Música no PAS: escutando e emancipando

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Universidade de Brasília
Departamento de Música
Estágio 2
Professora: Maria Cristina
Aluno: Caio Felipe G. Mourão
Matr.: 08/25824
Música no PAS: escutando e emancipando
Resumo
O presente artigo é um relato de aulas de música, ministradas ao 2° ano do Ensino
Médio, tendo como referência o PAS (Programa de Avaliação Seriada), da
Universidade de Brasília. As atividades desenvolvidas tiveram como foco a percepção
musical e debates. Os materiais trabalhados foram extraídos das provas pregressas e das
Matrizes de Objetos de Avaliação do PAS, bem como dos Parâmetros Curriculares
Nacionais e das Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Este trabalho é parte da
avaliação final da disciplina Estágio 2, do curso licenciatura em música, da
Universidade de Brasília.
Palavras-chave
Percepção musical, debate, músicos
Introdução
O contexto do projeto
O projeto Música no PAS: escutando e emancipando, foi realizado no Centro de Ensino
Setor Oeste (CEMSO), colégio da rede estadual de ensino que atende exclusivamente
alunos do ensino médio, tanto regulares, como adultos (EJA). Contudo, o referido
projeto limitou-se a atender somente duas turmas regulares do 2° ano, do período
matutino, entre os meses de setembro a novembro de 2011. Foram cinco encontros em
cada turma, cada um com aproximadamente cem minutos de duração.
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A escola não possuía professores de música, apenas duas professoras de arte. Cynthia
foi a professora que muito gentilmente nos cedeu seus horários e prestou grande auxílio.
É graduada em educação artística com habilitação em artes cênicas. Em seus próprios
dizeres, afirmou não possuir conhecimentos musicais acadêmicos suficientes para
desempenhar um bom serviço aos alunos. Contudo, em virtude da cobrança da escola,
que por sua vez obedece a critérios da secretaria de educação do DF, precisa ofertar três
modalidades de arte na escola: música, artes visuais e cênicas, obedecendo a
ultrapassada visão do professor polivalente, que deve ensinar todas as artes – a dança,
no caso do CEMSO, ficou de fora. Assim sendo, fica fácil imaginar a superficialidade
com que a música era ensinada nessa instituição.
Os alunos
Cada turma possuía cerca de quarenta alunos, de faixa etária entre os quinze e os
dezessete anos de idade. Eram oriundos principalmente das cidades do entorno do DF e,
em alguns casos, do estado de Goiás (Valparaízo, Cidade Ocidental, Novo Gama).
Apesar disso, não aparentavam situação de risco social, ou seja, viver no limite de
pobreza, ou em famílias psicologicamente desestruturadas. Alguns, ao contrário,
relataram estar fazendo cursinho pré-PAS, em instituições particulares, paralelamente
ao ensino médio, para terem mais chance de competir por uma vaga na UnB.
Alguns já eram musicalizados, ou seja, possuíam um conhecimento teórico/prático
musical mais elevado que o do senso comum. Na turma F, havia um aluno que tocava
cavaquinho, outro que tocava violão e guitarra e uma cantora. Já na turma E, havia uma
violoncelista, dois guitarristas e dois cantores. Esses alunos muitas vezes
desempenharam o papel de intermediários entre nós e o restante da turma, devido à
maior facilidade de comunicação entre eles (aprendizado entre pares).
Seus interesses se resumiam em estudar na UnB, ou em alguma faculdade pública. Os
cursos mais requisitados por eles eram aqueles famosos: medicina, direito e relações
internacionais. Entretanto, alguns apresentavam grande inclinação para modalidades
artísticas, contrariando, assim, seus discursos. Vários destes nos questionaram sobre
como era a prova específica, para música, da UnB, se havia algum cursinho preparatório
para a mesma, se era muito difícil.
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Várias tribos foram identificadas por nós: evangélicos, funqueiros, roqueiros,
pagodeiros,
forrozeiros,
sertanejos.
Contudo,
seus
integrantes
transitavam
indiscriminadamente entre elas, demonstrando, no geral, um alto grau de afinidade e
companheirismo entre todos.
Ao iniciarmos nosso trabalho com as turmas, antes de conhecer melhor os alunos,
tínhamos receio de como algumas músicas do repertório obrigatório do PAS seriam por
eles encaradas. P.ex., como os roqueiros iriam reagir quando escutássemos Milonga
para as missões, interpretada pela dupla sertaneja Vitor e Léo? Ou como os evangélicos
interpretariam o Rock das cachorras, que, em um trecho da letra afirma ser aquela
música “dedicada à cachorra chamada sua mãe.” E mesmo como todos eles, em
especial os não musicalizados, abordariam as missas de Mozart e do Pe. José Maurício?
Julgar-lhes-iam música de velho, ultrapassada, careta? Em suma, conseguiríamos
atender a todos de maneira satisfatória? Respeitar suas individualidades e ao mesmo
tempo ampliar seus conhecimentos musicais, em seus aspectos técnico, social, cultural,
pessoal?
O projeto
O projeto Música no PAS: escutando e emancipando, fundamentou-se no manuseio dos
elementos norteadores e intrínsecos das músicas trabalhadas, utilizando a percepção
musical, através da modalidade de escuta atenta, e o debate dos temas que envolviam
as músicas. A escuta atenta consiste em ouvir atentamente uma música, apreendendo
seus elementos e características, mas sem a finalidade de tocá-la, reproduzi-la.
(GREEN, 2002) O foco na atividade de percepção e debate foi motivado por: 1)
Período do projeto. Deveríamos ofertar uma experiência musical significativa aos
alunos em apenas cinco encontros. 2) Tamanho das turmas. Cada turma era composta
por aproximadamente quarenta alunos, ou seja, um número muito grande. 3)
Heterogeneidade. Havia alunos musicalizados ao lado de outros com pouco, ou
nenhum, contato mais direto com a música. Aliado a isso, ressaltamos os aspectos
timidez versus vaidade: há pessoas que naturalmente são exibidas, extrovertidas, ao
passo que há outras extremamente tímidas. Em uma sala de aula com muitos alunos
fatalmente encontraremos esses dois extremos. Da mesma forma, muitos têm interesse
por música, mas não anseiam tocar nenhum instrumento. 4) Escassez de recursos
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físicos. Para promovermos uma aula de percepção musical e debate são necessários
pouquíssimos recursos matérias. Por vezes, apenas um único aparelho de som e um CD
com o repertório já resolvem o problema. Em contrapartida, para se realizar uma prática
focada na performance, além da dificuldade técnica no manuseio dos instrumentos, há
também o problema de disponibilidade dos mesmos para os alunos. De igual maneira,
há a questão do espaço físico reservado à atividade: uma aula de percepção musical e
debate pode, tranquilamente, ser realizada em uma sala desprovida de tratamento
acústico, sem correr o risco de atrapalhar as demais atividades da escola.
O cronograma das aulas foi idealizado por meio da análise minuciosa das provas e da
Matriz de Objetos de Avaliação, ambos do PAS, bem como dos Parâmetros
Curriculares Nacionais e das Orientações Curriculares para o Ensino Médio.
Considerando, p.ex., apenas a análise das provas, chegou-se aos seguintes dados de
incidência: em primeiro lugar, com vinte e três incidências, tem-se os aspectos sociais
que envolvem a música: as relações entre classe social e gosto musical, características
étnicas e culturais presentes, questões de gênero (sexo) e preconceito etc.; em segundo,
com catorze incidências, os aspectos psicológicos, ou percepções pessoais. É a
interpretação muitas vezes conotativa dos materiais sonoros: paisagens, locais e
períodos históricos referentes, situações emocionais sugeridas e/ou recebidas (alegria,
tristeza, desilusão). Em terceiro lugar, com treze incidências, a interdisciplinaridade:
temas que transversalizam as disciplinas, envolvendo várias delas de uma só vez. Em
quarto lugar, com doze incidências, as formas musicais: aspectos denotativos do texto
musical, intrínsecos, inerentes à própria música, como tema, motivo, frase e semi-frase,
período, seção; nomenclaturas como rondó, forma sonata, canção etc. Empatada com as
formas musicais, também em quarto lugar, aparecem as fontes sonoras: instrumentos
musicais, seus timbres, tessitura, função na música (solista, acompanhamento ou
ambos).
Na primeira aula, foram trabalhados os seguintes conteúdos: percepções pessoais,
aspectos sociais e fontes sonoras. Estes representam, respectivamente, o segundo, o
primeiro e o quarto lugar em incidência nas provas. Demos preferência em abordar
primeiramente os conteúdos de maior incidência nas provas. Contudo, não de forma
propedêutica, conteudista, mas de maneira participativa, dinâmica, propondo atividades
que valorizassem a participação e o ponto-de-vista dos alunos, suas crenças e gostos,
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mas que, ao mesmo tempo, fossem capazes de ampliá-los. Dessa forma, dividimos cada
turma em quatro grupos e, após a audição atenta de cada música, perguntávamos
questões como: O que a música ouvida te fez sentir? Que impressões você acredita que
essa música enfatiza? Que cultura está expressa na música ouvida? A condição social
pode definir o tipo de música produzido e/ou apreciado? Que instrumentos mais
chamaram sua atenção nessa música? Por quê? Que função ele desempenha nessa
música? Em quais estilos de música ele pode aparecer e qual sua função em cada um
deles? Depois de registramos suas impressões, normalmente tendo como única fonte o
senso comum, discutíamos e esclarecíamos pontos equivocados ou obscuros a eles,
dessa vez com argumentos embasados cientificamente. Essa atividade foi bem divertida,
possibilitando a interação entre eles mesmos e entre eles e nós. Eles se sentiram
valorizados por poderem se expressar e serem ouvidos – durante a fala de cada grupo,
os outros deveriam prestar atenção, pois, a qualquer momento, qualquer um deles
poderia ser questionado sobre o que o outro falou. As músicas trabalhadas foram: Na
subida do morro (Moreira da Silva); Kaiowas (Sepultura); Kyrie (Mozart); e o Kyrie
(Pe. Nunes Garcia).
Na segunda aula, trabalhamos: melodia, harmonia e progressões harmônicas. Estes
conteúdos ocupam, por si sós, o quinto lugar, em aparições nas provas. Porém, servem
de base conceitual para a maioria dos assuntos relacionados à música, por isso sua
grande importância. No início da aula demos grande ênfase à interação direta entre o
grupo dos alunos e o professor. Os conceitos de melodia e harmonia, suas distinções,
classificação entre instrumentos melódicos, harmônicos e melódico/harmônicos foram
trabalhados através de minha performance musical: tocamos no violão e cantamos
várias músicas, escolhidas pelos alunos, ali na hora, exemplificando os conceitos.
Pedíamos que tentassem se lembrar da instrumentação que aparecia em cada canção,
apenas de memória, pois não possuíamos as gravações das mesmas e, mesmo que a
tivéssemos, nossa proposta naquele momento era a da associação dos materiais
sonoros oriundos da experiência pregressa de cada um, e não da escuta atenta.
Muitas inferências e deduções foram feitas, demonstrando a desenvoltura da maioria
deles com os conceitos abordados. É importante ressaltar que, em todas as aulas, não
nos limitamos a abordar apenas os conteúdos previamente elaborados para cada uma: de
acordo com o interesse dos alunos, fazíamos pequenos parênteses no discurso e
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discutíamos conteúdos imprevistos. Um bom exemplo é o ocorrido, nessa aula, na turma
F: uma aluna perguntou como era a forma coral. Esclarecemos que coral não era uma
forma, mas uma textura musical, composta pelas quatro principais vozes (soprano,
contralto, tenor e baixo), cantando de maneira homofônica. Aqui trabalhamos os
conceitos de forma, textura, vozes musicais dentre outros.
Isso nos adverte da importância do professor ter domínio dos conteúdos de sua
disciplina, pois, esse tipo de parêntese na aula pode ser de muita valia, quebrando um
pouco uma possível monotonia existente. Dinâmica e time de sala de aula são
habilidades que devem ser desenvolvidas para que o professor consiga manter o
entusiasmo dos alunos.
Na terceira aula, foi-se abordado: intertextualidade melódica, cifras e formas musicais.
Apesar de serem conteúdos estritamente voltados à linguagem musical propriamente
dita, procurávamos sempre trazer curiosidades a respeito das músicas em questão:
particularidades sobre a vida do compositor, situação histórico-social em que a mesma
foi composta, motivo de sua criação etc., reforçando nossa opinião sobre a importância
de se mudar de foco em alguns momentos da aula. Esses episódios, além de
esclarecedores, eram divertidos e boas risadas, por vezes, eram compartilhadas com
eles.
Escutar apenas trechos das músicas revelou-se uma excelente forma de se trabalhar o
repertório. Na peça Fósseis, de O carnaval dos animais, de Saint Saëns, p.ex., ouvimos
apenas o trecho em que aparece a melodia de Brilha, brilha estrelinha, comparando-o
com a gravação original desta. Isso tornava as aulas dinâmicas e atraentes para os
jovens, tão acostumados à velocidade dos meios de comunicação e aos jogos eletrônicos
de sua geração. A prova cabal de que tal recurso se mostrava realmente eficaz deu-se
com as questões de prova: a maioria dos alunos lembravam das músicas ouvidas e
respondiam corretamente aos itens, demonstrando não o “decoreba”, mas a assimilação
e a capacidade de manuseio dos conteúdos.
Ao tratarmos de forma musical, procuramos iniciar com uma música mais atual, para
facilitar o acesso dos alunos ao assunto. O Rock das Cachorras, de Léo Jaime, serviu
para trabalharmos a forma 12 bars blues (Blues de doze compassos). A atividade
proposta por nós consistia em os alunos irem ao quadro – é claro, depois de uma
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explicação prévia sobre o conteúdo e a atividade – e completarem os espaços
estrategicamente deixados em branco. O restante da turma ficaria encarregada de
auxiliá-lo. A progressão harmônica I / IV / I / % / IV / % / I / % / IIm / V / I / V foi
escrita em vários tons, pelos próprios alunos, enquanto era tocada por nós, ao violão.
Escutando o Rock das Cachorras, pedimos que eles tentassem identificar a referida
progressão, onde se iniciava e onde terminava, em um trecho dado.
Em todas as atividades de percepção, a primeira escuta deveria ser em total silêncio e
concentração. Essa era uma das regras do jogo. Depois da terceira aula, não precisamos
mais relembrá-los disso. Durante o projeto, estabelecíamos, tacitamente, algumas regras
de conduta na sala de aula. A primeira delas foi o silêncio ao escutar a primeira vez a
música. A mesma foi informada a eles logo no início da primeira aula, depois de uma
audição em que a conversa deles ocupou todo o tempo da mesma. Dando o comando se
deve escutar em silêncio, depois da experiência ocorrida (muita conversa), provou a
eles a importância daquela regra, legitimando-a. Outras regras foram assim legitimadas,
ou seja, permitíamos que, pela prática, eles se convencessem de nossas recomendações.
Com isso, outras determinações puderam ser aceitas por eles, sem a necessidade da
experiência prévia. Aprenderam a confiar em nós, nos respeitar.
Na penúltima aula, a quarta, vimos: gêneros e formas musicais. Para tratarmos de
gêneros, partimos da análise do repertório obrigatório para o PAS em que a sanfona é o
instrumento principal. Antes da audição, pedimos que atinassem para: região geográfica
que eles acreditavam pertencer a música, compasso e instrumentação da mesma. Com
exceção da música Feira de Mangaio, em que todos foram unânimes em afirmar vir da
região nordeste, devido à letra e ao sotaque do cantor, em todo o restante das músicas
houve impasse, por tratar-se de músicas instrumentais. Comparamos a milonga tocada
por Renato Borgueti e a executada pela dupla Vítor e Léo, a diferença das levadas
rítmicas, da instrumentação, do aspecto cultural.
Definimos o compasso e a
instrumentação de cada gênero, discutimos sobre as danças a eles associadas e suas
regiões geográficas de origem. Tudo isso partindo sempre da audição da música, ou
seja, da situação concreta e real e não de abstrações teóricas, da tentativa de
esgotamento de conceitos, práticas desnecessárias e muitas vezes distantes da realidade
e do anseio dos alunos.
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Nessa aula introduzimos formas musicais com exemplos de músicas não muito
familiares aos alunos, como a Missa de Réquiem, de Mozart, e a Cantata 140, de Bach.
Trabalhamos as formas rondó, canção, cantata e missa, e a diferença entre esta e a
missa de réquiem. Contudo, procuramos relacionar tais formas também ao repertório
popular, sempre que possível, p.ex., abordando a música O quereres, de Caetano
Veloso, como exemplo da forma canção; e sempre trazendo os aspectos que envolvem
as músicas, discutindo-os, como, p.ex., a superação de Pe. José Maurício, de sua
condição de negro de família pobre, chegando a freqüentar as festas da alta corte
portuguesa.
Utilizamos a quinta e última aula para resolvermos questões de prova. Dividimos cada
turma em dois grandes grupos e realizamos um jogo de acertos e erros. O mesmo
consistia em: o professor fazia uma pergunta. Somente teria direito de responder quem
pegasse o objeto definido primeiro – no caso, um apagador de quadro. Cada grupo
escolhia um membro para a tarefa de pegar o objeto e outro para ser o porta-voz do
grupo. Estes deveriam ser substituídos durante o jogo. Um tempo de dez segundos era
dado para que o grupo respondesse. Caso não soubesse, poderia passar a oportunidade
para o outro grupo. Caso esse também não soubesse, poderia repassar a pergunta para o
primeiro grupo. Este teria que responder de qualquer forma, pois, do contrário, iria
perder um ponto. Dois detalhes são importantes a serem ressaltados: 1°) todas as
respostas deveriam ser comentadas e justificadas pelos grupos; 2°) cada resposta errada
anulava uma certa, seguindo o padrão das provas elaboradas pelo CESPE. Com esse
jogo, conseguimos trabalhar mais de sessenta questões e abarcar todo o conteúdo
previsto para o 2° ano, revisando o que já tínhamos visto e abordando assuntos ainda
não trabalhados. Contudo, como já dissemos anteriormente, de maneira natural,
espontânea, sem correria. Nossa proposta não era propedêutica, conteudista. Visamos,
sim, oportunizar aos alunos o manuseio de vários tipos de materiais sonoros, através da
experiência direta, franqueada pela percepção musical e o debate a respeito de seu
contexto. Contudo, nunca ocultamos nosso interesse em auxiliá-los a obter bons
resultados no PAS. Dessa forma, tínhamos grande interesse em trabalhar a maior parte
dos conteúdos e do repertório possível.
Agora, a grande questão sobre a qual nos debruçamos foi: É possível oportunizar aos
alunos uma vivência direta e significativa da música, ao ponto deles serem capazes de
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interpretar, em diferentes contextos, os conteúdos propostos, e ampliar seus conceitos
sobre música e músicos, apenas por meio da percepção e do debate dos textos musicais?
Fundamentação teórica
Não há unanimidade entre os teóricos quando o assunto é aprendizagem musical.
Swanwick (2003) acredita que a vivência musical significativa apenas pode ocorrer por
meio de no mínimo três práticas: apreciação, composição e execução. Pela apreciação
o indivíduo utiliza-se da percepção musical, da escuta, como veículo principal de
manuseio dos materiais sonoros. A composição, que pode possuir como desdobramento
também a improvisação, possibilita a expressão criativa do sujeito por meio de seu
próprio discurso, mesmo que outros venham a desempenhar a prática de seu texto
musical. A execução permite a fruição musical por meio da performance, utilizando um
instrumento musical, mesmo este sendo a própria voz. Como desenvolvimento da
execução, tem-se a técnica, que consiste em detalhes que favorecem o primor estético
da performance, p.ex., clareza do som, afinação, velocidade no desempenho de um
instrumento etc. Como último ponto, há a leitura, significando a interpretação de textos
musicais por intermédio do raciocínio, da abstração, envolvendo conteúdos que estão a
margem do fazer musical, mas que influenciam sobremaneira o mesmo, p.ex., pesquisar
sobre uma música na internet, ler sobre a vida de um músico afim de conhecer melhor
seu trabalho etc.
Green (2002) julga ser o fazer musical elemento fundamental para o aprendizado.
Assim sendo, toda aula deve ser dedicada, durante a maior parte do tempo, para
atividades práticas, ou seja, privilegiando a execução. Para a autora, pode-se pesquisar
sobre música e/ou músicos. Contudo, isso unicamente deve servir para favorecer a
desenvoltura no instrumento: verdadeira forma de fruição musical. Primor técnico não
é o mais importante, mas deve ser motivado, caso o aluno demonstre interesse em se
desenvolver instrumentalmente.
Cunha (2003) considera a apreciação musical como:
Uma das atividades fundamentais no ensino da música. Por meio dela, o aluno se coloca numa situação de
ouvinte, crítico de música, na qual pode ampliar seus conhecimentos intuitivos e analíticos, tanto sobre o
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repertório que ouve em sala de aula, quanto em relação às próprias execuções e composições musicais
produzidas na escola.
Para Filho (1971), a apreciação não tem função apenas de ilustração do material sonoro:
O ato de ouvir e apreciar consiste em receber estímulos e transformá-los em percepções e inseri-las em
nosso contexto mental (psíquico, cultural, afetivo etc.). Esta inserção se dá mediante a estruturação de
novas configurações mentais.
Freire (2000) acredita que a apreciação musical deveria ser mais valorizada e ter sua
prática motivada pelas escolas. Por meio dela, o repertório não-convencional da música
pode popularizar-se, e novas formas de expressão musical vir à tona. Mesmo possuindo
um fim em si mesma, a apreciação musical pode facilitar o processo de auto-aceitação
de compositores alternativos, que utilizam, p.ex., ruídos e/ou sons urbanos em suas
obras, demonstrando que não estão sozinhos e que tal vertente composicional já se
encontra consagrada.
Hargreaves e North (1999) enfatizam as novas formas de produção, execução e
divulgação da música, como as rádios, a internet e os Ipods. Também ressaltam o
desenvolvimento de softwares de computador especializados em criação, modificação e
organização musical (Wavelab, Nuendo, Cubase, Pro-tools, Logic). Sá (2009) traz à
baila os sistemas de recomendação, que consistem em programas de computador que
tentam antecipar os interesses do consumidor e que, ao mesmo tempo, permitem a
criação de redes sociais de proporções mundiais, ampliando o caráter comercial
original. Afirma que os elementos centrais de qualquer sistema de recomendação são
confiança, credibilidade e a autoridade cultural de quem recomenda e que tais práticas
têm sido muito utilizadas em plataformas destinadas à música, como a Last.fm. Dessa
maneira, a figura do crítico musical, indicando o que se deve, ou não consumir, tem se
tornado essencial. De igual forma, o produtor, encarregado, juntamente com o
publicitário, de tornar o produto musical mais atrativo ao consumidor. Soma-se a isso a
figura do Dj, com suas pick-ups e CDj’s, executando e rearranjando músicas de
entretenimento. Para a educação, esses novos personagens do cenário musical
representam um desafio: torná-los conhecidos do grande público e reconhecê-los
ocupando um papel tão importante, para a música, quanto um instrumentista. Diante
dessa realidade, questionamentos como “O que se entende por músico? Não serão
músicos tais profissionais?” devem ser levados às salas de aula.
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Descrição
de uma
situação
vivenciada
que gerou a
problemática discutida
Cada vez que entrávamos em sala de aula, torcíamos par que nossa inicial proposta, qual
seja: oportunizar aos alunos uma vivência direta e significativa da música, ao ponto
deles serem capazes de interpretar, em diferentes contextos, os conteúdos propostos, e
ampliar seus conceitos sobre música e músicos, apenas por meio da percepção e do
debate dos textos musicais; obtivesse resultados satisfatórios. Um detalhe que notamos
foi que, ao abordarmos conteúdos exclusivamente musicais que representassem
novidade para a maioria deles, estes se mostravam dispersos. Na terceira aula,
trabalhando a idéia de cifra com eles, tivemos que fazer um parêntese e explicar
minimamente a escala diatônica maior, pois, posteriormente, trabalharíamos a forma
musical 12 bars-blues, e precisaríamos que eles fossem capazes de encontrar os graus
das notas, em diferentes tons. Durante nossa explicação de tons e semitons, da
necessidade dos acidentes (sustenido e bemol), eles ficaram bem apáticos. Devido a
nossa percepção da situação, resolvemos fazer uma atividade prática que exigisse que
eles interagissem conosco e entre si. Escrevemos no quadro a escala maior, em
diferentes tons, mas faltando algumas notas e pedimos que alguns alunos fossem
completá-las. No início, alguns se mostraram resistentes e não obrigamos sua
participação. Contudo, conforme outros mais desinibidos iam participando, os mais
tímidos sentiram-se mais à vontade para interagir. No começo, apenas auxiliavam os
que se propunham ir ao quadro, depois, eles mesmos se propuseram a ir. Esse episódio
nos levou a refletir na importância de se trabalhar em grupo, de se aprender entre pares.
Mas, acima de tudo, de se debater os assuntos trazidos, valorizando a opinião de cada
um. O diálogo é fundamental no manuseio de elementos textuais.
A exemplificação prática do conteúdo abstrato também é primordial. Nossas exposições
unicamente verbais eram de curtíssima duração. Logo que possível, procurávamos tocar
os assuntos trabalhados. Notamos que nesses momentos de prática os alunos se
mostravam mais interessados e frases do tipo: “Ah... agora eu entendi!” eram
freqüentes. Interessante foi que isso acontecia unicamente por meio da percepção
musical. Apenas eu toquei. Nem mesmo os alunos violonistas se manifestaram no
sentido de tocar par si próprios os conteúdos, mesmo motivados por mim. Durante o
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intervalo das aulas, esses mesmos alunos pediam para tocar meu violão, no que sempre
eram atendidos. Nesses momentos, conversávamos sobre bandas e músicos, eles me
perguntavam sobre minha experiência e currículo. Eram instantes de muita
descontração. Porém, quando eu perguntava a eles se gostariam de tocar, durante a aula,
a resposta era sempre negativa.
Conforme já mencionado, durante a primeira audição das músicas, eles sempre faziam
silêncio, espontaneamente. Você deve estar se perguntando: “Por que só na primeira
audição da música?”. É simples: nas outras vezes que ouvíamos a referida peça,
franqueávamos a palavra a eles, no sentido de, juntos, irmos identificando os vários
elementos que aquele texto sonoro possuía. Contudo, perceberam, por si sós, que era
necessário prestar atenção na música, antes de discutir sobre ela. Os momentos de
identificação e explanação dos materiais sonoros contidos nas músicas eram muito
disputados entre eles. Sentiam-se importantes por identificar e se pronunciar
corretamente sobre uma fonte sonora, um gênero musical, o teor dramático de referida
peça. Frith (1998) esclarece que um dos maiores prazeres da cultura do entretenimento é
a discussão sobre valores e gostos.
Considerações finais
Uma vez mais trazemos à tona nosso dilema: É possível oportunizar aos alunos uma
vivência direta e significativa da música, ao ponto deles serem capazes de interpretar,
em diferentes contextos, os conteúdos propostos, e ampliar seus conceitos sobre música
e músicos, apenas por meio da percepção e do debate dos textos musicais?
Sim! Por meio da experiência vivenciada com as turmas de 2° ano, do CEMSO, temos
tranqüilidade em afirmar que sim. Nossa inicial opção por trabalhar apenas a percepção
e o debate se deu, como já mencionamos, pelos seguintes fatores: 1) Período do
projeto; 2) Tamanho das turmas; 3) Heterogeneidade; e 4) Escassez de recursos físicos.
Contudo, após nossa bem-sucedida experiência, verificamos que essa proposta pode ser
aplicada a qualquer instituição de ensino, independente de sua estrutura física e
organizacional, com qualquer período de duração, podendo mesmo ser pensada para
todo o ano letivo.
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Em sentido mais amplo, outras enriquecedoras práticas podem ser realizadas, tais como:
leitura e discussão de textos relacionados à indústria cultural; workshops com músicos
instrumentistas, Dj’s, produtores e empresários musicais, compositores, engenheiros de
som, programadores de softwares destinados à música etc.; visita a shows de bandas
renomadas, bem como bandas da própria comunidade, e posterior mesa-redonda para
discussão; visita a concertos de música contemporânea e tradicional com posterior
debate; apresentação de seminários sobre funções que a música pode desempenhar na
sociedade (entretenimento, terapia, ritual, profissional etc.).
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