conhecidos como “Shrinkwrap Licenses”, bem como de sua modalidade usada no meio virtual - “Clickwrap Licenses”, analisando sua validade em face das formas de consentimento. Não obstante a importância de se determinar se tais contratos são válidos ou não, deparamo-nos com a necessidade de se estabelecer a eficácia de suas cláusulas, face às legislações que protegem o usuário e à proibição de cláusulas abusivas. A possibilidade de se considerar bens intangíveis como passíveis de apropriação e, portanto, economicamente úteis, gera a necessidade de se estabelecerem normas para realizar negócios jurídicos tendo esses bens como objeto. Dessa maneira, diversas formas de criação intelectual passaram a ser alienadas ou licenciadas por meio de contratos que, por vezes, transmitem e oneram o próprio direito autoral e, por outras, autorizam simplesmente sua exploração e/ou utilização. No caso em tela, estudaremos os contratos de licença de “software” que autorizam a utilização da criação intelectual sem, no entanto, transmitir os direitos patrimoniais sobre a obra. Referida contratação pode se dar de diversas maneiras, sendo certo que uma das mais freqüentes é a contratação por meio de contrato de adesão, objeto desse estudo. No mundo moderno, os negócios jurídicos tendem a se realizar de maneira cada vez mais rápida e simplificada, principalmente aqueles que envolvem o consumidor final, por meio da contratação em massa. Não é diferente no caso do programa de computador. O consumidor tem a seu dispor, em lojas e até supermercados, programas de computador expostos em prateleiras, cuja aquisição se assemelha à venda e compra de um produto comum. Não é. Por outro lado, mediante o uso de computador e necessitando apenas de um clique em seu “mouse”, o consumidor estará diante da possibilidade de contratar o licenciamento de um programa de computador via Internet, o que também carece de análise e estudo. Reside justamente nessa característica da forma de contratar o foco central do nosso trabalho. Terá validade a licença de um programa de computador que se dá por meio de um contrato de adesão, seja no ambiente de uma loja, seja no ambiente virtual? Quais os limites da eficácia de referido contrato? Ao contratante pode ser imputado o conhecimento total das características do direito que está adquirindo? São perguntas que nos propomos a responder no decorrer do nosso trabalho. Realizaremos esse estudo em três etapas distintas, que se destinam à compreensão compartimentada do assunto para que, ao final, possamos concluir.