as filosofias da diferença de nietzsche e de deleuze: para construir

Propaganda
AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA DE NIETZSCHE E DE DELEUZE: PARA
CONSTRUIR OUTROS MODOS
Isabella Vivianny Santana Heinen 1
Ingrid Larissa Santana Heinen 2
A atualidade faz um convite àqueles preocupados com a tarefa do pensamento, sugere
Nietzsche com a sua filosofia. A tarefa do pensamento não é só problematizar, mas criar
outras formas de intervenção no mundo. Desse modo, Nietzsche é um autor para além do seu
tempo, pois sua filosofia desmobiliza os hábitos, aquilo que aparentemente abraça a forma
como naturalização. Nietzsche caracteriza sua filosofia como uma crítica corrosiva aos
valores da nossa civilização, encarnados sob os nomes de moral, conhecimento, cultura,
religião, metafísica. Nietzsche entende que em uma sociedade que ainda vigora os valores da
compaixão, da solidariedade, da brandura, ainda não conseguiu se livrar da moral de rebanho,
e ao mesmo tempo são uma dissimulação das relações de poder, pois a sociedade se baseia em
princípios da compaixão, mas continua agindo de forma avessa a essas ideias. Assim, pode-se
dizer que, ele é um vetor teórico muito válido para se pensar a cultura. Dessa forma, a
filosofia desse autor torna-se uma das principais referências teóricas da cultura e do seu
entendimento; não é possível pensar o nosso presente e toda a sua contextualização filosófica
sem levar em consideração a empreitada filosófica de Nietzsche. Ele torna-se um dos maiores
pensadores da transição da modernidade para a contemporaneidade. Corre-se o risco de não
entender o nosso tempo negando o pensamento filosófico desse pensador, da filosofia do
martelo. Nietzsche, pensador da guerra, exatamente porque ele quer entender, que esta
acontece de modo a mascarar as relações de poder que se apresentam dissolvidas, não tem
complacência com o seu tempo, assim, efetiva uma crítica sutil ao homem do presente e
recorre à história para mostrar suas forças, suas relações e suas tensões como um diagnóstico
do presente. Ele fomenta essa análise em seus textos capitais, como na sua obra A Genealogia
da Moral, que faz todo um estudo da procedência e das forças que estão em jogo na
fomentação e constituição dos valores. Do mesmo modo que na sua obra Além do bem e do
mal, procura, de modo detalhado, mostrar o rosto da modernidade e sua constituição
decadente. Em Assim Falou Zaratustra, obra madura, perpassa uma crítica corrosiva a cultura
filisteia e a barbárie civilizada. O homem do presente, como sugere a seção Do país da
Cultura, é um malogro, impotente e estéril. Nietzsche diz: “em verdade, não poderíeis usar
máscaras melhores do que vossos próprios rostos, ó homens do presente! Quem poderia –
reconhecer-vos?” (NIETZSCHE, 2011, p.114), e na seção Da virtude que apequena, diz:
“(...) virtude é o que torna modesto e manso: com ela transforma o lobo em cão, e o próprio
homem, no melhor animal doméstico do homem” (NIETZSCHE, 2011, p.162). Nietzsche se
refere ao homem do presente como um tipo sarapintado. O homem que exercita toda a sua
vacuidade e empáfia, como salienta Scarlett Marton (2001). Esses homens do presente são
imitadores, superficiais, “o pastiche e forjar o amálgama” (MARTON, 2001, p. 28). Sua
cultura é decadente e se pretende uma unidade e tal unidade só se dá em sua falta de estilo
(MARTON, 2001). Dessa maneira, filosofar com Nietzsche deve ser a golpes de martelo, com
o objetivo de fissurar os dogmas cultivados pelo homem do presente. Assim, entende-se que
Nietzsche procedeu dessa forma em sua filosofia, com o objetivo de mostrar aquilo que
aparentemente é comum, de convidar a desfazer os hábitos, os costumes, as normas bem
aceitas. Nietzsche realiza uma crítica ao homem do seu tempo, ao homem gregário,
massificado, ao homem escravo e decadente. Compreendendo o processo de cultura como um
1
Graduada em Filosofia Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Federal do Pará, Mestranda da PósGraduação em Filosofia da Universidade Federal do Pará, e-mail: [email protected]
2
Graduanda do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará, e-mail: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
240
AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA DE NIETZSCHE...
mecanismo que domestica o homem, impele seus instintos, a fim de promover um homem
prioritariamente racional, com isso, desmistifica a ideia de que a razão é a única capaz de
propiciar ao homem o desenvolvimento de tecnologias capazes de auxiliar na vida moderna e
capitalista. A crítica desse tipo é antes de tudo uma crítica moral e política, na medida em que
a moral escrava é uma moral do controle, da compaixão, da resignação, que são efetivadas por
um tipo de homem: o escravo. Os valores morais do escravo limitam uma linguagem,
constituem uma conduta baixa e vulgar. Nesse âmbito, a moral é entendida como um reflexo
dos processos racionais, uma forma de comedimento dos indivíduos, em que o processo
racional deflagrado por esta, embute na consciência humana a ideia de que boas ações e
prosperidade encontram-se totalmente interligadas. Com esta intrínseca relação entre moral e
racionalidade, imbui- se no homem o comportamento escravo, desenvolvendo-se segundo os
princípios que a razão institui. Nessa perspectiva, a ideia de conceito como criação em
Deleuze é de inspiração nietzschiana, ambos põem a filosofia em movimento com o seu
tempo, com a imanência. Deleuze pretende, por sua vez, transpor os paradigmas existentes em
relação ao conceito e a própria filosofia, por esta tratar-se agora de um processo criativo do
pensamento, não mais mera representação fenomênica ou como dogma que toma o conceito
meramente enquanto unidade da multiplicidade. Ele não nega o conceito, só não aceita o
conceito como representação, porém, agora o mesmo apresenta-se como interpretação da
realidade, e porque não, produção intelectiva. De modo que a análise da dissolução do homem
na modernidade será feita a partir de uma crítica a filosofia tradicional, aquela em que o
conceito e o próprio homem são vistos como representação e não como diferença. Pretende-se
identificar a partir de Nietzsche e de Deleuze, o desgaste, a ruína humana na modernidade, a
constatação de que o homem não estimula sua capacidade produtiva, se refugia na
comodidade das facilidades da vida gregária. Ambos engendram uma crítica ao pensamento
dogmático e a filosofia da representação, e como modos inventivos propõem pensar a ideia da
diferença. E esta, se constitui a partir dos próprios limites da representação, apresentando uma
severa crítica a esse homem que aspira a agregação, receia rebelar seu instinto junto aos seus,
agregando-se para sentir-se pertencente e continuar a representar, repetir. Deleuze posicionase contra a repetição, apresentando a repetição da diferença, distancia-se da repetição do
igual, o que ocorre é a mudança pela diferença, tornando nítido o problema da objetividade
científica, pois esta não concerne o real, ao contrário postula conceitos, que são em si mesmos
limitados para representar a universalização. Essa universalização, na perspectiva
nietzschiana, torna o instinto gregário revelador da limitação do humano, o transforma em um
tipo homem manso e medíocre, que busca descansar nos “ombros” da moral escrava, como
forma de limpar o seu próprio horror e aniquilamento, pois como diz Nietzsche “de que serve
todo o livre-pensamento, toda modernidade, zombaria e volúvel flexibilidade, se em suas
entranhas o indivíduo permanece cristão, católico e sacerdote” (NIETZSCHE, 2006, p. 64).
Dessa forma, o que parece ainda permanecer, em último fôlego, é a moral cristã, que passeia
pelo centro do tipo homem esclarecido, o fruto do iluminismo moderno. Não podemos
confundir a filosofia da diferença com filosofia empírica, já que, a filosofia da diferença não
propõe a aplicação de testes empíricos para satisfazer seus princípios filo sóficos, e sim a
discussão da problemática da decadência do homem moderno revelando, portanto, a
falibilidade da razão, e sua queda enquanto instância soberana de aquisição de conhecimento
e, por outro lado instância necessária da modernidade. A filosofia não é mais colocada como
detentora da verdade ou a propagadora daquilo que deve ser, mas como criadora de novos
conceitos, por isso não é mais possível pensar segundo a filosofia moderna, isto é, como um
antigo sistema de referência simplificador. Em que mesmo a filosofia da diferença é uma
filosofia da produção de conceitos, não se tem mais um objeto fixo, tem-se a repetição da
diferença. O filósofo deve tentar falar do mundo, que é por sua vez dinâmico, da mesma
forma que os atributos do conceito. Para Deleuze a filosofia em nenhum momento vai dizer o
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
241
AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA DE NIETZSCHE...
que o mundo é, ao contrário o interpreta através da criação de conceitos, o que implica no
desafio da interpretação do mundo, do homem e sua dissolução enquanto agente
transformador da modernidade. Mostrando assim, que a filosofia não é mais determinista, e
também a dificuldade de conceber a filosofia a partir de interpretações, pois não é possível a
construção de uma interpretação da realidade, por essa interpretação não conseguir abranger
as diferenças do mundo. A proposta Deleuziana, tal qual a nietzschiana não pensa mais o
universal, e sim a diferença, e quando se compreende a limitação do conceito, percebe-se sua
remissão a diferença, em que não se tem mais uma perspectiva normativa ou classificatória. A
filosofia sugestionada por Deleuze é a da criação, e não a da estaticidade, constatando-se que
o real é composto pela relação contínua da diferença. Em que o infinito é o limite da nossa
conceituação, pois, o que se tem agora é o conceito da reflexão criativa, que cria o mundo,
não tem mais a ver com a classificação normativa. A filosofia, desse modo é uma espécie de
territorialização, que a tudo deseja enquadrar, rotular, tornar parte constituinte de algo. A
desterritorialização é posta no alcance daquilo que é, não se tratando mais da filosofia do
dever ser, isto é, a desterritorialização é a perda das características, é a sobreposição de um
plano de imanência, e na medida em que se desterritorializa e automaticamente se
reterritorializa, porque se constrói outro território “pensar se faz antes na relação entre o
território e a terra” (DELEUZE, 1992, p. 109). Não é mais uma transcendentalidade da
representação, pois é uma transcendentalidade relacionada com o vivido, não podendo ser
mais uma verticalização, isto é, algo imperativo, do dever ser. Para Deleuze a relevância de se
delinear a variância, compreendendo a significação do pensamento filosófico e seu processo
histórico conceitual. A desterritorialização nos possibilita a multiplicidade dos eventos e de
suas singularidades, em que esta multiplicidade só se estabelece a partir dos processos de
reconfiguração, pois a produção de conceitos expressa um movimento de reflexão, e não mais
a produção de uma representação do mundo. Não é mais privilégio algum da filosofia a
criação de conceitos, este apenas lhe assegura uma função, pois há outras maneiras de fazê-lo
até por meio do pensamento científico, no entanto ainda somos instigados a saber para que se
faz necessário a criação de conceitos, e sempre novos conceitos. A pesquisa torna-se
importante não só por desenvolver uma análise teórica conceitual dos autores, que ainda
oferecem elementos teóricos e filosóficos que ajudam a pensar as questões da modernidade,
mas também por querer aprender com Nietzsche e Deleuze que a tarefa do pensamento é um
exercitar a crítica, bem como a criação de outras posturas críticas diante do mundo que nos
cerca, não de forma naturalizada, mas analítica, o que deve ser não moralisticamente o papel
da filosofia. Dessa maneira, a pesquisa tem caráter teórico- bibliográfico. As obras
mobilizadas para análise e confecção deste trabalho serão as da terceira fase de Nietzsche, isto
é, o período de maturidade do filósofo, não excluindo, todavia, incursões para a compreensão
da pesquisa. Destarte, não temos a pretensão de igualar a filosofia de ambos, mas
potencializar o pensamento, sua atualidade com essas filosofias que tanto um quanto o outro,
aos seus modos, fazem uma crítica a filosofia da representação, dos universais e da
efetividade. Nietzsche não pode ser compreendido baseado em padrões hermeticamente
fechados, seus escritos não são configurações de representações e conceitos unívocos, em que
já se admite um sentido. Ele quer desconstrói as amarras constituídas por modelos que
impossibilitam a critica do homem a modernidade, posicionando-se a favor de que as
asseverações, já perpassam o campo interpretativo, afastando-se, nesse âmbito, decisivamente
das ideias prévias de significante e significado. Nesse sentido, conforme coloca Deleuze em
Pensamento nômade (1985) os escritos filosóficos são constituídos em consonância aos
códigos, ou seja, são sempre estabelecidos através de uma norma reguladora, que diz
exatamente aquilo que se pode ou não fazer. Mas, o que se propõe aqui é a discussão e
desterritorialização dessas amarras que dissolvem o homem no instinto gregário.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
242
AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA DE NIETZSCHE...
Referências
NIETZSCHE, F.W. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. A Genealogia da moral. Petrópolis. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Rio de Janeiro:
Vozes, 2009.
______. A Gaia ciência. 6. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2000.
______. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Trad. Paulo Cezar
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
______. Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr.
e Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro. Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
______. “Pensamento Nômade”. In: MARTON, Scarlett (org.). Nietzsche Hoje? São Paulo:
Brasiliense, 1985.
ARALDI, Clademir Luís. Nietzsche como crítico da moral. Versão modificada do texto da
conferência apresentada no dia 24 de abril de 2008, no Colóquio “Temas de Ética e Filosofia
Política”, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Pelotas. Dissertatio [27-28], 33 – 51 inverno/verão de 2008. Disponível em:
http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/27-28/02-27-28.pdf. Acesso em: 09 de Fev. de
2012, 14:19.
CADERNOS NIETZSCHE. São Paulo: Grupo de Estudos Nietzsche, 1996.
AZEREDO, Vânia Dutra de. Grupo De Estudos Nietzsche. Nietzsche e a dissolução da
moral.
HORKHEIMER,
Max. &
ADORNO, Theodor
W.
A
Dialética do
Esclarecimento. Trad.: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
ITAPARICA, André Luís Mota. Grupo De Estudos Nietzsche. Nietzsche: estilo e moral. São
Paulo: Discurso; Ijuí, RS: UNIJUÍ, 2002.
JÚNIOR, Oswaldo Giacoia. Crítica da moral como política em Nietzsche. Disponível em:
http://www.rubedo.psc.br/artigosb/crimornt.htm. Acesso em: 09 de Nov. de 2012, 11:45.
______. Nietzsche x Kant Uma disputa permanente a respeito da liberdade, autonomia
de viver. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2012.
LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Trad. Lúcia M. E. Orth. 3 ed. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 2007.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
243
AS FILOSOFIAS DA DIFERENÇA DE NIETZSCHE...
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. 2.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
MARTON, Scarlett. Extravagâncias Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 2º ed, São
Paulo: Discurso Editorial e Editora Unijuí, 2001.
______. Nietzsche: a transvaloração dos valores. 3 ed. São Paulo: Moderna, 1993.
______. Nietzsche: uma filosofia a marteladas. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
PASCHOAL, Antonio Edmilson. Nietzsche e a auto-superação da moral. Ijuí: Ed. Unijuí,
2009.
TEMPLE, Giovana Carmo. A crítica nietzschiana à democracia moderna. Disponível em:
http://www.marilia.unesp.br/Home/PosGraduacao/Filosofia/Dissertacoes/temple_gc_me_mar.pdf.
Acesso em: 08 de Nov. de 2012, 17:13.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
244
Download