revista jurídica da faculdade de direito – v. v – n.° 9

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EOS
ISSN 1980—7430
REVISTA JURÍDICA DA FACULDADE DE DIREITO – V. V – N.° 9 – ANO V
3
EOS — Revista Jurídica da Faculdade de Direito / Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa
do Curso de Direito. — v. 5, N°. 9 - Ano V (jan./jul. 2011) — Curitiba: Dom Bosco, 2011.
Semestral.
ISSN 1980 - 7430
1. Direito — Periódicos. I. Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa do Curso de Direito.
CDD 3
EOS
Revista Jurídica da Faculdade de Direito
ISSN 1980—7430
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Apresentação
Já dizia José de Alencar que “O sucesso nasce do querer, da determinação e persistência em
se chegar a um objetivo. Mesmo não atingindo o alvo, quem busca e vence obstáculos, no mínimo fará
coisas admiráveis.”
Com esse espírito entramos no ano V de publicação da EOS – Revista Jurídica da Faculdade
de Direito Dom Bosco, inaugurando um novo formato: a revista passa a ser publicada unicamente em
meio eletrônico.
Para alguns pode parecer diminuição ou desprestígio, mas não encaramos assim. A utilização
de veículos eletrônicos é um fato cada vez mais corriqueiro. Além disso, nos permite ampliar o número
de artigos publicados por volume e quem sabe, em breve, o número de volumes por ano. Isso atenderia
à enorme demanda de artigos que temos recebido de todos os recantos desse imenso país.
Neste volume, novamente pudemos contar com a presença de tantos colegas que enriquecem
o debate jurídico nacional. A eles queremos externar nosso mais profundo agradecimento e a certeza
de que sempre aguardaremos suas colaborações. Cabe aqui, ainda, nosso agradecimento à Direção da
Faculdade Dom Bosco e à Coordenação do Curso de Direito, que sempre nos apoia.
Continuaremos tentando sempre “acertar o alvo” para fazermos jus à deusa de quem
emprestamos o nome. Eos traz para os homens a brisa da manhã, espalha o orvalho sobre os campos,
desperta as criaturas e guia os trabalhos humanos para que se superem os obstáculos. Como ela, e com
a ajuda de todos que confiam em nós, continuaremos sempre buscando fazer o admirável.
Professora Ms. Maria Cristina Leite Gomes
Coordenação da Revista EOS
5
6
SUMÁRIO
Artigo 1
O PRINCÍPIO PROTETOR E A FLEXIBILIZAÇÃO
Denise Cristina Brzezinski
27
Artigo 2
OS DESAFIOS DA CONCILIAÇÃO DE CONFLITOS
NA JUSTIÇA DO TRABALHO: CELERIDADE
PROCESSUAL VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA
Helano Márcio Vieira Rangel
Maikon Gomes Coutinho
Artigo 3
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS AO
ESCRAVO E A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
DO TRABALHO NA SUA ERRADICAÇÃO
Fabrisia Franzoi
61
9
43
Artigo 4
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO
UM DOS FUNDAMENTOS DO ESTADO BRASILEIRO
E OS EFEITOS DA SUA NÃO EFETIVAÇÃO
João Luiz Barboza
7
75
Artigo 5
O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E OS
DIREITOS SOCIAIS: AS AÇÕES AFIRMATIVAS
Felipe Cesar José Matos Rebêlo
91
Artigo 6
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À
FORMALIDADE CONTIDA NO INCISO I DO ART. 5º
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Francisco Luiz Fernandes
113
Artigo 7
A SAÚDE SUPLEMENTAR E O ENFRENTAMENTO
DA NEGATIVA DE COBERTURA CONTRATUAL
NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Carlos Eduardo Dipp Schoembakla
Michélle Chalbaud Biscaia Hartmann
Artigo 8
Oriente X Ocidente – quem é o inimigo?
Mara Angelita Nestor Ferreira
8
127
O PRINCÍPIO PROTETOR
E A FLEXIBILIZAÇÃO
Denise Cristina Brzezinski1
Introdução. 1 Princípio protetor. 2 Princípio da irrenunciabilidade de direitos.
3 Flexibilização – crise e efeitos para o direito do trabalho. 4 O público e o privado
aos olhos de Tepedino. Considerações finais. Referências.
Resumo
O limite para regular as relações de emprego, seja na esfera individual, seja sob a égide
das relações coletivas, é indene de dúvida calcado no princípio protetor. Sob o manto da
flexibilização, não se pode permitir uma efetiva desregulamentação do direito do trabalho.
Os limites impostos pelo art. 7º da Constituição Federal devem ser respeitados enquanto
limites restritivos, e não ampliativos e extensivos para flexibilização. Há um conteúdo
mínimo a ser suportado pela esfera privada em matéria trabalhista, na medida em que
a ordem constitucional reflete nas relações privadas e públicas, e esta ordem elegeu a
dignidade da pessoa humana como seu viés mais importante.
Palavras-chave: princípio protetor, flexibilização, público e privado, dignidade da pessoa
humana.
Resumen
El límite para regular las relaciones laborales, ya sea en el individuo, ya sea en el marco
de las relaciones colectivas, no es dañina en duda fundada sobre el principio protector.
Bajo el manto de la flexibilidad, no podemos permitir que una desregulación efectiva
de la legislación laboral. Los límites impuestos por el art. 7 de la Constitución Federal
deben ser respetados como la restrictiva, y no para su gran flexibilidad y amplia. Hay una
cantidad mínima a cargo de la esfera privada en materia laboral, ya que refleja las relaciones
constitucionales público y privado, y eligió el siguiente orden de la dignidad humana como
su sesgo más importantes.
1 Mestre em Direito pela Unibrasil. Professora da Faculdade Dom Bosco. E-mail: [email protected]
9
Artigo 1
Palabras-llave: Palabras-llave: principio de protección, la flexibilidad, la dignidad pública
y privada.
Introdução
O que se pretende com este trabalho é retomar a discussão sobre a importância do
princípio protetor enquanto limitador da ordem constitucional de proteção à dignidade do
trabalhador. Mesmo tratando de instrumentos como o acordo coletivo, torna-se imprescindível
a observância do princípio protetor a impossibilitar a restrição de direitos já positivados, pois
a finalidade precípua do movimento sindical é a proteção do trabalhador, até por conta da
regra esculpida no artigo 8º, inciso III, da CF, que “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e
interesses coletivos ou individuais da categoria”, obviamente que sempre voltado a ampliar
conquistas já obtidas pela classe dos trabalhadores.
Este princípio protetor também há que ser fonte limitadora quando se tratar de
flexibilização no direito do trabalho, sob pena de incorrermos em incomensuráveis prejuízos
ao núcleo central das relações de emprego, que é a observância do princípio protetor.
Como preleciona Novais2, “(...) do ponto de vista do positivismo jurídico, todo o
Estado é um Estado de Direito, no sentido de que todos os actos estaduais são actos jurídicos
porque, e na medida em que, realizam uma ordem que há de ser qualificada de jurídica”.
Portanto, acima de tudo os atos emanados dos sindicatos representativos das classes
profissionais devem respeitar os limites de flexibilização propostos pela Constituição Federal,
proteger o hipossuficiente, zelar pela indisponibilidade das normas de ordem pública e
efetivamente ser o viés condutor da representação democrática material e formal.
Ora, não se trata de tergiversar, e sim de concluir que, se cabe ao sindicato defesa de
direitos da categoria, não é dado a este poder de negociação em prejuízo dos que representa.
1 Princípio protetor
Vivemos uma fase de proeminência dos princípios constitucionais. Para Garcia3,
“a primeira função dos princípios é a de integração do ordenamento Jurídico, a segunda, é
a interpretação, orientando o juiz e o aplicador ou intérprete das normas jurídicas quanto ao
real sentido e alcance destas”4.
O princípio protetor funciona como núcleo central das questões em direito do trabalho.
Em que pesem as inúmeras tentativas de flexibilização do direito do trabalho e
a necessidade de adequações das relações de emprego por conta da globalização, merece
atenção especial o princípio protetor.
2 NOVAIS, J. R. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 1987. p. 121.
3 GARCIA, G. F. B. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Método, 2007. p. 72. 4 GARCIA, G. Idem, 2007. p. 73.
10
O PRINCÍPIO PROTETOR E A FLEXIBILIZAÇÃO
Rodriguez5 define a intenção do legislador ao estabelecer esse princípio como base
essencial ao direito do trabalho: “o legislador não pôde mais manter a ficção de igualdade
existente entre as partes do contrato de trabalho e inclinou-se para uma compensação dessa
desigualdade econômica desfavorável ao trabalhador com uma proteção jurídica a ele
favorável”.
O princípio protetor privilegia o empregado, disciplina a dicotomia capital/
trabalho, reequilibra a desigualdade a partir de outra desigualdade, que é a proteção.
Somente esta igualdade permitirá a liberdade entre iguais.
A premissa é de desigualdade para gerar isonomia.
Aldacy Coutinho6 vincula o princípio da proteção ao nascimento do direito do
trabalho; conceitua-o como revelação da superação do princípio da igualdade de direito;
aponta como origem da proteção a desigualdade jurídica que tem como finalidade a
superação de desigualdade de ordem econômica do trabalhador, e tem como seu fundamento
a condição de hipossuficiente.
Para Aldacy Coutinho7, “a identidade protecionista do direito do trabalho deve
estar resguardada na ordem jurídica da visão e aceitação do conteúdo do princípio da
proteção. Ser tutelar é efetivar a proteção, garantir o acesso efetivo ao exercício dos direitos
assegurados, reconhecer um espaço de cidadania real.”
A autora propõe uma recontextualização do princípio da proteção, apontando duas
condições para sua aplicabilidade:
• dúvida sobre o alcance da norma legal;
• manutenção da compatibilidade com a vontade do legislador (está fora da
aplicação quando não há norma).
Em que pese para Aldacy8, a norma nunca é suficientemente clara, propõe a tutela
da proteção para estabelecer limites na relação, onde a “proteção é necessidade antes e
após o processo hermenêutico, como valor colhido previamente pelo operador tendo como
finalidade sempre na interpretação, a tutela.”
Garcia9 explica que “O princípio protetor engloba três vertentes: o in dubio pro
operario, a aplicação da norma mais favorável e a condição mais benéfica”.
Para Rodriguez10, o princípio da proteção “[...] se refere ao critério fundamental que
orienta o direito do trabalho, pois este, em vez de inspirar-se num próprio propósito de igualdade,
responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes: o trabalhador”.
5 RODRIGUEZ, A. P. Princípios de Direito do Trabalho. Trad. Wagner D. Giglio. 3. ed. São Paulo: LTr, 2000. p. 85
6 COUTINHO, A. R. O Princípio da Proteção Revisitado. Revista Bonijuris, Curitiba, v. 13, n. 452, p. 5-7, 2001.
7 Idem. COUTINHO, A. R. p. 2
8 Idem. GARCIA, G., 2007. p. 73.
9 Idem. COUTINHO, A. R. p. 2. 10 Idem. RODRIGUEZ, A., 2000. p. 83.
11
Artigo 1
Para Sussekind11, “O princípio da proteção do trabalhador resulta das normas
imperativas, e, portanto, de ordem pública, que caracterizam a intervenção básica do Estado
nas relações de trabalho, visando a opor obstáculos à autonomia da vontade”.
Garcia12, citando Souto Maior, explica de forma objetiva o histórico do princípio
em discussão:
Na realidade, o princípio de proteção insere-se na estrutura do Direito do Trabalho, que
surgiu, de acordo com a história, inicialmente, como forma de impedir a exploração de
capital sobre o trabalho humano, em seguida, visando a melhorar as condições de vida dos
trabalhadores e, por fim, possibilitando aos trabalhadores adquirirem status social, noção
máxima de cidadania.
Portanto, como núcleo central do direito do trabalho, mesmo em se tratando de
relação coletiva, não pode o princípio protetor ser renegado a menor grau de importância,
em que pese saibamos que outros princípios também norteiam as relações coletivas de
trabalho.
Dessa proteção, como núcleo central e norteador do direito do trabalho, também
transitam irrenunciabilidades de direitos.
2 Princípio da irrenunciabilidade de direitos
Este princípio é de importância crucial para o direito do trabalho, na medida em
que está intrinsecamente relacionado ao princípio protetor.
Garcia13 colaciona que para este princípio não se admite “em tese, que o empregado
renuncie, ou seja, abra mão dos direitos assegurados pelo sistema jurídico trabalhista,
cujas normas são, em sua grande maioria, de ordem pública”.
Tal disposição, na prática, encontra controvérsias, considerando a participação
de sindicatos em negociações coletivas, a teor da Súmula 364 do C. TST, ou mesmo no
viés da flexibilização.
3 Flexibilização – crise e efeitos para o direito do trabalho
Dispõe o artigo 7º da Constituição Federal, que traz como moldura constitucional
duas autorizações expressas de flexibilização do direito do trabalho:
São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de
sua condição social:
VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;
11 SUSSEKIND, A.; MARANHÃO, D.;Vianna, Segadas. Instituições de Direito do Trabalho. 22. ed. São Paulo:
LTr, 2005. p. 144. 12 Idem. GARCIA, G., 2007. p. 74.
13 GARCIA, G. Idem, 2007. p. 77.
12
O PRINCÍPIO PROTETOR E A FLEXIBILIZAÇÃO
XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro
semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo
ou convenção coletiva de trabalho;
Em que pese o disposto no artigo citado, o que se tem observado é que a crise
mundial implicou em ruptura, desregulamentação, intimidação do papel do Estado.
Precisamos efetivamente de mais regulamentação, mais Estado. Não se pode olvidar
que o setor econômico intervém no direito do trabalho, mas não se pode permitir, sob o
manto da flexibilização, que se questione a raiz fundante do direito do trabalho, que é a
proteção ao hipossuficiente, o amparo à dignidade e à vida do trabalhador. O destaque
da autonomia da vontade não pode eliminar o direito do trabalho como o concebemos,
enquanto direito indisponível.
Doutrinadores fundamentam que na flexibilização do direito do trabalho estaria o
combate ao desemprego, o aumento de vagas de trabalho, competitividade e produtividade,
que ganhou mais adeptos com a política neoliberal adotada pelo presidente Fernando
Henrique Cardoso:
(...) a partir dos anos noventa ganharam importância as teses favoráveis à desregulamentação
dos direitos sociais e à flexibilização da relação de trabalho, defendidas pelas principais
entidades empresariais do país em nome da redução do custo do trabalho e da elevação dos
níveis de produtividade e competitividade, face às políticas adotadas pelo governo FHC e
ao contexto de baixo dinamismo econômico do país”.14
De igual sorte, os defensores deste instituto argumentam que se até mesmo o salário foi
flexibilizado, por ordem Constitucional, qualquer outra matéria pode sujeitar-se à flexibilização.
Data maxima venia, ouso discordar deste raciocínio ampliativo, na medida em que o viés a
ser analisado é exatamente o oposto. Se a Constituição Federal ordenou mediante ingerência
sindical apenas duas hipóteses para a flexibilização, qual seja salário e jornada, nenhuma
outra matéria pode estar sujeita à flexibilização, posto que se assim o for, estaremos diante de
desregulamentação do direito do trabalho, e portanto da inconstitucionalidade do instituto.
Não se está afirmando, contudo, que a legislação trabalhista não necessite de
readequações, como já se fez ao introduzir a exemplo o banco de horas. Flexibilizar não
é sinônimo de desregulamentação, como explica Sussekind15:
[...] o objetivo primordial da flexibilização nas relações de trabalho foi o de propiciar a
implementação de nova tecnologia ou novos métodos de trabalho, e, bem assim, o de evitar
a extinção de empresas, com evidentes reflexos nas taxas de desemprego e agravamento
14 KREIN, J. D.; OLIVEIRA, M. A. de. Mudanças Institucionais e Relações de Trabalho: as iniciativas do governo
FHC no período 1995-1998. In: Anais do VI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho,
Belo Horizonte, out. 1999. p. 10.
15 SUSSEKIND, A. Idem, 2005. p. 206-207. 13
Artigo 1
das condições socioeconômicas... A desregulamentação retira a proteção do Estado
ao trabalhador, permitindo que a autonomia privada, individual ou coletiva regule as
condições de trabalho e os direitos e obrigações advindos da relação de emprego. Já a
flexibilização pressupõe a intervenção estatal, ainda que básica, com normas gerais abaixo
das quais não se pode conceber a vida do trabalhador com dignidade.
Como paradoxo da proeminência dos princípios, vemos na flexibilização uma
mitigação do princípio protetor, como explica Carli16:
A flexibilização das normas trabalhistas está fazendo com que o Direito do Trabalho passe
a adotar um modelo jurídico mais próximo da vida das empresas, para regular a relação
de emprego, sob pena de desproteger o empregado, ao invés de protegê-lo, ao provocar o
aumento do desemprego, compreendendo assim também ao Direito do Trabalho, a proteção
do trabalhador desempregado.
Continua Carli17, explicando a flexibilização no âmbito brasileiro da seguinte forma:
[...] o princípio da flexibilização das normas trabalhistas brasileiras pode vir a ser ampliado e
aplicado com fito de procurar dar maior liberdade negocial às relações de trabalho desde que
se garanta, por meio do poder público, a existência e a eficácia de mecanismos de proteção
mínima ao hipossuficiente na busca de soluções criativas e equânimes que melhor atendam às
necessidades dos dois lados, empregados e empregadores, sempre com o objetivo último de
tornar o Brasil um país economicamente desenvolvido e socialmente justo.
O que se vislumbra é a proeminência dos princípios no intuito de salvaguardar
direitos sociais e fundamentais, mesmo os não explícitos na Carta Constitucional, de óbvia
proteção, como a vida e todos os mecanismos e medidas a protegê-la, e a flexibilização, que
causa evidente desgaste do empregado, como o banco de horas ou a redução de adicional
de periculosidade em percentuais inferiores ao determinado no art. 193 da CLT, tudo sob
o manto das relações coletivas do trabalho.
O poder conferido aos sindicatos por força do art. 7º, inciso XXVI e pela CLT,
no art. 444, está longe de ser absoluto.
O limite é a própria lei, a Constituição Federal. As leis infraconstitucionais
devem ser respeitadas.
Não se está, contudo, pretendendo mitigar o caráter democrático das representações
sindicais e de seus instrumentos coletivos.
Em princípio, os instrumentos sindicais, como acordos coletivos e convenções
coletivas, são instrumentos democráticos, em cotejo com a definição de democracia
representativa, e não de democracia direta.
16 CARLI, V. Idem, 2005. p. 35.
17 CARLI, V. Idem, 2005. p. 59.
14
O PRINCÍPIO PROTETOR E A FLEXIBILIZAÇÃO
Canotilho18 afirma que “a representação democrática, constitucionalmente
conformada, não se reduz, porém, a uma simples delegação de vontade do povo. A força
(legitimidade e legitimação) do órgão representativo assenta também no conteúdo dos
seus actos, pois só quando os cidadãos (povo), para além das suas diferenças e concepções
políticas, se podem reencontrar nos actos dos representantes em virtude do conteúdo
justo destes actos, é possível afirmar a existência e a realização de uma representação
democrática material”.
Assim, vemos instrumentos convencionais que admitem o banco de horas, reduzem
salários e o adicional de periculosidade. Não se pode permitir que esses instrumentos de
luta de classes, assim como fora em 1940, transformem-se em instrumentos de dominação,
como cita Paranho19:
Na impossibilidade de extinguir as lutas de classes, o Estado cuidou de fazer delas um
poderoso auxiliar das estratégias de dominação que tinham por finalidade a subordinação
política das classes trabalhadoras em nome da “colaboração de classes”. Só assim se
instauraria o “clima de paz e trabalho”, condição necessária para assegurar o processo
“normal” de acumulação capitalista nos centros urbanoindustriais.
Para tanto, impôs a intensificação da promulgação de leis sociais nos anos 30, como
parte integrante de uma proposta política mais ampla, de feitio corporativista. E é,
fundamentalmente, da legislação trabalhista e previdenciária – para não falar da
progressiva institucionalização da Justiça do Trabalho – que a ideologia do trabalhismo
extrairá o seu elemento capital. Sem a “concessão” de direitos aos trabalhadores –
simultaneamente à tentativa de incorporá-los, em posição subordinada, às estruturas de
poder, especialmente por meio da legislação sindical – a política trabalhista se projetaria
no vazio e não adquiriria eficácia.
Somente quando os instrumentos coletivos forem a representação da vontade
coletiva, na moldura da garantia de direitos sociais mínimos de proteção e perseguindo
a proeminência dos princípios fundamentais, é que teremos o cumprimento global da
Constituição, e então estaremos diante da efetiva representação democrática material e
formal.
Necessitamos de mais ingerência estatal para estabelecer limites na relação
individual e coletiva do trabalho, como sugere Aldacy20, necessitamos de uma reconstrução
da proteção do empregado com olhar voltado ao que chama de “novas bases constitucionais:
a justiça social.”
Para esta reconstrução, em que não se poderia dissociar trabalhador e força de
trabalho; proteger o trabalhador é proteger a dignidade da pessoa humana; proteger o
18 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p.
282- 283.
19 PARANHO, A. O Roubo da Fala. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. p. 35. 20 Idem. COUTINHO, A. R. p. 3.
15
Artigo 1
trabalhador é proteger direitos fundamentais; proteger o trabalhador é permitir exercício
do direito à vida, Aldacy21 propõe:
•
•
•
•
•
•
•
superação da visão economista do direito;
superação da visão patrimonialista do sujeito;
o direito para o sujeito, não para o mercado;
o direito para o sujeito enquanto “o que é”, e não enquanto “o que tem”;
que o trabalhador não é ser inferior, sem conhecimento da sua situação;
o rechaçamento do paternalismo na condição de empregado;
a tutela da proteção para estabelecer limites na relação, e não para dissimular autoridade.
Cont udo, o que obser vamos é um descaso estatal, e uma verdadeira
desregulamentação do direito do trabalho, ao que chamam de flexibilização, muito além
da restritiva previsão esculpida no art. 7º da Constituição Federal. Exemplo disso é a
Súmula 364, do TST:
II - A fixação do adicional de periculosidade, em percentual inferior ao legal e proporcional
ao tempo de exposição ao risco, deve ser respeitada, desde que pactuada em acordos ou
convenções coletivos. (ex-OJ nº 258 - Inserida em 27.09.2002)
Na medida em que os instrumentos sindicais não protegem ou garantem a defesa dos
direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, não são instrumentos democráticos
efetivamente. Contrário a isso, o que se vê, data venia, é o efeito da desregulamentação
das normas mínimas, fundamentais e de proteção à saúde e segurança do trabalhador, sem
intervenção estatal, com total autonomia das partes em detrimento aos direitos sociais
mínimos de proteção.
Não se está, contudo, levantando a bandeira do fim das organizações sindicais;
ao contrário disso, precisamos de movimentos e organizações sindicais efetivamente fortes
para que se possa ter uma sociedade forte e trabalhadores livres para a negociação coletiva,
livres do medo do desemprego, da fome e da miséria. Só se pode conceber a flexibilização
do art. 7º quando o artigo 6º for cumprido na íntegra e para todo o povo brasileiro.
Há que se ter olhos atentos para não permitir mais um roubo da fala do trabalhador,
como ocorrido em 1943, prelecionado por Paranho, em que na concessão de alguns direitos
sociais houve um amortecimento da luta de classes, com a “reafirmação da incapacidade
política das classes trabalhadoras”.
21 Idem. COUTINHO, A. R. p. 3.
16
O PRINCÍPIO PROTETOR E A FLEXIBILIZAÇÃO
Na verdade, Paranhos viu o que chama de “manobra getulista”. Havendo um
operário manipulado, pairava o engodo de um plano voltado ao desenvolvimento industrial
capitalista no Brasil, mas que trazia no seu “pano de fundo, apenas conter os conflitos
no setor urbano-industrial”. Afinal, como dita Paranho na mesma obra, “se desconsidero
organização e movimento operário, ignoro a sua ação política”. Não se pode permitir, sob o
argumento de equilíbrio entre os autores sindicais, representantes da categoria econômica
e profissional, reduzir “os trabalhadores à opaca condição de sem-voz, e, nesse particular,
reproduzir, consciente ou inconscientemente, o discurso autoritário do estado”.22
Todavia, também se dê devida importância a Getúlio Vargas, que colocou o Brasil
no rumo do capitalismo; contrário a isso viveríamos ainda num país semiescravagista.
Passamos da agricultura para a indústria, e agora da indústria para a prestação de serviços,
que data venia está alijada da intervenção estatal.
Se de um lado a flexibilização é inevitável, até por conta da globalização e da
crise econômica que assola o mundo, por outro não se pode admitir ingerência nos direitos
mínimos do trabalhador, ainda mais em questões que envolvam normas de higiene e
segurança no trabalho, mesmo por meio da participação sindical, como explica Carli23:
[...] flexibilização não poderá ser feita sobre direitos mínimos assegurados
constitucionalmente ao trabalhador, salvo quando a própria Lei Maior permitir, [...]”,
não sendo possível a flexibilização das normas de higiene e segurança no trabalho, pois
estas são fundamentais à saúde e ao bem-estar do trabalhador, além da importância de
se observar o direito adquirido e ato jurídico perfeito, constante do artigo 5º, XXXVI da
Constituição Federal.
Dallegrave Neto24, ao discorrer sobre flexibilização, preleciona que “a flexibilização
é um primeiro passo da trajetória que visa à total desregulamentação do direito do trabalho.
O fenômeno que já se inicia faz parte do receituário neoliberal que propugna pela diminuição
do custo operacional e pela destruição dos direitos sociais.”
Esse reducionismo de proteção mínima assegurada avilta mais ainda se desta
decorre perigo indissociável da segurança do trabalhador.
O conflito que se antevê, quando o assunto é flexibilização das normas trabalhistas,
tem como núcleo a contextualização de direitos disponíveis e indisponíveis, à luz do atual
ordenamento vigente que, data venia, não será tratado neste estudo.
Essa ausência de limitação ordenada pelo Estado faz com que a esfera privada se
autorregule, causando evidente prejuízo aos direitos fundamentais e à dignidade do trabalhador.
22 Idem. PARANHO, Adalberto. p. 39. 23 CARLI, V. Idem, 2005. p. 65.
24 DALLEGRAVE NETO, J. A. (Coord.) Direito do Trabalho Contemporâneo: flexibilização e efetividade. São
Paulo: LTr, 2003.
17
Artigo 1
4 O público e o privado aos olhos de Tepedino
Tepedino trata de forma bastante aprofundada da problematização quanto à
“insuficiência da dicotomia entre direito público e privado para a proteção dos direitos
humanos”25.
Para o autor, a ordem constitucional reflete nas relações privadas e públicas, e esta
ordem elegeu a dignidade da pessoa humana como seu viés mais importante. Portanto, se a
proteção humana da esfera privada se fundar no direito patrimonial, será inadequada, pois
ao “eleger a dignidade humana como valor máximo do sistema normativo, o constituinte
exclui a exigência de redutos particulares (....), vale dizer, família, propriedade, empresa,
sindicato, universidade, bem como quaisquer microcosmos contratuais, que devem permitir
a realização existencial isonômica, segundo a ótica de solidariedade constitucional. Sendo
assim, não configuram espaços insuscetíveis ao controle social, como queria o voluntarismo,
justamente porque integram uma ordem constitucional que é a mesma tanto nas relações
de direito público quanto nas de direito privado”26.
Há, indene de dúvida, um conteúdo mínimo a ser suportado pela esfera privada e
para o autor “mesmo o dirigismo contratual, que suscitou a intervenção estatal na atividade
privada para o alcance de metas engendradas pelo estado... jamais poderiam desnaturalizar
o conteúdo mínimo dos institutos privatísticos, de molde a assegurar o poder de escolha
e de decisão dos particulares nos espaços privados”27.
Portanto, pode-se estar diante de uma superposição de espaço público e privado,
como chama o autor, e então necessitar de “redefinição de limites”, daí mais uma vez a
importância do princípio protetor. Essa inexistência de limites e a não valia nos princípios
protetivos são observados a exemplo da esfera privada, por meio de instrumentos coletivos,
na redução de conteúdos mínimos legais positivados, que muitas vezes em princípio escapam
ao controle do poder judiciário e incrementarão, aos olhos de Tepedino, a “exclusão social
e o desrespeito à dignidade da pessoa humana. Com efeito, as conquistas seculares do
direito público, que produziram sucessivas gerações de direitos e garantias fundamentais
do cidadão perante o Estado, tornar-se-iam inoperantes, para as transformações sociais
pretendidas, não fosse a incidência da norma constitucional nas relações privadas” 28.
A solução trazida por Tepedino é “procurar soluções interpretativas que ampliem
a proteção da pessoa humana, atribuindo a máxima efetividade social aos princípios
constitucionais e aos tratados internacionais que ampliam o leque de garantias fundamentais
da pessoa humana” (...) em que “o reconhecimento da força normativa dos princípios
constitucionais e dos preceitos internacionalmente recebidos pelo estado brasileiro torna25 TEPEDINO, G. A Incorporação dos Direitos Fundamentais pelo Ordenamento Brasileiro: sua eficácia nas
relações jurídicas privadas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2008. p. 154.
26 Idem. TEPEDINO, G. p. 156
27 Idem. TEPEDINO, G. p. 155.
28 Idem. TEPEDINO, G. p. 153.
18
O PRINCÍPIO PROTETOR E A FLEXIBILIZAÇÃO
se método indispensável para a abertura do horizonte de proteção dos direitos humanos,
especialmente nas relações jurídicas de direito privado, em cujo domínio seria impossível
ao legislador disciplinar todas as situações em que a pessoa humana demanda proteção
específica na sociedade tecnológica”29.
Se temos de um lado a “necessidade de proteção da pessoa na atividade econômica
e insuficiência da técnica legislativa regulamentar”, isto aos olhos de Tepedino, “obriga
o magistrado (...) a valer-se de princípios (...) para resolver a questão, onde o centro da
solução deve pautar-se na dignidade da pessoa humana, o valor maior”30.
Para o autor, as pressões da economia podem tentar violar a dignidade da pessoa
humana, mas a “escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República,
associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e da
redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do par. 2º do art. 5º, no
sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos,
desde que decorrentes dos princípios adotados pelo Texto Maior, configuram verdadeira
cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo do
ordenamento”31.
Portanto, ao eleger a dignidade da pessoa humana no plano hermenêutico, a
Constituição Federal condiciona o ordenamento infraconstitucional a essa limitação.
Para que não se renegue no plano privado a dignidade da pessoa humana, Tepedino
propõe “um vigilante controle da autonomia privada que, como já ressaltado, há de ser
protegida na medida em que realiza os valores sociais e existenciais assegurados, de
forma privilegiada, pela hierarquia axiológica do ordenamento constitucional”. Portanto,
para Tepedino, dessa ordem pública de “tutela e promoção da pessoa humana” não estão
excluídas as relações jurídicas privadas e as “relações contratuais tornam-se estruturas
jurídicas funcionalizadas à realização da dignidade da pessoa humana, fundamento da
República, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, objetivo central
da Constituição Brasileira de 1988”32.
Em várias decisões, os tribunais já se manifestaram quanto à inobservância
desse conteúdo mínimo de proteção nas esferas privadas, citando algumas decisões Como
exemplo, cita-se parte de acórdão julgando a redução do intervalo intrajornada em acordo
coletivo de trabalho33:
TRT-PR-05778-2006-892-09-00-3
Assim, e sem que se ignore o caráter normativo dos instrumentos coletivos, não há como em
29 Idem. TEPEDINO, G. p. 156. 30 Idem. TEPEDINO, G. p. 158
31 Idem. TEPEDINO, G. p. 174.
32 Idem. TEPEDINO, G. p. 172-173
33 TRT-PR-05778-2006-892-09-00-3-ACO-00173-2009-publ-20-01-2009, Ac. 3ª T., Rel. Desembargadora WANDA
SANTI CARDOSO DA SILVA. Disponível em: <http://www.trt9.jus.br>. Acesso em: 11 dez. 2009.
19
Artigo 1
autocomposição, as partes convenentes derrogarem normas mínimas de proteção da saúde
do trabalhador.
E mais:
Alteração contratual. Efeitos. Contrato. Realidade adversa. Não se pode condescender
com a invocação de uma realidade representada pela inversão de valores e submissão
do empregado a uma situação fática prejudicialmente diversa da contratada. O princípio
do contrato-realidade é tuitivo e tem aplicação em prol da parte mais débil na relação
contratual de trabalho, jamais para assegurar privilégios leoninos. A realidade nem sempre
é favorável ao hipossuficiente e quando isso acontece não se lhe pode impor a primazia do
prejuízo, por expressa vedação legal (arts. 444 e 468 da CLT).34
In: BONIJURIS Trabalhista - Cd-Rom - 44930
Verbete: ALTERAÇÃO CONTRATUAL - EFEITO - PRINCÍPIO - CONTRATO-REALIDADE
- APLICAÇÃO - PARTE Hipossuficiente - VEDAÇÃO da LEI - ART. 444/CLT - ART. 468/
CLT - Observância
Tribunal/Obra/Título: TRT
Órgão Julg./Editora/Capítulo: 2a. Reg.
Relator/Autor/Seção: Wilma Nogueira de Araújo Vaz da Silva
Em recentes e repetidas decisões pelo E. TST, da qual pede o autor venia para
transcrever parte do site Notícias do TST, vislumbra-se a indisponibilidade de direitos dos
trabalhadores, sob pena de declaramos o óbito da justiça laboral, verbis.
17/09/2004
TST não reconhece flexibilização de direitos indisponíveis
A possibilidade de flexibilização das regras que regem a relação de emprego, prevista no
texto constitucional, não alcança os chamados direitos indisponíveis dos trabalhadores.
Sob essa tese, a Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho deferiu recurso de revista
interposto contra cláusula de acordo coletivo que dispensava o empregador do pagamento
do aviso prévio e reduzia o percentual da multa sobre o saldo do FGTS. O relator da matéria
no TST foi o juiz convocado Vieira de Mello Filho.
“Ainda que se admita no Direito do Trabalho certa margem de flexibilização, fundada na
autonomia coletiva privada, em que se permite a obtenção de benefícios aos empregados
com concessões mútuas, as normas que possibilitam a referida flexibilização não autorizam,
como objeto de negociação, reduzir direitos indisponíveis dos empregados”, afirmou Vieira
de Mello Filho ao deferir o recurso interposto no TST pelo Ministério Público do Trabalho
(MPT) da 10ª Região (Distrito Federal e Tocantins).
A controvérsia remonta a fins de 1997, quando a Sitran Empreendimentos Empresariais
Ltda. foi derrotada no processo de licitação em que buscava a manutenção da sua condição
de prestadora de serviços no Senado Federal. Diante desse fato, a empresa firmou
acordo rescisório de trabalho com o Sindicato dos Empregados em Empresas de Asseio e
34 TRT - 2ª. Reg. - RE-20010299461 - Ac. 20030020136 - 8a. T. – Rel. Desembargadora: Juíza Wilma Nogueira de
Araújo Vaz da Silva - Fonte: DOESP, 11.02.2003.
20
O PRINCÍPIO PROTETOR E A FLEXIBILIZAÇÃO
Conservação de Brasília.
Segundo o acordo, os contratos de trabalho seriam rescindidos em 1º de dezembro de 1997
e o aviso prévio seria considerado como cumprido entre o período de 02/11/97 e 1º/12/97.
Também foi acertado que o pagamento da multa por dispensa arbitrária seria de 20% sobre
o saldo do FGTS.
Um grupo de empregados insurgiu-se contra o acordo e ingressou na Justiça do Trabalho
do Distrito Federal, onde a primeira instância reconheceu a validade do acordo, o mesmo
acontecendo junto ao Tribunal Regional do Trabalho. “A Constituição Federal de 1988
alçou os Sindicatos à condição de guardiães dos interesses da categoria, dando-lhes
legitimidade para transacionar os direitos da classe, conforme o preceito insculpido no art.
8º, III, da Carta Magna”, registrou o acórdão de segunda instância.
“Dentro de tal contexto, legítimo o procedimento de concessões recíprocas operado pelo
sindicato da categoria dos autores e a empresa, concernente a estabelecer parâmetros para
a despedida sem justa causa dos empregados”, acrescentou a decisão regional.
Durante o exame da questão no TST, a Quarta Turma reconheceu, inicialmente, a
competência do MPT para figurar como parte na demanda a fim de defender direitos
irrenunciáveis dos trabalhadores.
No exame de mérito, Vieira de Mello Filho reconheceu que o texto constitucional
buscou privilegiar o entendimento direto entre patrões e empregados e, como reforço
à negociação coletiva, passou a admitir a flexibilização das normas trabalhistas, por
meio de acordo ou convenção coletiva. Por essa via, segundo o relator, a Constituição
possibilita a redução de salários, diminuição da jornada de trabalho e a adoção de turnos
de revezamento superiores a seis horas.
“Todavia, na presente situação não se divisa a possibilidade do sindicato firmar acordo
coletivo, eis que o fez renunciando a direitos indisponíveis dos empregados, em especial a
concessão de aviso prévio e multa do FGTS, hipótese que não se enquadra na flexibilização
constitucional”, esclareceu Vieira de Mello Filho ao conceder o recurso e, com isso,
condenar a empresa ao pagamento da diferença da multa do FGTS e o valor do aviso prévio
ao grupo de trabalhadores. (RR 563227/99.8)35
Reitera o C.TST, em nova notícia vinculada em seu site:
29/08/2006
TST garante pagamento de direito suprimido por acordo coletivo
“Não se admite a flexibilização de direito garantido por preceito legal ou constitucional,
quando da negociação coletiva decorre a desregulamentação ou negativa do direito”.
Apoiada nessa frase do ministro José Simpliciano Fernandes (relator), a Segunda Turma
do Tribunal Superior do Trabalho deferiu, por unanimidade, recurso de revista a um
ex-empregado da Centrais Elétricas de Santa Catarina (Celesc). A decisão garantiu ao
trabalhador o pagamento do adicional de horas extras (50%), que havia sido suprimido.
35 TST Não Reconhece Flexibilização de Direitos Indisponíveis. Disponível em: <www.tst.gov.br>. Acesso em:
15 fev. 2010.
21
Artigo 1
A decisão do TST modifica acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (Santa
Catarina), que havia entendido como válida a negociação coletiva estabelecida entre a
Celesc e o sindicato local dos eletricitários. Segundo o TRT, a supressão do adicional para
a remuneração das horas extras, decorrente da autonomia da negociação coletiva, “não
gera o pagamento de indenização por absoluta falta de amparo legal”.
“A não incidência do adicional de 50% decorreu de disposição das partes em acordo
coletivo de trabalho (cláusula 19 do acordo coletivo), em conformidade com o que dispõe
a Constituição Federal (artigo 7º, inciso XIV), realizado através da entidade sindical”,
acrescentou o TRT catarinense.
Durante o exame do recurso do trabalhador, contudo, o TST verificou que a negociação
coletiva estipulou a remuneração da hora extra como se normal fosse e, ao mesmo tempo,
negou vigência à determinação legal que instituiu o adicional de no mínimo 50% sobre a
hora cumprida além da jornada regular de trabalho. “Trata-se claramente de negação a um
direito assegurado aos trabalhadores pela Constituição (artigo 7º, inciso XVI)”, verificou
Simpliciano Fernandes.
O relator do recurso também explicou que a prevalência da autonomia das partes para firmar
as negociações coletivas encontra limites previstos nos princípios e normas que compõem o
ordenamento jurídico. “Desta forma, na medida em que se privilegia a negociação coletiva,
a flexibilização das normas encontra limites no sistema jurídico, garantindo-se direitos e
benefícios básicos ao trabalhador”, sustentou.
“A elasticidade da norma coletiva é autorizada desde que não tenha como consequência
a desregulamentação ou negativa do direito instituído por norma legal”, completou
Simpliciano Fernandes, ao reconhecer como inválida a cláusula coletiva que havia
suprimido o adicional de 50%, o que garantiu essa remuneração ao trabalhador. (RR
1201/2001-006-12-00-0)36
Mais uma vez, o C. TST corrobora:
04-10-2006
Convenção coletiva não pode suprimir horas de deslocamento
As horas in itinere (tempo gasto pelo trabalhador no itinerário para o trabalho) não podem
ser suprimidas do salário, mesmo que haja acordo coletivo nesse sentido. A Terceira Turma
do Tribunal Superior do Trabalho entendeu que a supressão desse direito é lesiva aos
trabalhadores. O caso julgado pela Turma, sob a relatoria do ministro Carlos Alberto Reis
de Paula, envolve o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pedra do Fogo e a Agroarte
Empresa Agrícola S.A.
Os empregados abriam mão das horas extras pagas a título de horas in itinere. O ministro relator
considerou o pacto “ilegal, impertinente e abusivo”, pois “a transação firmada entre as partes
implicou apenas em renúncia de direitos por parte da classe dos trabalhadores”. O rurícola foi
contratado pela Agroarte para o corte, enchimento e transporte de cana-de-açúcar das fazendas
Cabocla, Capiassu e Santana (na Paraíba), e Meirim e Muzumbo (em Pernambuco).
O ministro Carlos Alberto manteve o entendimento do Tribunal Regional do Trabalho
da 6ª Região (Pernambuco) de que a extrapolação da jornada de tempo em função do
36 TST Garante Pagamento de Direito Suprimido por Acordo Coletivo. Disponível em: <www.tst.gov.br>.
Acesso em: 15 fev. 2010.
22
O PRINCÍPIO PROTETOR E A FLEXIBILIZAÇÃO
deslocamento obriga a empresa a pagar as horas extras e o respectivo adicional ao
empregado. A decisão do TST baseou-se na comprovação pelo TRT/PE da dificuldade
enfrentada pelo empregado no trajeto da sede da empresa às fazendas, além do uso de
condução da empresa pela falta de transporte público.
O relator esclareceu que conforme a Súmula 90 do TST, com a nova redação dada pela
Resolução 129/2005, “o tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo
empregador, até o local de difícil acesso ou não servido por transporte público regular, é
computável na jornada de trabalho e gera direito às horas in itinere”.
A discussão do tema na Terceira Turma ressaltou ainda que a Constituição Federal “até
permite a tarifação das horas in itinere, mas não a sua supressão”. Segundo o relator,
embora a Constituição Federal permita a flexibilização dos direitos, ela não permite o seu
suprimento. “O reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, previsto
no artigo 7º, XXVI, da Constituição, não autoriza que através destes instrumentos seja
promovida a simples supressão de direitos e garantias legalmente assegurados”, finalizou
o ministro Carlos Alberto. (AIRR – 397/2005-271-06-40-8)37
Ressalte-se que não fosse esse o entendimento consubstanciado nessas notícias
do TST, os ACT`s estariam violando diretamente a letra da lei e da Constituição, ao
suprimir indevidamente os direitos fundamentais à limitação de jornada e à percepção de
horas extras no contrato de emprego, o que foge do âmbito atribuído às CCT`s e ACT´s.
Ressalte-se ainda, que o reconhecimento constitucional das convenções e acordos coletivos,
evidentemente, não significa salvo-conduto para violar o ordenamento, o que sequer ao
legislador é permitido.
Considerações finais
Em que pese os princípios específicos de direito individual do trabalho serem
inaplicáveis de forma direita às relações coletivas, não se pode olvidar que a categoria
coletiva é composta de trabalhadores individualmente considerados.
Todavia, aos efeitos coletivos vige, dentre outros, o princípio da autonomia
coletiva privada, justificando que o sindicato dos empregados e o dos empregadores estão
na mesma posição negociadora. Data venia como se pudesse o trabalhador não sucumbir
ao poderio econômico, mesmo que dentro de relações coletivas de trabalho.
Contudo, a ordem pública das regras básicas de proteção no direito do trabalho
são “imperativas e impostergáveis”, como preleciona Almeida38.
Não se pode permitir que na esfera privada não se resguardem os evidentes
contornos do princípio da dignidade da pessoa humana; “[...] se constitui, em grande parte,
de preceitos de ordem pública”, como defende Sussekind39.
37 Convenção Coletiva não Pode Suprimir Horas de Deslocamento. Disponível em: <www.tst.gov.br>. Acesso
em 15 fev. 2010.
38 ALMEIDA, A. P. de. CLT Comentada: legislação, doutrina, jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 48
39 SUSSEKIND, A. Idem, 2005. p. 201.
23
Artigo 1
Na mesma obra, Sussekind40 esclarece que “a ordem pública não se confunde,
portanto, com o direito público, nem se constitui característica de suas regras; representa,
isto sim, elemento indispensável à eficácia da maioria das normas do direito do trabalho”
e “a ordem pública está diretamente relacionada ao direito do trabalho, às suas garantias
e princípios de um modo geral, no sentido da imperatividade da norma.
Portanto, entendemos que algumas normas de ordem impositiva, assim como foram
instituídas, e que se encontram positivas, não podem se sujeitar à flexibilização, mesmo
que em caráter coletivo, na medida em que resultam em lesão aos direitos indisponíveis,
ofendam a dignidade do trabalhador ou coloquem em risco sua vida.
Mesmo que sob o manto coletivo, as normas convencionais estão condicionadas
ao princípio protetor.
Yoshida41 entende que
a questão da renúncia de direitos com a assistência dos sindicatos dos trabalhadores, que
pode inclusive ser formalizada por acordo ou convenção coletiva de trabalho, merece
melhor reflexão, pois teria ela, em princípio, o condão de eliminar eventual vício de
manifestação de vontade do hipossuficiente decorrente de coação.
Essa eliminação do vício não afasta a conclusão de que as normas irrenunciáveis
continuam sendo irrenunciáveis, mesmo que sob o manto do sujeito coletivo, pois viciam
o princípio protetor, a indisponibilidade de normas de ordem pública, a dignidade do
trabalhador e ofendem os artigos 6º, 7º e 8º da Constituição Federal, aviltando direitos sociais,
desregulamentando a proteção mínima indissociável, dispondo de direitos indisponíveis
como a saúde e segurança do trabalhador, e em nome dessa autonomia coletiva privada,
surge a fênix dos instrumentos coletivos.
Referências
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Paulo: Saraiva, 2007.
CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da Constituição, 2. ed. Coimbra:
Almedina, 1998.
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n. 452, 2001.
DALLEGRAVE NETO, J. A. (Coord.) Direito do trabalho contemporâneo: flexibilização
e efetividade. São Paulo: LTr, 2003
40 SUSSEKIND, A. Idem, 2005. p. 201.
41 YOSHIDA, M. Arbitragem trabalhista. um novo horizonte para a solução dos conflitos laborais. São Paulo: LTr,
2006. p.88.
24
O PRINCÍPIO PROTETOR E A FLEXIBILIZAÇÃO
GARCIA, G. F. B. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Método, 2007.
KREIN, J. D.; OLIVEIRA, M. A. Mudanças institucionais e relações de trabalho: as
iniciativas do Governo FHC no período 1995-1998. In: Anais do VI Encontro Nacional
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PARANHO, A. O roubo da fala. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
RODRIGUEZ, A. P. Princípios de direito do trabalho. Trad. Wagner D. Giglio. 3. ed. São
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SUSSEKIND, A; MARANHÃO, D. Instituições de direito do trabalho. 22 ed. São Paulo:
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TEPEDINO, G. A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento brasileiro:
sua eficácia nas relações jurídicas privadas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2008
YOSHIDA, M. Arbitragem trabalhista. um novo horizonte para a solução dos conflitos
laborais. São Paulo: LTr, 2006.
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<www.tst.gov.br>. Acesso em: 15 fev. 2010.
TRT - 2a. Reg. - RE-20010299461 - Ac. 20030020136 - 8a. T. – Rel. Desembargadora:
Juíza Wilma Nogueira de Araújo Vaz da Silva - Fonte: DOESP, 11.02.2003.
TRT-PR-05778-2006-892-09-00-3-ACO-00173-2009-publ-20-01-2009, Ac. 3ª T., Rel.
Desembargadora: WANDA SANTI CARDOSO DA SILVA. \Disponível em: <http://www.
trt9.jus.br>. Acesso em: 11 dez. 2009.
25
26
OS DESAFIOS DA CONCILIAÇÃO
DE CONFLITOS NA JUSTIÇA
DO TRABALHO: CELERIDADE
PROCESSUAL VERSUS SEGURANÇA
JURÍDICA
Helano Márcio Vieira Rangel1
Maikon Gomes Coutinho2
Introdução. 1 A atual crise do Poder Judiciário. 1.1. Acesso à justiça e demanda pelo
Judiciário. 2 Soluções alternativas de conflitos. 2.1. Mediação. 2.2. Arbitragem.
2.3. Conciliação. 2.3.1. Conciliação judicial. 2.4. Comissão de conciliação prévia.
3 Da aplicação da conciliação na Justiça do Trabalho. 3.1. Direitos indisponíveis.
3.2. Celeridade processual x segurança jurídica. 3.3. Relevância e implicações no
âmbito jurídico. Considerações finais. Referências.
Resumo
O presente trabalho foi realizado com o objetivo de apresentar a crescente importância
da conciliação na Justiça do Trabalho como meio eficaz e célere na solução de conflitos.
Aborda-se a crise atual que obstrui o Poder Judiciário para, em seguida, abordar os meios
alternativos de resolução de conflitos que se apresentam aptos a combatê-los. Posteriormente,
o trabalho enfoca a aplicação da conciliação na Justiça do Trabalho, verificando-se em
quais situações será permitida a sua utilização, de que forma isso ocorre hodiernamente,
assim como os efeitos que derivam da sua aplicação no âmbito trabalhista. O estudo teoriza
sobre a relevância da conciliação na Justiça do Trabalho, desde que tais acordos sejam
permeados pelo juízo de equidade e, desse modo, não importem em lesões aos direitos dos
trabalhadores. Nesse sentido, o artigo estabelece um paralelo entre a celeridade processual
e a segurança jurídica, levando em consideração o princípio da indisponibilidade de direitos
trabalhistas. O ensaio defende que meras estatísticas de resolução de conflitos não devem
eclipsar uma observância dos direitos trabalhistas. Pessoas jurídicas inescrupulosas que se
1 Professor da Faculdade Estácio do Ceará, mestrando em Ordem Jurídica Constitucional pela Universidade Federal
do Ceará (UFC), especialista em Direito do Trabalho pela Faculdade Farias Brito (FFB), pesquisador do Conselho
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI), advogado. E-mail: [email protected]
2 Acadêmico de Direito pela Faculdade Estácio do Ceará, servidor público do Estado do Ceará. E-mail: maikon_
[email protected]
27
Artigo 2
utilizam sistematicamente da Justiça do Trabalho para sonegar direitos devem ser submetidas
à rígida sanção administrativa e judicial. O presente ensaio foi construído a partir de
análises bibliográficas e documentais. A pesquisa é basicamente qualitativa e explicativa.
Palavras-chave: celeridade, soluções alternativas de conflitos, conciliação, Justiça do Trabalho.
Abstract
This study was conducted with the aim of presenting the growing importance of Conciliation
at the Labor Court as an effective and speedy way of solving conflicts. It analyzes the current
crisis that obstructs the Judiciary Power, to then address the alternative means of conflict
resolution that appear able to deal with them. Later, the essay deal with the application of
conciliation at labor courts, ascertaining in which situations their use is allowed, how this
occurs currently, as well as the effects that derive from its application at the labor circuit.
The study theorizes about the relevance of the conciliation at the Labor court, since these
accords have been permeated by fairness and, thus, do not import in actual injury to the
rights of workers. Therein, the article establishes a parallel between the legal process
celerity and the juridical safety, considering the principle of the unavailableness of labor
rights. The essay advocates that mere solution of conflicts statistics must not overshadow
the compliance to the labor rights. Unscrupulous legal entities that utilize labor court
systematically in order to evade paying rights must be submitted to administrative and
judicial sanction. The present study was accomplished from bibliographical and documental
analysis. The research is basically qualitative and explanatory.
Keywords: celerity, alternative solutions to conflicts, conciliation, Labor Court.
Introdução
A morosidade possui posição de destaque entre os problemas que assolam o Poder
Judiciário brasileiro. Infelizmente, a Justiça do Trabalho não está imune a esse mal. Em
decorrência disso, observa-se o comprometimento, em especial, do alcance da cidadania
plena por todos os indivíduos, que deveriam ter acesso igualitário à justiça, sem privilégios.
Para combater essa triste realidade, o Poder Judiciário vem se mostrando sensível
ao problema e tem buscado novas soluções. Entre elas, a conciliação apresenta-se como
alternativa eficaz para debelar conflitos, que demandariam anos nos tribunais e significativos
recursos, dos quais o cidadão e o Judiciário não dispõem. Seu principal efeito, em curto
prazo, será reduzir o prazo de solução dos conflitos que chegam à justiça.
A conciliação opta pelo diálogo e entendimento entre as partes, mediadas por
um especialista neutro, estando ao alcance delas a solução do imbróglio. A predisposição
28
OS DESAFIOS DA CONCILIAÇÃO DE CONFLITOS NA JUSTIÇA DO TRABALHO:
CELERIDADE PROCESSUAL VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA
em negociar, comum aos dois lados, atenua o conflito, buscando-se um acordo satisfatório
para os envolvidos.
Reconhecendo a eficácia da conciliação como meio alternativo na composição de
litígios, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ promove anualmente a Semana Nacional da
Conciliação, que vem sendo desenvolvida desde 2006, na qual todos os órgãos do Poder
Judiciário reúnem esforços para, por meio da conciliação, solucionar o maior número
possível de conflitos, buscando-se a restauração da paz social.
Está em análise pelo CNJ uma proposta que pode tornar a conciliação uma regra
em todo o país, uniformizando a prática em todos os tribunais brasileiros. Hoje as formas
alternativas de solução de conflitos são estimuladas apenas pelo CNJ e têm procedimentos
diferentes em cada justiça. Dentre as implicações que decorreriam da adoção da proposta
supracitada, destacamos a implantação de serviços permanentes de mediação e conciliação
na primeira e segunda instâncias, e a utilização do número de demandas conciliadas como
critério de merecimento para promoção na carreira dos magistrados.
A simples análise dessa proposta pelo CNJ demonstra a importância do instituto
da conciliação como meio alternativo de resolução de controvérsias. Contudo, causa
certa preocupação o fato de passar a ser considerado critério de promoção na carreira
dos magistrados o número de demandas debeladas via conciliação, pois é cediço que,
em grande parte, os acordos firmados por esse meio tutelam verdadeiras agressões à
legislação trabalhista, esvaziando, assim, as vantagens que poderiam advir da aplicação
do referido instituto.
O trabalho a ser desenvolvido visa a investigar a utilidade e o crescimento da
conciliação no âmbito da Justiça Trabalhista, explicitar a facilidade da sua aplicação, bem
como alertar sobre o perigo em promover a conciliação a qualquer custo, desrespeitando
os direitos dos trabalhadores previstos na legislação pátria.
Acredita-se, pois, no grande valor dessa pesquisa jurídica, pois sua finalidade
está pautada no estudo das soluções alternativas de conflitos, para expandir a sua aplicação
nas diversas esferas do mundo jurídico, almejando fomentar um melhor atendimento pelo
Poder Judiciário, em benefício de toda a coletividade.
Serão analisadas as causas da atual crise do Poder Judiciário, os meios alternativos
de resolução de conflitos e a aplicação da conciliação na Justiça do Trabalho. Almeja-se
com o presente trabalho ampliar o conhecimento do leitor a respeito desse meio alternativo
de solução de conflitos, que certamente levará, pela sua aptidão, para a restauração da
harmonia social, uma vez que referido instituto se utiliza de um procedimento mais informal
e célere, que consequentemente resulta, entre outras vantagens, em economia de tempo e
recursos para as partes litigantes.
29
Artigo 2
1 A atual crise do Poder Judiciário
O Conselho Nacional de Justiça divulgou 3, no dia 14/09/2010, o relatório da
pesquisa Justiça em Números, que traz uma radiografia do sistema judiciário brasileiro.
Entre outros resultados, a pesquisa constatou que existem quase 90 (noventa) milhões de
processos tramitando em todas as esferas, sendo que em 2009 entraram 25,5 (vinte e cinco
vírgula cinco) milhões de novos processos. Ainda de acordo com essa pesquisa, a Justiça
do Trabalho faz parte dessa rede e, comprovadamente, é a que dá respostas mais rápidas
às demandas recebidas. Contudo, há processos que tramitam durante anos sem solução.
Embora o Judiciário disponha de 16,1 mil magistrados e 312,5 mil servidores,
a taxa de congestionamento global da justiça brasileira foi de 71% em 2009, percentual
que tem se mantido desde 2004. Ou seja, 71% dos processos não foram solucionados. A
situação é mais grave na justiça estadual, com taxa de 73%, embora seja o único segmento
com ganho de produtividade por magistrado. Na Justiça do Trabalho, a taxa cai para 49%,
demonstrando ser o ramo do Judiciário que atende com maior celeridade à população4.
Esses números assustadores demonstram a gravidade da crise a que está submetido o
Poder Judiciário no Brasil.
Apesar de se apresentar em situação melhor do que a dos demais ramos do
Poder Judiciário, a Justiça do Trabalho encontra-se muito distante da realidade almejada.
Estudiosos do direito há tempos se debruçam sobre o tema5, em busca de respostas que
possam indicar o caminho a ser seguido, que nos leve a um sistema mais rápido, acessível e
menos burocrático. Como fruto dessas pesquisas, as causas de alguns problemas inerentes
ao sistema judiciário são identificadas principalmente como o formalismo exacerbado, a
falta de material humano, entre outras. O mais importante, porém, é que junto à aferição
dessas falhas do Poder Judiciário os pesquisadores propõem medidas para combatê-las.
Dentre as opções propostas para superar esses entraves há a busca por métodos alternativos
de solução de conflitos, tendo na conciliação uma das formas mais conhecidas e utilizadas.
1.1 Acesso à justiça e demanda pelo Judiciário
Existe na atualidade um movimento mundial de acesso à justiça. Trata-se de
tema que preocupa o meio jurídico. É um direito social fundamental, principal garantia
dos direitos subjetivos. Em torno dele estão todas as garantias destinadas a promover a
efetiva tutela dos direitos fundamentais6.
3 SINDICATO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DO TRABALHO – SINAIT. CNJ Divulga Pesquisa
Justiça em Números – 90 Milhões de Processos. Brasília, 2010. Disponível em: <http://www.sinait.org.br/ noticias_
ver.php?id=1909>. Acesso em: 16 set. 2010.
4 SINAIT, 2010.
5 CALMON, P. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 5.
6 LIMA, D. H. S.; BOUERES, J. F. O Acesso à Justiça e as Formas Alternativas de Solução de Conflitos. Investidura,
Florianópolis, jun. 2008. Disponível em: <http://www.investidura .com.br/index.php?option=com_content&view=ar
ticle&id=257:oacessoajustica&catid=95:negociacao&Itemid=890>. Acesso em: 20 set. 2010.
30
OS DESAFIOS DA CONCILIAÇÃO DE CONFLITOS NA JUSTIÇA DO TRABALHO:
CELERIDADE PROCESSUAL VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA
O acesso ao Judiciário torna-se falho ou restrito a uma parte da população
por diversos fatores de ordem econômica, social, cultural, psicológica, legal, pela falta
de conhecimento e pela lentidão da justiça. Cada um desses fatores isolados dispõe de
capacidade suficiente para impossibilitar o contato de uma pessoa com o Poder Judiciário,
em maior ou menor proporção7.
O enfoque formalístico preponderou por muito tempo, levando o direito e o sistema
jurídico a serem analisados exclusivamente em seu aspecto normativo, negligenciando-se
os componentes reais, quais sejam: os sujeitos, as instituições, os processos, enfim, todo
o contexto social. Com o advento das reformas sociais, tornou-se necessária a mudança
desse panorama.
Em decorrência dessa transformação, há uma mitigação ao formalismo exacerbado
em detrimento dos objetivos iniciais do processo, i.e., um verdadeiro instrumento eficaz
para o acesso à ordem jurídica justa.
Pode-se afirmar que o acesso à justiça está amplamente ligado ao binômio
possibilidade-viabilidade de acessar o sistema jurídico em igualdade de condições, e à
busca de tutela específica para o direito e/ou interesse ameaçado e, obviamente, com a
produção de resultados justos e efetivos8.
O acesso à justiça é livre e irrestrito. Entretanto, está condicionado à realidade
prática e à existência de obstáculos, que acabam por resultar na dificuldade que grande parte
da população possui em ter acesso ao Poder Judiciário. Dentre os obstáculos, citam-se: a
pobreza, a falta de informação e os fatores simbólicos, psicológicos e ideológicos que afastam
o jurisdicionado da justiça – por medo, insegurança, sentimento de inferioridade, a estrutura
do judiciário, o formalismo, a duração dos processos e a ausência de assistência extrajurídica9.
2 Soluções alternativas de conflitos
Não havendo harmonia mediante o cumprimento espontâneo da norma, surgindo,
então o conflito, e sendo almejada a sua solução, a jurisprudência estatal apresenta-se
como o meio ordinário para esse fim destinado10.
Entretanto, esse não é o único meio idôneo para solução de conflitos. Diante
deles surgem normalmente duas alternativas para as partes litigantes: buscar solução
amigável ou provocar a jurisdição, buscando a tutela dos seus direitos. Todos os meios, no
entanto, possuem uma finalidade maior, a restauração da paz social. Segundo Nascimento,
a autocomposição é
7 NASCIMENTO, M. S. Acesso à Justiça: abismo, população e judiciário. Âmbito Jurídico, Porto Alegre, mar.
2010. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link =revista_artigos_leitura&artigo_
id=7498.>. Acesso em: 5 out. 2010.
8 MORAIS, J. L. B. Mediação e Arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 80.
9 LIMA, D. H. S.; BOUERES, J. F. Idem.
10 CALMON, P. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 25
31
Artigo 2
a técnica de solução dos conflitos coletivos pelas próprias partes, sem emprego de violência,
mediante ajustes de vontade. Na autocomposição, um dos litigantes ou ambos consentem no
sacrifício do próprio interesse, daí a sua classificação em unilateral e bilateral. A renúncia
é um exemplo de direito comum autocompositivo com sacrifício do interesse de uma das
partes, e a transação exemplifica o sacrifício do interesse das duas partes11.
Contudo, em regra, se faz necessário a intervenção de um terceiro imparcial
que atue no sentido de auxiliar as partes litigantes, para que estas possam alcançar a
autocomposição.
Por outro lado, a heterocomposição, leciona Pinto Martins12, “se verifica quando
a solução dos conflitos é determinada por um terceiro”. São espécies desse método a
atividade judicial do estado e a arbitragem.
Os novos tempos exigem soluções alternativas para os conflitos, portadoras da
consecução célere de resultados, de modo a satisfazer as necessidades das partes envolvidas
nas pendências jurídicas13.
Cabe destacar que dentre as formas alternativas de solução de conflitos, a mediação,
a conciliação e a arbitragem se valem de procedimentos mais simples e menos formais.
Tais instrumentos têm por escopo a composição das controvérsias de uma maneira mais
rápida e menos onerosa às partes, resultando, por consequência, no descongestionando do
Poder Judiciário. Os referidos institutos apresentam-se como formas de abrandar a crise
do Poder Judiciário, promovendo o efetivo acesso à justiça e estabelecendo a paz social.
2.1 Mediação
O vocábulo mediação quer dizer “intervenção, intercessão, intermediação”14. Em
linguagem jurídica o sentido é o mesmo, de forma que mediação pode ser compreendida
como acerto entre os litigantes, auxiliados por um terceiro imparcial, que cria um canal
de comunicação entre aqueles, para viabilizar a solução do litígio por eles. Braga Neto
define a mediação da seguinte forma:
Mediação é uma técnica não adversarial de resolução de conflitos, por intermédio da qual
duas ou mais pessoas (físicas, jurídicas, públicas, etc) recorrem a um especialista neutro,
capacitado, que realiza reuniões conjuntas ou separadas, com o intuito de estimulá-las a obter
uma solução consensual e satisfatória, salvaguardando o bom relacionamento entre elas15.
11 NASCIMENTO, A. M. Curso de Direito do Trabalho. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 932
12 MARTINS, S. P. Direito do Trabalho. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 688.
13 LEITE, F. T. Arbitragem, mediação e conciliação no direito provado brasileiro: instrumentos jurídicos para
solução de conflitos da sociedade brasileira contemporânea. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2008, p. 18.
14 FERREIRA, A. B. de H. Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 3. ed., 1993,
p. 356.
15 BRAGA NETO, A. Os Advogados, os Conflitos e a Mediação. In: OLIVEIRA, A. (Coord.). Mediação: métodos
de resolução de controvérsias. São Paulo: LTr, 1999. p. 93.
32
OS DESAFIOS DA CONCILIAÇÃO DE CONFLITOS NA JUSTIÇA DO TRABALHO:
CELERIDADE PROCESSUAL VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA
Por seu turno, Vezzulla afirma que a “mediação é uma técnica de resolução de
conflitos não adversarial que, sem imposições de sentenças ou laudos e com um profissional
devidamente formado, auxilia as partes a acharem seus verdadeiros interesses e a preservá-los
num acordo criativo onde as duas partes ganham16.
A mediação, na condição de processo, tem como objetivo básico unir as partes
litigantes e solucionar de maneira satisfatória e definitiva os problemas mais adversos.
Para a solução desses problemas, é necessária a aplicação de técnicas corretas, tais como o
conhecimento do caso, a imparcialidade e a paciência. Surge então a pessoa do mediador,
que por meio das técnicas de mediação, levará as partes à solução dos problemas. A função
prioritária do mediador é fazer com que as partes se sintam capazes de resolver suas lides,
realizando a intercessão e reatando o laço de harmonia desfeito.
Com suas técnicas, o mediador auxilia as partes a entender seus reais conflitos,
fazendo-os chegar a um entendimento satisfatório a ambos. O mediador deve ser criterioso
e analisar o caso de maneira geral, observando na realidade da lide e das partes a forma
de vida, os costumes, a cultura, a educação, o meio social em que vive e outros itens que
julgar necessários, a fim de conduzir os mediados a enxergarem a controvérsia sob outra
perspectiva.
Utilizando estilo e vocabulário bem próximos da linguagem cotidiana, o mediador
busca nos litigantes a conversação e consequentemente a valorização do lado humano que
restabeleça a capacidade de trocar ideias, rever conceitos, buscar a harmonia, com vistas
à solução dos problemas comuns.
Cabe ao mediador, como condutor de todo o processo, recomendar às partes os seus
deveres em relação às regras acordadas para o procedimento, tais como direito à palavra, à
ordem de preferência, ao decoro, às discussões, à confiabilidade, à privacidade e ao sigilo.
O mediador não julga, não procura culpado, não resolve e não impõe verdades.
Faz uma análise do ocorrido para que fique claro o motivo litigante e, na descoberta da
verdadeira contenda entre as partes, procura quais os interesses a serem atendidos e as
auxilia a encontrar os mais diversos rumos ou meios satisfatórios, deixando o campo
oposto competitivo e passando a usar o mesmo caminho em que ambos sairão vencedores.
As partes litigantes deverão confiar no profissionalismo do mediador, i.e., que
estarão protegidos de forma íntegra, sem qualquer tipo de repreensão. O mediador jamais
poderá usar da sua condição para aduzir qualquer assunto ou delatar qualquer ato revelado
no calor dos discursos. É muito importante a escolha do técnico que ficará encarregado
da mediação das lides, pois ele se apresenta com imensurável vantagem jurisdicional, em
face da credibilidade instalada nos litigantes de que seus conflitos realmente terão um fim.
16 VEZZULLA, J. C. Teoria e Prática da Mediação. Curitiba: Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil, 1998.
p. 15.
33
Artigo 2
Dentre as várias vantagens da mediação como meio de solucionar conflitos,
destacam-se: a flexibilidade, a economia de custos e a equanimidade das soluções, porque
é a própria parte que ditará a solução do seu conflito, por intermédio do mediador, que
nada mais é do que um meio para o amadurecimento da vontade das partes.
A mediação não visa apenas a dirimir ou descongestionar a carga do Poder
Judiciário, mas sim agilizar a composição dos conflitos, diferentemente do que ocorre em
muitos litígios, que levam anos para serem solucionados.
2.2 Arbitragem
Entre as formas alternativas de solução de conflitos apresentadas, consiste a
arbitragem como única forma extrajudicial. Assim como a jurisdição, ela é um mecanismo
de obtenção da heterocomposição, pois nela um terceiro imparcial certifica o direito, caso
existente, fixando a forma de sua exata satisfação.
De acordo com o entendimento do professor Calmon, a arbitragem “diferencia-se
da atividade estatal sobretudo por ser uma atividade privada, tendo por característica o fato
de somente ser realizada por vontade expressa dos envolvidos no conflito ou prevista em
contrato antecedente”17.
Na arbitragem, o árbitro prolata sentença de conhecimento, pondo fim ao
conflito, observando as regras pactuadas para dar a solução adequada e para a condução
do processo, inclusive no tocante às provas. O processo de arbitragem é formal. Existem
regras preestabelecidas a seguir, consignadas em lei. Caso essas regras sejam desobedecidas,
o processo torna-se nulo.
A arbitragem, assim como a mediação, é instrumento da justiça privada brasileira,
restrita ao direito patrimonial disponível. Muitas são as qualidades atribuídas ao processo
arbitral, dentre as quais destacamos: a celeridade, a confidencialidade, a liberdade de
escolha de especialista como compositor da controvérsia, a flexibilidade procedimental e
o respeito à autonomia de vontade das partes.
O sistema jurídico brasileiro consagrou essa modalidade de solução de litígios
como alternativa válida para a decisão de determinadas demandas em que prevalece o
princípio da disponibilidade da vontade das partes sobre a justiça material dos seus bens.
É pacífico o entendimento quanto à utilização da arbitragem nos dissídios coletivos
e em algumas outras situações, como greve, participação do trabalhador nos lucros da
empresa, e no trabalho portuário18. A controvérsia reside na sua aplicabilidade nos dissídios
individuais, na medida em que alguns autores entendem que há cabimento, enquanto outros
não, em face da indisponibilidade de direitos do trabalhador19.
17 CALMON, 2008. p. 97.
18 Artigo 7º da Lei n° 7.783/1989 (Lei da Greve). Art. 4° da Lei n° 10.101/2000 (Lei da Participação dos Trabalhadores
nos Lucros da Empresa). Art. 23 da Lei n° 8.630/1993 (Lei dos Portos).
19 CALIMAN, E. V. A Arbitragem no Processo do Trabalho. Artigo científico (Graduação em Direito) – Faculdade
de Apucarana, Apucarana, 2009. 34
OS DESAFIOS DA CONCILIAÇÃO DE CONFLITOS NA JUSTIÇA DO TRABALHO:
CELERIDADE PROCESSUAL VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA
2.3 Conciliação
É uma forma de resolução de conflitos na relação de interesses administrada
por um conciliador investido de autoridade ou indicado pelas partes, a quem compete
aproximá-las, controlar as negociações, aparar as arestas, sugerir e formular propostas,
apontar vantagens e desvantagens, objetivando sempre a composição do litígio pelas partes20.
Na conciliação, o terceiro responsável pela composição do conflito, que deve
ser neutro e imparcial, possui a prerrogativa de sugerir um possível acordo, analisando
no caso em questão as vantagens e desvantagens que tal proposição acarretaria às partes.
A conciliação constitui um meio de acordo do conflito entre as partes adversas
em que as decisões cabem aos envolvidos, indispostos em seus direitos pela atuação de
um terceiro. Esse instrumento busca resgatar uma concepção positiva dos conflitos, que
passam a ser vistos como oportunidades para o diálogo construtivo, entendimentos mútuos
e aprendizagem de formas mais harmoniosas e cooperativas de convivência humana 21. O
predomínio do diálogo, da negociação e da autonomia dos participantes é considerado
requisito indispensável para se chegar à resolução adequada do conflito.
Algumas habilidades devem ser reveladas ou desenvolvidas pelo conciliador: saber
ouvir, ser empático, demonstrar respeito, aceitar as diferenças, ter clareza de expressão,
agir com serenidade, considerar as alternativas de solução, orientar a pessoas, enfim 22.
Na atualidade, o Poder Judiciário utiliza, com frequência, a conciliação como
medida de emergência, buscando a antecipação do mérito do litígio. Almeja-se, desse
modo, adotar uma ferramenta mais célere e segura que supere a grave crise judicial do
contraditório que afeta profundamente a confiabilidade dos serviços da decisão, do acesso
e da efetividade da justiça pública.
2.3.1 Conciliação judicial
A conciliação judicial, tal como disposto pelo ordenamento jurídico brasileiro,
é o procedimento oral, informal, realizado antes ou depois de instaurado o processo
(contraditório), com vistas a buscar uma solução da controvérsia fora da jurisdição e do
processo, mediante a elaboração de um acordo que, depois de homologado por despacho,
substitui eventual medida cautelar ou sentença, faz coisa julgada imediata e adquire a
qualidade de título executivo judicial 23. É concomitante ao processo e desenvolvida no
ambiente judicial.
20 LEITE, 2008. p. 40.
21 LOPEZ, I. de F. W.; MIRANDA, F. S. M. P. A Conciliação nos Juizados Especiais Cíveis. Revista Eletrônica
Direito, Justiça e Cidadania, São Paulo, v. 1, n. 1, 2010, p. 11.
22 Ibid., p. 41-42.
23 NASSIF, E. Conciliação Judicial e Indisponibilidade de Direitos: paradoxos da “justiça menor” no processo
civil e trabalhista. São Paulo: LTr, 2005. p. 152.
35
Artigo 2
2.4 Comissão de conciliação prévia
As Comissões de Conciliação Prévia foram inseridas no ordenamento jurídico
por meio da Lei nº 9.958/2000. Consistem em mais um mecanismo alternativo de solução
de conflitos colocado à disposição das partes na relação processual trabalhista.
Contam as CCP’s com representantes de empregados e empregadores, de
composição paritária, e têm como principal objetivo solidificar-se como via célere e
eficaz à conciliação de interesses opostos entre as classes, evitando assim os corredores
do Judiciário, onde a solução do impasse pode durar longos desgastantes anos24.
Referido instituto busca promover o entendimento entre empregado e empregador,
não dispondo de poderes para arbitrar, julgar ou decidir a respeito de qualquer demanda.
A discussão que outrora havia quanto à constitucionalidade do artigo 625-D da
CLT, que implicava na obrigatoriedade de submeter as demandas individuais trabalhistas
à Comissão de Conciliação Prévia, nos locais em que esta for instituída, foi debelada
após o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, em resposta às duas Ações Diretas
de Inconstitucionalidade ajuizadas por quatro Partidos Políticos e pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores do Comércio, determinando ser opcional a submissão dos
processos às Comissões25.
As Comissões de Conciliação Prévia visam a propiciar maior celeridade à solução
dos conflitos trabalhistas, apresentando-se para as partes integrantes da relação processual
trabalhista como uma nova modalidade de autocomposição.
3 Da aplicação da conciliação na Justiça do Trabalho
Segundo a CLT, a conciliação deverá ser proposta, obrigatoriamente, em dois
momentos, conforme preceituam os artigos 846 e 850, in verbis:
Art. 846 - Aberta a audiência, o juiz ou presidente proporá a conciliação.
Art. 850 - Terminada a instrução, poderão as partes aduzir razões finais, em prazo não
excedente de 10 (dez) minutos para cada uma. Em seguida, o juiz ou presidente renovará a
proposta de conciliação, e não se realizando esta, será proferida a decisão.
Na abertura da audiência, o juiz deverá apresentar a primeira tentativa de conciliação.
Após a apresentação das razões finais, o juiz renovará, obrigatoriamente, a segunda tentativa
de conciliação, sob pena de levar à nulidade o processo que não contiver tal proposta.
No procedimento sumaríssimo caberá ao juiz na abertura da audiência inaugural
esclarecer as partes presentes sobre as vantagens da conciliação, buscando os meios
adequados de persuasão para a solução conciliatória do litígio, em qualquer fase da
audiência. É o que dispõe o artigo 852-E da CLT.
24 SAAD, E. G. CLT Comentada. 35. ed. São Paulo: LTr, 2002. p. 428.
25 Trata-se das ADI’s 2139 e 2160.
36
OS DESAFIOS DA CONCILIAÇÃO DE CONFLITOS NA JUSTIÇA DO TRABALHO:
CELERIDADE PROCESSUAL VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA
Ressalte-se que a doutrina majoritária entende ser facultativa a proposição da
conciliação por parte do magistrado no procedimento supracitado. Contudo, deve expor
para as partes sobre as vantagens que poderão advir quando da sua adoção.
3.1 Direitos indisponíveis
O princípio da indisponibilidade dos direitos consiste em um dos princípios
norteadores do Direito do Trabalho. Segundo Plá Rodriguez, seria “a impossibilidade
jurídica de privar-se voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo direito
trabalhista em benefício próprio”26.
Segundo Ojeda, a indisponibilidade é uma “(…) limitação à autonomia individual
pela qual se impede um sujeito, com legitimação e capacidade adequadas, de efetuar total
ou parcialmente atos de disposição sobre um determinado direito” 27.
A indisponibilidade é decorrente do princípio da proteção ao hipossuficiente,
buscando-se equilibrar a relação empregado-empregador, destinando ao trabalhador
direitos que não podem ser renunciados.
A CLT, apesar de não conter nenhum dispositivo que vede explicitamente a
renúncia, em seu art. 9° estabelece que “ Serão nulos de pleno direito os atos praticados
com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na
presente Consolidação”.
A regra geral é que os direitos trabalhistas são, em tese, indisponíveis,
independentemente do momento em que se opera a renúncia. Contudo, o princípio da
indisponibilidade não vale de forma absoluta, principalmente após o fim da relação de
emprego, porém, comporta limitações bastante restritas. A renúncia é aceita no direito do
trabalho de forma excepcional, sendo irrenunciáveis os direitos que a lei, as convenções
coletivas, as sentenças normativas e as decisões administrativas conferem aos trabalhadores,
salvo se a renúncia for admitida pela lei ou se não acarretar uma desvantagem para o
trabalhador ou um prejuízo para a coletividade28. Neste ensejo, assevera Martins que
[...] poderá, entretanto, o trabalhador renunciar a seus direitos se estiver em juízo, diante
do juiz do trabalho, pois nesse caso não se pode dizer que o empregado esteja sendo forçado
a fazê-lo. Estando o trabalhador ainda na empresa é que não se poderá falar em renúncia a
direitos trabalhistas, pois poderá dar ensejo a fraudes. É possível, também, ao trabalhador
transigir, fazendo concessões recíprocas, o que importa um ato bilateral.29
Corroborando a afirmação acima transcrita, Yoshida leciona que
26 RODRIGUEZ, A. P. Princípios de Direito do Trabalho. 2 ed. São Paulo: LTr, 1997. p. 66-67.
27 SILVA, L. de P. P. da. Principiologia do Direito do Trabalho. Salvador: LTr, 1996. p. 101.
28 SÜSSEKIND, A. et al. Instituições de Direito do Trabalho. 22. ed. São Paulo: LTr, 2005. p. 212.
29 MARTINS, 2002. p. 76.
37
Artigo 2
Assim, podem transacionar seus direitos os trabalhadores quando se encontra encerrado
o contrato de trabalho, pois já não existiria receio por parte deste temor ao trabalhador,
que o obrigasse a aceitar as imposições do empregador. E depois porque as eventuais
obrigações contratuais que foram descumpridas pelo ex-patrão, antes da rescisão
contratual, representam, depois dela, meras obrigações contratuais30.
Não seria coerente por parte do direito do trabalho estimular a adoção da
transação judicial, para logo em seguida impedir a sua consecução em face do princípio
da indisponibilidade.
Grande parte da doutrina brasileira considera o direito do trabalho imantado pelo
princípio da indisponibilidade. Entretanto, a legislação permite atos de disposição, ou seja,
de transação ou renúncia, por meio da conciliação judicial. De forma que o existente na
realidade é uma indisponibilidade relativa.
3.2 Celeridade processual x segurança jurídica
Tão importante quanto a discussão em torno da aplicação dos meios alternativos
na solução de conflitos como mecanismos capazes de amenizar a crise na qual o Poder
Judiciário se encontra, é a análise da qualidade dos acordos que resultam desses métodos.
A grande quantidade de processos vem levando um crescente número de
magistrados a buscar a composição da lide em detrimento dos direitos dos trabalhadores,
pondo em risco a credibilidade das leis e do Poder Judiciário. Conscientes desse problema
que afeta a maior parte dos acordos judiciais, Cappelletti e Garth afirmam que
A conciliação é extremamente útil para muitos tipos de demandas e partes, especialmente
quando consideramos a importância de restaurar relacionamentos prolongados, em vez
de simplesmente julgar as partes vencedoras ou vencidas. Mas, embora a conciliação se
destine, principalmente, a reduzir o congestionamento do Judiciário, devemos certificar-nos
de que os resultados representam verdadeiros êxitos, não apenas remédios para problemas
do Judiciário, que poderiam ter outras soluções.31
Não se concebe que sob manto de agilizar a prestação jurisdicional, os
magistrados tutelem acordos que agridam os direitos dos trabalhadores,
resultando em perdas irreparáveis. Dessa forma, o processo passa a representar
ganhos somente para os maus empregadores, que poupam dinheiro e tempo,
acalentando a sensação de que a Justiça do Trabalho não é séria. Desse modo,
os maus empresários acabam se tornando “fregueses” da Justiça do Trabalho,
a qual acaba por chancelar acordos espúrios que, de longe, representam grande
30 YOSHIDA, M. Arbitragem trabalhista: um novo horizonte para a solução dos conflitos laborais. São Paulo: LTr,
2006, p. 92.
31 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Editora Fabris,
1988. p. 87.
38
OS DESAFIOS DA CONCILIAÇÃO DE CONFLITOS NA JUSTIÇA DO TRABALHO:
CELERIDADE PROCESSUAL VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA
economia a esses empregadores, que se sentem desestimulados a pagar as verbas
trabalhistas e resilitórias de seus empregados.
Se a maior parte dos acordos trabalhistas homologados em juízo tiver seu conteúdo
muito inferior ao conjunto de direitos abstratamente assegurados pelo direito material
trabalhista que deveria reger o relacionamento jurídico mantido pelas partes, aqueles que
são os destinatários daquelas normas substantivas e que ao menos em princípio estariam
obrigados a seu estrito cumprimento, sempre vão poder contar com a homologação, pelo
Estado-juiz, de um acordo correspondente a condições de trabalho (e a direitos) muito mais
vantajosos para ele, empregador, que o simples cumprimento da lei. Nesse quadro, existe o
perigo de as conciliações judiciais serem usadas como um instrumento de esvaziamento e
de inefetividade, na prática, do direito material trabalhista.32
O problema também é detectado e descrito por Lima, ao descrever as consequências
de a Justiça do Trabalho homologar todos os acordos que venham ao seu encontro:
Se a Justiça do Trabalho legitimar as quitações do objeto de todo o contrato de emprego as
consequências serão indesejáveis. As empresas não mais pagarão as verbas resilitórias no
prazo legal, pois poderão, a qualquer tempo, transacionar com o empregado quando este
ajuizar a reclamatória; os sindicatos das categorias serão relegados a segundo (ou último)
plano, distanciando-se de quem representam; o judiciário ficará repleto de reclamações
ajuizadas simuladamente pelos empregadores, em nome do empregado e por este
desnorteadamente assinada; o juiz do trabalho estará praticando atos administrativos sem
lei que o autorize, baldando seu mister constitucional; as empresas se furtarão da multa do
art. 477, parágrafo 8°, CLT, na transação; os empregados não mais receberão in totum suas
verbas resilitórias, pois findarão renunciando, a no mínimo, parte delas em juízo.33
Cabe aos magistrados não apenas se opor à celebração de acordos espúrios na Justiça
do Trabalho, como também a aplicação de multas aos empregadores que se valem do Judiciário
para perpetrar verdadeiras agressões aos direitos dos trabalhadores, que se constituem, em
regra, a parte mais vulnerável dessa relação processual. Deve o juízo trabalhista ainda buscar
uma parceria com instituições auxiliares no combate à exploração do trabalho, tais como
o Ministério Público do Trabalho, a fim de provocar a sua atuação e o enquadramento das
pessoas jurídicas faltosas por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta.
Em suma, os magistrados devem sempre buscar a conciliação do conflito, desde
que a solução encontrada represente ganhos para as duas partes. Não se deve fazer da
conciliação uma regra na qual o objetivo fundamental é o de pôr fim ao litígio sem observar
os direitos dos empregados, pois é necessário ter em foco a tutela desses direitos.
32 PIMENTA, J. R. F. A Conciliação Judicial na Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional n. 24/9: aspectos
de direito comparado e o novo papel do juiz do trabalho. Revista LTr, São Paulo, v. 65, n. 2, fev. 2001.
33 LIMA, F. G. M. de. Quitação do Objeto do Contrato de Trabalho nas Conciliações na Justiça Obreira. Gênesis,
Curitiba, v. 78, n. 13, p. 813-884, jun.1999.
39
Artigo 2
Neste particular, há um desafio a ser enfrentado pelo direito processual do trabalho:
propiciar maior agilidade ao andamento dos processos, aliado a uma efetiva prestação
jurisdicional, garantindo eficazmente a tutela dos direitos trabalhistas.
3.3 Relevância e implicações no âmbito jurídico
A Justiça do Trabalho, movida por esse espírito conciliatório que lhe é peculiar,
promove anualmente a Semana Nacional da Conciliação, na busca incessante pela paz
social, pela estabilidade e segurança jurídica na entrega da efetiva prestação jurisdicional.
Malgrado a conciliação não seja um instituto exclusivo do direito processual
do trabalho, é nesse ramo do direito que alcança sua expressão máxima. Muito em razão
dos objetos de discussão nas lides trabalhistas, que normalmente são verbas de natureza
alimentar.
Pode-se chegar a essa conclusão por meio dos números apresentados nos relatórios
emitidos pelo CNJ referentes ao movimento pela conciliação que ocorre anualmente.
Grande número de doutrinadores salienta que a função precípua da Justiça do
Trabalho é a conciliação. A sua importância pode ser visualizada em diversas disposições
da Constituição Federal e da CLT. A adoção da conciliação na Justiça do Trabalho resulta,
entre outras vantagens, na rapidez na solução da lide.
Considerações finais
É notório que o Poder Judiciário, em todos os seus ramos, enfrenta uma crise
que impede ou dificulta substancialmente o seu acesso por parte da grande maioria da
população brasileira. Apresentam-se aqui algumas dessas possíveis causas, como também
se indicam meios capazes de, no mínimo, minimizar esse quadro desalentador.
No que diz respeito à Justiça do Trabalho, a conciliação se constitui como um
meio alternativo de solução de conflitos eficaz. É apontada como uma forma de, ao mesmo
tempo, obter uma solução mais rápida do litígio e promover um arejamento do Poder
Judiciário. Entretanto, se faz necessário combater a postura dos magistrados trabalhistas
no tocante à homologação reiterada de acordos que resultam em enormes prejuízos aos
direitos dos trabalhadores. É necessário que haja uma mudança no critério adotado hoje
pelos tribunais para a solução de conflitos, deixando de ser o critério quantitativo, e
passando a ser o qualitativo, buscando assim, tanto na conciliação como no julgamento,
distribuir efetivamente justiça de qualidade.
É inconcebível a omissão perante os desmandos que estão ocorrendo, em que
sob o falso pretexto de agilizar a prestação jurisdicional operam-se enormes prejuízos ao
patrimônio do trabalhador, gerando descrédito e insegurança nas leis e no estado.
Diante do exposto, conclui-se que o papel desempenhado pela conciliação no
direito processual do trabalho passa por uma crescente importância, apresentando-se como
40
OS DESAFIOS DA CONCILIAÇÃO DE CONFLITOS NA JUSTIÇA DO TRABALHO:
CELERIDADE PROCESSUAL VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA
um instrumento hábil, apto a atingir de forma célere os objetivos da justiça e da paz social.
Resta, assim, demonstrada a vantagem da sua utilização na Justiça do Trabalho, embora
se faça necessária uma mudança na forma atual como os acordos são homologados, a fim
de evitar anacronismos e sonegação de grande parte dos haveres de trabalhadores.
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41
Artigo 2
PIMENTA, J. R. F. A conciliação judicial na Justiça do Trabalho após a Emenda
Constitucional n. 24/99: aspectos de direito comparado e o novo papel do juiz do trabalho.
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42
O TRABALHO EM CONDIÇÕES
ANÁLOGAS AO ESCRAVO E
A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO DO TRABALHO NA SUA
ERRADICAÇÃO
Fabrisia Franzoi1
Introdução. 1 O trabalho em condições análogas ao escravo no Brasil. 2 O Ministério
Público do Trabalho. 3 Formas de erradicação do trabalho análogo ao escravo. 3.1
Ação civil pública trabalhista 3.2 Termo de ajustamento de conduta e inquérito civil.
3.3 Grupo especial de fiscalização móvel. 3.4 Termo de cooperação de trabalho
escravo. 3.5. Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. 3.6 Cadastro de
empresas e pessoas autuadas por exploração do trabalho escravo. 3.7 Expropriação
de terras. Considerações finais. Referências.
Resumo
O artigo tem como enfoque trazer as modalidades do trabalho escravo contemporâneo
e analisar os métodos de atuação judicial, extrajudicial e administrativo do Ministério
Público do Trabalho para a erradicação do trabalho escravo. No Brasil há várias formas
e práticas de trabalho escravo, e quando um empregador submete pessoas a esse tipo de
trabalho, além de infringir as normas trabalhistas, restringe a liberdade dessas pessoas,
na maioria das vezes cidadãos de baixa renda ou desempregados. Desta feita, é de suma
importância a atuação do Grupo Móvel, que vai in loco fiscalizar e erradicar o trabalho
escravo contemporâneo, visando regularizar os vínculos empregatícios. Os trabalhadores
têm seus direitos garantidos e protegidos nas normas constitucionais e infraconstitucionais;
quando não respeitadas, devem buscar os métodos do Ministério Público do Trabalho.
Quando judicial, apresenta-se a Ação Civil Pública pedindo a proteção dos interesses
lesados; querendo que o procedimento seja mais eficaz e célere, os legitimados poderão
tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais,
mediante combinações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.
1 Mestre em Ciência Jurídica na UNIVALI; docente do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do
Itajaí – UNIDAVI; analista judiciária do TRT 12ª Regiespecialista em Direito e Processo do Trabalho em Rio do Sul,
Santa Catarina. E-mail: [email protected]
43
Artigo 3
Palavras-chave: trabalho escravo, Ministério Público do Trabalho, erradicação.
Abstract
L’articolo che si concentra sul portare i metodi e le forme di schiavitù contemporanea
e analizzare i metodi di azione: giudiziale, stragiudiziale e amministrativamente al
ministero del Lavoro sradicare il lavoro schiavo. In Brasile ci sono molte forme e pratiche
di schiavitù, quando una persona è sottoposta a lavoro forzato, il datore di lavoro oltre
a violare le norme sul lavoro si limita la libertà di queste persone, che sono soprattutto
i cittadini di basso reddito o disoccupati. Questa volta, è estremamente importante è il
Gruppo Mobile, che supervisionerà il sito e sradicamento del lavoro schiavo, al fine di
regolarizzare i rapporti di lavoro contemporanei. Tuttavia, i lavoratori hanno i loro diritti
garantiti e tutelati nella Costituzione e le infrastrutture-costituzionale, se non rispettati
i metodi di ricerca del Ministero del Lavoro; Quando giudiziaria presenta l’azione civile
pubblica cerca di tutelare gli interessi dei lavoratori infortunati, o volere la procedura è più
rapida ed efficace potrebbe legittimamente prendere l’impegno dei soggetti interessati di
adeguare il proprio comportamento alle prescrizioni di legge, da parte loro combinazioni,
l’efficacia di una esecuzione extragiudiziale.
Paroli chiavi: lavoro forzato, Ministero del Lavoro, eradicazione.
Introdução
Inicialmente impende registrar que a Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888,
declarou extinta a escravidão no Brasil, com a assinatura da Lei Áurea. Entretanto,
passados mais de 120 anos da existência da referida lei, ainda é possível encontrar pessoas
submetidas a trabalhos forçados, tanto no meio rural quanto no meio urbano.
Ressalta-se que o trabalho escravo afronta não só a Constituição Federal, mas
também as normas internacionais que o Brasil ratificou, visando garantir a dignidade da
pessoa humana. Sem sombra de dúvida, como um Estado Democrático de Direito, deve
erradicar de uma vez por todas essa chaga social.
É relevante demonstrar a atuação do Ministério Público do Trabalho no combate ao
trabalho escravo e/ou forçado, por meio da Ação Civil Pública (ACP), na esfera judicial, ou
ainda formalizando o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), para que a solução do litígio
seja um procedimento mais célere e mais eficaz para reparar o dano causado. Além disso, cabe
mencionar o trabalho do Grupo Móvel e do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado
(Gertraf), que atuam no resgate dos trabalhadores encontrados em condições de labor forçado.
44
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS AO ESCRAVO E A ATUAÇÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA SUA ERRADICAÇÃO
1 O trabalho em condições análogas ao escravo no Brasil
A era da escravidão no Brasil iniciou com a vinda dos portugueses. Sobre os
primeiros contatos com os indígenas e portugueses, aponta Vicentino (1997) que os primeiros
se sentiram atraídos pelos objetos dos portugueses, e acabaram fazendo escambo com eles.
Ressalta-se ainda que, com o passar do tempo, “[...] produtos oferecidos aos
índios não mais lhe atraíram, resultando no desinteresse total de servir aos portugueses, e
iniciou-se a fase da escravidão do índio, regulamentada pela Coroa portuguesa, mediante
inúmeras restrições”.2
Foi com o cultivo da cana-de-açúcar que se iniciou o sistema colonial no Brasil,
gerando grandes riquezas aos portugueses e trazendo mais mão de obra para o país. Era
o começo da escravidão indígena de grande escala. Essa forma de trabalho forçado trazia
para os portugueses grande economia de esforço.
Com o decorrer do tempo, a saúde dos índios ficou prejudicada, o que ocasionou
baixo índice da população indígena; ao mesmo tempo, a produção de cana-de-açúcar
cresceu, e os grandes proprietários de terra precisaram de mais mão de obra. Como não
podiam mais escravizar os índios, iniciaram o escravismo dos africanos, com o intuito de
viabilizar a produção de cana-de-açúcar.
Relata Lotto3, sobre o fim do tráfico negreiro: “Em 1827, foi firmado entre Brasil
e Inglaterra o fim do tráfico negreiro, pondo fim ao deslocamento de escravos negros por
meio de navios negreiros no Atlântico. Esse fato provocou o aumento do tráfico ilegal”.
Passados três séculos e meio, a escravidão, formalmente consignada em nosso
ordenamento jurídico, ainda é encontrada de diversas formas. Negros, brancos, crianças
e mulheres, principalmente de baixa renda, acabam sofrendo esse tipo de exploração nas
mais diversas regiões do país.
Observa-se trabalho escravo em grandes e respeitadas empresas de nosso país e
do mundo. Os escravocratas não são somente pessoas físicas, como grandes proprietários
de terra, mas também jurídicas de direito privado e até mesmo multinacionais. “Podemos
citar o caso do Banco Bradesco S/A, a maior instituição bancária privada do país, onde
foram descobertos exemplos de trabalho escravo voltado ao desmatamento e povoamento da
Amazônia.”4A submissão do trabalhador a condições degradantes ou análogas ao trabalho
escravo constitui violação de vários princípios, normas e condutas, principalmente dos
direitos fundamentais da pessoa humana.
Os trabalhadores abusados acabam sujeitando-se a trabalho forçado e humilhante,
o que contradiz os termos do art. 1°, III, da CF, que garantem o respeito “à dignidade da
pessoa humana” e o atendimento básico de suas necessidades. Conforme o art. 5°, inc. XIII,
2 LOTTO, L. A. Ação Civil Pública Trabalhista contra o Trabalho Escravo no Brasil. São Paulo: LTr, 2008. p. 18.
3 LOTTO. Idem. p. 24.
4 LOTTO. Idem. p. 30.
45
Artigo 3
da Carta Magna, “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas
as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. E de acordo com o art. 5°, III, da CF
“ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”5. O trabalho
deve estar dentro dos princípios da legalidade, dignidade da pessoa humana e liberdade.
A Declaração dos Direitos Humanos, datada em 10 de dezembro de 1948 pela
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em que o Brasil é signatário,
estabelece algumas garantias para que principalmente pessoas de raça negra e imigrantes
não sejam mantidos em regime de escravatura, proibindo-se o tráfico de escravos e a
escravidão propriamente dita. De acordo com o artigo IV, “ninguém será mantido em
escravidão nem em servidão; a escravatura e o tráfico de escravos serão proibidos em
todas as suas formas.”6
Preceitua também, de acordo com o art. V que “ninguém será submetido à
tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” e que, nos termos
do art. XIII, “todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das
fronteiras de cada estado.”
A prática do trabalho escravo é inibida por toda comunidade internacional, sendo
que, ao ser constatada em determinado país, é penalizada pelo comércio internacional de várias
maneiras, dentre elas: o boicote na aquisição de mercadorias e sujeição à penalidade pela OIT.7
As pessoas não devem ser tratadas como objetos, mas com dignidade e respeito.
“A proibição absoluta do trabalho escravo, como cláusula pétrea internacional, e ao
direito de não ser submetido à escravidão, como direito humano absoluto e inderrogável,
inspiram-se na concepção contemporânea de direitos humanos, em sua universalidade e
indivisibilidade, invocando a crença de que toda e qualquer pessoa têm direito à dignidade,
ao respeito, à autonomia e à liberdade.”8
Várias são as formas de escravidão atualmente existentes, principalmente por
dívidas e de imigrantes irregulares. Para entender melhor o que significa a exploração do
trabalhador por dívidas, assevera Neto:
[...] Nessa forma de exploração, a pessoa dá-se a si próprio como penhor de um empréstimo
de dinheiro, mas a duração e a natureza do serviço não são definidas e o trabalho,
normalmente, não reduz a dívida original, fazendo com que permaneça um vínculo de
dependência por longo período. Uma doença do trabalhador que o deixe impossibilitado
ao trabalho mesmo por um período curto, ou a necessidade de comprar remédio pode ser o
suficiente para perpetuar a dívida que pode, também, ser passada por gerações posteriores,
escravizando também seus descendentes [...].9
5 PINTO, A. L. de T. et al. Vade Mecum. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
6 ONU, 2010. Idem.
7 LOTTO. Idem. p. 47.
8 LOTTO. Idem. p. 48.
9 PALO NETO, Vito. Conceito Jurídico e Combate ao Trabalho Escravo. São Paulo: LTr, 2008, p. 82-83.
46
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS AO ESCRAVO E A ATUAÇÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA SUA ERRADICAÇÃO
Os “gatos” induzem pessoas de baixa renda, que normalmente não têm muitas
oportunidades de emprego na região onde moram, a trabalhar em outras regiões, atraídas
por falsas promessas. A grande maioria não consegue voltar para sua terra por conta das
dívidas que contraiu, pela ostensiva vigilância que existe no local de trabalho e pela coação
de seus empregadores ou aliciadores.
Outra modalidade de escravidão atual é a de imigrantes irregulares, vindos
principalmente do Paraguai, Peru, da Bolívia e Colômbia. Encontrados em grandes cidades
do Brasil, são explorados em indústrias de confecção. É de grande valia deixar claro que
esses imigrantes vêm em busca de um bom emprego e ótimos salários, mas ao chegarem
ao país, percebem que são vítimas de uma grande fraude: os empregadores não cumprem
com o que prometeram, retêm passaportes e os obrigam a trabalhar em jornadas excessivas.
É conveniente destacar a notícia veiculada em 18/02/10, sobre fiscalização realizada
pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP) de uma
pequena oficina de costura que produzia peças femininas:
[...] No sobrado da Igreja “Boas Novas de Alegria”, localizado na Vila Nova
Cachoeirinha, Zona Norte da capital paulista, a fiscalização encontrou 16 pessoas de
nacionalidade boliviana (uma delas com menos de 18 anos) e um jovem peruano trabalhando
em condições análogas à escravidão na fabricação de peças de vestuário feminino para a
Marisa, que se apresenta como “a maior rede de lojas femininas do país”.
[...]
Nenhum dos trabalhadores que pilotavam as máquinas de costura tinha Carteira de
Trabalho e Previdência Social (CTPS) assinada. Todos manejavam peças de um lote da
Marisa.
Foram apreendidos cadernos com anotações que remetem diretamente a cobranças ilegais
de passagens da Bolívia para o Brasil, a “taxas” não permitidas de despesas designadas
com termos como “fronteira” e “documentos” - o que, segundo a fiscalização, consiste em
“fortes indícios de tráfico de pessoas” -, ao endividamento por meio de vales e a descontos
indevidos nos salários. Há registros de “salários” de R$ 202 e de R$ 247, menos da metade
do salário mínimo (R$ 510) e menos de um terço do piso da categoria (R$ 766) [...].10
Existem muitos imigrantes nessas condições na grande São Paulo. Infelizmente,
eles não denunciam seus empregadores, pois na maioria das vezes os salários oferecidos
em seus países são ainda mais baixos, e as condições de trabalho, ainda piores.
Numa breve síntese, pode-se explicar a escravidão contemporânea por algumas
conjunções de fatores, trazidas por Figueira citado por Lotto: “omissão do Estado; omissão
da legislação; cumplicidades das forças policiais locais e estaduais; desemprego, tornando
as pessoas mais vulneráveis ao aliciamento; vítimas que não fogem ou deixam de buscar
socorro de autoridade, imaginando que, em função da dívida, a lei não as protegeria”.11
10 Direitos Sociais. Disponível em: <http://www.direitosociais.org.br/secoes_detalhes.php>. Acesso em: 17 jul. 2010.
11 FIGUEIRA, 2000, apud LOTTO. Idem. p. 32-33.
47
Artigo 3
Como bem elencou o doutrinador Figueira, esses fatores contribuem para o
escravismo em pleno século XXI. Enquanto o sistema de produção estiver voltado para o
lucro desenfreado, de forma torpe e miserável, continuará a existir mão de obra escrava.
Conceitualmente, para o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o que
caracteriza trabalho escravo é a “apreensão de documentos, presença de guardas armados
e ‘gatos’12 de comportamento ameaçador, por dívidas ilegalmente impostas ou pelas
características geográficas do local, que impedem a fuga”.13
Sabe-se que não existe mais trabalho escravo como no Período Colonial; o que
ocorre na atualidade é o trabalhador oferecer seu trabalho por livre vontade, deixando-se
levar por promessas de bom emprego e ótimos salários.
Deve-se esclarecer a diferença entre o trabalho degradante e o trabalho escravo
contemporâneo, para que mais tarde não haja confusão entre estes conceitos. Quem traz
essa diferenciação é Lotto, ao dizer que trabalho degradante é aquele “onde há liberdade
de locomoção”, mas que são negados aos empregados vários direitos, tais como “falta de
equipamentos gratuitos para prestação dos serviços e equipamentos de proteção individual
(luvas, óculos, botas, etc.); alojamentos sem as mínimas condições de habitação e falta de
instalações sanitárias, etc.”14
É relevante destacar o conceito trazido pela Organização Internacional do Trabalho,
na qual “toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem
sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito do outro é a liberdade”.
Ainda no que tange ao trabalho degradante, retira-se do site do Ministério
Público do Trabalho:
Quanto ao trabalho degradante, a sua caracterização ocorre quando o trabalhador cumpre
as tarefas sem condições adequadas. Os alojamentos são inadequados, falta água potável,
a alimentação é precária, os salários são pagos com atraso, quando são pagos, e não há
registro em carteira, entre outros.15
Logo, o trabalho degradante e o trabalho escravo são executados em péssimas
condições, sem garantias mínimas de saúde, higiene, alimentação, segurança no trabalho,
etc. O que diferencia um de outro é que no primeiro caso o trabalhador tem garantida sua
liberdade de locomoção, podendo deixar a qualquer momento de prestar serviço ao seu
empregador, já no segundo inexiste essa liberdade, e o trabalhador é coagido de diversas
formas a ficar no local de trabalho.
12 “O recrutamento é efetuado mediante empreiteiros, ‘gatos’, ‘zangões’ ou ‘turneiros’, na maioria das vezes,
prepostos dos proprietários rurais” (LOTTO, ob. cit., p. 40).
13 MTE, 2010.
14 LOTTO. Idem. p. 34.
15 MPT. Erradicação do Trabalho Escravo e Degradante. Disponível em: <http://www.pgt.mpt.gov.br/atuacao/
trabalho-escravo/>. Acesso em: 5 ago. 2010.
48
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS AO ESCRAVO E A ATUAÇÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA SUA ERRADICAÇÃO
Vale ainda lembrar que o Código Penal, em seus artigos 132, 149, 203, 207, traz
várias condutas que configuram atentado contra a liberdade do trabalho: redução a condição
análoga à de escravo, frustração do direito assegurado por lei trabalhista, aliciamento de
trabalhadores de um lugar para outro do território nacional, com as respectivas penalidades.
2 O Ministério Público do Trabalho
A caracterização do MPT encontra-se no artigo 127 da Constituição Federal: “O
Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis”. No parágrafo segundo deste artigo afirma-se que “ao
Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa”.16
O órgão possui grande importância com relação às funções essenciais para a
justiça, mantendo a ordem, fiscalizando-a, defendendo os interesses sociais e individuais
indisponíveis.
Deve-se saber que o MPT, na defesa da Ordem Jurídica, diz respeito ao papel de custos
legais, assim suas atribuições não se restringem à defesa da lei, mas dizem respeito ao efetivo
cumpimento de normas, princípios, garantias e fundamentos do Estado Democático de Direito.
Sobre a LC n. 75/93, destaca-se o Ministério Público do Trabalho, que tem a
missão de “zelar pelo segmento do ordenamento jurídico em que se encontram as leis
trabalhistas”17 e “exercer vigilância para que os interesses sociais e individuais indisponíveis
não sofram qualquer agressão.”18
No âmbito trabalhista, há interesses individuais indisponíveis e coletivos, quando
desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos.
Com essa Lei Orgânica do Ministério Público da União (LC n. 75/93), não resta
dúvida de que aumentou o horizonte das atividades do MPT. É importante destacar o
art. 7°, inciso III, o qual afirma que cabe ao Ministério Público da União “requisitar à
autoridade competente a instauração de procedimetos administrativos, ressalvados os de
natureza disciplinar, podendo acompanhá-los e produzir provas”.
Oportuno destacar, nesse artigo, que “Com o apoio desta norma, o MPT está
credenciado a pedir às autoridades trabalhistas – por exemplo – o exame de locais de
trabalho em que não se respeitam as normas de segurança, higiene e medicina do trabalho”.19
Especificamente quanto ao Ministério Público do Trabalho, estabelece o art. 83,
em seu inciso III, da LC n. 75/93, que compete “promover a ação civil pública no âmbito
16 PINTO, A. L. de T. et al. Vade Mecum. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
17 SAAD, E. G.; SAAD, J. E. D.; BRANCO, A. M. S. C.. Consolidação das Leis do Trabalho. Comentada. São
Paulo: LTr, 2008. p. 769.
18 SAAD. Idem. p. 769.
19 SAAD. Idem. p. 769.
49
Artigo 3
da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os
direitos sociais constitucionalmente garantidos”.
O Ministério Público do Trabalho deve defender os interesses dos cidadãos e da
sociedade, administrativamente e judicialmente.
São inúmeras as atuações do Ministério Público do Trabalho (MPT), principalmente
após a Emenda Constitucional n. 45. A competência da Justiça do Trabalho não mais se
restringe à relação de emprego, mas a todo tipo de relação ao trabalho.
Relevante fazer a divisão para sintetizar duas formas básicas de atuação: a judicial
e a extrajudicial. A primeira, é óbvio, “resulta da sua atuação nos processos judiciais, seja
como parte autora ou ré, seja como fiscal da lei”. A segunda “concerne à sua atuação fora
do âmbito dos processos judiciais, isto é, no âmbito administrativo, o que, não raro, poderá
ensejar o surgimento de ações judiciais.”20
O âmbito de atribuições do MPT encontra-se nos artigos 83 e 84 da LC n. 75/93,
nos quais se afirma que a atuação mais comum do MPT é como parte autora; basta observar
os incisos I, III, IV, V, VIII e X do art. 83, da LC n. 75/93. A ação civil pública, a ação
civil coletiva e ação anulatória de cláusulas de contrato, acordo coletivo ou convenção
coletiva, etc. são as mais utilizadas.
Dentre todos os incisos, os mais importantes são o I e o III para o combate ao
trabalho forçado. Segundo eles, cabe ao MPT, junto à Justiça do Trabalho, “I. Promover
as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas; III.
Promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses
coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos.”
Como fiscal da lei, o MPT deve observar o art. 83, da LC 75/93. Impende salientar
que os arts. 83 e 84, da LC n. 75/93, não restringem a atuação do MPT, uma vez que por
força do disposto do art. 84, caput também exerce os instrumentos jurídicos conferidos
nos capítulos I, II, III e IV do título I.
Algumas atribuições do MPT para elidir a chaga social que é o trabalho
compulsório contempoâneo encontram-se no art. 84 da LC 75/93.21
Vale destacar que por meio das Portarias n. 221 e 230, em junho de 2001, criou-se
20 LEITE, C. H. B. Ministério Público do Trabalho. 3. ed. São Paulo: Ltr, 2006. p. 118.
21 Art. 84. Incumbe ao Ministério Público do Trabalho, no âmbito das suas atribuições, exercer as funções
institucionais previstas nos Capítulos I, II, III e IV do Título I, especialmente:
I – integrar os órgãos colegiados previstos no § 1° do art 6°, que lhe sejam pertinentes;
II - instaurar inquérito civil e outros procedimentos administrativos, sempre que cabíveis, para assegurar a observância
dos direitos sociais dos trabalhadores;
III - requisitar à autoridade administrativa federal competente, dos órgãos de proteção ao trabalho, a instauração de
procedimentos administrativos, podendo acompanhá-los e produzir provas;
IV - ser cientificado pessoalmente das decisões proferidas pela Justiça do Trabalho, nas causas em que o órgão tenha
intervindo ou emitido parecer escrito;
V - exercer outras atribuições que lhe forem conferidas por lei, desde que compatíveis com sua finalidade. (BRASIL,
2010).
50
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS AO ESCRAVO E A ATUAÇÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA SUA ERRADICAÇÃO
a Comissão Temática para estudar e indicar políticas para a atuação do MPT no combate
ao trabalho forçado e na regularização do trabalho indígena.
Importante mencionar os trabalhos da Comissão Temática sobre o trabalho
escravo, em que foram trabalhados muitos itens que caracterizavam esse tipo de trabalho,
tais como: a) utilização de trabalhadores, mediante intermediação de mão de obra por meio
de chamados “gatos” e pelas cooperativas fraudulentas; b) utilização de trabalhadores
aliciados em outros municípios, com promessas enganosas e não cumpridas; c) servidão de
trabalhadores por dívida, com cerceamento de ir e vir utilizando de coação moral e física
para mantê-los no trabalho, pela falta ou inadequado fornecimento de alimentação sadia e
farta e água potável; d) falta de fornecimento gratuito aos trabalhadores de instrumentos
para prestação de serviços, equipamentos de proteção individual e material de primeiros
socorros; e) não cumprimento da legislação trabalhista; f) coação ou, no mínimo, indução
de trabalhadores no sentido de que utilizem de armazéns ou serviços mantidos pelos
empregadores ou seus prepostos.22
O MPT orienta as atividades das instituições governamentais ou não governamentais
na execução de políticas públicas no que tange aos interesses sociais.
Foram estabelecidos sete objetivos prioritários de atuação, quais sejam: 1.
Erradicação do trabalho escravo e degradante (combate ao tráfico de pessoas); 2. Erradicação
do trabalho infantil e proteção do trabalho do adolescente; 3. Combate à discriminação nas
relações de trabalho; 4. Defesa da saúde do trabalhador e do meio ambiente do trabalho sadio;
5. Combate às fraudes nas relações de trabalho; 6. Combate às irregulaidades trabalhistas
na Administração Pública; 7. Regularização no trabalho portuário e aquaviário.23
Do que foi dito, é fácil reconhecer a importância da atuação do MPT no âmbito
da Justiça do Trabalho e também no campo da erradicação do trabalho escravo, defendendo
a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais indisponíveis judicial e
extrajudicialmente.
3 Formas de erradicação do trabalho análogo ao escravo
3.1 Ação civil pública trabalhista
A Ação Civil Pública (ACP) surgiu como instrumento de proteção e defesa dos
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, por meio da atuação do Ministério
Público do Trabalho.
Em síntese, é com a propositura da Ação Civil Pública que se permite a tutela
dos direitos em massa e a responsabilização do causador do dano da lesão ou da ameaça
dos direitos e interesses transindividuais.
22 LOTTO. Idem. p.100-101.
23 MPT, 2010.
51
Artigo 3
Reza a Constituição Federal, no seu art. 129, inciso III, ser atribuição do MP
“promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público
e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.”
De acordo com o art. 114 da Constituição Federal, a competência para apreciar
a ACP é da Justiça do Trabalho, em se tratando de direitos difusos dos trabalhadores
encontrados em condição degradante e/ou escrava.
Com o advento da Lei n. 75/93, estabeleceu-se seu cabimento na esfera trabalhista.
O art. 83, III, da lei diz que “Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das
seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho: [...] III – promover a ação
civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando
desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos.
A tutela dos direitos metaindividuais encontra-se na LACP, art. 1°, inc. I a V, os
quais protegem o meio ambiente; o consumidor; a ordem urbanística; os bens e direitos
de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; contra infração da ordem
econômica e da economia popular e a ordem urbanística.” (BRASIL, 2010).
Desse modo, um dos objetivos da ACP é a reparação dos danos causados aos
bens e direitos do art. 1° da LACP elencados acima, determinando que os responsáveis
se abstenham de atos que causem alguma consequência ao bem tutelado, a reparação das
lesões já produzidas ou a indenização perante a sociedade.
A respectiva ação tem por objeto, conforme o art. 3º da LACP: “a condenação
em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer”.
Em sede da Ação Civil Pública, as multas e/ou astreintes fixadas pelo juiz serão
destinadas para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), a pedido do MPT.
3.2 Termo de ajustamento de conduta e inquérito civil
O Inquérito Civil (IC) é um procedimento administrativo instaurado e presidido
pelo Ministério Público, como dispõe o art. 129, inc. III, da CF.
O art. 6°, inc. VII, da Lei Complementar n. 75/93, trata da possibilidade de
ajuizamento de Inquérito Civil e de Ação Civil Pública para “a) proteção dos direitos
constitucionais; b) proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, dos bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; c) proteção dos interesses
individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família,
à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor; d) outros interesses
individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos.”
O Inquérito Civil é um procedimento investigativo para apurar a veracidade dos
fatos, podendo ser provocado por meio de denúncia, suscitado por qualquer pessoa, de ofício
por qualquer dos integrantes do MP, que tomam conhecimento através de notícia ou por
52
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS AO ESCRAVO E A ATUAÇÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA SUA ERRADICAÇÃO
qualquer fonte que estejam sendo ameaçados os direitos salvaguardados no art. 1° da LACP.24
As autoridades devem fornecer aos interessados certidões e informações no prazo
de 15 (quinze) dias, para poderem instruir a inicial com esses documentos, conforme o
art. 8° da Lei n. 7.347/90.
Além de o MPT ter legitimidade para instaurar o IC e a ACP, pode requisitar de
outros órgãos públicos ou particulares certidões, documentos, exames, perícias de suma
importância para elucidar a veracidade do caso, de acordo com o art. 8°, § 1°, da referida lei.
Se o órgão ministerial convencer-se da inexistência de fundamento para a
propositura da ação civil, promoverá fundamentadamente o arquivamento dos autos do
inquérito civil ou das peças informativas. (LACP, Art. 9°, caput)
As peças de informação ou os autos do inquérito civil serão encaminhados ao
Conselho Superior do Ministério Público para homologação e/ou encaminhamento para
outro órgão do Ministério Público para ajuizamento da ação (art. 9°, §§ 1° ao 4°).
Havendo a possibilidade de ocorrência de lesão ao ordenamento jurídico laboral,
no caso de ocorrência do trabalho escavo, o Ministério Público do Trabalho há que apurar
a veracidade dos fatos por meio da abertura do inquérito civil, servindo este como peça
informativa.25
Deve-se então instaurar o inquérito civil para apurar elementos de convencimento
para o próprio órgão ministerial acerca de eventuais lesões perpetradas nos direitos difusos,
coletivos, individuais, homogêneos no âmbito trabalhista. Verificada a existência de tais
ilicitudes, instaurar-se-á ACP para que se possa defender e aplicar as devidas penalidades
para os culpados das lesões.
Para o entendimento da tramitação a partir do recebimento da denúncia por meio
da CODIN, explica o doutrinador Melo, citado por Silva:
Diante de uma denúncia a CODIN analisa e determina sua distribuição a um dos
Procuradores do Trabalho, que poderá instaurar Procedimento Preparatório de Inquérito
Civil, a fim de verificar a procedência das informações e, a posteriori, instaurar o Inquérito
Civil. Se não houve fundamento, a denúncia é arquivada.26
Como bem mencionado anteriormente, com a distribuição da denúncia aos
procuradores do trabalho, pode-se verificar a existência ou não das informações contidas; se
os fatos forem verdadeiros, será instaurado o IC, em contrapartida, a denúncia será arquivada.
Após todas as investigações e aprovação da ilicitude, compete ao procurador do
trabalho que está com o IC instaurar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), procedimento
24 LOTTO. Idem.
25 LOTTO. Idem. p. 82.
26 MELO, 2003, apud SILVA, C. de M. M. S. G. Do Escravismo Colonial ao Trabalho Forçado. São Paulo: LTr,
2009. p. 90.
53
Artigo 3
mais eficaz e célere do que a ACP, sendo esta ação o último caminho usado, pois sua tramitação
é mais demorada, e seu resultado, duvidoso, podendo muitas vezes a ação perder seu objeto.
Antes de fazer a análise do TAC, é oportuno destacar que o IC é de suma
importância para ajudar na convicção na propositura da Ação Civil Pública ou no Termo
de Ajustamento de Conduta.
O TAC está previsto no art. 5°, § 6°, da Lei n. 7.347/90. Este parágrafo foi inserido
por meio do art. 113, do CDC, que diz: “Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos
interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante
combinações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”.
Extrai-se que os legitimados no art. 5° caput da LACP podem combater as fraudes
trabalhistas e ofensas aos direitos humanos.
Este termo tem condão de título extrajudicial. Assim, se o empregador não cumprir
com o que foi pactuado entre as partes e principalmente continuando empregar a mão de
obra escrava em seu estabelecimento ou área rural, os legitimados podem ajuizar a ação
de execução, obrigando o empregador a cumprir tudo o que pactuaram.
3.3 Grupo especial de fiscalização móvel
O Grupo Móvel constitui-se de uma equipe formada por auditores fiscais do
trabalho, procuradores do MPT, agentes da Polícia Federal, motoristas e outros. Tem por
escopo atuar nas áreas onde há denúncias de trabalho forçado.
O Governo Brasileiro decidiu criar, em junho de 1995, o Grupo Especial de Fiscalização
Móvel do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), estrutura
operacional formada, atualmente, por sete equipes, integradas por auditores fiscais do
trabalho, delegados e agentes da Polícia Federal e procuradores do Ministério Público do
Trabalho e, em certas circunstâncias, por membros da Procuradoria Geral da República,
do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o
Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) (SILVA, 2009. p. 88).
Com a ajuda dos agentes da Polícia Federal, a inspeção ficou muito mais segura,
pois “[...] no interior do país, impera a lei do proprietário das terras que usa de todos os
meios para defendê-las.” (SILVA, 2009. p. 89)
Fica claro que o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf)
surgiu “[...] com a finalidade de coordenar e implementar as providências necessárias à
repressão do trabalho forçado [...]” (ibid., p. 88-89).
Comenta Silva, sobre os dados do MTE no que diz respeito ao levantamento de
trabalhadores capturados em condições degradantes e/ou análogas ao escravo:
Desde sua criação até dezembro de 2007, segundo dados do MTE, mais de vinte e sete
mil trabalhadores foram libertados. Ao todo, foram 617 operações de fiscalização, 1.868
54
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS AO ESCRAVO E A ATUAÇÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA SUA ERRADICAÇÃO
fazendas fiscalizadas, R$ 38.077.318,67 (trinta e oito milhões, setenta e sete mil, trezentos
e dezoito reais e sessenta e sete centavos) em pagamento de indenizações, vários Termos
de Compromisso de Ajustamento de Conduta firmados, Ações Civis Coletivas, Ações
Cautelares, Reclamações Trabalhistas e Ações Anulatórias. (Silva, 2009. p. 89).
Percebe-se, pelos dados anteriores, o quão é importante a fiscalização do GFM,
pois garante a liberdade dos trabalhadores e aplicam-se as penalidades administrativas
aos responsáveis pela lesão e infração dos direitos do trabalhador. “[...] a função do grupo
não é apenas garantir a liberdade dos trabalhadores, mas também seu retorno ao local de
origem, alojamento, alimentação, identificação, [...]” (SILVA, 2009. p. 88)
Percebe-se que há uma grande atuação do Grupo Móvel nas áreas em que existem
trabalhadores nessas condições desumanas. Após a vistoria e constatado o crime de trabalho
análogo ao escravo e/ou degradante, para garantir a liberdade destes indivíduos, a ação
do Grupo Móvel e do MPT é imprescindível, muitas vezes não havendo tempo suficiente
para aguardar uma liminar. Em virtude de essas pessoas estarem privadas do direito de ir
e vir, firma-se o TAC para regularizar essas situações de desrespeito à dignidade humana.
3.4 Termo de cooperação de trabalho escravo
Relevante mencionar a importância do Termo de Compromisso em que é signatário
o MPT, que tem por escopo a repressão e prevenção do trabalho degradante e/ou escravo.
Esse termo tem como signatários o “Ministério do Trabalho (MTb), o Ministério Público
Federal (MPF), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Secretaria da Polícia Federal (SPF)”27
Cabe ressaltar as incubências que cada órgão pactuou no Termo de Compromisso
no que tange ao MPT: fiscalizar, sempre quando tomar conhecimento de tal violação;
acompanhar, junto aos demais signatários, as investigação e indulgências; manter outros
orgãos informados sobre resultados de ações que lhe forem solicitadas.
3.5 Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo
Sabendo que a eliminação do trabalho escravo é condição básica para o Estado
Democrático de Direito, o presidente da República, no dia 10 de março de 2003, lançou
o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
O Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo apresenta medidas a serem
cumpridas pelos diversos órgãos do Legislativo, Judiciário e Executivo, Ministério Público
e da sociedade civil. [...] o documento considera as ações e conquistas realizadas pelos
diferentes atores que têm enfrentado esse desafio ao longo dos últimos anos. Nesse sentido, vale
destacar o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho e Emprego, cuja
atuação tem sido fundamental para o combate das formas contemporâneas de escravidão.28
27 MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2010.
28 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2010.
55
Artigo 3
Com a parceria entre órgãos governamentais e não governamentais será possível
erradicar definitivamente o trabalho escravo.
“O Plano Nacional contém 76 ações integradas pelas entidades governamentais
e não governamentais, são medidas punitivas a serem aplicadas aos empregadores que
mantiverem trabalhadores em regime análogo de escravidão”29. Podemos destacar algumas
medidas punitivas:
1) Incluir na lei de crime hediondo a submissão de pessoas a trabalho escravo;
2) Aprovar o PEC 438/01, proposto pelos senadores, que altera o art. 243 da CRFB,
que dispõe sobre a expropriação de terras (em análise, próximo item 3.7);
3) Aprovar a Lei n. 2.022/96, que dispõe sobre as vedações para celebrar contratos
com órgãos e entidades da administração pública e participação em licitação pública por
eles promovidas, com empresas que utilizam de mão de obra forçada; etc.
Relevante destacar algumas instituições parceiras do Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo: Ajufe – Associação dos Juízes Federais do Brasil;
Anamatra – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho; CNA – Conselho
Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil; Contag – Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura; CPT – Comissão Pastoral da Terra; DPF – Departamento de
Polícia Federal; MDA/Incra – Ministério do Desenvolvimento Agrário/ Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária; MJ – Ministério da Justiça; dentre outros.30
A integração e o empenho de todos esses órgãos e/ou entidades governamentais e
não governamentais é um possível começo para o fim da erradicação do trabalho escravo
e/ou degradante no país. Para que isso se torne realidade, é preciso vontade política,
planejamento de ações e definição de metas objetivas.
3.6 Cadastro de empresas e pessoas autuadas por exploração do trabalho escravo
Por meio da Portaria n. 540/04, criou-se o cadastro de empregadores que mantêm
trabalhadores em condições análogas ao trabalho escravo, conhecida popularmente como
Lista Suja.
Quando flagrados pelo Grupo Móvel, tais empregadores são imediatamente
autuados pelas suas infrações, e só entram no cadastro após a decisão final da ação
administrativa relativa ao auto de infração feito pela fiscalização do Grupo Móvel.
Semestralmente, é atualizado o cadastro. Podem-se incluir ou excluir empregadores nele.
Incluem-se quando todas as alternativas de recurso no processo administrativo forem exauridas;
a exclusão é feita quando, passados dois anos no cadastro, os empregadores cumprirem totalmente
com as obrigações impostas totalmente cumpridas, nos termos do art. 4º da Portaria n. 540/04.
29 LOTTO. Idem. p. 63.
30 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2010.
56
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS AO ESCRAVO E A ATUAÇÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA SUA ERRADICAÇÃO
As principais causas de manutenção do nome no cadastro são: não quitação das
multas impostas, reincidência na prática do ilícito e, em razão dos efeitos de ações em
trâmite no Poder Judiciário.31
O procedimento para retirada dos nomes do cadastro será feito por maio de “análise
de informações obtidas por monitoramento direto e indireto daquelas propriedades rurais,
por intermédio de verificação in loco e por meio das informações dos órgãos/instituições
governamentais e não governamentais, além das informações colhidas junto à Coordenação
Geral de Análise de Processos da Secretaria de Inspeção do Trabalho.”32
Em 7 de novembro de 2003, o Ministro Nilmário Miranda anunciou a restrição de
crédito a quem estivesse com o nome no cadastro da Portaria 540/04. A efetivação dar-se-ia,
inicialmente, nos âmbitos da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam),
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), Banco da Amazônia S.A.
(Basa) e Banco do Nordeste do Brasil (BNB), por meio de portaria da integração nacional.33
A medida foi efetivada pela Portaria n. 540/04. Esse cadastro seria amplamente
divulgado e essas pessoas ficariam impossibilitadas de receber crédito e incentivos fiscais
do governo por meio do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco Amazônia ou
Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES).34
Dessa forma, os empregadores escravocratas seriam impedidos de participar
de licitações públicas e de ter acesso a financiamento público (fatores extremamente
importantes para o desenvolvimento da empresa). Mas isso ainda não é suficiente para
inibir para os escravocratas; muitos conseguem uma brecha na lei e saem da lista por
tempo indeterminado.
3.7 Expropriação de terras
Expropriar terras de proprietários que submetam trabalhadores a condições
análogas ao escravo e/ou forçado é uma das formas mais inibidoras dessa conduta ilegal,
pois atinge o ponto mais fraco do escravocrata, sua propriedade.
A nova redação do art. 243 da Constituição Federal, proposta pela PEC 438/01,
após a aprovação ficará assim:
Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de
plantas psicotrópicas ou exploração de trabalho escravo serão imediatamente expropriadas
e especificamente destinadas à reforma agrária, com o assentamento prioritário aos colonos
que já trabalhavam na respectiva gleba, sem qualquer indenização ao proprietário e sem
prejuízos a outras sanções previstas em lei.
31 MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2010.
32 MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2010.
33 LOTTO. Idem. p. 61.
34 LOTTO. Idem. p. 61.
57
Artigo 3
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência
do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo
será confiscado e se reverterá, conforme o caso, em benefício de instituição e pessoal
especializado o tratamento e recuperação de viciados, no assentamento de colonos que
foram escravizados, no aparelhamento e custeio de atividade de fiscalização, controle e
prevenção e repressão ao crime de tráfico ou do trabalho escravo.35
Ou seja, todas as terras expropriadas serão destinadas ao assentamento de famílias
do programa de reforma agrária.
Em outubro de 2004, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizou a
desapropriação da Fazenda Castanhal Cabaceiras, em Marabá, no sul do Pará. No início do
mesmo ano, dezoito trabalhadores, inclusive crianças, haviam sido encontrados sob regime
de trabalho compulsório em condições degradantes. Segundo o decreto, a expropriação
foi feita para atender a interesse social, para fins da reforma agrária.36
Para que seja aprovada esta Emenda à Constituição, precisa-se de uma grande
movimentação da sociedade; se não houver, o projeto poderá ficar parado por alguns anos,
até ser completamente esquecido.
Considerações finais
Confirma-se que o trabalho análogo ao escravo é um problema mundial que
atinge, substancialmente, os países subdesenvolvidos, sendo mantido pela ganância de
alguns homens que faturam milhões por mês em contraposição a centenas de pessoas que
se sujeitam a esse tipo de trabalho.
Trabalho escravo, forçado, obrigatório: independentemente da denominação
adotada, suas características são as mesmas, atentatórias à dignidade da pessoa humana,
afrontando não só a Constituição Federal, mas os direitos humanos, consagrados na
Declaração dos Direitos Humanos em 1948 pela ONU.
A escravidão é, atualmente, sinônimo de trabalho degradante e envolve cerceamento
de liberdade. Existem várias formas, principalmente na área rural: trabalhadores enganados
por falsas dívidas (referentes a transporte até a região de trabalho e alimentação); trabalhando
em lugares extremamente distantes das cidades; sendo ameaçados para não fugir.
A denominação trabalho escravo não é um excesso de linguagem. Que outro
nome usar para caracterizar um sistema sem limites, em que muitas famílias são enganas
por promessas falsas, deslocadas para outras regiões, muitas vezes fora do território
nacional, para viver em condições precárias e obrigadas a trabalhar muitas vezes sob
mira de um pistoleiro?
35 CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2010.
36 SILVA. Idem. p. 94.
58
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS AO ESCRAVO E A ATUAÇÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA SUA ERRADICAÇÃO
Considerando a repugnância dessa injustiça, verificam-se vários métodos para
a erradicação do trabalho escravo na esfera administrativa, tais como a elaboração do
Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo pela Comissão Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo; e nas esferas judicial e extrajudicial, como a Ação Civil
Pública, o Inquérito Civil e o Termo de Ajustamento de Conduta.
Destaca-se a Proposta da Emenda à Constituição n. 438/01, que altera o art. 243
da CF/88, tendo como pena a expropriação de terra dos proprietários que explorarem mão
de obra escrava.
Por conseguinte, a portaria n. 540/04 dispõe sobre o cadastro de empregadores que
mantenham trabalhadores em condições análogas à escravidão, conhecida popularmente pela
Lista Suja, tendo como penalidade a perda de acesso a recursos financeiros de instituições
estatais, de benefícios ficais e outros subsídios.
É de suma importância a fiscalização in loco do Grupo Móvel do Grupo Executivo
de Repressão ao Trabalho Forçado, que tem lutado arduamente para resgatar a cidadania
de todos os trabalhadores, e também a atuação do Ministério Público do Trabalho no seu
exercício de combate ao trabalho escravo.
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Artigo 3
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SILVA, C. de M. M. S. G. Do escravismo colonial ao trabalho forçado. São Paulo: LTr,
2009.
VICENTINO, C. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1997.
60
A DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA COMO UM DOS
FUNDAMENTOS DO ESTADO
BRASILEIRO E OS EFEITOS DA SUA
NÃO EFETIVAÇÃO
João Luiz Barboza1
Introdução. 1 A dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico. 1.1 A dignidade
da pessoa humana como paradigma dos direitos humanos. 1.2 Dignidade da pessoa
humana e a justiça social. 2 As desigualdades como fonte de injustiça. 2.1 Os meios de
propaganda de massa. 2.2 Os mecanismos alternativos de defesa. 3 O Estado como
ente infrator dos deveres constitucionais. 3.1 A ineficiência do Estado educador. 3.2 A
ineficiência do Estado correcional. Considerações finais. Referências.
Resumo
O texto objetiva propor uma reflexão sobre a dignidade da pessoa humana a partir da sua
previsão constitucional, enfatizando a importância da busca de sua efetivação como meio
de alcançar a justiça social. Busca mostrar as decorrências dos atuais mecanismos da
sociedade de consumo caracterizados pela não observância desse fundamento constitucional.
Procura contextualizar os problemas decorrentes das dificuldades enfrentadas pelo Estado
para sua efetivação.
Palavras-chave: dignidade da pessoa humana, justiça social, consumismo, ineficiência
do Estado.
Abstract
The text aims to propose a reflection on the dignity of the human person from its constitutional
provision, emphasizing the importance of the pursuit of its effectiveness as a means of
1 Doutorando em Direito Constitucional pela PUC-SP; mestre em Direitos Fundamentais pelo UNIFIEO; bacharel em
Direito pela Universidade Paulista – UNIP; bacharel em Administração de Empresas pelo UNIFIEO, com pós-graduação
(Licenciatura) pela Faculdade Campos Salles; advogado inscrito na OAB-SP; professor de graduação da Faculdade Nossa
Cidade. E-mail: [email protected]
61
Artigo 4
achieving social justice. It tries to show the impacts of current mechanisms of consumer
society characterized by non-observance of this constitutional foundation. It also tries to
contextualize the problems arising from difficulties faced by the state for its realization.
Key words: dignity of the human person, social justice, consumerism, inefficiency of
the state.
Introdução
No presente escrito objetiva-se enfrentar algumas das dificuldades presentes para
a efetivação da dignidade da pessoa humana enquanto fundamento da Constituição Federal.
Evidenciar-se-ão os investimentos vários das instâncias legislativas, com vistas
a criar instrumentos legais destinados a possibilitar a efetivação desse valor fundante do
Estado brasileiro e de tantos outros democraticamente constituídos.
Buscar-se-á demonstrar que a luta por uma sociedade que prima por justiça social
há de evidenciar a valorização da dignidade da pessoa humana em todas as suas iniciativas
políticas, especialmente com um olhar mais atento às minorias, visando à redução das
desigualdades tendentes ao agravamento de injustiças.
Sem que se pretenda aceitar como justificadas as distorções éticas, procurarse-á trazer à evidência os efeitos da desconsideração da dignidade humana pelos atuais
artifícios de incentivo ao consumo, que redundam num esvanecimento dos valores morais.
Constatar-se-á a incapacidade do Estado de cumprir com as diretivas constitucionais
de proporcionar a todos um patamar mínimo de atenção social, tanto na minimização das
dificuldades dos mais carentes quanto na recuperação daqueles indivíduos que tenham se
desviado do caminho da legalidade.
1 A dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico
A Constituição da República Federativa do Brasil tem como um dos seus
fundamentos a dignidade da pessoa humana, ínsito em seu artigo 1º, inciso III.
Portanto, qualquer consideração que tenha como foco de atenção as pessoas terá
que contemplar a sua dignidade como fundamento, sob pena de estar-se contrapondo a
um comando da Lei Maior.
No princípio da dignidade da pessoa humana estão aglutinados todos os valores
e direitos fundamentais que a sociedade deve reconhecer a cada indivíduo. Nas palavras
de José Afonso da Silva, “dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o
conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” 2.
2 Silva, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 105.
62
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO UM DOS FUNDAMENTOS
DO ESTADO BRASILEIRO E OS EFEITOS DA SUA NÃO EFETIVAÇÃO
A atual Constituição tem sido objeto de elogiosos comentários por parte de
juristas e doutrinadores, mormente por ser uma Constituição caracterizada pela proteção
que empresta à pessoa humana em todas as suas dimensões.
O rol de direitos e garantias elencados no Título II da Lei Maior representa uma
forte evidência do animus do legislador constituinte em positivar a máxima proteção à
dignidade da pessoa humana, até como resgate desse núcleo axiológico tão negligenciado
durante um longo período de regime de exceção experimentado no país3. Ademais, a
Constituição de 1988, além de representar o renascimento da democracia e o resgate da
dignidade humana, inaugura uma etapa muito profícua nesse aspecto, ao se verificar uma
profusão de leis voltadas para garantias à proteção da dignidade dos mais suscetíveis, tais
como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), o Código do Consumidor
(Lei nº 8.078/1990) e o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003). Assim, desde 1988, nosso
ordenamento oferece um amplo manto protetor da dignidade da pessoa humana.
1.1 A dignidade da pessoa humana como paradigma dos direitos humanos
A dignidade da pessoa humana não é produto do direito, mas sim um valor
intrínseco ao próprio indivíduo enquanto ser humano. Tempos houve em que esse valor
humano era desconsiderado pelo direito, bastando recordar a época em que o credor tinha
direito ao corpo do seu devedor inadimplente, podendo dele dispor como bem lhe aprouvesse.
Com o passar do tempo e o desenvolvimento da consciência racional, quando
o homem passou a ser visto como digno de consideração, os seus valores enquanto tal
começaram a ganhar importância. No transcurso dos séculos XVII e XVIII essa consciência
ganhou dimensões mais significativas nas considerações filosóficas, que culminaram nos
movimentos revolucionários, cuja expressão maior é a Revolução Francesa, que simboliza
a ruptura com o regime de poder da época, quando foi vertida a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789. Ainda aqui a dignidade da pessoa humana não está muito
evidenciada, vez que o pretendido era a superação do regime de exploração de uma classe,
o terceiro estado4, face à dominação do clero e da nobreza, exercentes de total influência
sobre o poder real. Já se evidenciava certa preocupação com o indivíduo, porém enquanto
membro de uma coletividade.
Numa época em que a escravatura ainda era fato comum e as mulheres não tinham
qualquer garantia de direitos, não se pode dizer que a dignidade humana era respeitada,
3 “Traçando-se um paralelo entre a Constituição de 1988 e o direito constitucional positivo anterior, constata-se, já numa
primeira leitura, a existência de algumas inovações de significativa importância na seara dos direitos fundamentais. De
certo modo, é possível afirmar-se que, pela primeira vez na história do constitucionalismo pátrio, a matéria foi tratada
com a merecida relevância”. SARLET, I. W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 63.
4 Terceiro estado: designação dada outrora ao povo, em relação aos outros dois estados, que eram o clero e a nobreza.
FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975,
63
Artigo 4
embora já se verificasse um movimento no sentido de romper com as desigualdades.5
Mesmo assim, os Estados que passaram a adotar o regime constitucionalista,
iniciado nos Estados Unidos da América em 1776, de modo geral adotaram também uma
declaração de direitos humanos fundamentais como parte ou anexo do texto constitucional.
Em que pese a valorização da pessoa humana ter encontrado eco nessa nova
forma de compor os Estados, o mundo passaria por experiências desastrosas no trato das
questões relacionadas aos direitos humanos. As duas grandes guerras mundiais ocorridas
na primeira metade do século XX e todas as nefastas ocorrências provocadas pelos regimes
totalitários desse período fizeram a humanidade acordar para as terríveis consequências do
crescente aviltamento dos valores humanos, frutos de conquistas do passado então recente.
A comunidade internacional sentiu a necessidade de constituir um compromisso
mundial fundado numa ética capaz de pôr fim à banalização da vida humana. Talvez a
consideração da dignidade da pessoa humana como valor maior tenha sido o único saldo
ético positivo daquele conflituoso período.
Desde então se verifica a criação de organismos e a elaboração de documentos
internacionais que visam à valorização e preservação da dignidade da pessoa humana
acima de qualquer interesse, por mais legítimo que seja. Assim, a dignidade da pessoa
humana se transforma em referencial dos direitos humanos declarados em documentos
internacionais, sendo o mais significativo a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948. Porém,
ainda hoje há muito para se lamentar relativamente à falta de efetividade na aplicação do
disposto em tais documentos, principalmente por parte de alguns países, quando julgam,
por critério próprio, que o conteúdo de tais documentos se mostra conflitante com os seus
interesses particulares6.
Mesmo assim, a dignidade da pessoa humana espraia-se para os diversos textos
constitucionais dos países-membros da Organização das Nações Unidas e desponta como
5 “Na luta contra as desigualdades, não apenas foram extintas de um só golpe todas as servidões feudais, que
vigoravam há séculos, como também se proclamou pela primeira vez na Europa, em 1791, a emancipação dos judeus
e a abolição de todos os privilégios religiosos. Por um decreto de 11 de agosto de 1792, proibiu-se o tráfico de
escravos nas colônias. Esse movimento igualitário só não conseguiu, afinal, derrubar a barreira da desigualdade entre
os sexos. Em vários cahiers de doléances, as mulheres do Tiers Etat reclamaram em vão contra a situação de injusta
inferioridade em que se encontravam em relação aos homens. Condorcet fez publicar na imprensa, um ano após o
início da Revolução, o artigo Sobre a admissão das mulheres ao direito de cidadania, mas a Assembleia Nacional
ignorou-o. Em 1791, a escritora e artista dramática Olympe de Gouges redigiu e publicou a Declaração dos Direitos
da Mulher e da Cidadã, calcada sobre a Declaração de 1789. Fez constar ousadamente no artigo X que ‘a mulher tem
o direito de subir ao cadafalso’, assim como o ‘direito de subir à tribuna’. Efetivamente, havendo tomado em público
a defesa de Luís XVI, após a sua detenção em Verennes quando tentava fugir da França, Olympe de Gouges pôde
exercer o seu direito de subir ao cadafalso”. COMPARATO, F. K. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos.
4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 133.
6 Em manifesta preocupação com a efetivação dos direitos fundamentais, Norberto Bobbio assim se expressa: “Não
se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou
históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das
solenes declarações, eles sejam continuamente violados.” BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus,
1992. p.25.
64
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO UM DOS FUNDAMENTOS
DO ESTADO BRASILEIRO E OS EFEITOS DA SUA NÃO EFETIVAÇÃO
paradigma na consideração dos direitos fundamentais, tal como no Brasil, em que representa
um dos fundamentos constitucionais.7
É então que a dignidade da pessoa humana serve de balizamento para todo nosso
ordenamento jurídico, devendo ser considerada independentemente da situação política
ou social da pessoa humana em questão, pois que, nas palavras de Jorge Miranda, “a
dignidade da pessoa permanece, independentemente dos seus comportamentos, mesmo
quando ilícitos e sancionados pela ordem jurídica”.8
1.2 Dignidade da pessoa humana e a justiça social
Sendo a dignidade da pessoa humana um valor a balizar quaisquer ações
governamentais, não há que se falar em justiça social sem que esse valor esteja presente
em ponderações dessa natureza. Portanto, qualquer que seja a política social direcionada
a qualquer seguimento da população, a dignidade da pessoa humana é de importância
basilar na sua formulação. Os organismos governamentais de qualquer nível ou instância
têm o dever de viabilizar a concretização desse valor constitucionalmente estabelecido
como fundamento da ordem estatal.
Infelizmente, problemas de natureza vária estão sempre a dificultar a plena
observância deste valor, principalmente nos países de economia mais vulnerável.
No Brasil e em tantos outros países, defrontamo-nos com a desigualdades tais
que chegam a constranger as pessoas dotadas de certo censo de justiça. É grande o
número de crianças ao desamparo, de idosos sem a devida assistência, de famílias que
não conseguem garantir a si um mínimo de dignidade. O país é detentor de um passivo
social cujo resgate demandará muito esforço e dedicação da presente geração e das futuras
para que seja minimizado.
Passadas mais de duas décadas da promulgação da atual Constituição, observa-se
que a maioria das suas normas voltadas para os direitos e garantias fundamentais expressam
um conteúdo programático de difícil implementação, o que não deve, por evidente, servir
7 “Ainda assim, vale dizer que, apesar da vagueza da expressão, ela deve servir como norte das ações governamentais
e das ações sociais, no sentido da planificação da pessoa humana no convívio social. A expressão ‘dignidade da
pessoa humana’, portanto, deixa de representar mero conceito aberto da Constituição e ganha um sentido como télos
das políticas sociais, limite mesmo que permita diferir o justo do injusto, o aceitável do inaceitável, o legítimo do
ilegítimo. Registra-se, com isto, que sua importância se deve ao fato de se encontrar topograficamente localizada
no princípio da Constituição, o que denuncia sobre prevalência hermenêutica para a discussão exegética de seus
demais dispositivos. Ademais a expressão serve como: diretriz básica das políticas públicas; orientação teleológica
para ações sociais e intervenções públicas na economia; núcleo de sentido hermenêutico para a interpretação dos
demais dispositivos constitucionais; sede básica dos direitos humanos; guia para a legislação infraconstitucional,
determinando o sentido da cultura jurídica legislada; fundamento para a criação de instrumentos de proteção da pessoa
humana; palavra-chave para a criação da ordem conceptual e deontológica dos direitos constitucionais; princípio
primeiro de todos os demais princípios da Constituição”. BITTAR, E. C. B. O Direito na Pós-Modernidade. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 303-304.
8 MIRANDA, J.. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais. In:
MIRANDA, J.; SILVA, M. A. M. da. (Coord.). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo:
Quartier Latin, 2008. p.174.
65
Artigo 4
de desestímulo às boas intenções e atitudes construtivistas.
Uma sociedade justa e igualitária deve representar um objetivo a ser perseguido
de forma incansável por todos os Estados e, para tanto, a comunidade internacional não
pode se descurar dos esforços para garantir efetividade aos vários documentos elaborados
em homenagem à dignidade da pessoa humana.
2 As desigualdades como fonte de injustiça
“Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais”; eis um dos objetivos da República Federativa do Brasil, disposto no inciso III
do artigo 3º da Constituição Federal. Ele vem ao encontro do fundamento da dignidade da
pessoa humana, assim como todos os demais. No entanto (e parece não ser um privilégio
dos brasileiros), vive-se uma fase do regime capitalista em que parecem muito distantes as
possibilidades de diminuição das desigualdades sociais provocadas pela forte e crescente
concentração de renda9, em que uma minoria consegue acumular riqueza suficiente para
resolver grande parte dos problemas dos mais necessitados.
Não se pode perder de vista que nada se vislumbra como melhor do que o regime
da livre iniciativa, abraçado textualmente pela Constituição brasileira10 para proporcionar
oportunidades de autodesenvolvimento, reconhecimento de talentos humanos e estímulo
à produção, tudo contribuindo para um ambiente de desenvolvimento coletivo.
A atividade especulativa, entretanto, mostra a face nefasta desse regime ao
possibilitar que uma minoria busque a riqueza não pelo trabalho, mas pela esperteza,
que proporciona a conquista de ganhos extraordinários, agravando as desigualdades e
fermentando a chamada economia virtual, cuja consequência é a escassez de recursos
a serem canalizados para os meios de produção e geração de oportunidades de trabalho
para estímulo da economia real.
Esse ambiente econômico faz com que, cada vez mais, os extremos da linha
que separa as classes sociais se distanciem, criando uma forte ilusão para os que estão
no topo e uma amarga desilusão para a grande maioria que procura sobreviver na base
da pirâmide social.
Na medida em que as desigualdades se acentuam, as injustiças sociais se agravam,
de forma a tornar cada vez mais difícil a tarefa de minimizar as impossibilidades de
desenvolvimento das classes sociais menos favorecidas.
9 “A riqueza é poder mais do que gozo. Na sociedade igualitária dos tempos modernos, a única distinção feita entre
os homens vem da desigualdade econômica. Outrora, presumia-se que quem exercia poder era rico: hoje pode-se
afirmar que quem é rico é poderoso. O espírito de lucro é portanto uma forma de espírito de dominação”. RITERT, G.
Aspectos Jurídicos do Capitalismo Moderno. Campinas: Red Livros, 2002. p. 359-360
10 A livre iniciativa encontra supedâneo no art. 1º, IV, e 170, caput.
66
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO UM DOS FUNDAMENTOS
DO ESTADO BRASILEIRO E OS EFEITOS DA SUA NÃO EFETIVAÇÃO
2.1 Os meios de propaganda de massa
O capitalismo selvagem, como frequentemente referido, baseia-se numa lógica
perversa, em que o consumismo é o seu alimento vital. E para suprir essa necessidade
não há qualquer escrúpulo a ser levado em conta. Não importa a que preço social a lógica
perversa se mantenha, pois o senhor lucro deve prevalecer acima de tudo11. Há que se
criar necessidades de consumo a qualquer custo. Como viabilizar e sustentar essa lógica?
A propaganda de massa encarregar-se-á do cumprimento desse papel, estimulando
o consumo de forma indiscriminada, através de uma estrutura de marketing avassaladora,
que anula o poder de análise dos receptores das suas mensagens12. Bens de consumo cujo
acesso só seria possível para classes sociais de poder aquisitivo mais elevado são expostos
a camadas economicamente inferiores, gerando, nestas, expectativas de consumo e de um
poder de compra incompatíveis, não raro de maneira subliminar, com promessas e facilidades
de pagamento que parecem miraculosas. É um artificialismo que chega a inibir a reflexão.
Observe-se que praticamente não se consegue realizar a compra de um bem de
consumo à vista sem que se pague o mesmo valor cobrado pela venda a prazo, “sem juros”,
numa proposição ilusória ao consumidor incauto, mas que também não deixa opção aos
mais atentos, apesar da indignação que lhes possa causar.
Já não importa a capacidade aquisitiva do consumidor, pois este está seduzido por
um sistema de crédito complexo que funciona na base da socialização da inadimplência,
com uma equação eficientíssima: o consumidor pode comprar, independentemente do
seu poder aquisitivo, mas se não pagar será alijado do sistema, tornando-se um indivíduo
“marginalizado” pelos organismos de “proteção ao crédito”, enquanto o seu débito será
socializado pelo aumento das taxas de risco embutidas nos novos financiamentos e,
portanto, pago regiamente pelos consumidores adimplentes.
Provoca-se uma cegueira financeira tal que o consumidor já não compra com
base na sua capacidade de endividamento ou no valor total a ser desembolsado, mas sim
com base na possibilidade de pagamento da parcela atual. A tendência não é outra senão a
11 “Para exercer a competitividade em estado puro e obter o dinheiro em estado puro, o poder (a potência) deve
ser também exercido em estado puro. O uso da força acaba se tornando uma necessidade. Não há outro telos, outra
finalidade que o próprio uso da força, já que ela é indispensável para competir e fazer mais dinheiro; isso vem
acompanhado pela desnecessidade de responsabilidade perante o outro, a coletividade próxima e a humanidade
em geral. Por exemplo, a ideia de que o desemprego é resultado de um jogo simplório entre formas técnicas e
decisões microeconômicas das empresas é uma simplificação, originada dessa confusão, como se a nação não devesse
solidariedade a cada um dos seus membros. O abandono da ideia de solidariedade está por trás desse entendimento
da economia e conduz ao desemparo em que vivemos hoje. Jamais houve na história um período em que o medo
fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da
violência, medo do outro. Tal medo se espalha e se aprofunda a partir de uma violência difusa, mas estrutural, típica
do nosso tempo, cujo entendimento é indispensável para compreender, de maneira mais adequada, questões como
a dívida social e a violência funcional, hoje tão presentes no cotidiano de todos”. SANTOS, M. Por uma Outra
Globalização: do pensamento único à consciência universal. 15 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 58.
12 “O que é transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer,
confunde. Isso é tanto mais grave porque, nas condições atuais da vida econômica e social, a informação constitui um
dado essencial e imprescindível”. Ibidem, p. 39.
67
Artigo 4
de uma deterioração dos valores humanitários, sobrepostos por interesses mercadológicos
em que todos perdem13.
Pelo lado dos beneficiários temporários desse sistema, observa-se uma total
apatia para com esse estado de coisas, sem uma avaliação de que os resultados nefastos,
a longo prazo, serão também socializados, dessa vez com os seus provedores participando
de forma inexpiável.
2.2 Os mecanismos alternativos de defesa
Certamente, dizer que a informalidade, a desordem e a delinquência de modo
geral prosperam tanto quanto mais propício for o ambiente e os estímulos encontrados
será cair em lugar-comum. Entretanto, o fato é que muitos dos problemas estruturais têm
suas origens em situações criadas por desatenção à lógica do comportamento humano,
sempre tendente a se utilizar de mecanismos que visam a racionalizar as suas frustrações.
Assim é que, por exemplo, muito se ouve acerca da necessidade de combater
a pirataria de marcas e produtos, o comércio informal e uma série de outros meios que
terminam por gerar uma cultura de fuga da legalidade, com total prejuízo para o erário,
cuja consequência última é a dificuldade ainda maior para a efetivação de políticas sociais.
Porém, na base dessa fuga está a necessidade de satisfação de anseios consumistas gerados
por uma estrutura de marketing criadora de expectativas de difícil solução para as classes
mais carentes, o que leva à criação de uma sociedade iludida pelos padrões desenvolvidos
por um sistema midiático capaz de construir estilos de vida que estão a serviço de uma
cultura do ter, em detrimento do ser, da vida digna.
O ser humano raramente se vê, mas está instrumento de uma engrenagem
eficientíssima que o coloca compulsivamente na busca da sua adaptação aos arquétipos
criados pelo mercado consumista. A cultura do ter está a dominar mentes angustiadas por
impossibilidades tamanhas que as sujeitam a trilhar caminhos alternativos na tentativa de
experimentar os prazeres artificialmente construídos pela mídia, ficando os valores morais
de estrito respeito à formalidade legal relegados a um segundo plano.
É daí que se verifica a proliferação de mercados alternativos, produtos falsificados,
marcas imitadas, tudo feito sob medida para atender aos anseios dos menos favorecidos,
sedentos de consumir as maravilhas que a propaganda lhes mostrou. Um comércio paralelo
13 “No centro do capitalismo vai haver uma mudança de valores e objetos nos próximos anos. A ideologia de todo
o poder e de toda a existência pelo hábito de consumir deixa as pessoas doentes, tanto do ponto de vista dos que
têm dinheiro quanto dos que não têm. Os que têm perdem todos os parâmetros de valores humanos; os que não têm
se despedaçam nessa tensão. Essa cultura chegou a um limite agora. Acho que a retirada desse eixo econômico que
não é real deve ter um impacto simbólico, abrindo espaço para outros campos de valores na economia, na política,
na existência. Como isso vai repercutir no espaço público, a gente não sabe ainda. Mas seria interessante parar de
conceber a vida como um ato de consumo mágico”. Tales Ab’Saber, a respeito da atual crise financeira mundial.
Diálogos Aliás, O Estado de São Paulo, 2 nov. 2008, p. J5.
68
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO UM DOS FUNDAMENTOS
DO ESTADO BRASILEIRO E OS EFEITOS DA SUA NÃO EFETIVAÇÃO
prospera à revelia do sistema tributário, proporcionando satisfação dos anseios reprimidos
pelas desigualdades sociais.
3 O Estado como ente infrator dos deveres constitucionais
Os chamados direitos fundamentais de segunda geração, quais sejam os direitos
sociais – contrariamente àqueles referidos como de primeira geração, que demandam do
Estado um dever negativo – demandam do Estado uma obrigação positiva, vale dizer, de
fazer, no sentido de garantir a todos condições mínimas para uma vida digna. É de se
observar que a Constituição impõe ao Estado esses deveres, de cuja responsabilidade não
tem ele como se isentar, sob pena de não atender ao conteúdo do artigo 3º do Texto Maior,
que dispõe sobre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Esses direitos sociais a que todos estão legitimados vêm expressamente relacionados
no artigo 6º da Constituição, nos seguintes termos:
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.
Assim, consoante o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana
e os direitos consagrados no transcrito artigo 6º, não pode o Estado brasileiro deixar
de promover a redução das desigualdades sociais e criar oportunidades necessárias ao
completo desenvolvimento de todas as pessoas, oferecendo-lhes educação, saúde, trabalho
e lazer. Reconheça-se que não se trata de uma equação simples, principalmente tendo em
conta que as desigualdades são parte da história do país. Não obstante, a carga tributária
relativa ao Produto Interno Bruto (PIB) do país, segundo várias fontes14, vem aumentando
a cada ano, sem que se obtenha retorno equivalente na oferta de serviços e assistência por
parte do Estado. Ao contrário, o que se verifica é a população tendo que custear serviços
fornecidos pela iniciativa privada, por exemplo saúde e educação – apenas para ficarmos
em dois itens componentes dos direitos sociais básicos atribuídos ao dever do Estado.
É uma situação em que se verifica um processo discriminatório gerador de pelo
menos duas injustiças: a primeira, com aqueles que contribuem com impostos para formação
do erário, de onde deveria sair o custeio de serviços que contratam da iniciativa privada, pois
que terminam por pagar em duplicidade; a segunda, com a parcela mais carente, que passa
a usufruir de um serviço de qualidade inferior, o que tende a aumentar as desigualdades,
vez que os mais carentes não têm o mesmo poder de acesso aos serviços fornecidos pela
iniciativa privada. Cria-se, assim, uma espiral perversa, pois quanto maior a ineficiência
14 Veja-se a respeito artigo de Sergio Gobetti, no jornal O Estado de São Paulo, edição de 10 de fevereiro de 2008,
disponível em <http://www.estado.com.br/editorias/2008/02/10/eco-1.93.4.20080210.1.1.xml> Acesso em: 4 nov.
2008.
69
Artigo 4
do Estado, maior o apetite da iniciativa privada15 em atuar no suprimento de uma demanda
cada vez mais discriminatória, movida pelas grandes possibilidades de lucro, atuação esta
que é legítima, vez que a livre iniciativa é também fundamento constitucional do Estado.
Embora haja legitimidade na atuação da iniciativa privada, ao Estado compete
zelar para que sejam minimizadas as desigualdades, cuidando ele próprio do fornecimento
dos serviços básicos, no cumprimento dos reclamos da Constituição Federal, sob pena
de estar a infringi-los.
3.1 A ineficiência do Estado educador
O artigo 205 da Constituição Federal impõe ao Estado a educação como dever
nos seguintes termos:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Há que se observar que a responsabilidade atribuída à família no texto não deve ser
entendida no sentido da educação formal, mas na compreensão do mandamento constitucional,
ínsito no seu artigo 226, de que a família é a base da sociedade, e como tal tem o dever de
assegurar o integral desenvolvimento da criança e do adolescente, inclusive auxiliando o
Estado no cumprimento do dever de proporcionar a todos uma educação adequada, mas
não além do que se pode esperar da sua atuação no âmbito da vida privada, cabendo ao
Estado prover a educação formal.16
Parece ser de reconhecimento generalizado o fato de que a saúde e uma boa
educação são o caminho para, a longo prazo, produzir-se uma sociedade desenvolvida,
justa, igualitária e, portando, com maiores chances de garantir a dignidade das pessoas.
15 Reportagem de Fabiana Leite, no jornal O Estado de São Paulo, de 23 de setembro de 2008, dá conta de que
“Cresce em 66% no País o número de hospitais de planos de saúde: O número de hospitais administrados por
planos de saúde aumentou 66% nos últimos dois anos no Brasil. O crescimento é motivado pela preocupação de
operadoras do setor em reduzir custos com assistência médica e fomenta um intenso debate sobre possíveis prejuízos
à qualidade geral dos serviços. (...)”. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080922/not_
imp245814,0.php#comentar> Acesso em: 5 nov. 2008.
16 Ao examinar a questão da educação à luz das esferas da vida política, social e privada, Hannah Arendt observa:
“As crianças são, em primeiro lugar, parte da família e do lar, e isso significa que são ou deveriam ser criadas
naquela atmosfera de exclusividade idiossincrática que transforma uma casa num lar, forte e seguro o suficiente para
proteger os mais jovens contra as exigências da esfera social e as responsabilidades da esfera política. O direito dos
pais de criar os filhos como acharem adequado é um direito de privacidade, pertencente ao lar e à família. Desde
a introdução da educação obrigatória, esse direito tem sido desafiado e restrito, mas não abolido, pelo direito do
corpo político de preparar as crianças para o cumprimento de seus futuros deveres como cidadãos. A participação
do governo na questão é inegável – assim como o direito dos pais. A possibilidade da educação privada não fornece
saída para o dilema, porque tornaria a salvaguarda de certos direitos privados dependentes do status econômico e,
consequentemente, desprivilegiaria aqueles que são forçados a enviar os filhos para as escolas públicas.” ARENDT,
H. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 279. Embora a autora esteja se
expressando sobre um contexto presente nos Estados Unidos, suas considerações são totalmente pertinentes à nossa
realidade constitucional.
70
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO UM DOS FUNDAMENTOS
DO ESTADO BRASILEIRO E OS EFEITOS DA SUA NÃO EFETIVAÇÃO
Entretanto, o Estado parece estar cada vez mais impotente para efetivar políticas definitivas
voltadas para esse fim. O que se observa é crianças convivendo em ambientes sem um
mínimo de saneamento básico, por mais que pareça redundante a expressão. É sabido que o
meio ambiente saudável (que também é um direito de todos – artigo 225, CF), em todas as
suas dimensões, faz parte do processo de educação e desenvolvimento da pessoa humana.
Ao se mostrar incapaz de proporcionar saúde e educação de boa qualidade a
todos, ao Estado só resta ver prosperar as desigualdades, a perda dos referenciais morais
e, consequentemente, o acirramento da criminalidade.
3.2 A ineficiência do Estado correcional
Se por um lado o Estado não consegue proporcionar a todos condições básicas de
desenvolvimento satisfatório, com base numa boa educação e condições sociais adequadas,
com isso possibilitando a marginalização de parcela cada vez maior da população, à
medida que esta marginalização se exaspera com aumento dos níveis de criminalidade,
esse mesmo Estado não consegue dar conta da recuperação dos delinquentes, cuja gestação
acontece em seu próprio ventre.
No artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, está expresso: “é assegurado
aos presos o respeito à integridade física e moral”, o que está em perfeita consonância
com o fundamento da dignidade da pessoa humana. Porém, é cediço que as condições dos
presídios existentes em todo o país estão muito distantes de oferecer dignidade à população
carcerária, quase sempre mantida em condições sub-humanas, o que contraria inclusive
documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Em passagem de artigo da lavra
de Roberta Rodrigues Camilo, temos a evidência dos dramas vividos pelos encarcerados:
É de conhecimento público o fato de que certos estabelecimentos prisionais, devido à
superlotação, estabelecem um rodízio para que os presos durmam. Devido a essa situação
caótica, ao invés de ressocialização do preso, este é tratado como se estivesse num depósito,
num container.17
É uma realidade contrastante ao propósito de oferecer ao recluso a possibilidade
de se reeducar para que, quando concluído o cumprimento da sua sentença, esteja apto
a se reintegrar ao grupo social de origem. Certamente não será no cárcere superlotado e
em condições indignas que o delinquente encontrará motivação para prestar respeito à
sociedade, sendo mais provável que se torne uma pessoa revoltada e que seus valores éticos
sejam totalmente corroídos pelas mazelas suportadas durante a reclusão.
17 CAMILO, R. R. In: MIRANDA, J.; SILVA, M. A. M. da (Coord.). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade
Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 763.
71
Artigo 4
Considerações finais
O homem tem sido muito competente no campo do desenvolvimento das ciências
e das novas tecnologias, mas, não foi capaz de superar os perigos cada vez mais presentes
da degradação da própria espécie. Certamente o risco de seu próprio fenecimento o levará
à busca de soluções para superação dos interesses individuais, que estão se sobrepondo à
valorização da dignidade da pessoa humana.
Já se faz notar, por exemplo, no campo ambiental, muitas iniciativas de preservação
que só se fazem presentes em face dos riscos de supressão das condições mínimas da
qualidade de vida para a humanidade. Infelizmente, tal despertar só ascende quando o
prejuízo já compromete o equilíbrio que a natureza se encarregava de manter quando a
interferência humana era mínima.
Por certo, também no campo econômico e social haverá um despertar da
humanidade para a profunda degradação que se está a verificar, e que avança com tamanha
velocidade e eficiência que os danos já tão notáveis poderão se tornar irremediáveis. A
opulência haverá de demandar algum limite para que haja convivência pacífica com a
miséria e a degradação social, a serem minimizadas.
Interesses individualistas vêm ocupando cada vez mais o espaço da solidariedade e
da ética, causando um desmedido alheamento das pessoas com relação aos seus semelhantes.
Tudo contribui para uma cegueira coletiva com relação a problemas dos quais
não poderemos, jamais, nos afastar. O Estado, desarticulado por uma perda de vocação
para proporcionar às suas crianças e jovens a preparação adequada para uma vida de
progresso fundada na boa educação e no trabalho, passa a se preocupar em oferecer
paliativos para as necessidades básicas de alimentação, sem criar expectativas mínimas
de desenvolvimento e participação digna nas riquezas. Com isso, o que se verifica é o
crescimento de significativa parcela da população com total apatia em relação ao trabalho
e uma consequente diminuição da autoestima. Cria-se, dessa forma, um contingente cada
vez maior de excluídos que passam a acumular inconformismos e frustrações que, não raro,
são caminho para a delinquência, desaguando em altas taxas de criminalidade.
Aqueles que estão economicamente inseridos na sociedade se impacientam com
tal situação, pois que dando a sua parcela de contribuição, nos ditames estabelecidos pelo
regramento jurídico, se sentem isentos de responsabilidades adicionais e, consequentemente,
com total alheamento em relação à situação dos menos favorecidos, de forma a criar certa
tolerância para com os tratamentos indignos e uma decorrente exclusão social.
Com constrangimento, verifica-se que o Estado se transmuda de provedor do
bem-estar de todos para infrator das normas constitucionais, que lhe impõem deveres
dos quais não se poderá afastar. Porém, aqui se coloca a questão fundamental: o que é o
Estado? Quem é esse ente substantivado a quem constantemente empresta-se a imagem
de sujeito? Parafraseando Luís XIV, o Rei Sol, poder-se-ia dizer, e aqui com absoluta
72
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO UM DOS FUNDAMENTOS
DO ESTADO BRASILEIRO E OS EFEITOS DA SUA NÃO EFETIVAÇÃO
certeza: o Estado somos todos nós!
As infrações do Estado não passam impunes. Voltam-se contra ele próprio, sob
as mais diversas formas de sanção. Dessa forma, o medo e a insegurança fazem com que
os muros sejam cada vez mais altos; os carros sejam blindados; seguranças particulares
sejam contratados (para proteger pessoas muito mais diferentes de si do que aquelas de
quem as está a proteger); impedem de se desfrutar do prazer de uma caminhada sob o céu
enluarado; provocam o distanciamento dos indivíduos...
Referências
ARENDT, H. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BITTAR, E. C. B. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005.
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
CAMILO, R. R. Realidade nos estabelecimentos prisionais brasileiros e a dignidade da
pessoa humana, p. 751 - 768. In: MIRANDA, J.; SILVA, M. A. M. da (Coord.). Tratado
luso-brasileiro da dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2006.
FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1975.
MIRANDA, J. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos
fundamentais, p. 167-176. In: MIRANDA, J.; SILVA, M. A. M. da (Coord.). Tratado lusobrasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
RITERT, G. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. Campinas: Red Livros, 2002.
SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
15. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009.
SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 32. ed. São Paulo: Malheiros,
2009.
http://www.estado.com.br
73
74
O princípio da igualdade e
os direitos sociais: as ações
afirmativas
Felipe Cesar José Matos Rebêlo1
Introdução. 1 Princípio da igualdade: evolução histórica. 2 O direito à igualdade
na Constituição Federal de 1988. 3 Ações afirmativas: aspectos conceituais,
objetivo e os direitos sociais. 4 Principais exemplos de ações afirmativas.
5 Argumentos favoráveis e contrários às ações afirmativas. Considerações
finais. Referências.
Resumo
O artigo em questão retrata um mecanismo singular de combate à discriminação, com o
fulcro da inclusão social: as ações afirmativas. Inicialmente introduzidas como modelo de
inclusão nos Estados Unidos da América, elas ganham nova aplicabilidade em diversos
países, sendo o Brasil um desses exemplos. O estudo dessas medidas, nesse sentido, ganha
maior vida num país onde a desigualdade é um dos caracteres mais observáveis. A análise
dessa realidade pressupõe bom domínio dos aspectos conceituais ligados a tais ações, bem
como uma abordagem que considere as matizes aderentes ou não à sistemática enfocada.
Comparando-se esses dados juntamente aos ditames constitucionais em matéria de proteção
à igualdade e tópicos correlatos, pode-se chegar ao objetivo do trabalho proposto, que é
aferir a legalidade das ações afirmativas.
Palavras-chave: ações afirmativas, direito à igualdade, inclusão social, constitucionalidade.
THE PRINCIPLE OF EQUALITY AND SOCIAL RIGHTS: AFFIRMATIVE ACTIONS
Abstract
The article in question tells about a unique mechanism for combating discrimination, with
the fulcrum of social inclusion: affirmative actions. Affirmative actions, initially introduced
as a model for inclusion in the United States of America, gain new applicability in several
countries, with Brazil being one such example. The study of these measures, accordingly,
1 Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo.
E-mail: [email protected]
75
Artigo 5
has gained more life, even in a country where inequality is one of the characters of the most
observable. The analysis of this reality requires a good knowledge of conceptual aspects
related to these actions, as well as an approach that considers the nuances that adhere
or not to the systematics focused. Comparing these data together with the constitutional
principles relating to equal protection and related topics, it’s possible reach the goal of the
proposed work, which is to gauge the legality of affirmative actions.
Keywords: Affirmative actions, right of equality, social inclusion, constitutionality.
Introdução
O presente trabalho objetiva analisar uma questão sempre importante no direito
pátrio: a aplicação do princípio da igualdade por meio das chamadas ações afirmativas.
Para tanto, inicialmente se abordará o princípio da igualdade, tanto na sua
evolução histórica do ponto de vista geral, como do ponto de vista específico, relativo ao
direito brasileiro, até chegar às disposições da atual Constituição.
Tendo consciência desses pressupostos, pode-se realizar uma análise acerca das
ações afirmativas, mais precisamente no tocante aos seus principais aspectos conceituais,
argumentos pró e contra a sua implementação, bem como seus principais exemplos na
realidade brasileira.
Realiza-se todo esse procedimento com o escopo de verificar se o mecanismo
das ações afirmativas, indubitavelmente praticado pelo governo nacional nos últimos anos,
segue as diretrizes máximas estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, mormente
no tocante aos princípios constitucionais.
Dessa forma, latente é a importância do trabalho em questão, como já dito, pois
trata de um tema que se refere a questões perplexas em nossa realidade, como a inclusão
social e a discriminação, que suscitam discussões seculares e estão longe de um consenso.
Por conseguinte, não há pretensão de estabelecer um tratado sobre o tema, pois
além de vastíssimo e digno de uma tese de doutorado, não coaduna com o conteúdo de
um artigo científico, sendo sua meta verificar, sob um ponto de vista objetivo, se as ações
afirmativas, a priori, não violam a Constituição Federal e suas diretrizes máximas, fator
essencial para pensar quando se quer discutir acerca da aplicabilidade das ações afirmativas.
1 Princípio da igualdade: evolução histórica
O princípio da igualdade encontra sua configuração embrionária em documentos
que espelham movimentos políticos e sociais marcantes em nossa história.
Nesse sentido, primeiramente é observável na Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, de 1789, produto da Revolução Francesa, mais precisamente em seu art. 1º,
quando enfoca que “Os homens nascem livres e iguais em direitos”.
76
O princípio da igualdade e os direitos sociais: as ações afirmativas
A experiência revolucionária dos Estados Unidos da América no século XVIII
também segue os ideais instaurados pelos franceses. 2 Verifica-se, na Declaração de
Independência dos Estados Unidos, de 1776, a menção a um embrionário princípio da
igualdade como hoje se reconhece, quando afirma em seu art. 1º que “Todos os homens
são criaturas iguais”.
De forma clara, pode-se dizer que esses documentos históricos marcaram a
construção de um princípio da igualdade como sustentáculo de um Estado de Direito,
de um embrião do princípio que hoje se verifica, por exemplo, na Constituição de 1988.
Contudo, cabe observar que o princípio levantado como bandeira das revoluções
burguesas francesa e norte-americana não se revestia à época de uma pureza clara, no sentido
de privilegiar todos os cidadãos indiscriminadamente. O princípio da igualdade, no seio
das revoluções liberais burguesas, privilegiava a igualdade de direitos e obrigações apenas
aos membros da sociedade que fomentaram tais movimentos, quais sejam, os burgueses.
Assim sendo, verifica-se uma dicotomia envolvendo esse princípio, tendose, de um lado, o princípio da igualdade, válido para as classes burguesas, expresso
pela real efetivação de suas diretrizes dentro do sistema jurídico da época, e do outro,
um princípio da igualdade aplicável aos demais estamentos sociais, assegurando-se
a igualdade de direitos apenas em termos teóricos, sem considerar a questão prática
logicamente oponível.
Ou seja, tinha-se estabelecido o princípio formal da igualdade, mas não o princípio
material, pois os ideais liberais que constituíram os pilares das revoluções, como liberdade,
igualdade e fraternidade, eram aplicáveis apenas aos burgueses.
A realidade decantada passou a sofrer alterações a partir do início do século XX,
principalmente com a crise do liberalismo. A Crise de 1929, e a consequente quebra da Bolsa
de Nova Iorque no mesmo ano, proporcionaram o surgimento de um novo modelo estatal,
o já conhecido Estado Social (Welfare State), mais preocupado com o bem-estar social e
o asseguramento de direitos, mormente os sociais, para o atendimento às necessidades
mínimas dos cidadãos.
Esse novo modelo expressou-se pelas constituições do México, de 1917, e de
Weimar, de 1919, privilegiando-se uma nova feição ao princípio da igualdade.
A esse precípuo momento estabeleceu-se a igualdade material de forma acoplada
à igualdade formal, produto das revoluções burguesas. Pela igualdade material, busca-se
a efetivação no campo prático dos direitos e obrigações preconizados pelo princípio da
igualdade formal, sendo aplicável não só a uma camada da população, mas ao povo em geral.
2 Se bem que, tecnicamente, a revolução norte-americana é anterior à francesa em termos de conclusão do processo
separatista com o antigo regime dominante e opressor.
77
Artigo 5
Nessa nova realidade, destaca-se um intervencionismo estatal, tanto de ordem
econômica como social, objetivando-se a concretização dos direitos sociais, tutelando-se,
fundamentalmente, a dignidade da pessoa humana.3
Outrossim, sabendo-se a origem e evolução gerais do princípio da igualdade,
cumpre analisar sua evolução na história jurídica brasileira, o que passa necessariamente
pela análise das Cartas Constitucionais pátrias.
A Constituição imperial de 1824 já consagrava o princípio, enfocando em seu
art. 179, XIII, que a lei seria igual para todos, o que, é claro, não considerava a situação
do escravo na sociedade da época.4
A Constituição republicana de 1891, por sua vez, estabeleceu um princípio da
igualdade como vedação formal a privilégios individuais, necessariamente os de nascença.5
Foi com a Constituição de 1934 que o princípio da igualdade passou a considerar
todos iguais perante a lei, não havendo privilégios quanto a nascimento, sexo, raça, dentre
outras matizes.6
Por seu lado, a Constituição de 1937 limitou-se a dizer que “Todos são iguais
perante a lei”, sendo que a Constituição de 1967, complementada pela Emenda Constitucional
de 1969, repetiu, essencialmente, os ditames legais da Constituição de 1934, inovando no
sentido de prever punição ao crime de preconceito racial7.
Esse, essencialmente, é o quadro evolutivo do princípio da igualdade no direito
brasileiro, o que se aperfeiçoará com a análise do conteúdo desse princípio na Constituição
de 1988, tarefa do próximo item.
2 O direito à igualdade na Constituição Federal de 1988
O direito à igualdade na Constituição de 1988, que se fundamenta no princípio
da igualdade, é observável precipuamente nos arts. 3º e 5º dessa Carta Constitucional.
Antes de mais nada, cabe começar a análise pelo art. 5º, caput. Aquele dispositivo
consagra, essencialmente, o princípio da igualdade em termos conceituais, afirmando que
todos são iguais perante a lei, não se admitindo distinções de qualquer natureza e, por fim,
garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito
à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.
Dessa forma, diz-se que naquele dispositivo consagra-se o princípio da igualdade
formal, já tão decantado no presente trabalho.
3 SILVA, S. P. M. da. Discriminação Positiva: ações afirmativas na realidade brasileira. Brasília: Brasília Jurídica,
2005. p. 39.
4 SILVA, S. P. M. Idem. p. 44.
5 Ibid. p. 45.
6 Ibid. p. 46.
7 Ibid. p. 46-47.
78
O princípio da igualdade e os direitos sociais: as ações afirmativas
Mantém estreita relação com o dispositivo tratado o art. 3º, inciso IV, da
Constituição, que enfatiza se constituir um dos objetivos da República Federativa do
Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, por exemplo, e outras
formas de discriminação.
A leitura desse artigo em consonância com o princípio geral da igualdade citado
no art. 5º leva a falar na objetivação da Carta Magna pelo estabelecimento da igualdade
material. O que o constituinte quis expressar com a conjuntura constitucional exposta é a
obtenção do acesso, pela população, ao mínimo de bens e serviços para que se realmente
efetive a tutela da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos de nossa República
(art. 1º, inciso III)8.
Não basta prever que todos devem ter acesso aos bens e serviços mínimos para
uma existência digna, fazendo-se necessário prever mecanismos que realmente efetivem a
tutela almejada. Nesse sentido, palpável é a ideia do caráter programático da Constituição
Federal, pois estabelece diretrizes a serem seguidas não só pelo estado, mas também pela
sociedade, para a consecução das metas constitucionalmente almejadas.
Luiza Cristina Frischeisen9 bem expressa o que se abordou até agora, acerca do
conteúdo jurídico do princípio da igualdade na Constituição de 1988:
E assim, talvez possamos chegar à ideia de que o princípio da igualdade de todos perante
à lei, previsto no artigo 5º, interpretado em conjunto com o artigo 3º, inciso IV, estabelece
que a igualdade tem que ser interpretada não somente como um direito declarado perante
terceiros (a chamada igualdade formal), mas ao qual se deve ter acesso real (a chamada
igualdade material).
Por outra monta, é de bom alvitre mencionar que a Constituição atual, tal qual a
de 1967, pune condutas discriminatórias, como prescreve o art. 5º, inciso XLII, tendo-se a
prática de racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, o que
também acaba por tutelar o princípio da igualdade como um dos princípios fundamentais
de nosso ordenamento jurídico.
Por fim, cumpre analisar uma questão referente ao art. 5º de suma importância:
a possibilidade de discriminação para a efetivação do princípio da igualdade.
Surge essa discussão com base na expressão “sem distinção de qualquer natureza”,
enfocada como integrante do caput do art. 5º da Constituição.
Quanto a isso, pode-se dizer que a lei pode comportar diferenciações quando da
regulação de situações específicas, o que se exprime por um dos caracteres elementares
da sistemática do princípio em estudo no ordenamento constitucional.
8 FRISCHEISEN, L. C. F. Construção da Igualdade e o Sistema de Justiça no Brasil: alguns caminhos e
possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris. p. 40.
9 Ibid. p. 40.
79
Artigo 5
Tal fato se dá para que seja efetivada a igualdade material em situações peculiares.
Deverá se conferir um tratamento diferenciado aos envolvidos, pois nem sempre serão
integrantes de uma mesma camada social, com o mesmo poder aquisitivo e poder de
obtenção de objetivos.
Como afirma Celso Ribeiro Bastos10, o que não se permite é a utilização de critérios
subalternos revestidos de requintes de preconceito, estatuindo benefícios e privilégios em
detrimento de uma discriminação justa a que tende a lei, com base na Constituição Federal.
Assim sendo, usando o exemplo dado pelo último autor citado, a concessão do
serviço médico a quem possua o título universitário correspondente constitui-se uma
discriminação nos termos legais, baseando-se num critério único e justo, ignorando-se
outros critérios que se pautem por privilégios pessoais escusos.
Por conclusão, pode-se afirmar que o princípio da igualdade na Constituição
de 1988, no tocante ao último aspecto enfocado, firma-se na velha máxima de Rui
Barbosa profetizada em sua obra Oração aos Moços: “A igualdade constitui-se em tratar
desigualmente os desiguais à medida que se desigualam”.
3 Ações afirmativas: aspectos conceituais, objetivo e os direitos sociais
Diante do já estruturado direito à igualdade, bem regimentado em nosso sistema
jurídico, cumpre agora analisar uma medida governamental que vem sendo adotada nos últimos
anos como um plus aos desígnios mestres daquele direito, qual seja, as ações afirmativas.
Inicialmente, deve-se enfocar que as ações afirmativas surgiram num processo
de acompanhamento ao evolucionismo estatal. Antes, na sociedade liberal já citada no
presente artigo, destacava-se um estado minimamente intervencionista, que pouco interferia
na realidade econômica do país, bem como nos interesses particulares.
Nesse panorama, estabeleceu-se a crença de que a mera inserção nas constituições
do já aclamado princípio formal da igualdade levaria a uma sociedade harmoniosa11 onde,
ultrapassado o período de crise social e ética (como a escravidão), estabelecer-se-ia essa
Canaã de Milkau e Lentz, ledo engano.
As ações afirmativas, precisamente no contexto retratado, começaram a surgir
como medidas de combate a uma desigualdade propagada por um ordenamento jurídico
crente de que a igualdade formal seria a solução para todos os problemas, o que apenas
serviu de propagação mais constante da discriminação e da exclusão.
O Estado então deixou seu posto de neutralidade para adotar uma posição mais
ativa em defesa dos grupos historicamente prejudicados, como os negros e as mulheres12.
10 BASTOS, C. R. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 191.
11 GOMES, J. B. B. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. O direito como instrumento de
transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 36.
12 Ibid. p. 37.
80
O princípio da igualdade e os direitos sociais: as ações afirmativas
Diante da problemática apresentada, antes de passar à análise das ações afirmativas
em espécie e aos argumentos pró e contra essa política específica estatal, faz-se necessário
tecer uma análise, com a devida parcimônia, dos principais aspectos conceituais das ações
afirmativas, que iniciaram seu percurso no plano jurídico mundial nos Estados Unidos
da América.
Joaquim Barbosa Gomes13 é quem apresenta um quadro evolutivo muito interessante
sobre o aspecto conceitual da ação afirmativa, com base, é claro, na experiência dos norte-americanos, centro de sua análise.
As ações afirmativas, num primeiro momento, representaram uma espécie de
“encorajamento” às pessoas com poder decisório na sociedade para considerar temas
polêmicos na época, como raça, cor e sexo, quando se deparando com a problemática do
acesso à educação e ao mercado de trabalho. Ou seja, propugnava-se que tais entes com
poder decisório, instigados pelo Estado, atuassem no sentido de que as escolas e empresas
recebessem, em seus contingentes, representantes dos grupos citados com maior frequência.
No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, começaram-se a adotar medidas
mais contundentes, como a estipulação de cotas rígidas em escolas e nos estabelecimentos
representativos do mercado de trabalho, principalmente a mulheres e negros.
Finalmente, chega-se ao conceito atual, também firmado por Joaquim Barbosa
Gomes, como um conjunto de políticas públicas e privadas compulsórias ou facultativas,
com vistas ao combate à discriminação racial, corrigindo os efeitos da discriminação
passada, objetivando-se, principalmente, a igualdade de acesso a bens preciosos, como a
educação e o emprego14.
Com todo respeito que merece o ilustre e respeitável ministro do Supremo Tribunal
Federal, entendemos que seu conceito é um tanto limitado, por referir-se com ênfase ao
aspecto da discriminação racial como cerne da questão.
Para nós, o conceito apresentado por Luiza Cristina Fonseca Frischeisen15
apresenta-se como complemento eficaz ao outro conceito, por contemplar a questão
das políticas comuns de inclusão social como outro argumento de sustentação às ações
afirmativas, equiparando-se, de resto, ao ilustre jurista citado:
Entendemos as ações afirmativas como um conjunto de ações públicas, que pode ser
diretamente implementado pela legislação ou incentivado a partir de um programa
estabelecido e que visa ao rompimento de desigualdades históricas ou sociais no acesso ao
efetivo exercício de direitos, bens e serviços considerados essenciais para uma vida digna.
Desigualdades que não conseguem ser rompidas com os mecanismos tradicionais de inclusão
social, como a expansão do mercado de trabalho ou o acesso universal à saúde e à educação.
13 GOMES, J. B. B. Idem. p. 39-41.
14 Sidney Madruga ainda acrescenta o elemento saúde ao conceito (SILVA, S. P. M. da. Idem. p. 64).
15 FRISCHEISEN, L. C. F. Idem. p. 59.
81
Artigo 5
Com base no exposto, portanto, pode-se dizer que o fulcro das ações afirmativas
é permitir a verdadeira concretização dos direitos, estabelecer a devida igualdade material,
proporcionando a todos igualdade de oportunidades. Em outras palavras, enuncia que não
basta proibir a discriminação, mas promover o pluralismo estatal16 por meio de um processo
de inclusão que não fique apenas encartado nas palavras poéticas de uma Constituição.
Apresentaria o conceito de ação afirmativa uma dualidade, sendo que alguns
defendem se tratar de uma justiça distributiva, no sentido de distribuir as riquezas produzidas
e acessíveis a todos (inclusive minorias), enquanto outros afirmam tratar-se de uma justiça
compensatória ou reparatória, como uma espécie de distribuição de riquezas baseada nas
injustiças praticadas no passado contra determinados grupos, como mulheres e negros.
Do nosso ponto de vista, esta última questão permanece apenas no plano acadêmico
e filosófico, sobre o ponto de vista de qual se identificaria com as ações afirmativas, já que
as estruturas das justiças distributiva e compensatória estão presentes nos conceitos de
ação afirmativa assinalados. As políticas estatais, indubitavelmente, têm considerado ambas
as diretrizes teóricas para a justificação das políticas fixadas, sendo, a nosso ver, ilógico
pensar sobre qual justiça prepondera no conceito “ação afirmativa” quando, fatualmente,
ambos se conjugam para a aplicação da singular política social.
O que interessa asseverar, portanto, é que com as ações afirmativas busca-se
a igualdade material, o acesso aos bens necessários para uma vida digna, sendo que o
acesso a esses bens leva ao reconhecimento dos direitos sociais, indubitavelmente de todos,
triunfando a cidadania em vez do poder econômico.17
4 Principais exemplos de ações afirmativas
Considerando-se a realidade brasileira, diz-se que o programa de ações afirmativas
implementado pelo governo queda-se ainda num estágio inicial (se comparado com os
Estados Unidos da América, por exemplo), destacando-se, pontualmente, políticas nesse
sentido em áreas específicas.
As primeiras políticas nesse sentido cumprem o previsto pela Constituição Federal,
quando, em seu art. 37, inciso VII, prevê a reserva de vagas para pessoas portadoras de
deficiência em concursos públicos, previsão constitucional regulamentada pela Lei 8.112/90.
Outras políticas que seguem o estatuído constitucionalmente referem-se à
obrigatoriedade de certos conteúdos programáticos nos currículos escolares, como o
ensino da História contemplando o papel das etnias na formação da sociedade brasileira,
em atendimento ao art. 242, parágrafo 1º, da Constituição Federal.
16 GOMES, J. B. B. Idem. p. 44.
17 FRISCHEISEN, L. C. F. Idem. p. 41.
82
O princípio da igualdade e os direitos sociais: as ações afirmativas
Luiza Cristina Fonseca Frischeisen18 aponta mais dois exemplos significativos na
legislação brasileira, como as leis 8.213/91 e 9.100/96, que, respectivamente, asseguram
vagas a portadores de deficiência nas empresas com 100 ou mais empregados e preveem
o percentual mínimo de 20% a candidatas mulheres em eleições.
Ainda outros métodos referentes a ações afirmativas são observáveis,
destacando-se os seguintes:19
a) estabelecimento de preferências;
b) sistema de bônus;
c) incentivos fiscais;
d) metas (oriundas da experiência americana, mais especificamente em
universidades, referem-se à pontuação por pertencimento a grupos
desfavorecidos, buscando-se a ampliação e a permanência de tais pessoas
nos quadros educacionais);
e) concessão de bolsas de estudos e cursos preparatórios para vestibulares a
alunos negros e hipossuficientes;
f) estabelecimento de programas de estágio e capacitação profissional aos jovens;
g) ampliação do financiamento estudantil;
h) contratação e promoção de trabalhadores não só com base na capacitação
profissional, como também levando-se em conta os aspectos étnicos e raciais;
i) reserva de cotas a atores negros em publicidade e programas televisivos20.
Outrossim, indubitavelmente o principal mecanismo estatal de ação afirmativa
implementado pelo governo brasileiro é o sistema de cotas em universidades, privilegiando
grupos minoritários. Nesse âmbito da atuação estatal, destacam-se inúmeros programas, a saber.21
a) ProUni (Programa Universidade para todos);
b) Uniafro (para afro-brasileiros);
c) Incluir (para pessoas com deficiência);
d)Reconhecer;
e) Prolind ( para a população indígena);
f) PEC-G (Programa Estudante Convênio de Graduação);
g) Fies (Financiamento ao Estudante de Ensino Superior);
h) Celpe-Bras (Certificado de Proficiência da Língua Portuguesa para
Estrangeiros);
18 Ibid. p. 70.
19 SILVA, S. P. M. da. Idem. p. 222-223.
20 FRISCHEISEN, L. C. F. Idem. p. 72.
21 VIEIRA, F. B.. As Ações Afirmativas para o Ensino Superior e o Princípio Constitucional da Igualdade.
2008. 296f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico). Universidade Presbiteriana Mackenzie, São
Paulo, 2008. p. 165-167.
83
Artigo 5
i) ProExt (Programa de Apoio à Extensão Universitária);
j) Pet (Programa de Educação Tutorial);
k) Napro (Núcleo de Atividades do Projeto Rondon);
l) PROMISAES (Projeto Milton Santos);
m) Ima (Instituto Machado de Assis);
n) Colip (Comissão de Língua Portuguesa);
o) Portal do Mundo Acadêmico;
p) PingIFES (Plataforma de Integração de dados da IFES);
q) Plano Nacional de Extensão;
r) Portal Mundo Acadêmico;
s) Prodocência (Programa de Consolidação das Licenciaturas).
De forma geral, tratam-se de programas estatais para possibilitar o acesso a
universidades e incentivar a pesquisa científica, formando cidadãos mais capacitados
ao mercado de trabalho, só que oriundos de classes que alguns chamam de “excluídas
historicamente”, como índios e negros.
Tais programas privilegiam os indivíduos hipossuficientes em nossa sociedade,
sendo o maior exemplo os jovens, dos quais cada vez mais se exigem requisitos culturais
e profissionais para ter acesso ao mercado de trabalho. Nesse sentido, as políticas
governamentais resgatam o conceito de ação afirmativa como apoio a grupos minoritários
desfavorecidos, não se restringindo a questões de discriminação racial.
Apesar das várias políticas governamentais brasileiras no sentido de implementação
de ações afirmativas, nosso país ainda está engatinhando em termos de desenvolvimento
dessas políticas.
As ações afirmativas constituem um problema antigo aos norte-americanos,
que hoje são o maior expoente na aplicação de tais políticas. Essas ações já haviam sido
pensadas por Franklin Delano Roosevelt e John Kennedy, porém foram implementadas
com maiores raízes por Lyndon Johnson, no auge dos anos 1960.
Com o int uito de proporcionar mel hor sit uação aos desfavorecidos,
verificam-se políticas estatais agressivas, como o modelo spending clause, havendo
dispêndio de recursos públicos às causas de interesse coletivo, numa atuação em que o
Estado, visando à antidiscriminação e ao acesso aos bens pelos grupos desfavorecidos,
atua induzindo o particular para o alcance desse objetivo, cujo maior exemplo é
o Decreto Executivo 11246/65. Por meio deste, o presidente Johnson estabeleceu
que a celebração de contrato com a administração obriga o particular a contratar
representantes das minorias em certo percentual, devendo, ainda, oferecer condições
para a progressão na carreira 22.
22 GOMES, J. B. B.. Idem. p53-54.
84
O princípio da igualdade e os direitos sociais: as ações afirmativas
Dessa forma, com uma experiência de mais de 40 anos, resta claro que o processo
norte-americano destaca-se como mais eficaz que o nosso, implementado por processos
mais básicos que os dos nossos irmãos do norte apenas nos últimos anos, sendo razoável,
portanto, não se exigir demais de tais políticas, sabendo-se que o tempo é o melhor
remédio para isso.23
5 Argumentos favoráveis e contrários às ações afirmativas
O tema ações afirmativas dispende inúmeras reflexões tanto daqueles que se
colocam a favor da realidade que, em tese, elas desejariam implementar, como dos que
veem nelas mecanismos de aprofundamento das mazelas sociais.
Com o escopo de auferir os principais argumentos apresentados por ambos os
lados, no presente item se fará uma análise o mais sucinta possível dos prós e contras
citados, como forma de melhor compreensão do fenômeno da ação afirmativa, podendo
o leitor tirar suas conclusões a partir do que em seguida será exposto.
Têm-se como principais argumentos de amparo às ações afirmativas os seguintes
pensamentos:24
a) as ações afirmativas não violam o princípio da igualdade: em nome do princípio
da igualdade material, seria possível a utilização das discriminações positivas;
b) as ações afirmativas podem conviver com o sistema meritocrático: o aspecto de
preparo do indivíduo não pode ser desconsiderado, mas deve ser harmonizado
junto a outros critérios, como a vida pregressa de um cidadão e sua capacidade
intelectual. Muitas vezes, pessoas inteligentes não conseguem prosseguir no
caminho universitário devido às condições sociais a que estão submetidas.
Assim, considera-se, de um lado, os méritos acadêmicos, como também o
lado pessoal do indivíduo, o que se auferiria por um exame específico de
inteligência;
c) as ações afirmativas foram fomentadas para combater a discriminação racial,
não se cogitando em atuação inversa no sentido de reforçar essa discriminação:
os preconceitos estão enraizados e continuam se desenvolvendo na sociedade,
independentemente ou não da atuação das ações afirmativas;
d) as ações afirmativas não podem ser alheias à questão da cor: as políticas
estatais de inclusão, mas de caráter neutro, não são efetivas no combate à
“exclusão” dos grupos historicamente ignorados, sendo a atuação focada
23 Infelizmente, no caso brasileiro, deve-se priorizar a ação temporal para a resolução dos problemas procedimentais
das ações afirmativas, pois é tradicional de nossa cultura a acomodação política e a sonolência da leitura crítica da
turbe, que aqui se aguça apenas de tempos em tempos, dependendo dos acontecimentos sociais que possam vir a
ocorrer.
24 SILVA, S, P. M. da. Idem. p. 210-222.
85
Artigo 5
na questão racial, por exemplo, essencial para a consecução da almejada
igualdade de oportunidades a todos.
Por outro lado, há argumentos desfavoráveis às ações afirmativas, a saber25:
a) as ações afirmativas violam o princípio da igualdade e proporcionam o
surgimento da discriminação reversa: privilegiam determinados grupos em
detrimento da sociedade como um todo, sendo essa discriminação reversa no
sentido de prejudicar os demais, não atingidos pelos benefícios. Somandose a isso, não se poderia prejudicar as gerações atuais pelos erros de seus
antepassados;
b) as ações afirmativas ignoram o sistema meritocrático: dar-se-ia preferência à
cor do indivíduo, por exemplo, em detrimento de suas capacidades intelectuais;
c) as ações afirmativas contribuem para o aumento da discriminação e do
preconceito racial: as pessoas “excluídas” do sistema de auxílio governamental
sentir-se-iam vítimas da situação, voltando sua revolta aos beneficiados.
A quotização é mais uma afirmação de discriminação do que uma solução ao problema.
Da mesma forma, no que se refere aos negros, o processo de quotas pode ser uma tentativa
de compensação da culpa histórica pela barbárie da escravização de uma raça, mas só
consolida o tratamento discriminatório. É necessário que os legisladores e julgadores
encontrem formas que realmente respeitem o direito natural das minorias de não
serem discriminadas, a partir do tratamento equivalente de todos, e não do tratamento
diferenciado26.
d) as ações afirmativas desrespeitam a tradição do color-blind: a lei deve
ser aplicada a todos, independentemente da cor do indivíduo (argumento
surgido, propriamente, nos Estados Unidos da América), não se admitindo
discriminações com base em critérios raciais. A meritocracia deve ser o
norte da sociedade.
Com base no exposto, pode-se dizer que existem diversos pontos de vista abordando
a possibilidade de implemento ou não das ações afirmativas, sendo que o intuito de expor
tais argumentos neste artigo é demonstrar o quão complexa é a questão, conforme se pode
notar pela fundamentação dada pelas correntes citadas.
De outra forma, essa exposição é assaz importante como requisito prévio para
melhor entender os conceitos anteriormente elucidados, fomentando-se um cabedal de
conhecimento apto a averiguar se as ações afirmativas implementadas pelo governo nacional
têm ou não encarnado o espírito da Constituição de 1988, tanto no sentido de correlação
estritamente normativa como no âmbito dos princípios norteadores.
25 SILVA, S. P. M. da. Idem. p. 208-210.
26 MENDONÇA, J. de S. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 143.
86
O princípio da igualdade e os direitos sociais: as ações afirmativas
Considerações finais
Observando-se de forma contundente e clara as políticas do governo brasileiro
no sentido de implementação das ações afirmativas, pode-se dizer que as medidas práticas
adotadas se encontram em consonância com a Constituição Federal de 1988. Tal consonância
deve ser verificada tanto em âmbito normativo como principiológico.
No normativo, pode-se dizer que o implemento das específicas políticas públicas
aqui estudadas se valem, para o seu desenvolvimento, de uma espécie de abertura
constitucional, proporcionada por artigos específicos.
O art. 37, inciso VII, da Constituição Federal, quando permite a reserva de
vagas em concursos públicos para portadores de deficiência, revela-se como um preceito
constitucional que fornece respaldo às ações afirmativas, já que a essência da aplicação
daquele dispositivo confunde-se com o objetivo primordial dessas ações, qual seja: permitir
o acesso aos bens e às riquezas produzidos pela sociedade aos grupos minoritários, ou
normalmente afastados da “bonança” social.
Dessa forma, se existe um dispositivo constitucional com esses caracteres, ao
nosso ponto de vista não há o que se falar em impedimentos ao implemento de políticas
públicas como as ações afirmativas, pois o espírito constitucional se revela na essência de
cada norma individual e, sabendo-se que a essência do dispositivo retrocitado opta a favor
das ações afirmativas, são possíveis novas medidas legislativas e políticas nesse sentido,
já que o espírito constitucional norteia todo o sistema jurídico.
Do ponto de vista principiológico, as ações afirmativas também se ajustam ao
predisposto constitucionalmente.
O princípio da igualdade, já retratado como expresso no art. 5º da Constituição
Federal, segue, ao nosso ponto de vista, sem ser violado pelas ações afirmativas.
Aquele princípio, que tem como uma de suas facetas tratar desigualmente os
desiguais à medida que se desigualam, é observado, pois o acesso mais contundente
àqueles que historicamente foram prejudicados na distribuição das riquezas respeita seu
cerne, suas raízes no sentido apresentado.
Os negros, as mulheres e os índios, grupos que não foram totalmente respeitados no
desenvolvimento de nossa sociedade, têm direito a essas políticas, no sentido de ter acesso
aos bens e riquezas ou, em outras palavras, aos direitos sociais, pois apesar da evolução
da mentalidade humana, nossa sociedade ainda mantém enraizada matizes patriarcais.
De outra monta, o art. 3º da Constituição Federal, incisos III e IV, determina
que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é a construção de uma sociedade
onde impere o bem de todos, com a redução das desigualdades sociais e regionais, algo a
que as ações afirmativas também respeitam.
87
Artigo 5
Com relação ao último tópico apresentado, as ações afirmativas, de uma forma ou
de outra, primam por tentar obstaculizar as desigualdades sociais, já que a inserção de grupos
desfavorecidos no âmago da sociedade em termos intelectuais e profissionais revela-se como
uma forma de maior equalização entre os cidadãos dos diferentes grupos sociais.
Por consequência, é possível dizer que, em termos constitucionais, as ações
afirmativas, como vêm sendo aplicadas pelo Governo Federal, coadunam-se com a
Constituição Federal, tanto em termos normativos como principiológicos. Contudo, é
bom asseverar que alguns cuidados ainda devem ser tomados.
Queiram ou não, as ações afirmativas, conforme implantadas no país, contribuem
para o aumento do preconceito racial, como se advertiu anteriormente.
No Brasil, principalmente no âmbito das universidades, é muito comum verificar
desdém e críticas um tanto ácidas daqueles que não tiveram acesso à universidade por
perderem a vaga para um cotista, quando este não tem o mesmo preparo intelectual daquele.
Aí está outro ponto da questão: as ações afirmativas não podem se prestar para
a construção de uma sociedade de incompetentes, o que, mais cedo ou mais tarde, será
dramático para o desenvolvimento político, econômico e social do país.
Muitas vezes, aqueles que se beneficiam de ações afirmativas (e isso é visível nas
universidades alvo dessas políticas) não possuem preparo técnico e intelectual suficientes
para estar onde estão. Muitos desses beneficiados são analfabetos funcionais ou possuem
conhecimentos técnicos discutíveis, e estão em instituições de ensino superior cursando
uma faculdade ou lecionado em alguma escola pública.
Em virtude disso, pode-se asseverar, retomando Celso Antônio Bandeira de
Mello27, que o princípio da igualdade resta violado quando se verifica que “(...) o fator
diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência
lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento
do gravame imposto”. Em outras palavras, agride-se a igualdade quando o fator dito
diferencial não guarda conexão com o objetivo do nascedouro, qual seja, proporcionar
inclusão a quem assim mereça.
As ações afirmativas, que seguem o estabelecido constitucionalmente, devem
formar uma sociedade mais equânime e justa, não podendo prestar como atalho a
oportunistas despreparados, visando a objetivos que muitos perseguem e não conseguem
porque não pertencem ao grupo dos “excluídos”.
Nesse sentido, verifica-se um erro crasso do governo ao implementar as ações
afirmativas no Brasil: antes de dar início a essas políticas, o governo deveria preocupadar-se
em melhorar o ensino público fundamental e médio.
27 MELLO, C. A. B. de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1984. p. 49.
88
Uma política pública universalizante, capaz de transformar o ensino público
fundamental e médio num espaço de formação de cidadãos com pleno conhecimento
científico e cívico, é o alicerce mais importante para o bom desenvolvimento das ações
afirmativas.
Com todas as pessoas ou grande percentagem da população recebendo ensino
básico e médio do mesmo nível (deve-se buscar um nível idêntico ou próximo entre escola
pública e privada), é que se podem aplicar as ações afirmativas e obter êxito maior nos
resultados almejados, já que serão significativamente maiores as chances de formar uma
sociedade mais preparada, para que o Brasil desponte no cenário mundial; diferente de
uma sociedade que só oferece oportunidades a produtos de um estado paternalista (como
vem sendo o brasileiro), que privilegia os históricos “coitadinhos” e despreparados, em
detrimento de muitos que passam madrugadas estudando com a ajuda financeira dos pais
para não conseguirem, sequer, ingressar numa universidade de respeito.
As ações afirmativas funcionaram nos Estados Unidos da América porque lá,
se comparado com o nosso país, o ensino básico e médio sempre foram infinitamente
superiores, privilegiando a cultura cívica como norte do ensino, algo completamente
desconhecido no ensino brasileiro.
Não é à toa que nos Estados Unidos se verifica o seguinte quadro, como aborda
Luiza Cristina Fonseca Frischeisen 28 (2007 apud ANDREWS, 1997, p. 138):
Entre 1960 e 1990, a porcentagem da população negra empregada em posições de
“colarinho branco” evoluiu de 12% para 30% entre os homens, e de 18% para 58% entre as
mulheres, uma taxa muito mais elevada do que para os brancos. A porcentagem dos adultos
jovens – de 25 anos até 35 – com formação universitária também cresceu mais rapidamente
entre a população negra, de 5% em 1960 para 13% em 1990. Em consequência desses
avanços, a proporção das famílias negras com salários superiores a US$ 35 mil (em dólares
constantes de 1990) cresceu de 24% em 1970 para 30% em 1990.
Enfim, deve-se dizer que as ações afirmativas implementadas pelo Governo
Federal, de forma geral, seguem as diretrizes constitucionais, e, apesar das críticas feitas,
quando bem realizadas, como no caso dos Estados Unidos da América, proporcionam
bons resultados a longo prazo.
Infelizmente, o preconceito existe, e as ações afirmativas servem de meio político
para evitar que os defeitos de caráter social impeçam muitos capacitados de terem acesso
aos bens sociais (aos direitos sociais).
Indubitavelmente, as ações afirmativas gozam de certa incredulidade por muitos
em nossa sociedade, mas constituem meio atual de combate à falta de acesso aos bens e
riquezas por certos grupos.
28 FRISCHEISEN, L. C. F. Idem. p. 68-69.
89
Artigo 5
Apenas quando o homem mudar sua mentalidade, no sentido de pensar a
humanidade como uma só, medidas como essa serão desnecessárias, inclusive fazendo
sentido nesse contexto certo pensamento do nobre Napoleão, que desde 1821 tentava
atravessar o Aqueronte, negociando com Caronte, quando o libertário afirmou que “o
homem luta com mais bravura pelos interesses do que pelos direitos”, algo que deve ser
considerado pelos que negligenciam completamente as ações afirmativas.
Enquanto isso não acontece, utilizemo-nos delas, mas sempre com racionalidade
e bom senso, para evitar a propagação de uma injustiça social, mas contra quem possui
preparo técnico e permanece marginal às conquistas sociais.
Referências
BASTOS, C. R. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
FRISCHEISEN, L. C. F. Construção da igualdade e o sistema de justiça no Brasil:
alguns caminhos e possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
GOMES, J. B. B. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade. O direito
como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001.
MELLO, C. A. B. de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1984.
MENDONÇA, J. de S. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Saraiva, 2002.
SILVA, S. P. M. da. Discriminação positiva: ações afirmativas na realidade brasileira.
Brasília: Brasília Jurídica, 2005.
VIEIRA, F. B. As ações afirmativas para o ensino superior e o princípio constitucional
da igualdade. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico). Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.
90
DA INAPLICABILIDADE
EXEGÉTICA QUANTO À
FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Francisco Luiz Fernandes1
Introdução. 1 Histórico. 2 As normas secundárias de ações afirmativas em relação
à mulher. 2.1 Mulher e o novo código civil. 2.1.1 Da igualdade de direitos e
deveres entre os cônjuges. 2.1.2 A adoção do sobrenome: direito de ambos os
cônjuges. 2.1.3 Chefia da sociedade conjugal. 2.1.4 Subsistência da família: dever
de ambos os cônjuges. 2.1.5 A substituição do pátrio poder pelo poder familiar.
2.2 As afirmações positivas mais vantajosas para as mulheres à luz da CLT. 2.2.1
A forma isonômica de proteção às mulheres como fundamento da proteção em
relação ao trabalho da mulher quanto ao gênero. 2.2.2. Proteção especial. 2.2.3
Proteção à maternidade. 2.2.4 Aborto não criminoso. 2.2.5 Pagamento antecipado
do auxílio-maternidade. 2.2.6 Alteração ou extinção do contrato de trabalho por
iniciativa da gestante. 2.2.7 Amamentação. 2.2.8 Salário. 2.2.9 Trabalhos proibidos.
2.2.10 Métodos e locais de trabalho. 2.3 A proteção específica mais vantajosa
para as mulheres à luz do CPC. 2.4 Ações afirmativas positivando desigualdades
entre homens e mulheres à luz da legislação previdenciária. 2.5 Especificidade
conflitante entre a Lei Maria da Penha e o princípio constitucional disposto do inciso
I do art. 5º da Constituição Federal. 3 Isonomia formal e material. 4 Definição de
norma constitucional e inconstitucional. 5 Da inaplicabilidade exegética quanto
à formalidade contida no inciso I do art. 5º da Constituição federal. Referências.
1 Graduado em Direito pela CUMSB (Centro Universitário Moacyr Sreder Bastos/RJ); graduado em Administração
de Empresas pela FIS (Faculdades Integradas Simonsen/RJ); pós-graduado pela PUC-MG em Direito Processual;
mestre em Direitos Sociais e Cidadania (UNISAL - Lorena, SP); advogado (licenciado); professor universitário;
servidor público do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). E-mail: [email protected]
91
Artigo 6
Resumo
O presente trabalho científico pretende analisar o confronto entre os conceitos “isonomia”
e “igualdade”, derivado da interpretação do princípio disposto no art. 5º, inciso I, prescrito
na Carta Constitucional de 1988. Procura-se, à luz da Constituição Federal, demonstrar
que o referido princípio, quanto à sua formalidade, é inaplicável, face em que, se assim o
fosse, as mulheres passariam a ser tratadas desigualmente em relação às suas características
fisiológicas. Discute-se o motivo pelo qual se afirma que o legislador brasileiro privilegiou
tratamento isonômico, mas não igualitário, entre homens e mulheres. Contudo, a significação
da isonomia proposta no presente trabalho objetiva, sobretudo, a equiparação material
e formal do sexo feminino com o sexo masculino, independentemente das divergências
que, em relação ao gênero, só com normas extravagantes respaldadas pela constituição
serão equiparáveis.
Palavras-chave: princípio constitucional, igualdade formal entre homens e mulheres,
ações afirmativas, aplicabilidade normativa.
Resumen
El presente trabajo científico pretende analizar el confronto entre los conceptos “isonomía”
e “igualdad” que derivada de la interpretación del principio dispuesto en el Artículo
5º, inciso I, prescrito en la Carta Constitucional de 1988. Se procura, a la luz de lo
establecido en la constitución Federal, demostrar que el referido principio, en cuanto a su
formalidad, es inaplicable, debido a que, si así lo fuese, las mujeres pasarían a ser tratadas
desigualmente en relación a sus características fisiológicas. Se discute el motivo por el
cual se afirma que el legislador brasileño privilegió el tratamiento isonómico, pero no
igualitario entre hombres y mujeres. Así, la significación de la isonomía propuesta en
el presente trabajo objetiva, fundamentalmente, la equiparación material y formal del
sexo femenino con el sexo masculino, independientemente de las divergencias que, en
relación al género, solamente con normas extravagantes respaldadas por la Constitución
Federal serán equiparables.
Palabras-clave: principio constitucional, igualdad formal entre hombres y mujeres, acciones
afirmativas, aplicabilidad normativa.
Introdução
A Constituição Federal de 1988 estampou a proteção em relação às desigualdades
entre homens e mulheres que ainda existiam à época, e talvez a justificativa mais louvável fosse
porque em recenseamento na época da promulgação da Constituição de 1988, constatou-se
que a expectativa de vida máxima das mulheres era de 60 (sessenta) anos de idade, enquanto
92
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
que para os homens era de 65 (sessenta e cinco) anos de idade, ou seja, achava-se que as
mulheres viveriam menos que os homens, levando-se em conta a carga laborativa imposta.
Atualmente essa diferenciação não mais traduz a realidade e fere os artigos 3º
e 5º da Constituição Federal de 1988, as chamadas normas pétreas, não fazendo mais
sentido em face do princípio da igualdade.
Pelas legislações secundárias ainda se privilegia a mulher causando não mais ações
afirmativas, e sim, discriminações positivas que confrontam com os ditames contidos no
inciso I do art. 5º da CF/88, trazendo prejuízo à mulher e à aplicação dogmática da regra.
O conceito de igualdade, ao longo da história, sempre provocou posições extremadas.
No que concerne à isonomia, há, basicamente, três orientações: a) dos nominalistas; b) dos
idealistas; c) dos realistas. Sustentam os nominalistas que a desigualdade é uma característica
do universo. Sob essa ótica, os seres humanos nascem e permanecem sempre desiguais. A
igualdade não passa de um mero nome, já que, por natureza, o homem é sempre desigual.
Platão e Aristóteles, por exemplo, eram nominalistas e consideravam o estatuto da escravidão
como algo natural. De outro lado, há a orientação daqueles que são chamados de idealistas.
Pretendem uma isonomia absoluta, isto é, uma plenitude de igualdade entre os diversos
seres humanos. Quanto aos realistas, propõem promover tratamento isonômico às partes;
significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas
desigualdades.2 A igualdade jurídica não pode eliminar a desigualdade econômica, e é por
essa razão que na conceituação realista de isonomia, busca-se a igualdade proporcional; essa
igualdade conferida às partes trata a todos como “igual”, sem separar o rico do necessitado, o
branco do negro. Não é a mesma igualdade daquela justiça que quer ser justa, mas reconhece
e respeita as diferenças para tratá-las diferentemente.
A Constituição Federal Brasileira prevê o princípio da igualdade em seu art. 5º,
caput. Registre-se que em outros preceptivos a Constituição volta a destacar o princípio
da isonomia, como nos arts. 3º, III, 5º, I, 150, II e 226, § 5º. De qualquer sorte, bastaria o
art. 5º, caput, da CF, para restar consagrado entre nós o princípio da isonomia. Na verdade,
a repetição do princípio da igualdade em outros preceitos constitucionais, ainda que com
roupagem própria, atesta a importância que a Constituinte conferiu a este princípio. Bastaria,
por exemplo, a regra geral da isonomia, prevista no art. 5º, caput, da Carta Magna, para
que se chegasse à conclusão de que os direitos decorrentes da sociedade conjugal devem
ser exercidos em igualdade de condições pelos cônjuges.
1 Histórico
Na Lei de Hamurabi, a mulher detinha o próprio dote. Se o marido estivesse
impossibilitado de administrar os bens do casal, a mulher poderia fazê-lo. O casamento
2 Rui Barbosa.
93
Artigo 6
já se realizava sob forma de contrato, concedendo direitos e deveres a ambos os cônjuges.
Os maridos, sem justo motivo, não poderiam repudiar as mulheres.
A mulher judia tinha posição de absoluta inferioridade em relação ao homem, não
obstante as Leis de Moisés colocassem-na no mesmo plano, aduzindo que “o matrimônio
é a unidade espiritual e corporal do homem e da mulher, como Deus ordenou”.
Na Grécia, os espartanos viam nelas apenas a origem de uma raça forte e educavamnas com o objetivo de ter filhos belos e sadios. Os atenienses dividiam-nas em classes,
mantendo a esposa legítima quase em clausura e instruindo as que se destinavam a ser
cortesãs.
Na Lei de Manu, a mulher era venerada e inclusive fazia parte da norma o
seguinte verbete: “não se bate em uma mulher nem com uma flor, qualquer que seja a
falta por ela cometida”.3
A habilidade da mulher, entretanto, fez com que se destacasse em algumas
atividades (seda de Milão, veludos de Florença). Continuava, não obstante seu
reconhecimento, a grande exploração de seu trabalho.
Se essa era a situação do mundo civilizado, no continente americano, entre
os indígenas, especialmente entre os incas, a mulher também não passava de escrava
incumbida de árduas atividades (transportar cargas, cortar lenha, fazer tecidos e os
rudimentares calçados).
Evoluindo no sistema econômico, gradativamente a mulher recebeu novas
ocupações, passando a colaborar para a manutenção do lar com a fabricação de tecidos e
pequenos objetos que serviam de instrumento de troca por outras utilidades.
É sabido e notório que a industrialização revolucionou toda a economia nos países
de cortesões e camponeses. Em 1814, um inquérito realizado pelo governo inglês comprovou
que a jornada de trabalho era de 16 horas, os salários não davam para o sustento diário do
proletário e as crianças de 5 e 6 anos já trabalhavam nas fábricas.
Em 1906, finalmente foi elaborado em Berna o primeiro projeto de convenção
internacional proibindo o trabalho das mulheres à noite, na indústria. Não se concretizou,
entretanto, como legislação.
Mais de 50 anos depois, apesar de tudo e de participar ativamente no
desenvolvimento da humanidade, a mulher continua a ter seu trabalho explorado, mesmo
nos Estados Unidos, onde conquistou tantos direitos.
O Tratado de Versalhes de 1919, em que foi criada a OIT (Organização Internacional
do Trabalho), trouxe em seu capítulo 13 a proteção da mulher no mercado de trabalho.
Em nosso país, até 1932 não havia proteção especial ao trabalho feminino.
No entanto, se aos homens o Estado negava proteção, em relação ao trabalho feminino
3 WOLKMER, A. C. Fundamentos de História do Direito. Del Rey, 1996.
94
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
havia o mais absoluto desprezo. Com a Revolução de 1930 abriu-se uma nova era para os
trabalhadores brasileiros. O problema do trabalho feminino foi estudado pelo ministro
Lindolfo Collor. Foi expedido o Decreto nº 24.417-A, de 17 de maio de 1932, primeira lei
que cuidou da situação da mulher trabalhadora.
A Declaração Universal de 1948 trouxe em seu bojo a vedação expressa sobre
discriminação sexual no mercado de trabalho.
Mas nas Constituições brasileiras a evolução foi patente. A CF Imperial de 1824
ignorava a presença da mulher em qualquer atividade social: não votava, não trabalhava,
não estudava. A CF de 1891 mantinha os ditames da CF de 1824. Foi nesta que ocorreram
os primeiros passos em relação à igualdade das mulheres: proibia salários desiguais, vedou
o trabalho da mulher em local insalubre e incorporou no texto a licença-maternidade. A
Carta de 1946 manteve as conquistas da Carta de 1934 e acrescentou o descanso antes e
depois do parto e a assistência sanitária. A Carta de 1967, embora sob a égide da ditadura
militar, manteve as conquistas anteriores e criou a aposentadoria aos 30 (trinta) anos de
trabalho instituída pela EC 01/69, chegando à Constituição Democrática de 1988, que
abordaremos em capítulo específico.
2 As normas secundárias de ações afirmativas em relação à mulher
2.1 Mulher e o novo código civil
Sob a ótica do cidadão comum, constata-se que a igualdade apregoada pela
Constituição não pode ser levada às últimas consequências, de modo a pretender esconder
o que separa biológica, psicológica e materialmente o homem da mulher. Diferenças há,
e inapagáveis, tanto que a própria Carta Política estabeleceu distinções, tal como quando
estabeleceu menor tempo de serviço para a aposentadoria da mulher.
Atuando nas diversas searas criam-se alterações da seguinte forma: considerando
a expressão “família legítima”, os termos “família” ou “entidade familiar” serão usados
para indicar a união por casamento civil ou religioso, união estável ou comunidade formada
por qualquer um dos pais e seus descendentes (mãe solteira, por exemplo); o casamento
passa a figurar como comunhão entre os cônjuges, o Estado e a família; o Estado não
pode interferir em decisões de casais, exceto em caso de proteção e para garantir recursos
educacionais e sociais; o casamento religioso terá efeitos civis; ao casamento gratuito terão
direito pessoas declaradamente pobres; o marido poderá usar o sobrenome da mulher; a
exemplo de igualdade, o termo “homem”, do atual código, será substituído por “pessoa”;
o marido não poderá mais alegar “defloramento da mulher” para anular casamento; o
adultério é motivo para separação do casal, mas não impede novo casamento; um filho
pode ser emancipado pela mãe ou pelo pai; a guarda dos filhos será de quem tiver melhores
condições; fica abolida a expressão “filho legítimo” e não se menciona mais a filiação;
os adotados terão os mesmos direitos dos legítimos; o regime de bens, antes inalterado,
95
Artigo 6
poderá ser mudado no decorrer do casamento; nenhum dos cônjuges poderá prestar fiança
ou aval sem autorização do outro; qualquer dívida deixada por um dos cônjuges não
será mais transferida ao outro e aos filhos; qualquer um dos cônjuges pode pedir pensão
alimentícia, o que vale para o casamento estável e também para o concubinato; o parentesco
fica limitado ao quarto grau o atual código é até o sexto grau); a relação de duas pessoas
casadas e ainda não divorciadas que vivem juntas passa a denominar-se união estável; o
companheiro participa da sucessão do outro, exceto quando não houver união estável; o
cônjuge passa a figurar em igualdade com os descendentes da pessoa falecida, no caso de
distribuição de herança. Além disso, reduz de cinco para dois o número de testemunhas
para a realização do testamento.
A igualdade formal prescrita no artigo 5º da CF/88, “igualdade de todos perante
a lei”, é a que mais imediatamente interessa ao trabalho. Ela seria a identidade de direitos
e deveres concedidos aos membros da coletividade por meio dos textos legais.
O novo Código substitui a palavra homem por pessoa, e assim, sucessivamente,
em todo o Código, para que se retire definitivamente deste toda e qualquer possibilidade
de vantagem masculina nas relações jurídicas, seguindo o princípio da isonomia declarado
pela Carta Magna de 1988.
A personalidade é reconhecida num sentido de universalidade no novo Código,
pois quando emprega o termo pessoa na acepção de todo ser humano, quer dizer que não
há distinções de sexo, idade, credo ou raça, em consonância com a Constituição Federal,
artigos 1º, inciso III, 3º, inciso IV, 5º, incisos I, VI, XLI, XLII, e 19, inciso I.
2.1.1 Da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges
O princípio da isonomia entre os cônjuges, que desde 1988 é consagrado pela
Constituição Federal por meio do artigo 226, parágrafo quinto, vem também inserido
no Novo Código Civil, da maneira como sempre foi requerido pelas mulheres em suas
constantes lutas pela igualdade de direitos e deveres.
Artigo 1.511 – O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de
direitos e deveres dos cônjuges. (Novo Código Civil) (grifos nossos)
2.1.2 A adoção do sobrenome: direito de ambos os cônjuges
O Novo Código Civil traz no bojo do parágrafo primeiro do seu artigo 1.565
que qualquer dos cônjuges poderá acrescer ao seu nome o sobrenome do outro, aplicando
mais uma vez o princípio da isonomia, igualando os direitos dos cônjuges. Assim, tanto
o homem pode adotar o sobrenome da mulher, quanto a mulher acrescer ao seu nome
o sobrenome do marido. A tradição de nosso direito matrimonial impunha-se de forma
diversa. Por se tratar de uma família patriarcal, a regra era a esposa adotar o patronímico
do marido, pois ingressava na família do homem que desposava.
96
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
O novo código veio para igualar os direitos dos cônjuges dentro da vida conjugal.
Note-se que o preceito traz uma faculdade a qualquer dos nubentes, podendo estes conservar
seus nomes de solteiros, mas tendo a faculdade de acrescer aos próprios os apelidos do
consorte.
2.1.3 Chefia da sociedade conjugal
O exercício dos direitos e deveres conjugais pertence igualmente a ambos os
cônjuges, pois lhes foi conferido conjuntamente o exercício da direção da sociedade conjugal,
não colocando qualquer dos cônjuges em posição inferior, preocupando-se somente em
harmonizar os interesses comuns da família.
Artigo 1.567 – A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo
marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.
Parágrafo único – havendo divergências, qualquer dos cônjuges poderá recorrer ao juiz,
que decidirá tendo em consideração aqueles interesses. (g. n.)
Portanto, o novo Código Civil, ao outorgar à esposa o direito de decidir
conjuntamente com o marido sobre as questões essenciais, substituindo o poder decisório
do marido pela autoridade conjunta dos cônjuges, veio instaurar efetivamente a isonomia
conjugal tanto nos direitos e deveres do marido e da mulher, como no exercício dos direitos.
2.1.4 Subsistência da família: dever de ambos os cônjuges
Assim, o dever de sustento cabe a ambos os cônjuges, que serão obrigados a
contribuir para as despesas feitas no interesse do casal e dos filhos na proporção dos
recursos e rendimentos de cada um. “Os cônjuges têm a obrigação de contribuir na
proporção de seus bens e do rendimento ou produto do trabalho para o sustento da família
e educação da prole.”4
Com o advento do Estatuto da Mulher Casada, em caso de culpa de ambos os
cônjuges, os filhos deveriam ficar com a mãe, salvo se o juiz verificasse que de tal solução
poderiam advir prejuízos para as crianças, principalmente de ordem moral. Tal preceito
prevaleceu até a vigência do Novo Código Civil, que trouxe no bojo do artigo 1.584, mais
uma vez utilizando-se do princípio constitucional da isonomia entre os cônjuges, que
na hipótese acima referida, a guarda dos filhos será atribuída a quem revelar melhores
condições para exercê-la.
Artigo 1.584 – Decretada a separação ou o divórcio, sem que haja entre as partes acordo
quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições de exercê-la.
4 DINIZ, M. H. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 5. p. 136.
97
Artigo 6
Parágrafo único – Verificando que os filhos não devem permanecer sob a guarda do pai ou
da mãe, o juiz deferirá sua guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da
medida, de preferência levando em conta o grau de parentesco e a afinidade e afetividade,
de acordo com o disposto na lei específica.(Código Civil de 2002) (g.n.)
2.1.5 A substituição do “pátrio poder” pelo “poder familiar”
Como podemos observar, o Novo Código Civil, principalmente na área do
direito de família, muito se respaldou na Constituição Federal, pois mais uma vez atendeu
aos princípios constitucionais, interagindo para que haja mais equilíbrio entre os cônjuges
na relação familiar, protegendo mais os filhos. Para tanto, estabelece, em lugar do pátrio
poder, o poder familiar, conferido conjuntamente ao pai e à mãe. Poder familiar é uma
expressão mais adequada, visto que os pais o têm em função dos interesses do casal e da
prole. Todavia, há quem ache preferível a locução poder parental, por ser prerrogativa
dos genitores e não da família.
Assim, os cônjuges possuem igualdade de condições e o mesmo poder decisório
sobre a pessoa e os bens dos filhos menores e não emancipados.
Portanto, o poder que os pais exercem sobre seus filhos procede daquele dever, que lhes
é imposto, de cuidar de sua descendência durante a condição imperfeita da infância.”5
O poder familiar encontra-se disposto no Capítulo V, do Subtítulo II – Relações
de Parentesco, do Título I – Do Direito Pessoal, do Livro IV – Do Direito de Família, do
Novo Código Civil, ou seja, do artigo 1.630 a 1.638.
Não há mais a prevalência do pai sobre a prole, ficando igualado o direito aos cônjuges de
administrarem a vida dos filhos menores, modificando o preceito do artigo 379 e seguintes
do Código Civil de 1.916.
2.2 As afirmações positivas mais vantajosas para as mulheres à luz da CLT
Elencam-se no art. 373-A e seus incisos I ao VI as proibições em face do trabalho
da mulher. O artigo 384 da CLT preceitua em seu texto, para a mulher, o direito ao
intervalo de quinze minutos antes do início da jornada extraordinária, conforme se infere
por meio da leitura do dispositivo legal inserido no Capítulo III da Lei Celetista, que trata
da proteção do trabalho da mulher:
Art. 384. Em caso de prorrogação do horário normal, será obrigatório um descanso de 15
(quinze) minutos, antes do início do período extraordinário de trabalho.
5 Locke. J. Segundo Tratado sobre o Governo Civil e Outros Escritos. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 116.
98
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Pacificando a afirmativa em epígrafe, em acórdão recente proferido pelo Pleno
do TST datado de 17 de novembro de 2008, os ministros do Egrégio Pleno do Tribunal
Superior do Trabalho, por maioria, rejeitam o incidente de inconstitucionalidade do art. 384
da CLT, tornando este artigo constitucional mesmo colidindo com o princípio da igualdade
disposta no art. 5º, I da CF/88. É sem dúvida uma afirmação jurídica de desequiparação,
permitindo proteção específica às mulheres em detrimento dos homens que pratiquem o
mesmo ato quando da realização de horas-extras.
Por certo, o art. 384 da CLT constitui norma de ordem pública, que tem como escopo
a proteção à saúde, a segurança e a higidez física da mulher. Todavia, discute-se a interpretação
do dispositivo legal de proteção do trabalho da mulher à luz do Princípio Isonômico esculpido no
artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal, que expressamente estabelece: “homens e mulheres
são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Sergio Pinto Martins pondera que:
O preceito em comentário conflita com o inciso I do artigo 5º da Constituição, em que
homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Não há tal descanso para o homem.
Quanto à mulher, tal preceito mostra-se discriminatório, pois o empregador pode preferir
a contratação de homens, em vez de mulheres, para o caso de prorrogação do horário
normal, pois não precisará conceder o intervalo de 15 minutos para prorrogar a jornada
de trabalho da mulher.
Na jurisprudência, o Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, em acórdão de
lavra do Eminente Juiz Dirceu Pinto Júnior, posicionou-se no seguinte sentido:
quanto à não concessão do intervalo previsto no artigo 384 da CLT, entendo que, por não
importar em acréscimo de jornada, configura mera infração administrativa. Além do mais,
o dispositivo trata de proteção do trabalho da mulher, o qual se encontra revogado em face
das disposições constitucionais que asseguram igualdade de direitos e deveres entre homem
e mulher. A meu juízo, impossível a manutenção de qualquer norma de proteção, salvo
aquelas que se referem às condições especiais da condição da mulher, como a maternidade
e o deslocamento de peso. Ante o exposto, reformo o julgado para excluir a condenação ao
pagamento de 15 minutos extraordinários e reflexos baseados no artigo 384 da CLT.
Decerto, dever-se-ia sim, com fincas no artigo 5º, I, da Constituição Federal,
buscar a igualdade para ampliar o alcance das normas a todos os trabalhadores, sendo
assim de utilidade comum e não específico às mulheres.
Ademais, havendo controvérsia acerca da suposta desigualdade de tratamento
implementada no texto do art. 384 da CLT, nada mais razoável que se lutar por ampliar
o alcance da norma a todos os trabalhadores agora pacificados pelo TST, por enquanto
apenas às mulheres.
99
Artigo 6
Sem a menor sombra de dúvidas em relação à sistemática, a interpretação será
dada ao dispositivo legal conforme a análise do sistema no qual está inserido sem se ater
à interpretação isolada de um dispositivo, mas sim a seu conjunto.
2.2.1 A forma isonômica de proteção às mulheres como fundamento da proteção em
relação ao trabalho da mulher quanto ao gênero
A Lei nº 9.029/95 proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e
outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação
jurídica de trabalho. A Lei nº 9.799/99 insere na Consolidação das Leis do Trabalho regras
sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho. A Lei nº 10.224/01 tipifica e penaliza
o assédio sexual. A Lei nº 10.208/01 dispõe sobre a profissão de empregado doméstico
para facultar ao FGTS e ao seguro-desemprego. A Lei nº 10.244/01 permite a realização
de horas extras por mulheres, como também prescreve o salário-maternidade, a vedação
da dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da
gravidez até 12 meses após o parto e a concessão de licença-maternidade para mãe adotante.
As medidas paternalistas só se justificam em relação ao período de gravidez
e após o parto, de amamentação e a certas situações peculiares à mulher, como sua
impossibilidade física de levantar peso excessivo, que são condições inerentes à mulher.
As demais formas de discriminação deveriam ser abolidas.
O art. 5º da Constituição proclama a igualdade de todos perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza. O inciso I do mesmo artigo estabelece que homens e mulheres
são iguais em direitos e obrigações. No entanto, a CLT ainda tem uma série de artigos
discriminatórios quanto ao trabalho da mulher que já não se justificam.
Verifica-se que os motivos de proteção ao trabalho da mulher são conservadores
e, em vez de protegê-la, a discriminam.
2.2.2 Proteção especial
O legislador já adotou medidas reduzindo as restrições, como a Lei 7.191, de 84,
mas a convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher,
promulgada pelo Decreto nº 89.468, de 20.03.1984, na verdade, dá margem à eliminação
de distinções aparentemente protetoras.
O art. 165, X, da Constituição Federal revela que, no plano constitucional, a
interpretação histórica demonstra que a proposital supressão da proibição do trabalho
da mulher em condições de insalubridade e periculosidade teve o escopo de, realmente,
viabilizar o efetivo tratamento igualitário da mulher.
Em nosso país, até 1932, o trabalho feminino não tinha proteção especial. Na
Consolidação das Leis Trabalhistas, a jornada diária de trabalho da mulher era fixada
normalmente em 8 horas, observado, entretanto, o limite de 48 horas semanais. Com a
vigência da Constituição de 1988, a duração normal de trabalho não pode mais ser superior
100
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
a 8 horas diárias com o limite de 44 horas semanais; facultada a compensação e a redução
mediante acordo ou convenção coletiva (art. 7º, XIII).
2.2.3 Proteção à maternidade
A convenção nº 3, de 1919, da OIT estabelece quais aspectos devem ser protegidos
pela lei: licença antes e depois do parto, mediante atestado médico que comprove a gravidez;
garantia do emprego consubstanciada na impossibilidade de demissão concomitantemente
com o afastamento para dar à luz e na ineficácia de aviso prévio durante esse período;
assistência à maternidade, consistente no auxílio econômico destinado a cobrir o acréscimo
de despesas supervenientes, pago pelo Estado ou pelas instituições previdenciárias;
assistência médica gratuita; facilidades durante a amamentação do filho, com direito a
dois repousos específicos diários, de meia hora cada um.
A Lei 11.770, de 9 de setembro de 2008, aprovada pelo presidente da República,
prevê incentivo fiscal para as empresas do setor privado que aderirem à prorrogação da
licença-maternidade de 120 dias para 180 dias.
Dados da Sociedade Brasileira de Pediatria apontam que a amamentação regular,
por seis meses, reduz 17 vezes as chances de a criança contrair pneumonia, 5,4 vezes a
possibilidade de anemia e 2,5 vezes a ameaça de crises de diarreia.
Conforme estabelece a nova lei, as empregadas das empresas privadas que aderirem
ao Programa – inclusive as mães adotivas – terão o direito de requerer a ampliação do
benefício, devendo fazê-lo até o final do primeiro mês após o parto.
Já o empregador que aderir voluntariamente ao programa estenderá automaticamente
esse benefício a todas as empregadas da empresa.
A lei prevê que durante a prorrogação da licença-maternidade a empregada terá
direito à remuneração integral. Os dois meses adicionais de licença serão concedidos
imediatamente após o período de 120 dias previsto na Constituição.
No período de prorrogação da licença, a empregada não poderá exercer qualquer
atividade remunerada e a criança não poderá ser mantida em creche ou organização similar.
Pela lei, os quatro primeiros meses de licença-maternidade continuarão sendo
pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Os salários dos dois meses a mais
serão pagos pelo empregador. A pessoa jurídica tributada com base no lucro real poderá
deduzir do imposto devido, em cada período de apuração, o total da remuneração integral
da empregada pago, nos 60 (sessenta) dias de prorrogação de sua licença-maternidade,
vedada a dedução como despesa operacional.
2.2.4 Aborto não criminoso
Diante da perda da criança, o art. 395 da CLT determina que a mulher tenha direito
a repouso remunerado durante duas semanas e também assegura o direito à reintegração,
findo esse prazo. É necessário prova do aborto natural por meio de atestado médico.
101
Artigo 6
2.2.5 Pagamento antecipado do auxílio-maternidade
Ocorrida a demissão antes do período de repouso, ou antes da ciência da gravidez
pelo empregador, não exime o mesmo do pagamento do auxílio. O Enunciado 142 do
TST assim prevê: “Empregada gestante, dispensada sem motivo antes do período de seis
semanas anteriores ao parto, tem direito à percepção do salário-maternidade”. A proteção
à gestante prevista na CF e no Enunciado 142/TST não se aplica à empregada contratada
por prazo determinado (contrato de experiência). A determinação de prazo é inconciliável
com a ideia de estabilidade (TST, RR 12141/90.3, Cnéa Moreira, Ac. 1ª T. 712/91).
Nos contratos por prazo determinado que se extinga antes do período de repouso
da gestante, esse direito subsiste, havendo prévia notificação ao empregador. No entanto, em
caso de notificação inexistente, o empregador não é responsável pelo pagamento, dado que
a extinção normal do contrato com prazo determinado exclui má-fé ou fraude de sua parte.
2.2.6 Alteração ou extinção do contrato de trabalho por iniciativa da gestante
O art. 394 da CLT faculta à mulher a rescisão contratual. Se constatar que o
exercício profissional prejudica a gestação, ela poderá pedir demissão. Nesse caso, a
gestante não precisa conceder aviso prévio ou pagar indenização, quando o contrato tiver
prazo determinado, mas não terá o direito de indenização por antiguidade, ressalvados
os direitos decorrentes do FGTS (sem o acréscimo de 40%), nem a auxílio-maternidade,
se a rescisão ocorrer antes do início do prazo de descanso.
Em casos excepcionais, a mulher grávida pode exigir do empregador a alteração
de suas funções, se for necessário. O §4º do art. 392 da CLT dá os seguintes direitos:
transferência de função, sem prejuízo salarial, assegurando-lhe o retorno ao mesmo cargo
e a dispensa do trabalho para realização de, no mínimo, seis consultas médicas e exames
complementares, também sem prejuízo salarial.
2.2.7 Amamentação
Até que a criança complete seis meses, a mãe terá direito a dois descansos
especiais de meia hora cada um durante a jornada de trabalho, podendo ser prorrogado
em caráter especial (art. 396, CLT). Esses intervalos são considerados tempo de serviço,
não podendo ocorrer redução salarial. Já o art. 400 da CLT estabelece que empresas com
pelo menos trinta mulheres com mais de dezesseis anos de idade devem manter locais
adequados para guardar seus filhos durante o período de amamentação.
2.2.8 Salário
Não se justifica diferença de salário entre o homem e a mulher. A Constituição
traz a mesma ideia no inciso XXX do art. 7º. O art. 5º da CLT também veda a distinção de
102
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
salário por motivo de sexo. Esclarece ainda o art. 377 da CLT que “a adoção de medidas
de proteção ao trabalho das mulheres é considerada de ordem pública, não justificando, em
hipótese alguma, a redução do salário”. É claro que as questões pertinentes à equiparação
salarial serão reguladas pelo art. 461 da CLT.
2.2.9 Trabalhos proibidos
Quanto às atividades perigosas e insalubres, a Constituição não veda o trabalho
em subterrâneos, minerações em subsolo, pedreiras e obras de construção pública e
particular. Assim, a mulher pode trabalhar em locais perigosos, insalubres ou penosos,
mesmo em postos de gasolina, como vem ocorrendo.
Ao empregador será vedado empregar a mulher em serviço que demande o
emprego de força muscular superior a 20 kg para trabalho contínuo ou a 25 kg para trabalho
ocasional. Entretanto, se esse trabalho for feito por impulsão ou tração de vagonetes sobre
trilhos, de carros de mão ou quaisquer aparelhos mecânicos, haverá permissão legal.
A Convenção nº 136 da Organização Internacional do Trabalho, de 1971, ratificada
pelo Brasil, trata da proteção contra os riscos de intoxicação provocados por benzeno,
proibindo o trabalho de mulheres grávidas e em estado de amamentação em locais em
que haja exposição ao benzeno.
2.2.10 Métodos e locais de trabalho
Prevê o art. 389 da CLT, in verbis:
Art. 389. Toda empresa é obrigada:
I - a prover os estabelecimentos de medidas concernentes à higienização dos métodos e
locais de trabalho, tais como ventilação e iluminação e outros que se fizerem necessários à
segurança e ao conforto das mulheres, a critério da autoridade competente;
II - a instalar bebedouros, lavatórios, aparelhos sanitários; dispor de cadeiras ou bancos,
em número suficiente, que permitam às mulheres trabalhar sem grande esgotamento físico;
III - a instalar vestiário com armários individuais privativos das mulheres, exceto os
estabelecimentos comerciais, escritórios, bancos e atividades afins em que não seja exigida
a troca de roupa, e outros a critério da autoridade competente em matéria de segurança e
higiene do trabalho, admitindo-se como suficientes as gavetas ou escaninhos, onde possam
as empregadas guardar seus pertences;
IV - a fornecer, gratuitamente, a juízo da autoridade competente, os recursos de proteção
individual, tais como óculos, máscaras, luvas e roupas especiais, para a defesa dos olhos,
do aparelho respiratório e da pele, de acordo com a natureza do trabalho.
Vê-se que essas regras não diferem da proteção ao trabalho masculino nem
deveriam estar no capítulo do trabalho da mulher previsto na CLT, pois se trata de regra
geral que deve ser observada em relação a qualquer trabalhador.
103
Artigo 6
2.3 A proteção específica mais vantajosa para as mulheres à luz do CPC
Preconiza o Código de Processo Civil, em seu art. 100, inciso I, o seguinte:
Art. 100. É competente o foro:
I - da residência da mulher, para a ação de separação dos cônjuges e a conversão desta em
divórcio e para a anulação de casamento; (...)
Quer dizer que não adianta o homem ingressar com ação em outro local que não
seja de residência de sua ex-mulher para tentar resolver problemas quanto à separação,
conversão desta em divórcio e anulação de casamento. A explicação para o motivo dessa
previsão legal é que, sendo a mulher o elo mais frágil da relação, ela teria essa conveniência
e facilidade, e o homem, por estar financeiramente em vantagem, teria a obrigação de
assumir outro tipo de ônus quando do término do relacionamento.
Isso tudo pelo menos em teoria. Senão vejamos: o art. 5º da Constituição Federal,
que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos em seu caput e inciso primeiro
regula: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...): I - homens
e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (...)”, e mais,
no art. 226, § 5º, da mesma Carta Magna, encontramos: “A família, base da sociedade, tem
especial proteção do Estado. (...) § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal
são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
Apesar dos dois dispositivos constitucionais apresentados terem interpretação
bastante extensiva, ou seja, poderem ser invocados em outros casos até mais característicos, eles
se adequam perfeitamente ao que ora tratamos: não é por causa do sexo que se deve privilegiar
o homem ou a mulher, isto é, ao ser provocado, o juiz, que deverá fazer a devida prestação
jurisdicional do Estado, não deve levar à risca a regra contida no Código Processualista
Civil, anteriormente aludida, sob pena de cometer, em certas ocasiões, profundas injustiças.
Na moderna ordem social, caberia verificar qual dos cônjuges seria merecedor do
foro privilegiado. Teríamos, então, a efetiva utilização do princípio da igualdade das partes.
A simples interpretação de que o texto legal não teria sido recepcionado é reducionista. (...)
Entender que o inciso I do artigo 100 do CPC continua em vigor, tendo sido recepcionado
pela atual Constituição, parece-nos mais adequado, desde que sua nova leitura seja
realizada com a consagração do princípio da igualdade proporcional, que permitirá sua
utilização não somente pelo cônjuge mulher, mas também pelo cônjuge varão, desde que
este, ostentando concretamente a condição de hipossuficiente, faça jus à proteção legal.
2.4 Ações afirmativas positivando desigualdades entre homens e mulheres à luz da
legislação previdenciária
A regra do inciso I do art. 5º da Carta Constitucional do Brasil de 1988 consagra
com uma clareza solar o princípio da igualdade – reproduzido em praticamente todas as
104
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
constituições editadas após a Revolução Francesa: “homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações nos termos desta Constituição”. Essa garantia encontra reforço no
inciso XXX do art. 7º, que proíbe qualquer discriminação fundada em motivo de sexo,
idade, cor ou estado civil.
Apesar de deflagrada igualdade formal, o próprio texto da Lei Contitucional
assegura às mulheres aposentadoria com 60 anos, enquanto que, para os homens, a idade
limite é de 65 anos (art. 202). A aparente incompatibilidade entre essas normas jurídicas
solve-se ao constatar-se que a igualdade formal – igualdade de todos perante a lei – não
conflita com o princípio da igualdade material, que é o direito à equiparação por meio da
redução das diferenças sociais. Nítida a intenção do legislador em consagrar a máxima
aristotélica de que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais, na medida em que eles se desigualam.
A obediência estrita ao preceito constitucional conflita com normas protetivas,
visando a propiciar o equilíbrio para se assegurar o direito à igualdade, com regras
afirmativas específicas para mulheres.
Frágeis e insuficientes, no entanto, são os mecanismos de promoção da igualdade
de gênero, pois, em nome da preservação do princípio da isonomia, acaba-se consagrando
a desigualdade. A incorporação, em textos legais, de dispositivos de proteção à mulher por
meio de incentivos específicos funda-se na concepção, incluída em textos de convenções
internacionais, de que não seriam consideradas medidas discriminatórias ou ações afirmativas
com o propósito de sanar situações de desigualdade.
A plataforma de ações aprovadas na IVª Conferência Mundial sobre a Mulher,
em Beijing, em 1995 – documento subscrito pelo Brasil –, reafirma e recomenda a adoção
de ações afirmativas, por meio de cotas, incentivos fiscais e medidas legais que busquem
superar a desigualdade entre homens e mulheres.
O governo brasileiro, em 14 de maio de 1996, no lançamento do Programa Nacional
dos Direitos da Mulher, elaborou o documento Estratégias da Igualdade, traçando diretrizes
para seu atendimento e recomendando a necessidade do uso de ações afirmativas para
garantir a paridade, sem ferir o art. 5º da Constituição Federal.
As regras inferiores, ao tentar promover o tratamento isonômico, que é necessário
e justo, promoveram a revogação tácita formal do art. 5º, I, da CF, que preconiza a igualdade
independentemente de qualquer fator sexual, cultural ou social.
Destarte, é oportuno destacar que a Lei 8.213/91, promulgada após a Carta de
1988, ignora totalmente o princípio disposto no art 5º caput e seu inciso I e cria modalidade
diferenciada, mais vantajosa para as mulheres em relação aos homens para aposentar-se
ou usufruir de benefícios previdenciários.
A própria Constituição colide com a regra disposta no inciso I do art. 5º quando, no
art. 202, cria condições diferenciadas para obtenção de aposentadoria de homens e mulheres,
105
Artigo 6
elucidando a revogação formal do inciso em destaque pela sua inaplicabilidade material.
2.5 Especificidade conflitante entre a Lei Maria da Penha e o princípio constitucional
disposto no inciso I do art. 5º da Constituição Federal
Com a chegada da Lei 11.340/2006, em 22 de setembro de 2006, que visa proteger
exclusivamente a mulher, discute-se muito a ideia de que esta lei é inconstitucional, já
que estaria ferindo o princípio fundamental da igualdade, estabelecido no artigo 5º da
Constituição Federal:
E M E N T A – RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
CONTRA A MULHER – DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE
DA LEI N. 11.340/06 – RECURSO MINISTERIAL – PEDIDO DE MODIFICAÇÃO DA
DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI
N. 11.340/06 – VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE – VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS
DA IGUALDADE E PROPORCIONALIDADE – DECISÃO MANTIDA – COMPETÊNCIA
DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – IMPROVIDO. A Lei n. 11.340/06 (Lei Maria
da Penha) está contaminada por vício de inconstitucionalidade, visto que não atende a
um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, IV, da CF), bem como por
infringir os princípios da igualdade e da proporcionalidade (art. 5º, II e XLVI, 2ª parte,
respectivamente). Assim, provê-se o recurso ministerial, a fim de manter a decisão que
declarou a inconstitucionalidade da Lei n. 11.340/2006, determinando-se a competência do
Juizado Especial Criminal para processar e julgar o feito.
Percebe-se que a Lei Maria da Penha procurou criar mecanismos para coibir e
prevenir a violência doméstica no seio da unidade familiar. Todavia, atropelou importantes
preceitos constitucionais.
Primeiramente, o texto constitucional é permeado de vedações sobre discriminação,
inclusive a sexual, que está expressa como um dos objetivos da República Federativa do
Brasil, qual seja, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Além disso, entre os direitos e garantias fundamentais que a Constituição
estabelece, está o de que o legislador está proibido de estabelecer diferenças entre homens
e mulheres, pois o art. 5º, inciso I, prescreve que homens e mulheres são iguais em direitos
e obrigações, nos termos da Constituição. Portanto, não cabe à lei ordinária contrariar
preceito constitucional, ainda que provida de boas intenções.
Tal discriminação é descabida, pois os homens também podem ser vítimas de
violência doméstica e familiar. Aliás, esse entendimento é plenamente condizente com a
realidade, uma vez que se inclui no tipo penal violência psíquica, o que é muito noticiado
pelos meios de comunicação.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em decisão tomada em 7de agosto de 2007,
sinalizou a existência de tal inconstitucionalidade, mas preferiu permitir a aplicação da lei
106
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
também aos homens que assim solicitarem. Não obstante o TJMG tenha permitido estender
a aplicação dessa lei aos homens que requerem tal processamento, a lei continua prejudicada
por vício de inconstitucionalidade, com outro fundamento, como se verificará a seguir.
Abaixo, transcreve-se a ementa do referente julgamento, em que se verifica
a intenção de declarar a inconstitucionalidade da lei, mas timidamente conclui-se pelo
exposto linhas acima.
EMENTA: LEI MARIA DA PENHA (LEI 11.340/06) – INCONSTITUCIONALIDADE
SUSCITADA PELO JUÍZO DE 1º GRAU COMO ÓBICE À ANÁLISE DE MEDIDAS
ASSECURATÓRIAS REQUERIDAS – DISCRIMINAÇÃO INCONSTITUCIONAL
QUE SE RESOLVE A FAVOR DA MANUTENÇÃO DA NORMA AFASTANDO-SE A
DISCRIMINAÇÃO – AFASTAMENTO DO ÓBICE PARA A ANÁLISE DO PEDIDO. A
inconstitucionalidade por discriminação propiciada pela Lei Federal 11.340/06 (Lei Maria
da Penha) suscita a outorga de benefício legítimo de medidas assecuratórias apenas às
mulheres em situação de violência doméstica, quando o art.5º, II, c/c art. 226, §8º da
Constituição Federal não possibilitaria discriminação aos homens em igual situação,
de modo a incidir em inconstitucionalidade, no entanto, não autoriza a conclusão de
afastamento da lei do ordenamento jurídico, mas tão somente a extensão dos seus efeitos
aos discriminados que a solicitarem perante o Poder Judiciário, caso por caso, não sendo,
portanto, possível a simples eliminação da norma produzida como elemento para afastar
a análise do pedido de quaisquer das medidas nela previstas, porque o art.5, II, c/c art.
21, I e art.226, §8º, todos da Constituição Federal, compatibilizam-se e harmonizam-se,
propiciando a aplicação indistinta da lei em comentário tanto para mulheres como para
homens em situação de risco ou de violência decorrentes da relação familiar.
3 Isonomia formal e material
Desde o passado, o homem tem se atormentado com o problema da desigualdade
inerente a seu ser e à estrutura social em que está inserido. Daí ter surgido, segundo Bastos,
a noção de igualdade que os doutrinadores comumente denominam igualdade substancial.
Na verdade, a igualdade pode ser analisada por meio de dois prismas: o material e o formal.
A igualdade formal é aquela meramente prevista no texto legal. É puramente negativa,
e tem por escopo abolir privilégios, isenções pessoais e regalias de certas classes. Consiste
no fato de a lei não estabelecer qualquer diferença entre os indivíduos. Situa-se, pois, num
plano puramente normativo e formal, pretendendo conceder tratamento isonômico em todas as
situações. Pode ser resumida na regra de tratar os iguais e os desiguais de forma sempre igual.
De qualquer sorte, o tratamento isonômico não deve redundar necessariamente
na ideia de tratamento dos iguais de forma igual. Na verdade, essa noção deve ser vista
sob outro prisma – o da sua eficácia. Há necessidade, portanto, de o exegeta interpretar o
princípio da isonomia considerando os critérios da justiça social.
A igualdade, com efeito, deve ser avaliada sob o seu aspecto substancial ou material.
É necessário tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na exata medida
107
Artigo 6
de suas desigualdades. Vale dizer que as pessoas ou as situações são iguais ou desiguais de
modo relativo, ou seja, sob certos aspectos. Nesse contexto, a tendência do constitucionalismo
contemporâneo tem sido a de não se limitar à enunciação de um postulado formal e abstrato
de isonomia jurídica, mas sim de fixar nas constituições medidas concretas e objetivas
tendentes à aproximação social, política e econômica entre os jurisdicionados.
Deve-se destacar, ainda, que a atividade do legislador, por si só, já consiste em uma
atividade de distinção, ou seja, de classificação. Assim, naturalmente, ele deve conceder
um tratamento diversificado em relação às diversas classes sociais. Por exemplo, somente
o portador de determinado título acadêmico pode exercer certa profissão. A questão,
contudo, não se limita ao tratamento diversificado que deve ser concedido pelo editor
normativo. Mais do que isso, devem-se analisar os limites e os parâmetros empreendidos
nessa classificação. Assim, não basta apenas que a lei trate de forma desigual pessoas
em situações desiguais e igualmente pessoas em situações iguais. É necessário que esse
tratamento seja razoável, proporcional e justificado.
Como se vê, o tratamento jurídico do princípio da igualdade não se coaduna com
uma ideia formalista e ingenuamente neutra de ver o direito. Sem dúvida, a boa aplicação
do princípio em exame exige o entrelaçamento de elementos jurídicos e metajurídicos, a
fim de que não se caia num idealismo que obstaculize sua implementação.
Assim, tal princípio constitucional se constitui na ponte entre o direito e a realidade
que lhe é subjacente. A igualdade de todos os seres humanos, proclamada na Constituição
Federal, deve ser encarada e compreendida, basicamente, sob dois pontos de vista distintos,
quais sejam: o da igualdade material e o da igualdade formal.
Na igualdade material, as oportunidades, as chances devem ser oferecidas de
forma igualitária para todos os cidadãos, na busca pela apropriação dos bens da cultura.
Na Constituição Federal de 1988, podemos encontrar vários textos que estabelecem
normas programáticas que visam nivelar e diminuir as desigualdades reinantes, tais como
as que se referem ao universo feminino.
O princípio da isonomia está contemplado em todas as normas constitucionais
que vedam a discriminação de sexo (artigos 3º, inciso IV e 7º, inciso XXX da Constituição
Federal). “Mas não é sem consequências que o constituinte decidiu destacar, em um inciso
específico (art. 5º, inciso I), que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações,
nos termos desta Constituição”.
O que importa notar é que essa regra resume décadas de luta das mulheres contra
discriminações.
Uma posição, dita realista, reconhece que os homens são desiguais sob vários aspectos, mas
também entende ser supremamente exato descrevê-los como criaturas iguais, pois em cada
um deles o mesmo sistema de características inteligíveis proporciona a realidade individual.
108
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
4 Definição de norma constitucional e inconstitucional
Com o decorrer do tempo e as mudanças no comportamento social, foram, aos
poucos, surgindo legislações com caráter protecionista em favor da mulher. Com isso, o
trabalho feminino recebeu maior atenção e foi alvo de muitas teorias, cujo teor visava à
diminuição gradativa do preconceito e da discriminação para dar lugar ao respeito e à
proteção do trabalho da mulher.
Neste âmbito, vale destacar a Constituição Federal de 1988 e a CLT, como
legislações que se dedicam, em parte, a assegurar a dignidade e à proteção ao trabalho
da mulher.
Primeiramente, antes de introduzir o tema principal, imprescindível se faz a
conceituação dos termos constitucionalidade e inconstitucionalidade de norma jurídica.
Quanto ao primeiro, Marcelo Neves afirma ter a Constituição “supremacia hierárquica
sobre os demais subsistemas que compõem o ordenamento, funcionando como fundamento
de pertinência e validade dos subsistemas infraconstitucionais”.
José Afonso da Silva também se manifesta, dizendo que uma norma constitucional
é aquela que está em “conformidade com os ditames constitucionais”. A respeito da
inconstitucionalidade, Lúcio Bittencourt diz que “a inconstitucionalidade é um estado –
estado de conflito entre uma lei e a Constituição”. Darcy Azambuja diz que “toda a lei
ordinária que, no todo ou em parte, contrarie ou transgrida um preceito da Constituição,
diz-se inconstitucional”. Canotilho afirma que “inconstitucional é toda lei que viola os
preceitos constitucionais”.
Toda norma que está em discordância com a Constituição Federal não deve ser
acolhida pelo ordenamento jurídico brasileiro, por ser incompatível com os preceitos
basilares da lei maior.
Corroborando com essa colocação, aduz Alexandre de Moraes que “toda situação
de desigualdade persistente à entrada em vigor da norma constitucional deve ser considerada
não recepcionada, se não demonstrar compatibilidade com os valores que a Constituição,
como uma norma suprema, proclama”.
Dessa forma, uma norma inconstitucional é aquela que viola os dizeres da Constituição
Federal. Por outro lado, normas constitucionais são aquelas que não afrontam nenhum preceito
nela contido, já que nas palavras de José Afonso da Silva “O princípio da supremacia requer
que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição”.
5 Da inaplicabilidade exegética quanto à formalidade contida no inciso I do art. 5º
da Constituição Federal
O tema proposto é de fundamental importância, pois visa, sobretudo, garantir
à mulher a relação isonômica em suas ações afirmativas positivas tanto na seara jurídica
109
Artigo 6
quanto na social, econômica, familiar e demais outras. Entretanto, o texto constitucional
visando ao tratamento isonômico entre os sexos cometeu grave segmentação quando tentou
afirmar que homens e mulheres são iguais em tudo, pois não é bem assim. Diferenciam-se
em substância, gênero, formação fisiológica e estrutural, o que deve ser levado em conta
no afã de promover a isonomia positiva e não somente emitir uma redação descrevendo
que são iguais. A igualdade proposta deve aflorar na equidade de condições, promovendo
ações equiparativas entre homens e mulheres, visando à relação isonômica.
As relações equiparativas estão estampadas nas diversas leis específicas às
mulheres, que embora conflitando com o preceito constitucional contido no art. 5º, I, da
CF/88, permanecem em vigor e isso ocorre pela sua efetividade, pois a lei existe para
atender às necessidades sociais e promover o equilíbrio nas ações.
Neste mister, o inciso I do art. 5º da CF/88 é exegeticamente inaplicável em
relação à sua formalidade, visto que, se aplicável como está no texto constitucional, seria
discriminatório em relação às mulheres, proporcionando-lhes condições análogas em suas
relações comparadas às dos homens.
A referida norma cogente conflita com a realidade substancial da espécie. As
regras devem visar promover a isonomia da essência no cuidado de materializar condições
equiparadas a ambos os sexos. É aí que a regra contida na Constituição fere tal pressuposto,
pois pela interpretação literária conflita com seu princípio isonômico.
Dever-se-ia alterar a redação contida na regra do art. 5º, I, da CF/88 no afã de
promover não só materialmente, mas também formalmente a relação isonômica entre os sexos.
A igualdade proposta no inciso I do art. 5º é uma utopia, pois vejamos: a começar
pela composição fisiológica, não há igualdade. Não há igualdade também na composição
psicológica, tampouco na composição de massa corporal. Não há o que se compara e
também em suas reações hormonais.
Dessa forma, a igualdade que se deve buscar é a equiparação isonômica material,
com base na formalidade limitadora dessas diferenças e não somente numa regra segundo
a qual “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. É utopia, e a aplicação
dessa forma traz discriminação e desvantagem para as mulheres, pois ao interpretar a lei
literalmente, como deve ser o texto, não se assevera contemplada a isonomia, mas sim e tão
somente uma igualdade formal forçada. Para que se promova materialmente a igualdade
formal e material, requer-se uma interpretação diversa, pois o tratamento deve ser igual em
todas as regras. É preciso uma aplicação diversa, ou seja, promovendo proteção especial
às mulheres, estaríamos desigualando-as, carreando desvantagens em relação aos homens
quando da realização de suas atividades e, nesse esteio, conflitando com o preceito literal
da igualdade constitucional encapsulada no inciso I do art. 5º da Constituição Federal.
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de
políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas
110
DA INAPLICABILIDADE EXEGÉTICA QUANTO À FORMALIDADE CONTIDA
NO INCISO I DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de
origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação
praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de
acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. Diferentemente das políticas
governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, que
se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos
de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza
multifacetária, e visam evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente
conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou
através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no
imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas e mecanismos de inclusão concebidos
por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com
vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da
efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.
Todas as regras infraconstitucionais que visam proporcionar o tratamento
isonômico demonstram claramente a necessidade de promover a equiparação por meio de
normas afirmativas em relação às mulheres, e essas ações conflitam com a regra disposta no
inciso I do art. 5º, visto que se o tratamento desprendido seguisse a norma constitucional,
todas as regras infraconstitucionais estariam revogadas por força da hierarquia das leis,
e não é essa a realidade jurídica nacional, como disposta nos temas anteriores; o que tem
prevalecido são regras que objetivam tratamento diferenciado às mulheres visando às
aplicações isonômicas.
Por todo exposto, a regra exegética disposta no inciso I do art. 5º da CF é inaplicável
quanto à sua forma e deve, visando à aplicação das leis infraconstitucionais e à segurança
da mulher em relação às regras projetivas afirmativas existentes, ser modificada na sua
composição literal, no afã de propiciar de forma constitucional o tratamento isonômico
às mulheres, que difere da igualdade disposta na regra infraconstitucional.
Referências
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Janeiro: Forense, 2003.
BASTOS, C. R. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 2002.
BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
BRUSCHINI, C.; LOMBARDI, M. R. A bipolaridade do trabalho feminino no Brasil
contemporâneo. Caderno de pesquisa jul. 2000, n. 110. Disponível em: <http://www.
scielo.br/pdf/cp/n110/n110a03.pdf>. Acesso em: 9 abr. 2009.
111
Artigo 6
FAGUNDES, L. Trabalho da mulher: o trabalho feminino na sociedade. Disponível em:
<http://www.direitonet.com.br/artigos/x/11/19/1119/>. Acesso em: 10 abr. 2009.
LOPES, C. M. S. Direito do trabalho da mulher: da proteção à promoção. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30398.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2009.
MARTINS, S. P. Direito do trabalho. 13. ed.. São Paulo: Atlas, 2001.
NASCIMENTO. A. M. Curso de direito do trabalho. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1989.
NERY JUNIOR, N. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 5. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
NERY JUNIOR, N.; NERY, R. M. A. Código de processo civil comentado e legislação
processual civil em vigor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
112
A SAÚDE SUPLEMENTAR
E O ENFRENTAMENTO DA
NEGATIVA DE COBERTURA
CONTRATUAL NO CÓDIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Carlos Eduardo Dipp Schoembakla1
Michélle Chalbaud Biscaia Hartmann2
Introdução. 1 O direito à saúde e os planos de saúde no Brasil: marcos
regulatórios. 2 Os contratos de planos de saúde frente ao Código de Defesa
do Consumidor. 3 O posicionamento da jurisprudência brasileira sobre o tema.
Considerações finais. Referências.
Resumo
Na forma como está previsto na Constituição Federal de 1988, a saúde é direito fundamental,
concretizado pelas políticas públicas governamentais, por meio do Sistema Único de Saúde
e, subsidiariamente, pela iniciativa privada (em especial, pelos planos de saúde). Com efeito,
o que se pretende neste estudo é abordar a formação do Sistema Privado (suplementar) de
Saúde. Isso porque, da perspectiva do direito privado, muitas são as questões que surgem
em torno do direito à saúde, dando-se atenção particular àquelas relacionadas com a
incidência do Código de Defesa do Consumidor e aos chamados “contratos por adesão”.
Dessa maneira, após apresentar a regulamentação do setor privado de saúde, aborda-se a
sistemática da regulação adotada pela Agência Nacional de Saúde a partir das três perspectivas:
institucional, econômico-financeira e assistencial. Entretanto, constatando-se flagrantes
abusos e desequilíbrios contratuais nas relações estabelecidas entre os consumidores e as
seguradoras de saúde, bem como o crescimento desordenado do setor, aponta-se para a
incidência do Código de Defesa do Consumidor nos contratos privados de saúde. Por fim,
colhem-se as contribuições apreendidas da jurisprudência brasileira.
1 Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pela UniBrasil (Curitiba/PR); professor da UniBrasil (Curitiba/PR)
e advogado.
2 Pós-graduada pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná; mestre em Direitos Fundamentais e Democracia
pela UniBrasil (Curitiba/PR); doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal; advogada.
113
Artigo 7
Palavras-chave: direito à saúde, contratos, planos de saúde, Código de Defesa do
Consumidor.
Abstract
How is expected in the Federal Constitution of 1988, the right to health is a fundamental
right, achieved by governmental public policies, through the public health system and
secondarily by private initiative (particularly by health plans). Indeed, the intention with
this study is to address the constitution of Private (supplementary) Healthcare System. This
is because, from the perspective of private law, there are many questions that appear around
the right to health, with particular attention to those related to the incidence of the consumer
code and the so-called “contratos por adesão”. This way, after submit the regulation of
private health sector, deals with the systematic regulation adopted by the national health
agency from three perspectives: institutional, economic-financial and healthcare plan.
However, noting flagrant abuses and unbalance contractual relations between consumers
and health insurers, as well as the growth industry’s cluttered, points to the incidence of
the code of consumer health in private contracts. Finally, reaps contributions are seized
of the case-law in Brazil.
Keywords: right to health, contract, health plans, Code of Defense of the Consumer.
Introdução
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a saúde passou a ser direito
fundamental de todos os cidadãos e tornou-se responsabilidade do Estado garanti-la. O
constituinte, prevendo a impossibilidade de o Estado suprir sozinho esse dever para com
o bem-estar dos cidadãos no que diz respeito à saúde, previu no texto constitucional pátrio
uma autorização para a iniciativa privada prestar serviços de assistência à saúde.
Contudo, só a previsão constitucional não bastava para regulamentar a prestação
desses serviços. Era necessária a regulamentação dos contratos que estavam sendo firmados
entre os planos de saúde e os consumidores, razão pela qual foi criada a Lei Federal no
9.656/1998. Referida lei não se limitou a estabelecer regras de criação e permanência dos
planos de saúde no mercado, mas também e principalmente se preocupou com a proteção
contratual do consumidor.
Publicada a lei, mas ausente a fiscalização por parte do Estado, continuaram as
arbitrariedades e a incidência de cláusulas abusivas nos contratos, que se caracterizam
“por adesão”.
Diante desse triste cenário, por meio da Lei 9.961/2000, foi criada no Brasil a
Agência de Saúde Suplementar (ANS), ente da administração pública indireta, que tem,
entre outras funções, regular e fiscalizar o mercado dos planos de saúde no país.
114
A SAÚDE SUPLEMENTAR E O ENFRENTAMENTO DA NEGATIVA DE COBERTURA
CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Nesse contexto, torna-se imperioso demonstrar a forma de regulação do Sistema
Privado de Saúde no Brasil e como o Código de Defesa do Consumidor está incidindo nas
relações contratuais para proteger os consumidores das arbitrariedades ainda impostas
pelos planos de saúde.
1 O direito à saúde e os planos de saúde no Brasil: marcos regulatórios
A Constituição Federal de 1988, seguindo os passos da Declaração Universal de
Direitos Humanos3, situa-se como marco jurídico da institucionalização da democracia e dos
direitos humanos no Brasil, consagrando, também, as garantias de direitos fundamentais
e a proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira, ao asseverar os valores da
dignidade da pessoa humana4, como imperativo de justiça social.
No sistema constitucional positivo brasileiro, todos os direitos sociais são
fundamentais, tenham sido eles expressamente ou implicitamente positivados, estejam eles
sediados no Título II da Constituição Federal de 1988 (direitos e garantias fundamentais)
ou dispersos pelo restante do texto constitucional ou mesmo (também expressa e/ou
implicitamente) localizados nos tratados internacionais regularmente firmados e incorporados
pelo Brasil.5
O direito à saúde percorre diversos pontos do Texto Constitucional. É mencionado
expressamente como um direito social (art. 6o, caput) e como garantia no âmbito das relações
de trabalho (art. 7o, XXII). A Constituição também trata de estabelecer competências,
comuns e concorrentes, para a União, Estados e Municípios darem consecução às políticas
públicas de saúde (arts. 23, II; 24, XII; e 30, VII), fixando sua forma de financiamento
(arts. 165, III; 167, IV; 195; 198, §§ 1o a 3o; e 212, §4o), bem como determinar a adoção de
programas particularmente voltados para crianças e adolescentes, idosos e portadores de
deficiência (arts. 208, VII; e 227, §1o).
Saúde, portanto, é um direito social básico, fundado nos princípios da
universalidade, equidade e na dignidade da pessoa humana.
3 A Declaração Universal dos Direito Humanos, adotada em 10 de dezembro de1948 pela Organização das Nações
Unidas, resgatou os ideais da Revolução Francesa de igualdade, liberdade e fraternidade, tornando-se um marco de
grande relevância por promover o reconhecimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. A
declaração delineia tanto os direitos civis e políticos (arts. 3.o a 21) como os direitos sociais, econômicos e culturais
(arts. 22 a 28).
4 “A dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos.” (SARLET, I. W. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais
na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 62.)
5 SARLET, I. W. Direitos Fundamentais Sociais, “Mínimo Existencial” e Direito Privado: breves notas sobre alguns
aspectos da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares. In: SAMENTO, D.; GALDINO, F.
(Orgs.) Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar,
2006. p. 560.
115
Artigo 7
Com a Carta Magna de 1988, o direito à saúde, além de ser consagrado como um
direito fundamental de todo cidadão, passou a ser um dever do Estado, devendo este, por
esse motivo, estar plenamente inserido nas políticas públicas governamentais.
Nesse sentido, a política estatal na área de saúde deve proporcionar o acesso de
todos os cidadãos, propiciando a redução de desigualdades, não estabelecerndodistinções
injustificadas.
Ressalta-se que o legislador, diante da grande evolução do país, previu a
impossibilidade de o Estado desempenhar de forma autônoma o referido dever constitucional6,
e acabou por permitir que a assistência à saúde também fosse prestada por meio da livre
iniciativa, ou seja, por meio de particulares.
Assim sendo, a prestação dos serviços em saúde pode ocorrer pelo Estado (de
forma direta) ou pela iniciativa privada e, por consequência, não se pode falar em monopólio
estatal sobre a prestação dos serviços de assistência à saúde, na medida em que o setor
privado a eles também pode ter acesso.
Dada a relevância pública, as ações e serviços de saúde devem ser regulamentados,
fiscalizados e controlados pelo Poder Público, consoante dispõe o art. 197 da Constituição
Federal de 1988.
O marco regulatório do mercado da saúde suplementar é fato recente no
ordenamento jurídico brasileiro. Somente no final da década de noventa, com a entrada
em vigor da Lei 9.656, de 03.06.1998, e das medidas provisórias que sucessivamente a
alteraram, a normatização específica passou a existir7.
De acordo com Maria Stella GREGORI, “os fins dos anos 80, com desdobramento
para a década de 90, foram marcados pelo crescimento da comercialização de planos
individuais e familiares. Em alguma medida, esse processo se deu por conta do paulatino
aumento do mercado informal do trabalho e também pela crise fiscal e financeira do
Estado brasileiro”.8
6 O fato é que justamente o avanço da globalização e o impacto de seus efeitos colaterais de cunho negativo, como
é o caso do incremento dos níveis de exclusão social e de opressão por parte dos poderes sociais, cuja influência tem
crescido vertiginosamente na mesma proporção em que o Estado se demite ou é demitido de suas funções regulatórias
e fiscalizatórias, mediante a fragilização de sua capacidade de atuar efetivamente na proteção e promoção dos direitos
fundamentais, revela o quão atual é a discussão em torno da eficácia social da Constituição e dos direito fundamentais
para além das relações entre o Estado e os particulares. (SARLET, I. W. Direitos Fundamentais: estudos em
homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 578)
7 Os consumidores desse segmento, nas décadas anteriores, encontraram o suporte jurídico para o encaminhamento
dos problemas advindos dos contratos, na legislação civil, em particular o Dec. Lei 73, de 21.11.1966, que dispõe
sobre o sistema nacional de seguros privados, e nas tratativas conciliatórias, passando, posteriormente, a dispor do
Código de Defesa do Consumidor para a salvaguarda de seus direitos. Mas, ainda assim, o Código de Defesa do
Consumidor, em função de seu espectro geral na abordagem das relações de consumo, não tratava das peculiaridades
que envolviam o setor de saúde. (GREGORI, M. S. Planos de Saúde. A ótica da proteção do consumidor. São Paulo:
RT, 2007. p. 36)
8 GREGORI. Idem. p. 31.
116
A SAÚDE SUPLEMENTAR E O ENFRENTAMENTO DA NEGATIVA DE COBERTURA
CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Ainda nessa época, houve também uma grande entrada no Brasil das grandes
seguradoras internacionais que almejavam atuar no ramo de saúde, várias delas ligadas
a grandes bancos.
Com a proliferação das entidades de medicina de grupo e seguradoras, foi
aprovada a Lei 6.839, de 30.10.1980, que obrigou essas empresas a se registrarem junto
aos órgãos competentes para a fiscalização do exercício profissional relacionado com sua
atividade básica, no caso, o Conselho Federal de Medicina e os respectivos Conselhos
Regionais em cada estado.9
No início, o desequilíbrio contratual era regra. Sem uma normatização específica,
a inexistência de um sistema de coordenação e fiscalização dessa atividade e também
diante das dificuldades de financiamento e organização do sistema público, assistiu-se a um
crescimento desordenado desse setor, dando margem a toda sorte de abusos e ilegalidades
contra os beneficiários dos planos de saúde existentes na época.
Com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, em 1991, as
empresas e cooperativas de planos de saúde passaram a figurar como um dos assuntos de
maior destaque por conta de denúncias dos consumidores; por consequência, cresceu e
muito o número de ações judiciais em todo Brasil.
Diante desse quadro caótico e instável da saúde (privada) no Brasil, o Estado
(leia-se legislativo) foi instado a manifestar-se e editou, em 3 de junho de 1998, a Lei n.o
9.656, que passou a regulamentar os planos e seguros privados de assistência à saúde e,
mais tarde, criou uma agência reguladora10, a Agência Nacional de Saúde Suplementar –
ANS11, para fiscalizar e regular o setor privado no país.
A Lei n.o 9.656/1998 veio delinear a regulação dos planos e seguros privados de
saúde sobre três aspectos principais: (1) o institucional, com a fixação de regras de entrada,
permanência e saída das operadoras no mercado de saúde suplementar; (2) o econômicofinanceiro, ao estabelecer normas relativas à solvência e liquidez dessas operadoras; (3) o
assistencial, mediante o disciplinamento da cobertura assistencial, abrangência dos planos,
rede credenciada, procedimentos e eventos cobertos e não cobertos, carências, doenças e
lesões preexistentes e cumprimento de cláusulas contratuais.12
9 GREGORI. Idem.
10 De acordo com Leila Cuéllar, “as agências reguladoras são pessoas jurídicas de direito público, com estrutura
formal autárquica e competência para regulamentar, contratar, fiscalizar, aplicar sanções e atender aos reclamos
dos usuários/consumidores de determinado serviço público ou atividade econômica”. (CUÉLLAR, L. As Agências
Reguladoras e seu Poder Normativo. São Paulo: Dialética, 2010. p. 81)
11 “A ANS, criada pela Lei 9.961, de 28.01.2000, tem como objetivo precípuo a regulação, a normatização, o
controle e a fiscalização das atividades que garantam a manutenção e a qualidade dos serviços privados de atenção
médico-hospitalar ou odontológica prestados por intermédio da operação de planos de saúde. Além disso, também lhe
compete a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive
quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde
no país”. (GREGORI. Idem. p. 61).
12 GREGORI. Idem. p. 136.
117
Artigo 7
O aspecto assistencial é o que tem maior relevância para o presente estudo,
considerando que grande parte dos limites contratuais impostos aos consumidores dizem
respeito justamente à cobertura assistencial, abrangência dos planos, redes credenciadas,
procedimentos e eventos cobertos e não cobertos, carências, doenças e lesões preexistentes
e cumprimento de cláusulas contratuais.
Atualmente, pode-se dizer que, apesar das contribuições para a disciplina do setor
privado de saúde, decorrentes do advento da Lei n.o 9.656/1998, foi mais especificamente
o Código de Defesa do Consumidor que protegeu e garantiu o tratamento adequado e a
continuidade da vida de inúmeros consumidores frente aos planos de saúde.13
Tal fato decorre da inequívoca incidência da força normativa da Constituição
no Direito Privado e da flagrante eficácia horizontal dos direitos fundamentais entre os
particulares.
Nesse sentido, oportunas são as considerações realizadas por Claudia Lima
Marques:
Queira-se ou não, a verdade é que a Constituição Federal de 1988 interessou-se
indiretamente pela contratação que envolve consumidores, tanto no momento em que
identificou este novo sujeito de direitos fundamentais, o consumidor (art. 5º, XXXII, da
CF/88), como no momento em que assegurou sua proteção apesar da livre iniciativa de
mercado (art. 170, V, da CF/88) e concomitante com a possibilidade de privatização,
concessão e outros métodos de iniciativa privada em atividades exercidas pelo Estado,
como é o caso da saúde, educação, etc.14
A autora ainda aduz que o fato de um dos sujeitos da relação contratual ter
recebido direitos fundamentais, ao ocupar o papel de consumidor, influencia diretamente a
interpretação da relação contratual pactuada pelas partes. O contrato de consumo passa a ser
um ponto de encontro de direitos individuais, sendo que os direitos dos consumidores stricto
sensu, em especial, das pessoas físicas, são direitos da mais alta hierarquia constitucional,
direitos fundamentais protegidos por cláusula pétrea, portanto imutáveis.15
Dessa feita, o particular, autorizado a prestar serviços médicos e de saúde pelo
Estado, possui os mesmos deveres deste, consistentes no fornecimento de assistência
médica para os aderentes dos respectivos serviços, por mais que não estejam pactuados
no contrato de prestação de serviços.
Ademais, partindo dessa previsão constitucional, o fato de a assistência à saúde
afigurar-se livre à iniciativa privada não garante aos planos privados a prerrogativa de se
desobrigarem de conceder ao conveniado assistência integral, com vistas a não se constituir
como absoluta a liberdade econômica.
13 GREGORI. Idem.
14 MARQUES, C. L. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 257. 15 MARQUES, C. L. Idem. p.259.
118
A SAÚDE SUPLEMENTAR E O ENFRENTAMENTO DA NEGATIVA DE COBERTURA
CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
2 Os contratos de planos de saúde frente ao Código de Defesa do Consumidor
Buscando coibir abusos deflagrados contra os particulares (nas relações comerciais
e contratuais, a Constituição de 1988 identificou os consumidores como pessoas mais
vulneráveis e que deveriam ser protegidas pelo Estado, por meio da implementação de
uma codificação especial que protegesse esses sujeitos de direitos, moldando-se uma nova
visão, mais social e teleológica do contrato como instrumento de realização das expectativas
legítimas desse sujeito de direitos fundamentais, o consumidor).16
O Código de Defesa do Consumidor, ao consagrar os princípios da boa-fé objetiva,
da confiança e da vulnerabilidade, trouxe importantes inovações no âmbito das relações
contratuais, permitindo, portanto, o restabelecimento de uma igualdade e um equilíbrio
entre o consumidor e o fornecedor.
Contudo, no Brasil, a prestação de serviços de assistência à saúde é oferecida
aos consumidores por meio de um contrato de adesão17 padronizado, no qual todas as
cláusulas são preestabelecidas pelo próprio fornecedor.
Essa contratação gera obrigações recíprocas, em que o consumidor assume o
compromisso de pagar periodicamente as prestações pecuniárias correspondentes aos
serviços oferecidos pelo fornecedor, ao passo que a este cabe prestar o serviço de cobertura
dos procedimentos médicos, hospitalares ou odontológicos, quando o consumidor deles
necessitar.
Por vigorarem por tempo indeterminado e serem de execução continuada, os
contratos são chamados de trato sucessivo.
Marques define, entre os contratos com essa característica, os planos privados
de assistência à saúde, previdência privada, cartão de crédito etc., classificando-os como
contratos cativos de longa duração:
Trata-se de uma série de novos contratos ou relações contratuais que utilizam os métodos
de contratação de massa (através de contratos de adesão ou de condições gerais dos
contratos), para fornecer serviços especiais no mercado, criando relações jurídicas
complexas de longa duração, envolvendo uma cadeia de fornecedores organizados entre si
e com uma característica determinante: a posição de “catividade” ou “dependência” dos
clientes, consumidores.18
16 O contrato é o instrumento de circulação de riquezas da sociedade, mas hoje é também instrumento de proteção dos
direitos fundamentais do consumidor, realização dos paradigmas de qualidade, de segurança, de adequação dos serviços
e produtos no mercado brasileiro. Estes paradigmas concretizam não só a nova ordem econômica constitucional (art.
170, V, da Constituição Federal), mas também os mandamentos constitucionais de igualdade entre os desiguais (art.
5o, da Constituição Federal), de liberdade material das pessoas físicas e jurídicas (art. 5o c/c art. 170, V da Constituição
Federal) e, em especial, da dignidade deste sujeito como pessoa humana (art. 1a, III, c/c art. 5o, XXXII, da Constituição
Federal). (MARQUES, C. L. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. São Paulo: RT. 2005. p. 257 e
258).
17 De acordo com o art. 54 do Código de Defesa do Consumidor, o “contrato de adesão é aquele cujas cláusulas
tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou
serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
18 MARQUES, C. L. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 91.
119
Artigo 7
Nos contratos privados de assistência à saúde, o consumidor paga um preço fixo
por uma expectativa da prestação dos serviços de cobertura assistencial, em patamares
previamente estipulados pelo fornecedor, com a possibilidade real de nem mesmo utilizar
os procedimentos médicos e hospitalares contratados.
O contrato justifica-se, no entanto, para dar segurança ao consumidor de que,
caso ocorra o evento, terá assegurada a cobertura contratada. É também nesse mesmo
sentido o entendimento de Cláudia Lima Marques:
Trata-se, igualmente, de contratos aleatórios, cuja contraprestação principal do fornecedor
fica a depender da ocorrência de evento futuro e incerto, que é a doença dos consumidores
– clientes ou de seus dependentes.
(...)
Em outras palavras, a prestação nos contratos de assistência médica ou de seguro-saúde,
quando necessária, deve ser fornecida com a devida qualidade, com a devida adequação,
de forma que o contrato, que o serviço objeto do contrato unindo fornecedor e consumidor,
possa atingir os fins que razoavelmente dele se espera, fim contratual muito mais exigente
do que a simples diligência.
Neste sentido, a relação contratual básica do seguro-saúde é uma obrigação de resultado,
um serviço de que deve possuir a qualidade e adequação imposta pela nova doutrina
contratual. É obrigação de resultado porque o que se espera do segurador ou prestador é
um fato, um ato preciso, um prestar serviços médicos, um reembolsar quantia, um fornecer
exames, alimentação, medicamentos, um resultado independente dos esforços (diligentes ou
não) para obter os atos e fatos contratualmente esperados.19
Dessa forma, conclui-se que se a relação contratual básica do seguro-saúde é
uma obrigação de resultado, o serviço deve possuir a qualidade e adequação imposta pela
nova doutrina contratual.20
Mas adequação e qualidade do serviço nem sempre são disponibilizadas e
usufruídas pelo consumidor. Inúmeras são as cláusulas abusivas inseridas nos contratos
de planos de saúde, bem como as limitações impostas nos contratos para os consumidores,
que, quando mais precisam de um tratamento adequado à sua enfermidade, recebem, em
contrapartida, respostas negativas de seus planos de saúde.
Conforme será analisado adiante, a jurisprudência pátria tem constantemente
se manifestado a respeito e, em todos os casos julgados, aplica o Código de Defesa do
Consumidor para dirimir os conflitos entre fornecedor e consumidor de planos de saúde.
3 O posicionamento da jurisprudência brasileira sobre o tema
É inconteste que, uma vez provocado pelo consumidor (segurado), cabe ao Poder
Judiciário impor certos limites aos fornecedores (seguradoras de saúde), que, por conta do
19 MARQUES. Idem. p. 489-490. 20 MARQUES. Idem.
120
A SAÚDE SUPLEMENTAR E O ENFRENTAMENTO DA NEGATIVA DE COBERTURA
CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
alto custo de alguns tratamentos, acabam negando a cobertura contratual. Tais limites são
facilmente encontrados no princípio da dignidade da pessoa humana, no direito à vida e
na garantia de um mínimo existencial.21
Com base na adequação do serviço, o artigo 20, § 2º, do Código de Defesa do
Consumidor, é bastante claro e preciso ao estabelecer a necessidade de adequação dos
serviços à expectativa legítima do consumidor. O que não é diferente quando se trata da
prestação de serviço adequado e eficiente de saúde.22
A Apelação Cível julgada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro traz
interessante argumentação: tratava-se de paciente acometido de moléstia grave, com
necessidade de assistência médica constante e em nível nacional. Examinando a questão
dos contratos de saúde cativos, de longa duração, que vinculam contratante, contratado e
beneficiários por longo tempo23, o julgador assim se expressou:
O Estado liberal de antes, preocupado apenas em proteger o indivíduo isoladamente considerado
e sua propriedade, cede espaço ao estado social interventor e provedor de tudo e de todos, e
este, por sua vez, a um modelo intermédio, de um estado regulador, que intervém nas relações
privadas quando necessário a assegurar a satisfação das necessidades básicas – mínimo
existencial – em ordem a implementar uma sociedade mais livre, justa e solidária. A intervenção
nos contratos é gradual e proporcional ao relevo das necessidades humanas postas em jogo e
são alcançados em cheio por políticas intervencionistas aqueles contratos que põem em jogo as
condições mínimas de bem-estar dos contratantes. Ao contrário, contratos que não interfiram
sobre essas condições mínimas são regidos por uma disciplina menos intervencionista, sendo
aí ampliada a liberdade de contratar. Assim, os contratos que envolvam a aquisição de bens ou
serviços considerados essenciais se sujeitam a um regime tutelar próprio que vai buscar sua
justificativa na necessidade de proteção da parte mais vulnerável, em atenção ao princípio da
igualdade material, ou factual que, nas palavras de Alexy, se constitui, ultima ratio, em autêntico
pressuposto da liberdade efetiva que a todos assiste em decorrência da singela condição de ser
21 No Recurso Especial no 466.667/SP, entendeu-se que a aplicação de cláusula de carência estabelecida em contrato
de prestação de saúde merece temperamento frente à ocorrência de circunstância excepcional, constituída por
necessidade de tratamento emergencial de doença grave que, se não prestado a tempo, tornará inócuo o próprio fim
do pacto celebrado – a manutenção da vida. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 466667/
SP, Relator Ministro Aldir Passarinho, DJ. 17.09.2007. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 1º out.
2009).
22 AGRAVO DE INSTRUMENTO - UNIMED - REVASCULARIZAÇÃO CORONÁRIA - ANTECIPAÇÃO DE
TUTELA - IMPLANTE DE “STENTS” POR INDICAÇÃO MÉDICA - COBERTURA PREVISTA NO PLANO
DE SAÚDE - REQUISITOS DA ANTECIPAÇÃO PRESENTES - DISPENSA DE CAUÇÃO - POSSIBILIDADE AGRAVO DESPROVIDO. (PARANÁ. Tribunal de Alçada do Paraná. Agravo de Instrumento n. 0233245-4, Relator
Paulo Hapner, dj. 07.12.2004. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 27 de jan. 2009).
23 Cláudia Lima Marques defende a importância de, nas relações contratuais (especificamente planos de saúde e
planos funerários), ser concedida maior proteção aos direitos fundamentais das pessoas idosas. Os idosos são
vulneráveis, tanto fisicamente, quanto na condição de consumidores. Considerando que tais contratos são de longa
duração, defende a implantação de “ações afirmativas” no sentido de priorizar a manutenção do vínculo, afastar
cláusulas-barreira, prestar informações claras quanto aos reajustes em cada faixa etária, dentre outras alternativas
que protejam a expectativa depositada por essa especial classe de contratantes. (MARQUES, C. L. Solidariedade na
Doença e na Morte: sobre a necessidade de “ações afirmativas” em contratos de planos de saúde e de planos funerários
frente ao consumidor idoso. In: SARLET, I. W. (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 185-222). 121
Artigo 7
e devir, e que a lei constitucional consagra com as galas de princípio estruturante do próprio
Estado de Direito Democrático, comprometido não só com o respeito, mas com a proteção,
promoção e desenvolvimento dos direitos fundamentais.24
De igual forma, o Código de Defesa do Consumidor determina, em seu artigo 47,
que as cláusulas devem ser interpretadas de modo mais favorável ao destinatário do serviço.
Com efeito, não se faz mais distinção entre cláusulas claras ou ambíguas; a nova
visão sobre a proteção contratual deve ter em conta uma interpretação mais favorável ao
consumidor, e a ideia de interpretação do contrato, teoricamente, com cláusulas claras,
conforme a sua função econômica. Isso porque as cláusulas claras serão interpretadas
conforme as expectativas que aquele tipo contratual e de cláusula desperta nos consumidores,
conforme as imposições da boa-fé25.
Nessa seara, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná reconheceu também, por
meio da aplicação do art. 47 do CDC, a cobertura contratual de exame de alta complexidade
em razão da inexistência de expressa cláusula vedando a sua realização e diante da
cobertura do tratamento da doença investigada pelo plano contratado pelo consumidor. 26
Observa-se que a argumentação considerou, como finalidade básica do contrato,
a preservação da saúde do segurado. Isso quer dizer que o direito à saúde, em que pese
não tenha sido expressamente utilizado no referido acórdão, motivou de forma direta
e imediata a aplicação desse direito fundamental no contrato, afastando a liberdade
econômica do contrato.
Pode o Poder Judiciário, ainda, utilizando-se do Código de Defesa do Consumidor,
considerar cláusulas previstas em contratos de planos de saúde abusivas, por ferir os
princípios da boa-fé e da equidade, em face do que dispõe o inciso IV, e § 1º, II, do art.
51 do referido diploma legal:
Art. 51 - São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao
fornecimento de produtos ou serviços que:
(…)
24 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação nº 2008.001.29567, Relator Maurício
Caldas Lopes, dj. 18.06.08. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br>. Acesso em: 2 maio 2010.
25 MARQUES, C. L. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005. p. 645.
26 APELAÇÃO CÍVEL - PLANO DE SAÚDE - EXAME “PET SCAN” (TOMOGRAFIA POR EMISSÃO
DE POSÍTRONS) - NEGATIVA DE COBERTURA, POR AUSÊNCIA DE PREVISÃO NO ROL DE
PROCEDIMENTOS DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE (ANS) - ILEGALIDADE - RELAÇÃO
MERAMENTE EXEMPLIFICATIVA, QUE TRAZ APENAS A REFERÊNCIA BÁSICA DOS PROCEDIMENTOS
MÍNIMOS A SEREM ASSEGURADOS - PROCEDIMENTO NÃO EXCLUÍDO EXPRESSAMENTE
PELO CONTRATO - AFRONTA AO DISPOSTO NO ART. 16, VI, DA LEI 9.656/98 - INTERPRETAÇÃO
FAVORÁVEL AO CONSUMIDOR - PLANO QUE PREVÊ A COBERTURA PARA O TRATAMENTO DA
DOENÇA INVESTIGADA - DEVER DE ASSEGURAR A COBERTURA - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
- MANUTENÇÃO - SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (PARANÁ. Tribunal de Justiça do
Paraná. Apelação Cível nº 576.015-6, Relator Luiz Lopes, dj. 04/06/2009. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>.
Acesso em: 2 dez. 2009).
122
A SAÚDE SUPLEMENTAR E O ENFRENTAMENTO DA NEGATIVA DE COBERTURA
CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor
em desvantagem exagerada, ou que sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal
modo a ameaçar o objeto ou equilíbrio contratual.
Nesta seara dos contratos de planos de saúde, a título exemplificativo, a cláusula
que limita tratamento pode e deve ser considerada nula por contrariar a boa-fé, quando
cria um desequilíbrio no contrato ao restringir o tratamento de saúde de que necessita o
consumidor.
Inúmeras são as decisões a esse respeito, e os tribunais brasileiros estão sendo
unânimes nas decisões sobre a impossibilidade de limitação do tratamento a ser dispensado
ao consumidor27, havendo que se falar até em um Poder Judiciário fomentador da segurança
jurídica e protetor da confiança dos cidadãos (abrangidos pelos planos de saúde) de que
terão seus direitos contratualmente previstos, assegurados e efetivos, pois em todas as
instâncias o entendimento tem sido o mesmo: cláusulas contratuais abusivas não podem
limitar o exercício do direito fundamental à saúde.
A problemática sobre a impossibilidade de limitação do tempo de tratamento foi
tão debatida nos tribunais brasileiros, que para dirimir a controvérsia, o Superior Tribunal
de Justiça editou a Súmula 30228, utilizada em inúmeros julgados29.
Ademais, na seara de negativa de cobertura contratual, paradigmático o acórdão
da Desembargadora Dra. Astrid Maranhão, por conta de sua qualidade de fundamentação.
Declarou-se a abusividade de cláusula contratual que nega cobertura para utilização de
27 Como exemplo: APELAÇÃO - COBRANÇA DE PLANO DE SAÚDE - APLICABILIDADE DO CDC
- LIMITAÇÃO DO TEMPO INTERNAÇÃO - CLÁUSULA ABUSIVA - LIQUIDAÇÃO POR ARTIGOS IMPOSSIBILIDADE. Aplicável é o CDC nos contratos de plano de saúde, vez que a administradora do plano se
enquadra na figura de fornecedora, já que presta serviços médico-hospitalares de forma direta ou indireta, mediante
remuneração. A cláusula que estipula limite de tempo de internação a beneficiário de plano de saúde é abusiva, sendo
nula de pleno direito, a teor do art. 51, IV, do CODECON, isto porque não compete ao paciente estipular o tempo
que ficará internado, sendo tal estipulação feita pelo médico responsável. (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de
Minas Gerais. Apelação Cível n.° 1.0024.03.990131-9/001, Relator Antônio de Pádua, dj. 25.07.2006. Disponível
em: <www.tjmg.jus.br>. Acesso em: 1º out. 2009).
APELAÇÃO CÍVEL. SEGUROS. INTERNAÇÃO HOSPITALAR. ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA DE
LIMITAÇÃO TEMPORAL. ATENDIMENTO PSIQUIÁTRICO. SÚMULA 302 DO STJ. PRELIMINAR DE
ILEGITIMIDADE ATIVA. CERCEAMENTO DE DEFESA. PROCEDÊNCIA MANTIDA. A cláusula contratual
que prevê a limitação da internação hospitalar é considerada abusiva, consoante entendimento já pacificado e teor
da Súmula 302 do STJ. Afastaram a preliminar e negaram provimento ao agravo retido e ao apelo. Unânime. (RIO
GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70027469790, Relator Des.
Artur Arnildo Ludwig, Julgado em 25.03.2010. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 2 maio 2010).
28 Superior Tribunal de Justiça. Súmula 302: “É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo
a internação hospitalar do segurado”. 29 Como exemplo, temos: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.o 361.415-RS, Relator Ministro
Luis Felipe Salomão, dj. 16.06.2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 1º out. 2009.
123
Artigo 7
próteses, ao reconhecer a ausência de transparência e informação ao consumidor quanto
ao objeto e à extensão dos direitos e obrigações insertos no contrato.30
Diante das peculiaridades do caso, entendeu a relatora que cabe ao Poder
Judiciário adaptar-se a essa nova visão do direito contratual, reconhecendo não só que deve
prevalecer o direito básico à saúde, mas também que a vontade das partes na celebração do
contrato (vontade esta anterior, contemporânea e posterior ao ajuste) deve ser preservada,
independentemente da redação do respectivo instrumento e em atenção ao princípio da
conservação do pacto contratual, uma vez que geralmente a negativa de revisão da avença
conduz ao inadimplemento contratual, que é prejudicial a ambas as partes contratantes,
já que assim restarão frustradas as expectativas dos contratantes.31
Por derradeiro, subscreve-se o entendimento do ministro Celso Mello, quando
no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em tudo autoexplicativo, que
reflete de forma irretocável a importância de uma existência digna e saudável do paciente
frente a interesses financeiros, (e diga-se seguido como precedente em inúmeros julgados):
Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito
subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da república (art. 5º,
caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse
financeiro, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica
impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável
à vida e à saúde humana.32
Portanto, o consumidor, ao contratar um plano de saúde, tem a legítima expectativa
de receber um atendimento adequado e eficaz quando necessitar, não podendo prevalecer
o interesse financeiro sobre o direito fundamental à saúde.
30 DIREITO CIVIL - CONSUMIDOR - AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁSULA CONTRATUAL
C/C COM OBRIGAÇÃO DE FAZER - PLANO DE SAÚDE - PROCEDIMENTO MÉDICO - NEGATIVA DE
COBERTURA - HERMENÊUTICA CONTRATUAL - CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL RELAÇÃO DE CONSUMO - APLICAÇÃO DA LEI 8.078/90 - VULNERABILIDADE E HIPOSSUFICIÊNCIA
TÉCNICA DO CONSUMIDOR - DESCONHECIMENTO DE TERMOS DE CONOTAÇÃO ACADÊMICO
- CIENTIFÍCO - ADOÇÃO DO CONCEITO DE HOMEM MÉDIO “BONUS PATER FAMILIAE” - AUSÊNCIA
DE TRANSPARÊNCIA E INFORMAÇÃO AO CONSUMIDOR QUANTO AO OBJETO E EXTENSÃO DOS
DIREITOS E OBRIGAÇÕES INSERTOS NO INSTRUMENTO DE TRÂNSITO JURÍDICO - RECONHECIDA
ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA CONTRATUAL - NULIDADE - INTERPRETAÇÃO MAIS FAVORÁVEL AO
ADERENTE - PREVALECIMENTO DO DIREITO BÁSICO À SAÚDE ARTIGO 6º DA LEI 8.078/90 - FILTRAGEM
CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO - PREEMINÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL, BOA FÉ OBJETIVA, DEVER
DE COOPERAÇÃO E SOLIDARIEDADE CONTRATUAL - CLÁUSULAS ABERTAS - INTEGRAÇÃO JUDICIAL
AXIOLÓGICA E VINCULATIVA AO CASO CONCRETO - INTELIGÊNCIA LEGAL DOS ARTIGOS 112 E 113
E 421 E 422 DO CÓDIGO CIVIL - VALORAÇÃO DA DIGINIDADE DA PESSOA HUMANA STANDART DO
ORDENAMENTO JURÍDICO ARTIGO 1º, INCISO III, DA CF/88 - CONCEPÇÃO ÉTICO - JURÍDICA DO SER
HUMANO ENQUANTO SUJEITO DE DIREITO CONCRETO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
(PARANÁ. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível nº 363059-9. Relatora Astrid Maranhão de Cavalho
Ruthes, dj. 24.05.2007. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 27 jan. 2009).
31 Idem.
32 BRASILIA. Supremo Tribunal Federal. Petição 1246-SC, Relator Ministro Celso Mello, dj. 13.02.1997.
Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 6 mar. 2008).
124
A SAÚDE SUPLEMENTAR E O ENFRENTAMENTO DA NEGATIVA DE COBERTURA
CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Considerações finais
Muitos são os problemas a serem enfrentados sobre o tema, ainda mais quando
estão em jogo, de um lado, o interesse econômico privado, a autonomia individual para
celebração dos contratos de saúde e o exercício da livre iniciativa e, de outro, o exercício
do direito inalienável à vida e à saúde.
A escassa bibliografia sobre o assunto só demonstra que poucos são os que
pensam e querem discutir a triste realidade vivida no Brasil no que diz respeito à relação
contratual entre os planos de saúde e os consumidores. Até porque não se desconhece a
existência de outros interesses econômicos e políticos (de grandes grupos) por detrás de
uma precária legislação sanitária.
Como visto, leis foram criadas para regulamentar as operadoras dos planos de
saúde, mas os abusos continuaram. Por meio de lei foi criado um órgão fiscalizador (ANS),
mas de nada adiantou; os abusos perduram no tempo, como penitências a serem pagas pelos
consumidores, que beneficiando-se da Lei 8078/90 passaram a ser verdadeiros sujeitos de
direito em matéria de contratos de plano de saúde.
Porém, o que se coloca é: o estado não precisa mudar este panorama para que a
solução não dependa sempre de decisões judiciais?
Referências
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Artigo 7
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Acesso em: 2 maio 2010.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº
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Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado , 2007.
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particulares. In: SAMENTO, D.; GALDINO, F. (Orgs.) Direitos fundamentais: estudos
em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
126
Oriente X Ocidente – quem é
o inimigo?
Mara Angelita Nestor Ferreira 1
Introdução. 1 Ocidente X Oriente. 2 O conflito entre Oriente e Ocidente.
3 A pluralidade oriental. Considerações finais. Referências.
Introdução
A história recente da humanidade aponta diversas transformações2 ocorridas
mundialmente, caracterizadas por efemeridade, versatilidade, insegurança, enfim, àquelas
peculiares à fluidez líquido-moderna. O período é de pouca estabilidade. Nada mais
permanece – não há tempo para consolidação, o envelhecimento ocorre antes mesmo de as
estratégias terem sido apreendidas, pois tudo é muito fluido, a vida é precária, as estratégias
existenciais são de curto prazo, reservadas a um projeto de vida voltado à individualidade.
Vem de encontro a assertiva de Boaventura Souza Santos, asseverando que “a rapidez,
a profundidade e a imprevisibilidade de algumas transformações recentes conferem ao
tempo presente uma característica nova: a realidade parece ter tomado definitivamente a
dianteira sobre a teoria”.
A globalização, a reforma do Estado, a crise do Estado-Nação, dentre outras,
consistem em repercussões das densas mudanças trazidas pelos ventos dos tempos fluidos.
Outro sinal característico da modernidade é o estabelecimento de padrões binários
contrapostos verificados em inúmeros ambientes; no direito atingiu a relação público/
privado, objeto/sujeito, individual/coletivo, modernidade/pós-modernidade etc., surgindo,
então, a necessidade de mediação marcada por categorias próprias à contemporaneidade.
As dicotomias antagônicas, que sempre estiveram presentes na história da
humanidade, também se alteraram; não a ponto de desaparecerem, mas, certamente, foram
profundamente transformadas.
O presente estudo tem a pretensão de trazer à baila a discussão entre Ocidente X
Oriente a partir da perspectiva schimitiana, ligada ao conceito de político erigido sobre o
binômio amigo-inimigo, além das implicações na contemporaneidade, bem como a sutileza
conceitual disfarçada utilizada para encobrir a real intenção na busca da hegemonia das
grandes potências ocidentais.
1 Mestre em Direito; professora da Faculdade Dom Bosco. E-mail: [email protected]
2 Segundo Zygmunt Bauman, o mundo está passando por transformações sem precedentes – da fase “sólida” para a
“líquida-moderna”.
127
Artigo 8
1 Ocidente X Oriente
Na contemporaneidade, não há possibilidade de tratar do binômio Ocidente-Oriente
como antes; hoje, a dicotomia assume outros significados – apresenta novas características,
ora reafirmando-se, ora transfigurando-se, mas definitivamente não se podem reproduzir
as concepções do passado.
Nesse diapasão, a história tem sido “a história” das relações entre Ocidente e
Oriente, como também da relação do Oriente e Ocidente; portanto, não há como considerar
a ocidentalização do mundo sem apreciar a orientalização, que decorrem das mediações
distintas que se articulam reciprocamente, as quais se afirmam e reafirmam singularidades,
identidades e originalidades específicas de cada povo – num movimento de influência
mútua – num verdadeiro processo de transculturação3.
a) A problemática das definições
Tratar de definições nunca foi tarefa fácil, especialmente diante da fluidez do
momento presente, em que as concepções se encontram em constante mutação – em relação
aos significantes e, muito mais, aos significados. Os significados ou conteúdos destinam-se a
dar sentido real, não só realizando a readequação ao significante (posto aprioristicamente),
cumprindo a função de localizar os significantes no espaço-tempo, assentando-os na
história e na cultura, devendo-se rejeitar conceitos monolíticos e autorreferentes, definições
estanques, acabadas, inexauríveis ou fixas, com pretensão de completude. O significado
(que indica o sentido) é dútil em relação ao significante (que é locus linguístico), que
tende à permanência.
Assim, deve-se ir além dos continentes para dar conta da realidade social em
face da ocorrência constante de inputs e outputs que promovem alterações nas relações
sociais, sob pena de incorrer em exclusão, pois “aquele que define, ao assim se balizar,
tanto se revela quanto promove, na definição, um senso de privar por eliminação: o que
no conteúdo não está, deixa de consistir em objeto possível daquela demarcação”4.
A pretensão de universalidade dos significantes deve ser relativizada, sob pena de
torná-los estáticos em face do movimento dinâmico apresentado pelas relações sociais. A
pretensão de perenidade dos significantes não pode se constituir em empecilho à solução
dos conflitos sociais, pois ainda que perenes, não representam a imobilidade absoluta,
demandando curso diligente, visando adequar-se ao fluxo autêntico da sociedade.
Igual desdobramento ocorre em relação aos conceitos dos dois processos
civilizatórios em andamento, distintos, diversos, não estáticos e, portanto, não encontram
prontos ou acabados – acham-se num movimento dinâmico. Logo, não é possível a
3 Termo utilizado por Octavio Ianni para designar a influência recíproca que as culturas sofrem quando entram em
contato – são transformadas, umas pelas outras, em movimento constante e inevitável.
4 FACHIN. L. E. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 90.
128
Oriente X Ocidente – quem é o inimigo?
comparação entre as duas culturas, mesmo porque ambas estão erigidas sobre valores e
particularidades próprias a cada povo, o que explica os contornos, as polarizações e as
ideologias diferentes.
Corolário, definições exatas, precisas, com pretensão de universalidade e
perenidade, quer em relação ao Oriente ou Ocidente, não são permitidas, pois os significados,
aqueles que anunciam as interpretações do significante a representar a evolução dos
tempos, devem sofrer constante reformulação. A posteridade aguarda a superação ou a
transformação do modelo clássico que não dá conta de toda a realidade social, que demanda
o abdicar de categorias ultrapassadas, uma vez que não se pretendem definições perenes,
absolutas e imutáveis, sob pena de se inverter a equação, ou seja, são os conceitos que
devem se submeter à realidade e não o contrário.
No entanto, para que tal finalidade seja atingida, mister se faz que a concepção
de homem, quer seja do Oriente ou do Ocidente, como abstrato e genérico (virtual), seja
abolida, cedendo lugar ao nascimento de nova perspectiva, considerando-o concreto,
inserido em contexto histórico e cultural.
b) O Oriente na perspectiva do Ocidente e vice-versa
Inobstante as advertências expostas alhures, o sedutor caminho que almeja
estabelecer um conceito pronto e acabado com pretensão de perenidade é bastante tentador.
Por isso, o Ocidente olha para o Oriente e o define como fundamentalista, composto de
grupos islâmicos ligados ao terrorismo, formado por povo de cultura inferior por não adotar
os mesmos valores do Ocidente, como igualdade e liberdade. No entanto, a visão de um
Oriente misterioso e prodigioso foi inventada pelo Ocidente colonizador e, posteriormente
utilizada para demarcar a própria identidade ocidental, bem como legitimar os interesses
colonialistas.
Aliás, criou-se o termo orientalismo5 para se referir a uma construção discursiva
que o Ocidente fez e continua a fazer sobre o Oriente. Nessa ótica ocidental distorcida,
o mundo fica reduzido a uma divisão arbitrária entre Ocidente x Oriente, onde aquele é
autodefinido pela visão eurocêntrica como o “racional”, “normal” e “civilizado”, enquanto
este é tudo o que é diferente, excêntrico e bárbaro. O Oriente, especialmente os povos islâmicos, restam por formular concepções
também equivocadas do Ocidente, rotulando-o de “o grande mal” que deve ser combatido
porque objetiva dominar o Islã.
5 Termo comumente utilizado para definir o estudo por cientistas e intelectuais eurocêntricos sobre o conjunto
histórico e cultural teoricamente constituído por todas as sociedades “fora” do contexto ocidental da cultura europeia.
Adquiriu particularidades institucionais a partir do colonialismo moderno do século XIX, o “orientalismo”. Passou a
estudar vasto grupo de civilizações que incluem o Extremo Oriente, a Índia, a Ásia Central, o Médio Oriente, apesar
de vulgarmente ainda designar o mundo árabe.
129
Artigo 8
Assim, acabam por inferir duas visões diversas que não correspondem à verdade,
constituindo-se em equívoco conceitual, com mesmo ponto em comum: encontram-se
contaminados pelo idêntico vício – interpretar o “outro” por meio de valores próprios.
Enxergam um ao outro maculado pelo pré-conceito que lhes é peculiar por questões religiosas
e culturais. Assim, não há como construir conceito definitivo, que se pretenda neutro e
imparcial (se é possível neutralidade e imparcialidade), pois sempre será “um ponto de
vista” envolto em valores que integram a cultura daquele que formula a definição. Por ser
unilateral, o risco do cometimento de disparates conceituais e deturpações revela-se óbvio.
A mídia mundial desempenha papel relevante nesse cenário, pois acaba por incidir
nesta atrocidade, divulgando os fatos históricos sob sua perspectiva – independente de
ser no Oriente ou no Ocidente, sem preocupar-se em difundir informações que realmente
possam se constituir em fontes seguras para construção de juízos de valor com pretensão
de imparcialidade. Esses estereótipos acabaram reforçados por meio do ambiente eletrônico
(internet), que reclama uma informação cada vez mais estandardizada, que inunda a
imprensa e a mente popular.
Por exemplo: não se divulga na mídia ocidental o debate que ocorre no Irã acerca
da justiça e liberdade. Também não se divulga a motivação que dá origem às reações
violentas do Hamas, que buscam impedir o avanço da ocupação israelense. Trata-se de
visão reducionista, que não informa, mas aspira “formar” juízos de valor visando repelir
a “outra” cultura, pois antagônica. Independente de definição, tanto o Oriente quanto o
Ocidente constituem-se em criações do homem. O Oriente não é o “Oriente”, é “o Oriente
tal como foi orientalizado”, o mesmo se aplicando para o Ocidente.
c) O discurso dissimulado do Ocidente
Apesar da relação dicotômica a priori redundar em influências recíprocas, não
significa que sejam em idênticas proporções. Tal assertiva se materializa na medida em
que se percebe a predominância de valores ocidentais em relação ao Oriente – o curso da
história denuncia a imposição do Ocidente sobre o Oriente. Nesse desenrolar, a globalização
desempenhou papel fundamental, pois sob a égide de realizar “bons negócios”, restou por
banir crenças, costumes, particularidades e instituições que se mostravam opositoras ou
obstavam o caminho do desenvolvimento industrial e do próprio “mercado ocidental”.
Assim, o capitalismo, aliado à cultura judaico-cristã, influenciou, decisivamente, o conjunto
de características do Oriente, impregnando-o com valores próprios do Ocidente, como
liberdade, igualdade, mercado, capital, trabalho, etc.
Aos poucos, os princípios jurídico-políticos próprios do Ocidente espalharam-se no
Oriente. Instituições, padrões e valores socioculturais do Ocidente adentraram no Oriente,
ora difundidos ou importados, ora espontâneos ou impostos, como “verdade absoluta”, com
pretensão emancipatória, assumindo a posição de superioridade cultural. Aliás, acredita130
Oriente X Ocidente – quem é o inimigo?
se que o Ocidente encerra a prerrogativa de que lhe cabe a atribuição de administrar e
possuir o mundo “não branco, europeu e cristão”, pois foi disseminada a imagem de que
esse mundo não é tão humano quanto “nós” somos.
O orientalismo serviu com uma ferramenta legitimadora da exploração colonial
por meio de um trabalho de pesquisa pautado, antes de tudo, na hipótese da inferioridade
racial e cultural de todas as civilizações não europeias. O seu objetivo, não assumido,
foi a busca da justificação do processo imperialista através do discurso de redenção dos
“primitivos, inferiores e subdesenvolvidos”.
Tal prática mostrou-se amplamente nociva e eficaz em criar um desinteresse
absoluto em conhecer mais profundamente as civilizações árabes, asiáticas e africanas, bem
como de trabalhar o medo e a desconfiança em relação aos dominados, cujas sociedades
eram tidas como “incultas, irracionais e perigosas”.
Outro ponto relevante diz respeito à linguagem da identidade de grupo, que acabou
fortalecendo o Ocidente perante o Oriente, pois se utiliza de discursos simbólicos, cujo
núcleo está assentado em objetivos e valores elevados e nobres, pois o “outro” oriental é
inferior e carece de ajuda – um dos dogmas criado pelo Ocidente. Assim, sob este signo,
o Ocidente, portador de altiva missão redentora, lança-se em salvação, dissimulando seu
verdadeiro desígnio – dominar o “outro”.
Colorário, cada potência criou e cria seu discurso adequado à finalidade pretendida,
visando legitimar as ações de dominação do “outro”, fundado no eixo comum dos ideais nobres,
emancipatórios e libertadores, os quais não passam de pretextos para dissimular a ambicionada
dominação pura e simples, que se encontra organizada na noção de superioridade civilizatória.
Essa suposição presunçosa da superioridade civilizatória evidencia o absoluto
desrespeito à condição humana, contrastando com a exigência contemporânea – reconhecer
a diversidade e as implicações que dela derivam, segundo as quais não há hierarquia de
valores (bons ou maus, superiores ou inferiores, melhores ou piores, válidos ou inválidos).
Trata-se de reconhecer a identidade particular como integrante do todo sem que isso demande
a universalização conceitual. Por outro lado, como reação ao movimento de dominação,
surgem discursos que fazem alusão à unidade, à independência e à autodeterminação.
Outro dogma é o de que o Oriente é eterno, uniforme e incapaz de autodefinição e, por
isso, torna-se imprescindível a “descrição” ocidental para suprir essa pseudocarência.
2 O conflito entre Oriente e Ocidente
O choque que ocorre atualmente entre o Ocidente e o Oriente advém do vazio
deixado pelo término da Guerra Fria, quando da queda do Muro de Berlim, representante-mor da divisão política mundial em dois blocos antagônicos. Esse sentido bipolar da política
mundial foi substituído pelo choque entre Ocidente e Oriente, tendo como representante
do Oriente as civilizações islâmicas, em regra, associadas pelo ocidental ao terrorismo
131
Artigo 8
ou fundamentalismo religioso, o que é um equívoco. O conflito desencadeado (ou pelo
menos o discurso legitimador) são de cunho ideológico, a ponto de Samuel Huntington
asseverar que o choque das civilizações seria inevitável, concebendo uma fórmula para
manter a ascendência ocidental sobre o Oriente:
O que o ocidente pode fazer para continuar forte e manter seus supostos oponentes fracos e
divididos deve “explorar as diferenças e os conflitos entre os Estados confucianos e islâmicos;
[...] apoiar em outras civilizações grupos simpáticos aos valores e interesses ocidentais; [...]
fortalecer as instituições internacionais que refletem e legitimam os interesses e valores
ocidentais e [...] promover o envolvimento de Estado não ocidentais nessas instituições.6
Portanto, segundo Samuel Huntington, seria salutar a manutenção ou fomento dos
conflitos fundados nas diferenças entre Oriente e Ocidente, ainda que de cunho ideológico,
com vistas à permanência de certa polaridade.
A despeito dos conflitos existentes ou provocados, o certo é que tanto Ocidente
quanto Oriente se encontram em mutação e não sairão deste processo da mesma forma
como adentraram, ainda que o Ocidente esteja em plena crise paradigmática7 – uma crise
da razão ocidental. Aliás, de acordo com Edward Said,
[...] o ensaio de Huntington deve ser entendido como um manual muito curto e grosseiramente
articulado da arte de manter uma situação de tempo de guerra nas mentes dos americanos
e de outros povos. Eu diria até que ele argumenta do ponto de vista dos planejadores
do Pentágono e dos executivos da indústria da defesa que talvez tenham perdido suas
ocupações depois da Guerra Fria, mas descobriram agora uma nova vocação.8
Nessa etapa da mediação, é importante ressaltar que a obra de Huntington teve
origem no artigo de Bernard Lewis (setembro/90), em que este assevera: “a esta altura
deveria ficar claro que estamos diante de uma disposição de ânimo e de um movimento
que transcendem em muito o nível das questões, das políticas e dos governos que as põem
em prática. Trata-se nada menos do que um choque de civilizações – as reações talvez
irracionais, mas certamente históricas de um antigo rival contra nossa herança judaico-cristã,
nosso presente secular e a expansão mundial de ambos. É crucialmente importante que nós,
de nossa parte, não cedamos à provocação e tenhamos uma reação igualmente histórica,
mas também igualmente irracional contra esse rival.” 9 Vê-se, portanto, o chamamento
para o combate odioso a ser levado a termo pelo Ocidente em face da cultura oriental,
6 SAID, E. W. Reflexões Sobre o Exílio e Outros Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 37.
7 Crise paradigmática vivenciada pelo Ocidente diz respeito à modernidade e pós-modernidade. Somos ainda
modernos, mas também não somos mais. A crise da razão é propiciada pela pós-modernidade, que faz crítica aos
pressupostos próprios da modernidade. A crítica se faz presente com reflexos por todos os cantos. (In LUDWIG,
C. L. Da Ética à Filosofia Política Crítica na Transmodernidade: reflexões desde a filosofia de Enrique Dussel.
FONSECA, R. M. (Org.). Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 284-288.
8 SAID. Idem. p. 318.
9 Ibidem. p. 319.
132
Oriente X Ocidente – quem é o inimigo?
que antagoniza com a judaico-cristã e, por isso, deve ser repelida.
Dessa forma, assim como o Ocidente, o Oriente também construiu seu processo
histórico, que aos olhos do outro, constitui-se numa ameaça.
a) A relação amigo-inimigo e o pluralismo contemporâneo
Apesar das diferenças abissais entre Ocidente e Oriente, como religiosidade,
racionalidade, construção epistemológica, dentre outras, o curioso é que o Ocidente se
autodefiniu, desenhando a si próprio, a partir do desenho do outro; ou seja, a autoimagem
surge derivada da maneira oposta de olhar o outro – construindo a si mesmo como diferente
do outro. Nasce a relação nós-eles. O binômio amigo-inimigo na versão schimittiana resta
configurado, ainda que careça de uma releitura na perspectiva contemporânea.
Para essa abordagem, é necessária uma breve alusão ao conceito de político
declarado por Carl Schimit, já que esse fenômeno ocorre justamente no ambiente político,
o qual tem critérios próprios frente aos demais domínios10. Nessa perspectiva, o inimigo
político é justamente o “outro”, de modo que exista a possibilidade de conflitos. Tais
conflitos não podem ser decididos mediante normatização geral previamente estipulada,
nem pelo veredicto de um terceiro “desinteressado” (imparcial), uma vez que não há
como julgar senão participando (interesse existencial). Dessa forma, psicologicamente, o
inimigo passa a ser tratado como do mau, feio, isto é, precisa ser combatido. O curioso é
que, diante dessa perspectiva, forma-se a relação de alteridade – só existe o “nós” porque
existe o “eles”, ou seja, a relação amigo-inimigo, que deve ser entendida no sentido
concreto existencial. Nesse choque de civilizações proposto por Huntington, o inimigo
não é concorrente ou adversário particular, é público, constituindo-se num conjunto de
homens, com possibilidade de combatente real, já que o inimigo sempre estará associado
à hostilidade. Essa associação justifica-se na medida em que se propõe o aniquilamento do
inimigo. De outra forma, não há como validar a política de eliminação do “outro diferente”
ou do “eles”. Ilustrando a questão, oportuna é a citação de Chantal Mouffe:
Se aceitarmos que todas as identidades são relacionais e que a condição de existência de
qualquer identidade é a afirmação de uma diferença, determinação de um “outro” que
desempenhará o papel de “elemento externo constitutivo”, torna-se possível compreender
a forma como surgem os antagonismos. No domínio das identificações coletivas, onde o que
está em causa é a delimitação de um “nós” pela delimitação de um “eles”, existe sempre a
possibilidade de esta relação nós/eles se transformar numa relação do tipo amigo/inimigo;
por outras palavras, pode sempre se tornar política, no sentido que Schimitt dá ao termo.11
Assim, os conceitos de amigo-inimigo adquirem seu real sentido pelo fato de
manterem-se ligados à possibilidade real de aniquilamento físico, não se bastando o combate
10 Outros domínios como o moral (bom e mau), o estético (belo e feio) e o econômico (útil e prejudicial).
11 MOUFFE, C. O Regresso do Político. Trad. Ana Cecília Simões. Lisboa: Gradiva, 1996. p. 13.
133
Artigo 8
de ideias ou simbólico, isto é, a luta armada. A negação ontológica do “eles” torna-se a
realização extrema da inimizade e deve permanecer presente como real possibilidade,
enquanto o inimigo tiver sentido, posto que o elemento subjetivo da “hostilidade” estará
sempre presente no ser humano, que segundo Mouffe, assumirá diversas formas de se
manifestar nos vários tipos de relações sociais. Tal concepção pode ser vislumbrada
hodiernamente quando da análise das decisões tomadas nas últimas décadas pelo governo
Bush (ataque ao Iraque, Guantânamo, entre outras).
Apesar do conceito amigo-inimigo não se confundir com outras categorias,
numa visão schimittiana, em regra, as contraposições moral, econômica ou religiosa
transformam-se em políticas, desde que reúnam forças para agrupar as pessoas. Nesse
sentido, afirma Moufffe:
[...] quando o outro, que até aí só era considerado sob o prisma da diferença, começa a ser
compreendido como negando nossa própria existência. Desse momento em diante, qualquer
relação do tipo nós/eles, seja religiosa, étnica, nacional, econômica ou outra, torna-se o
centro de um antagonismo político.12
De acordo com Chantal Mouffe, com o fim do comunismo, que representava a
demarcação amigo/inimigo própria do século XIX, em vez da propagada nova ordem mundial
marcada por valores universais e genéricos, ocorreu a eclosão de particularismos13. No
entanto, a pretensão ocidental de universalizar alguns valores, como liberdade e igualdade,
ameaça a eliminação do político que, na perspectiva da democracia pluralista, absorve da
relação amigo-inimigo schmittiana o elemento nuclear – a hostilidade, que irá constituir
os antagonismos da vida social.
Em decorrência, há que se proceder a uma releitura da relação amigo-inimigo:
não se admite a eliminação do inimigo, a luta armada ou a violência declarada. Na
perspectiva pluralista, o conflito é negado, o inimigo não será destruído, mas também não
será completamente reconhecido. A violência deixa de ser declarada e passa a ser simbólica
mediante a prática da tolerância – criam-se artifícios que permitam a convivência com o
outro. Contudo, tanto a diferença quanto a diversidade serão tratadas como desvalores a
serem tolerados diante da impossibilidade de serem superados.14
3 A pluralidade oriental
Equivocadamente, o Ocidente enxerga o Oriente como uma homogeneidade
durável, inflexível e estática, marcada por certa uniformidade cultural. Entretanto, trata-se
12 MOUFFE. p. 13
13 Ibidem. p. 11.
14 KOZICKI, K. A política na perspectiva da filosofia da diferença. In: OLIVERIA, M. (Org.). Filosofia Política
Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1993.
134
Oriente X Ocidente – quem é o inimigo?
de visão distorcida da realidade histórico-cultural-religiosa que constitui os fundamentos
do Oriente. A pluralidade oriental passa longe da identidade. Tem-se o Islã, em regra, unido
pelo Ocidente ao “fundamentalista” regido pelo Alcorão; o budismo e a filosofia chinesa
na Ásia; o hinduismo e o bramanismo na Índia, entre outras. Cada civilização detentora
das suas peculiaridades complexas e intrincadas à luz da racionalidade ocidental.
Trazer a lume algumas perspectivas de culturas orientais torna-se ilustrativo
diante da diversidade presente. Assim, abordar-se-á, en passant, o islamismo e a filosofia
chinesa, justamente para demonstrar a difícil tarefa de compreender outra cultura fundada
em diferentes princípios que não integram a racionalidade ocidental e, por isso, apesar de
permitir o entendimento intelectual, restam incompreensíveis em nível existencial, pois
não fazem sentido ao Ocidente.
a) O islamismo
Da mesma forma que a civilização ocidental se fragmentou mantendo “certa
unidade” – branca, europeia e cristã –, idêntico processo atingiu o Islã. Assim, ocidentalmente
tem-se a falsa ideia de unidade/coesão, mas o pluralismo islâmico é real e presente.
Apesar do Alcorão (a palavra de Deus primordial e pré-eterna) ser o fundamento
nuclear do islamismo15, nem por isso o Islã constitui uma unidade. Pelo contrário, há divisões,
e a principal é representada pelos xiitas e sunitas. De acordo com o Alcorão, Muhammad
é aquele que traz boas novas, que adverte, que é “um bom exemplo”. Por conseguinte, os
seguidores são convocados a repetir fielmente e nos mínimos detalhes os mesmos gestos
do mensageiro de deus, como amarrar o turbante, comer certos alimentos, vestir-se de
maneira específica, etc. Esses costumes tornaram-se critérios de conduta do muçulmano.
Os xiitas autodenominam-se únicos legítimos sucessores do Profeta; acreditam que o
sacrifício voluntário abre caminho para o Paraíso; daí, a causa da fé e da justiça configurase para o xiita um ato natural, especialmente se o sacrifício se der na juventude – o que
é incompreensível para o Ocidente. Os xiitas dividem-se em várias seitas: a ismaelita,
que adotou uma interpretação esotérica da lei islâmica no início do medievo; o xiismo do
décimo segundo iman foi imposto como religião no Estado do Irã, e seu núcleo assenta-se
na ideia de que o último e o décimo primeiro imans originários da família do Profeta (que
desapareceu misteriosamente em 874) governam o mundo do além e são representados na
terra pelos teólogos legisladores, fixando, dessa forma, o papel do clero no Irã atual, além
de representar o princípio legitimista de governo.
Os sunitas, por sua vez, se autodenominam “aqueles que seguem a tradição do
Profeta e pertencem à grande comunidade dos crentes”; no entanto, os xiitas não desvalem
a sunna (costume), que tem papel importante na teologia e na vida. Os sunitas abrigam
15 LUCHESI, M. Caminhos do Islã. Rio de Janeiro: Record, 2002.
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gama de correntes e diversos sábios: há a predestinação, representantes do livre-arbítrio,
teólogos que interpretam literalmente as palavras da revelação e místicos que buscam
essências espirituais do Alcorão, dos ascetas e dos mundanos.
Inobstante as inúmeras diferenças e visão divergentes, ainda assim constituem
parte de um todo islâmico. As perseguições individuais comumente estão associadas à
ordem política e não teológica, especialmente no Islã, onde se busca organizar a comunidade
política em harmonia com a revelação; daí os conflitos entre as facções. Dentre os deveres
rituais dos crentes, encontram-se a reza, a peregrinação e o jejum. A fé nos anjos é parte
importante; são inumeráveis e descritos popularmente em cores radiosas. Todo ser humano
tem anjos em sua companhia – dois deles estão sentados sobre os ombros para notar suas
ações e seus pensamentos. Todo ser humano nasce acompanhado por entes angelicais.
O homem consiste em “uma asa de anjo e uma cauda de asno”, simbolizando que pode
realizar escolhas – entre o bem e o mal, enquanto os anjos, por natureza, são bons e
somente podem ocupar a posição de adoração na oração.
Existem aspectos simbólicos: o Dia do Julgamento, quando ocorrerá o acerto
de contas (está enraizado na antiga revelação, sendo descrito com formas assustadoras,
contendo duas balanças nas quais os pés são grãos de mostarda); o Livro das Ações, no qual
as letras pretas podem ser apagadas pelas lágrimas do arrependimento; a ponte mais fina
que um fio de cabelo, que deve ser ultrapassada para se atingir o paraíso (e os pecadores
caem no abismo do inferno); o paraíso, lugar onde os desejos são atendidos e se encontra
tudo o que se deseja, mas constitui-se numa etapa na viagem sem fim na direção de Deus.
b) A filosofia chinesa
A filosofia chinesa16, como representante da cultura oriental-asiática, fundamenta
a compreensão das coisas diferentemente dos ocidentais: a compreensão mediante a vida.
No entanto, como essa maneira diversa se exprime por meio de uma vaga religiosidade, o
Ocidente optou por segregar a sabedoria oriental e rotulá-la como crença ou superstição,
ignorando o realismo do Oriente, por não adotar os paradigmas da racionalidade ocidental.
Na visão chinesa, o espírito representa algo mais elevado que o intelecto,
englobando os estados afetivos e o próprio intelecto. O espírito constitui-se numa direção e
num princípio de vida (Yang, luz); a ele opõe-se o obscuro, telúrico (o Yin). Tais conceitos
representam concepções intuitivas, mas indispensáveis para a compreensão da essência
da alma, da qual a China nunca se afastou, como demonstra a história de sua filosofia.
16 LAO TZU. Tao Te Ching. São Paulo: Pensamento, 1983.
___. Hua Hu Ching. São Paulo: Pensamento, 1981.
____. Wen Tzu. São Paulo: Pensamento, 1985.
BOREL, H. Wu Wei. São Paulo: Attar, 1999.
CHUANG TZU. Escritos Básicos. São Paulo: Pensamento, 1997
CONFÚCIO. Os Anacletos. São Paulo: Pensamento, 1982.
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Oriente X Ocidente – quem é o inimigo?
Por isso, sempre reconheceu o paradoxo e a polaridade de tudo o que vive – os opostos
sempre se equilibram na mesma balança.
O Ocidente, que por sua vez se alicerçou na cultura judaico-cristã, construiu sua
racionalidade entendendo que o espírito se encontra separado do intelecto. Mas durante o
medievo a situação era inversa, sendo utilizada para justificar as “lutas santas”, pois eram
considerados valores positivos.
Do ponto de vista do intelecto, ignora-se o valor daquilo que o Oriente aprecia.
O puro intelecto não apreende a importância prática que o ideário oriental possui e
as classifica como curiosidades filosóficas e étnicas. Todavia, a busca da unidade da
personalidade foi o início do caminho seguido pelo Oriente desde as eras mais remotas.
Quanto à ideografia, atualmente existem somente três línguas sagradas no mundo, sendo o
mandarim uma delas; sua base é estabelecida sobre o pensamento-imagem, e sua expressão
escrita traduz-se por uma utilização horizontal e vertical do espaço gráfico. A escrita
emblemática chinesa obedece, sobretudo, a uma preocupação com a eficácia, não estando
voltada, primordialmente, para as necessidades de ordem individual. Independentemente
de sua pronúncia, o caráter chinês torna-se um veículo civilizador, pois permite que a
comunicação se processe para além da fala.
As concepções fundamentais chinesas revelam-se em Tao, Universo Geométrico,
Mundo das Transformações, Movimento Circular, Centro, os Fenômenos do Tao, bem
como os ensinamentos deixados pelos filósofos (Lao Tzu, Chuang Tzu, Cong Fu Tseu
[Confúcio]) e escritores (Tao Te Ching, Wen Tzu)
O Tao faz parte da grande tradição chinesa. Trata-se de um princípio que não
tem a origem datada, pois sua existência é anterior ao enunciado através desse vocábulo.
É resultado de uma civilização agrícola, cuja ancestralidade remonta a dois mil anos a.C.17
Significa o que existe por si mesmo. O segredo mais sutil do Tao é a essência da vida. É o
método ou o caminho consciente que deve unir o separado (a consciência e a vida), sendo que
o objetivo dessa unificação é a obtenção da vida consciente, resultado da realização do Tao.
A memória da filosofia chinesa é intemporal, ou seja, como a escrita ainda
não havia sido inventada, a transmissão era feita oralmente, e as gerações sucessivas
beneficiavam-se da experiência adquirida por seus ancestrais. Embora a história da
China remonte a mais de quatro mil anos, o primeiro historiador conhecido, Sseu-ma
Tsien, só interveio no final do século X a.C., ou seja, cerca de mil e oitocentos anos
após o início dessa retrospectiva legendária; nessa época, o Tao já tinha mais de quatro
séculos de existência. Pode-se encontrar, antes de Sseu-ma Tsien, documentos que
17 Naqueles tempos remotos, a irrigação já era conhecida pelos chineses; utilizavam o forno de cerâmica e os homens
domesticavam animais. Uma dinastia mítica governava o país. Quinhentos anos depois, foi inventado um sistema de
escrita logográfica. A fundação de Roma veio a ocorrer somente quando os chineses já tinham mil e trezentos anos de
história enquanto nação, estando em sua terceira dinastia.
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relatam este passado, com conotação mais religiosa do que física, que trazem a marca
incontestável da metafísica.
O Universo Geométrico ensina: “no alto está o céu”. Ele marca o ritmo das
estações, que voltam ciclicamente; no que diz respeito a isso, sua natureza é circular. Ele
é redondo e sua cor é azul. Embaixo está a Terra. É o lugar sobre o qual repousam os
pés, que caminham nas quatro direções. Ela é quadrada e sua cor é amarela. O princípio
terrestre depende de um quaternário. No centro está o homem, com sua consciência, entre
o céu e a terra.
A partir do Universo Geométrico institui-se o Mundo das Transformações, pois
na terra o homem sofre a influência do céu. Ele age em conformidade com o ritmo das
estações, da natureza que desperta na primavera e de sua própria existência, que adormece
no inverno da velhice. Insta salientar que na origem do pensamento e sentimento chineses
reside o princípio da polaridade (Yin-Yang), que não deve ser confundido com as ideias
de oposição ou conflito. Nas metáforas de outras culturas, a luz está em luta contra a
escuridão, a vida contra a morte, o bem contra o mal e o positivo contra o negativo; nesse
diapasão, advém o idealismo de cultivar o primeiro e livrar-se do último, o qual floresce
em grande parte do mundo. Para a forma tradicional do pensamento chinês, a ausência
de polaridade é tão incompreensível quanto à corrente elétrica sem os polos positivo e
negativo simultaneamente, pois a polaridade é o princípio de que positivo/negativo, norte/
sul, isto é, binômios contrapostos, constituem diferentes aspectos de um mesmo sistema,
sendo que o desaparecimento de um implica no desaparecimento do sistema (todo/parte).
Dessa forma, os dois polos da energia cósmica são o Yang e o Yin, e seus
ideogramas indicam os lados ensolarado e sombrio de uma colina, e associados ao masculino
e feminino, ao firme e ao dócil, à luz e as trevas, etc. Igualmente, a arte de viver não é
encarada como a manutenção do Yang e o banimento do Yin, mas como o equilíbrio de
ambos, porque um não existe sem o outro.
O Movimento Circular e o Centro pressupõem que a “união dos opostos”, num nível
mais alto da consciência, não é uma questão racional ou da vontade, mas um processo de
desenvolvimento psíquico que se exprime em símbolos (o desenvolvimento da personalidade
individual é figurado por meio de imagens simbólicas), sendo fantasias em formas de
pensamento, que quando desenhadas tomam forma de símbolos, as mandalas (círculos
mágicos). Estas, por sua vez, são universais, e de acordo com a concepção oriental, o
símbolo mandálico não é apenas expressão, mas também atuação – atua sobre o próprio
autor. O movimento circular também tem o significado moral da vivificação de todas as
forças luminosas e obscuras da natureza humana, arrastando com eles todos os pares de
opostos psicológicos.
Os fenômenos do Tao manifestam-se da seguinte forma:
• Dissolução da consciência: o encontro da consciência individual,
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Oriente X Ocidente – quem é o inimigo?
•
estreitamente delimitada, mas de intensa clareza, com a tremenda extensão
do inconsciente coletivo representa um perigo, pois o inconsciente tem
um efeito dissolvente sobre a consciência. A concepção chinesa busca
diminuir o efeito dissolvente do inconsciente, descrevendo as configurações
do inconsciente, ou “pensamentos parciais”, como cores e formas vazias, e
assim as despotencializa.
Animus (HUN) e Anima (PO): animus ou alma etérea constitui-se no
Demônio das Nuvens, alto sopro da alma que pertence ao princípio Yang.
Após a morte Hun, se eleva e transforma em Shen – o espírito que se expande
e manifesta. Anima ou alma corpórea é o Fantasma Branco, princípio
Yin, etônico e inferior; após a morte, ela desce e se torna Gui, demônio,
frequentemente chamado “aquele que retorna a terra” (fantasma ou espectro).
Animus e Anima representam fatores psíquicos diversos; o primeiro está no
coração celeste; de dia mora nos olhos (consciência) e de noite sonha a partir do fígado.
Anima é a força do pesado e do turvo, presa ao coração corporal, carnal (desejos carnais
e ímpeto de cólera), personificação do inconsciente. A consciência é um efeito da Anima.
Assim, o fato decisivo e distintivo do Ocidente é que no pensamento chinês o
reconhecimento da mutação constitui-se na essência primordial, ao passo que no Ocidente
toma-se o puro ser como ponto de partida fundamental. A postura chinesa é intermediária
entre o budismo e a filosofia existencial ocidental. O budismo resolve toda a existência
considerando-a uma mera ilusão, e a filosofia de ser concebe a existência como uma
realidade autêntica oculta pela ilusão do vir a ser – o que os torna, por assim dizer, dois
polos opostos. O pensamento chinês busca a conciliação das duas condições, irreconciliáveis
entre si, que se encontram no tempo e se conciliam ao se sucederem, alternativamente, cada
qual se transformando na outra. Esta é, então, a ideia fundamental do Livro das Mutações:
oposição e união são geradas em conjunto no tempo. Esses opostos não são permanentes,
mas estágios de um processo constante de transformação, em ciclos alternados.
Considerações finais
Diante desse recorte pontual e mínimo, verifica-se não só a diversidade existente
entre Ocidente e Oriente, mas também as consequências derivadas dessa pluralidade
manifestando-se das mais variadas formas, pois se trata de um pluriversum humano; logo,
não há espaço para edificar um estado mundial englobando todos os povos, em que pese
as guerras continuarem em nome da “humanidade” e do “bem”, através da apropriação
de uma pretensa legitimidade inexistente de defender a humanidade em nome de todos,
utilizando esta terminologia como instrumento ideológico e de dominação. Aliás, na
perspectiva schmittiana, em um mundo pacificado, sem a existência de dicotomia contraposta,
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não haveria espaço para o político, pois o fenômeno político só pode ser compreendido
mediante a referência à real possibilidade do agrupamento amigo-inimigo, uma vez que o
político não reside na luta em si, mas no reconhecimento de sua situação amigo-inimigo.
Assim, continua-se a disseminar a ideia de que o Oriente se configura como algo
a ser temido, odiado, controlado por meio de pacificação, investigação e desenvolvimento
ou, ainda, simplesmente para ser ocupado sempre que possível.
No entanto, a inf luência contemporânea reclama movimento que renove a
compreensão dos fatos diante da complexidade, pluralidade e diversidade. Há que se
repensar paradigmas, cuja ação não se estanca num único momento, por se tratar de
movimento contínuo. Há que se superar modelos insuficientes e reconstruí-los sobre novas
bases, sob pena de repetir as atrocidades vivenciadas no passado. Essa passagem requer
reflexão apurada, visando superar a racionalidade materializada por meio das “definições”
estanques destinadas a rotular.
Há que se conceber a relação Ocidente-Oriente como interdependente e
complementar, abandonando a visão deturpada que reina no Ocidente, pois se trata de
uma construção imaginada, ainda que inspirada em fatos ou conjuntura crítica, sendo
utilizada como artifício narrativo ou técnica de dominação18.
Vislumbra-se que as retóricas caminharam em dois sentidos bem específicos:
um utópico – buscando um padrão universal de integração e harmonia (um estado para
todos iguais), e outra que admite a diferença a ponto de aceitar a guerra como caminho
“normal” ou até mesmo natural.
Referências
BAUMAN, Z. A modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BOREL, H. Wu Wei. São Paulo: Attar, 1999.
CHUANG TZU. Escritos básicos. São Paulo: Pensamento, 1997
CONFÚCIO. Os Anacletos. São Paulo: Pensamento, 1982.
FACHIN. L. E. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
KOZICKI, K. A política na perspectiva da filosofia da diferença. In: OLIVEIRA, M. (Org.).
Filosofia política contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1993.
LAO TZU. Tao Te Ching. São Paulo: Pensamento, 1983.
___. Hua Hu Ching. São Paulo: Pensamento, 1981.
____. Wen Tzu. São Paulo: Pensamento, 1985.
18 SAID. Idem. p. 74.
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Oriente X Ocidente – quem é o inimigo?
LUCHESI, M. Caminhos do Islã. Rio de Janeiro: Record, 2002.
MOUFFE, C. O regresso do político. Trad. Ana Cecília Simões. Lisboa: Gradiva, 1996.
NORMAND, H. Os mestres do Tao. São Paulo: Pensamento, 1993.
SAID, E. W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
WILLELMUS, R. O segredo da flor de ouro. São Paulo: Pensamento. 2004.
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