V ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura 27 a 29 de maio de 2009 Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil. ENTRE CULTIVAR A FÉ E COLHER O CACAU Valdinéia Oliveira dos Santos1 Prof. Dra. Lucia Ricotta Vilela Pinto2 Prof. Dr. Edson Silva de Farias 3 Essa pesquisa investiga as relações sociais constituídas a partir das práticas religiosas nas fazendas de cacau do Sul da Bahia. A memória sobre o Sul da Bahia é marcada por dois aspectos: a monocultura cacaueira e o coronelismo, ou seja, a possibilidade de compreensão sobre as relações sociais nessa região sempre foram construídas prioritariamente pela esfera econômica. Com base nesse pressuposto, o trabalho de pesquisa ora apresentado, encaminha-se pela perspectiva religiosa infiltrando-se no cotidiano religioso das fazendas de cacau, através das narrativas orais de seus moradores. A perspectiva a ser defendida durante nessa dissertação é de que, ao lado do fator econômico, a religião se constituiu, um instrumento importante de socialização dos homens e mulheres que habitavam as fazendas de cacau do Sul da Bahia Memória - Religião - Fazendas de cacau A investigação realizada nessa pesquisa centra seu interesse nas relações sociais constituídas a partir das práticas religiosas, nas fazendas de cacau, que se localizam no na área rural do município de Ubatã na região Sul da Bahia. O período de abrangência se inscreve entre 1950 e 1980. A delimitação do tema se deu a partir da observância de que existe uma memória constituída sobre o Sul da Bahia em que são privilegiados os aspectos referentes ao processo, no qual essa região se tornou especializada no cultivo de cacau. Desbravamento, monocultura cacaueira e desenvolvimento, são elementos que perpassam o processo histórico dessa região e que estão relacionados à ação do homem no sentido de transformar o espaço através do trabalho. Essa conjuntura na qual a esfera econômica é superdimensionada tornou invisíveis os grupos sociais que habitavam as fazendas de cacau e também projetou um desconhecimento sobre as atividades culturais dessas pessoas. 1 Aluna do mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB. Valdiné[email protected] Professora adjunta do Depto de Estudos Lingüísticos e Literários Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. [email protected] 3 Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília. [email protected] 2 O problema que norteia essa pesquisa é saber qual o papel que a religião cumpria na formação de interdependências sociais no espaço-lugar das fazendas de cacau. Essa perspectiva vai de encontro a uma crença já sedimentada no imaginário coletivo, sobre que o cotidiano dessas pessoas era dominado pela produção material e que suas práticas religiosas estavam polarizadas em torno do catolicismo. Acredita-se que o cotidiano é lugar de heterogeneidade de “invenções” onde os indivíduos subvertem ordens instituídas a partir de “artes de fazer”. Nesse sentido, o grupo social das fazendas de cacau foi formado a partir de um quadro étnico heteróclito, no qual havia uma confluência de memórias subjacente, que teve papel decisivo no ordenamento de uma narrativa religiosa multifacetada. O ponto matricial para a elaboração dessa narrativa foram os elementos da narrativa religiosa católica, foi a partir dessa matriz que o grupo social, em sua historicidade constituiu deslocamentos incorporando elementos da cosmovisão indígena e africana. O fato de que a Igreja matriz estivesse localizada na cidade, fez com que a população rural ficasse religiosamente desassistida, no interstício dessas “brechas” deixadas pelo catolicismo o grupo social, a partir de suas memórias, elaborou “artes de fazer” que subvertiam a ordem católica. Nas práticas religiosas elaborada nas fazendas, Deus e Jesus tiveram seus papéis deslocados em importância, os santos tomaram um papel principal num altar no centro das casas, onde se faziam cultos domésticos. Havia uma quantidade grande de cultos, rezas e novenas em homenagens a São José, São Jorge, São João, Santo Antonio, Santa Bárbara, porque estes ajudavam nas resoluções de problemas práticos como: colheita, condições climáticas, matrimônio. As representações religiosas davam conta de incorporar uma diversidade de personagens, os caboclos foram colocados em lugar de importância sob a alegação de que eram entidades pertencentes ao espaço da mata, espíritos de índios que habitavam a mata antes da chegada dos migrantes e que por isso possuíam o conhecimento sobre os usos de ervas e procedimentos com folhas para cura de doenças. Nesse universo de representações religiosas do grupo, havia também a presença dos orixás, esses personagens, numa articulação sincrética, eram relacionados aos santos católicos e respondiam a uma ancestralidade africana. Era muito comum a tradição de promessas a Cosme e Damião que culminavam com a realização de carurus em várias fazendas. A religião é um fenômeno que não está encerrado em sí, mas relaciona-se a várias esferas da vida cotidiana. As grandes festas de carurus realizadas pelos fazendeiros são formas de devoções, mas também são dádivas que se convertem em acordos tácitos no universo político local. A relação entre os fazendeiros de cacau e a vida religiosa direcionava-se em formas de doações que eram direcionadas tanto à Igreja quanto ao terreiro de candomblé. Na dimensão econômica podemos observar que havia uma devoção maior aos santos que se relacionavam às condições climáticas e à colheita. A delimitação do recorte espacial refere-se ao fato de que a Igreja matriz da cidade de Ubatã tenha sido construída em 1956. Tomo como referência a Igreja católica porque trata-se da religião oficial, legítima e detentora de um conjunto de práticas mais duradouras que prescrevem um culto ritualizado. Em interface, as práticas religiosas elaboradas pelo grupo social que vivia nas fazendas de cacau continha elementos que se aproximam do conceito de magia e operava com cultos e agentes religiosos que só eram legítimos para o grupo. Tomando a década de cinquenta como balizamento temporal pretende-se desvelar o cotidiano religioso do grupo social em questão, a partir de um exercício etnográfico apto a revelar os sentidos e as significações que os indivíduos davam às suas práticas. A hipótese que dá norteamento a essa pesquisa é de que uma narrativa religiosa elaborada a partir da matriz católica em intersecção com elementos da cosmovisão africana e ameríndia foi um instrumento importante na elaboração de interdependências sociais no espaço-lugar das fazendas de cacau. O empreendimento da investigação proposta nessa dissertação remete ao problema das fontes, trata-se de observar que o grupo social das fazendas de cacau era em sua maioria, iletrado e não deixou registros escritos sobre suas práticas, tudo era preservado pela tradição oral e guardado na memória dos mais velhos que gozavam de uma posição privilegiada dentro do grupo. Observando-se esse pressuposto, foi necessário tomar como instrumento metodológico principal, as narrativas orais de um conjunto de pessoas idosas que moravam nas fazendas de cacau no período estudado. Por essa via de análise, a história oral se constitui o principal instrumento de coleta de dados. “O que define a história oral e a coloca à parte dos outros ramos da história é, afinal, o fato de se assentar na memória e não em outros textos.” (FENTRESS E WICKHAM, 1992, P.14) A história oral relaciona-se à categoria analítica da memória coletiva, esse recurso epistemológico tem embasamento nas teorizações de Maurice Halbwachs e refere-se ao caráter polifônico da memória, dando ênfase as memórias que são constituídas pelo indivíduo enquanto participante de um grupo social. Em dialogo com as preposições teóricas de Halbwachs, FENTRESS e WICKHAM nos ensinam que: “Nossas recordações estão misturadas e tem ao mesmo tempo um aspecto social e outro pessoal” (1992:20). Em observância a esse aspecto, a análise dos depoimentos contidos nessa dissertação, privilegia os pontos nos quais se observa um consenso sobre os fatos vivenciados pelo grupo. . Em referencia à relação entre História e cotidiano Le Goff afirma: (1989 p. 74) “a história do cotidiano resulta, mais ou menos, sempre, da eclosão de um certo olhar etnológico.” Nessa medida, o corpus textual dessa pesquisa será encaminhado através do modelo etnográfico tal como proposto no modelo de interpretação das culturas de Cliford Geertz, a análise dos dados apresentados nas narrativas orais busca desvelar os significados que os indivíduos atribuíam à suas práticas religiosas. Nessa proposta, o cotidiano é tomado como um lócus da história, onde se desenvolvem atividades heterogêneas e principalmente “invenções” de ordem religiosa. A investigação proposta nessa pesquisa tem como ponto inicial a mobilização de um quadro teórico apto a promover uma intersecção entre: religião, memória e sociedade. A necessidade dessa articulação conceitual reside em que, ao longo dessa pesquisa, esses conceitos se comportarão como um eixo sobre o qual serão encaminhadas as reflexões que possibilitarão afirmar: primeiro, que a religião sanciona uma narrativa em que lembranças e esquecimentos estão em jogo. Segundo, que a religião tem participação na formação das interligações sociais e por último que a memória cumpre um papel fundamental na vivificação e permanência das práticas de ordem religiosa. MEMÓRIA Na constituição dessa pesquisa, a memória está inscrita nas seguintes posições: a) é um recurso metodológico para alcançar o conhecimento sobre o objeto religioso, b) é o elemento que atua para manter a vitalidade das crenças e ritos sagrados, c) é responsável por preservar os elementos da narrativa religiosa, d) participa na transmissão e incorporação dos saberes necessários aos rituais. O tema da memória está presente em Formas Elementares da Vida Religiosa (1912) no que tange às celebrações rituais entre os Warramunga. Ao investigar as celebrações daquele grupo, Durkheim sublinha que os rituais contidos na vida religiosa dos Warramunga cumpriam uma função memorialística ao presentificar a história mítica dos antepassados.“O rito consiste unicamente em relembrar o passado e torná-lo presente, de certo modo, por meio de uma verdadeira representação dramática”. (DURKHEIM, 2003:405). No conteúdo dos cânticos ele identifica uma narrativa sobre os feitos dos ancestrais, também as representações dramáticas rememoravam um passado mítico dos antepassados. “Tudo transcorre em representações que se destinam apenas a tornar presente aos espíritos o passado mítico do clã” (DURKHEIM 2003:408). Nesse sentido, Durkheim identifica uma funcionalidade da participação da memória no fenômeno religioso, na medida em que esse mecanismo é responsável por reatualizar os estados mentais do grupo, a função do rito é impedir que a crença se apague da memória tornando o passado sempre presente. Portanto, as atitudes rituais cumprem a função de revivificar na memória uma crença reanimando o sentimento de coesão social. Durkheim torna essa relação clara quando afirma que é através dos ritos que: “o grupo reanima periodicamente o sentimento que tem de si mesmo e de sua unidade; ao mesmo tempo, os indivíduos são revigorados em sua natureza de seres sociais” (DURKHEIM, 2003: 409). Ainda sobre a atuação da memória nos rituais religiosos, Durkheim ressalta que os ritos têm caráter instrutivo: “as pessoas ficam mais seguras em sua fé quando vêem a que passado longínquo ela remonta e os grandes feitos que inspirou. É esse caráter da cerimônia que a torna instrutiva”. (DURKHEIM, 2003: 409). Nesse sentido o rito contém em sí um esforço no sentido de incorporar um saber, manter a prática do fiel. Weber traz a tona o problema da memória na constituição da narrativa religiosa, a constituição de uma narrativa religiosa não é algo neutro, é sim um lugar de luta onde está em jogo o que deve ser lembrado e esquecido, isso tem importância na medida em que a narrativa prescreve conhecimentos sobre o passado do grupo. Encontram-se em jogo a representatividade e legitimidade dos agentes, o status, a inserção e o deslocamento dos personagens. Em visto disso, Weber nos diz que as religiões crescem na medida em que reforçam a apreensão de um sentido, é esse sentido constituído historicamente que é representado pela narrativa religiosa e no qual a memória tem função essencial. UMA NARRATIVA RELIGIOSA MULTIFACETADA A forma como a religião foi configurada no espaço-lugar das fazendas de cacau relaciona-se ao modo como o grupo social se adaptou ao espaço-lugar dessa região. Esse processo histórico foi responsável por congregar sujeitos com uma multiplicidade de memórias, por instituir modos de vida e principalmente por configurar uma forma de relação com o sagrado a partir de referências plurais. Das relações históricas, relacionais e identitárias que os indivíduos constituíram nas fazendas de cacau, o cotidiano emerge como lugar onde as experiências sociais podem ser observadas de forma mais aguda, lugar próprio da história, rico em experiências e memórias. No processo de formação histórica do Brasil, a Igreja católica possui a prerrogativa de ser a religião cujas práticas integraram por mais tempo a ordem de um discurso religioso legitimado pelo estado. O catolicismo esteve durante muito tempo localizado nesse espaço de representatividade e reconhecimento. Em vista disso, a narrativa religiosa católica prevaleceu como lugar de verdade, fazendo com que as pessoas procurassem manter um alinhamento, ou pelo menos, encontrar nela uma referência. Sobre essa circunstância, Eduardo Hoornaert sublinha que: “o catolicismo brasileiro assumiu nos primeiros séculos de sua formação histórica em caráter obrigatório. Era praticamente impossível viver integrado no Brasil sem seguir ou pelo menos respeitar a religião” (HOORNAERT, 1991:13). O argumento de Hoornaert encaminha-se no sentido de conectar pertença católica e integração social. No âmbito da comunidade rural estudada, havia uma pluralidade de práticas religiosas, mas as pessoas buscavam no catolicismo um parâmetro de legitimidade. Como podemos ver no comentário da senhora Balbina Rosa dos santos: lá na roça tinha um velho chamado Luis que era curador era ele quem socorria nóis, com reza, banho de folha, ele era católico como nóis e ia de casa em casa atendendo as pessoa, tinha dia que ele fazia festa, batia tambô e as pessoa manifestava orixá, caboclo ele dava também carurú de Corme, mas ele era católico que nem nós4. O relato sobre as práticas de religiosidade é entrecortado por reafirmações constantes de pertença ao catolicismo, tornando assim evidente o fato que a narrativa religiosa prevalecia como lugar de verdade, atrelados à essa narrativa legítima, os agentes religiosos católicos gozavam de autenticidade e reconhecimento. A paróquia da cidade de Ubatã foi construída em (1956) mas não conseguia atender a população rural como um todo. Sobre essas ausências do catolicismo e a devoção do povo da roça a senhora Valdelice Ferreira de Lima de 69 faz o seguinte comentário: 4 Depoimento citado. O padre não existia pro povo da roça, ele ia na roça no dia dois de setembro, todo mundo esperava essa data pra casamento pra batizado pra tudo. O padre ia montado num burro véi, com o sacristão, eram três dias de festa, se comia do bom e do melhor, o padre era recebido com uma mesa farta, bolo de aipim, manteiga. Quando o padre saia a gente cantava o reis temporão, enfeitava a casa fazia ladainha e rezas5. O depoimento evidencia que enquanto agente religioso oficial, o padre gozava de reconhecimento, status e legitimidade junto ao povo da roça. A sua chegada era motivo de festa e as celebrações de cunho oficial como casamentos, batizados eram reservados a sua espera, entretanto a sua ausência é revelada logo no início quando ela sublinha que ele só comparecia na zona rural uma vez ao ano. Mediante a saída do padre as pessoas criavam e recriavam a partir da liturgia católica compondo suas próprias celebrações religiosas. A partir dos rudimentos da liturgia católica como imagens, cânticos, atos de fala, as pessoas prosseguiam em seu cotidiano de cultos e rituais: ladainhas, rezas, novenas eram realizados a revelia do corpus teórico católico e com amparo na memória e oralidade, na falta de registros escritos o saber era incorporado através da prática. A tradição oral se constituía a principal forma de transmissão de conhecimentos, a população das fazendas de cacau era em sua maioria iletrada, o que fazia com que os textos bíblicos fossem pouco consultados, a falta de estudos bíblicos de conhecimento sobre os preceitos católicos fazia com que os rituais ganhassem prestígio entre o povo, a prática do louvor através de ritos funcionava com maior êxito do que a pedagogia da palavra. Nas fazendas não existiam igrejas, com isso as pessoas faziam seus altares de imagens de santos em casa, estabelecendo uma relação proximal com seus santos, punha-os no meio da sala, realizavam oferendas e festas em casa em sua homenagem. Sergio Buarque de Holanda já havia ressaltado essa característica do nosso povo no livro Raízes do Brasil. “nenhum povo está mais distante da noção ritualística de vida do que o brasileiro” (HOLANDA, 2001:149). Segundo ele esse aspecto é peculiar ao povo brasileiro e deu ao nosso catolicismo um caráter singular, uma vez que há uma relação intíma com o santo protetor da casa. “nosso velho catolicismo, tão característico, que permite tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer 5 Depoimento citado. estranho às almas verdadeiramente religiosas, provém ainda dos mesmos motivos” (2000:148). Essa pessoalidade característica da religiosidade brasileira somada ao fato de que a narrativa bíblica não fosse estudada, fez com que a figura de Jesus e de Deus perdesse o prestígio no universo rural, os santos ganharam representatividade sendo alvo dos cultos e devoções. Como afirma o senhor Domingos Nascimento de 75 anos: “O santo era o Deus da roça. O povo fazia mais festa pro santo. Deus e Jesus não recebiam tanta homenagem”. Há que se observar um deslocamento promovido nos personagens centrais da narrativa religiosa católica, Deus e Jesus perderam sua representatividade passando a um lugar secundário, enquanto os santos assumiram uma posição central na solução dos problemas cotidianos dos fiéis. CONSIDERAÇÕES FINAIS Essa pesquisa encontra-se em andamento, os dados coletados previamente apontam para a confirmação da hipótese de que a religião se constituiu um importante instrumento de socialização no espaço-lugar das fazendas de cacau, em decorrência de que nas práticas religiosas observava-se uma confluência de memórias. A narrativa religiosa católica era tomada como ponto matricial e a partir dela agregavam-se elementos da cosmovisão africana e ameríndia. Referências AMADO, Janaina FERREIRA Marieta de Moraes. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. Ouro na Floresta de Chocolates. Disponível em: www.institutobrasilverdade.com.br/. Acesso em 27 de jan. 2009. BALANDIER, Georges. 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