Os Jetsons no Big Brother Murilo Ohl No futuro, etiquetas com chips vão substituir o código de barras e mudar a cara dos supermercados. No presente, já criaram uma tremenda discussão sobre invasão de privacidade Dentro de uma década, fazer compras num supermercado será uma atividade muito diferente do que é hoje. Coladas aos produtos, etiquetas equipadas com microprocessadores e miniantenas informarão seus dados a sensores de radiofreqüência instalados em prateleiras, carrinhos e gôndolas. O supermercado saberá em tempo real qual item determinado cliente pegou. Nesse novo mundo, as filas nos caixas acabarão. Os estoques serão reduzidos. O custo da operação logística cairá, e essa queda se refletirá no preço das mercadorias. Vista como a evolução do código de barras, a tecnologia responsável por essas inovações chama-se RFID, acrônimo em inglês para identificação por radiofreqüência. Ela permite que os dados de um produto sejam arquivados numa minúscula etiqueta com chip e antena. Com isso, fabricantes, atacadistas e varejistas passam a saber tudo sobre o produto: prazo de validade, loja de destino, preço ao consumidor e, principalmente, localização. O princípio por trás da tecnologia é antigo. Foi desenvolvido para identificar aviões militares na época da Segunda Guerra. Mais recentemente, já com chip incorporado, começou a ser utilizado em pedágios rodoviários que substituem a parada no caixa pela passagem do carro por baixo de um sensor. Há cinco anos, o mercado varejista vislumbrou oportunidades com a tecnologia e passou a pesquisá-la. Embora tenham ocorrido muitos avanços - como a criação de um padrão internacional -, ainda há que evoluir muito para justificar o apelido que ganhou no Brasil: etiqueta inteligente. "Atualmente, a tecnologia está pronta para ser usada em cadeias de suprimentos, ou seja, até a porta dos fundos do supermercado", explica Cláudio Czapiski, superintendente da Associação ECR Brasil, entidade internacional criada para normatizar processos e ganhar produtividade em cadeias de abastecimento. Até o início do ano passado, o assunto RFID se restringia aos departamentos de supply chain das empresas. Em meados de 2003, porém, duas notícias vindas dos Estados Unidos estremeceram esse mercado. Primeiro, a Gillette anunciou a compra de 500 milhões de chips de RFID. O objetivo da empresa é saber onde vão parar as lâminas de barbear - item campeão mundial de furtos em supermercados. O prejuízo da Gillette com extravios é tão grande que a companhia topou acrescentar cerca de 30 centavos de dólar - o preço de um chip - a cada pacote de lâminas, produto cujo preço não chega a US$ 5. Ajudinha do Wal-Mart A segunda e definitiva bomba explodiu em dezembro, quando o Wal-Mart exigiu que seus 100 principais fornecedores adotassem a tecnologia a partir de 2005. Após uma hesitação inicial, mais de 130 empresas aceitaram o desafio da maior rede de supermercados do mundo e iniciaram testes com RFID. Juntos, os fornecedores do Wal-Mart investirão US$ 20 bilhões em hardware e software para colocar o sistema no ar, nos próximos dois anos. Graças a esse impulso, a tecnologia ganhou o noticiário. Um mercado se colocou prontamente de pé. Há diversos fabricantes de etiquetas eletrônicas como Sensormatic, Texas Instruments e Zebra Technologies. Consultorias como Accenture, Deloitte e IBM já montaram as respectivas equipes para explicar como a tecnologia deve ser usada. Projetos-pilotos passaram a pipocar. No Brasil, Pão de Açúcar, Procter & Gamble e a própria Gillette montaram um grupo de trabalho. A Unilever e a fornecedora de equipamentos sem fio Seal estão fazendo testes no interior de São Paulo. Elas pesquisam como transportar o sabão em pó Omo com etiquetas de RFID. Dois outros fatores devem acelerar a adoção da tecnologia: o combate ao terrorismo e a determinação da União Européia de rastrear carnes e verduras frescas importadas. "Em ambos os casos o que conta é a rastreabilidade que a tecnologia proporciona", diz Celso Kassab, responsável pela área de supply chain da Deloitte. A tecnologia, no entanto, tem limitações. A começar pelo custo. Uma etiqueta sai por cerca de US$ 0,05 a US$ 0,40, e o preço de um leitor de RFID varia entre US$ 1 mil e US$ 4 mil. "Os valores diminuirão com a popularização da tecnologia", afirma Bruno de Almeida, diretor de mercado da Sensormatic do Brasil. É o tipo de fenômeno que ocorre rápido nos Estados Unidos e bem devagar no Brasil. Lá, bastou o Wal-Mart bater o pé que centenas de empresas embarcaram na onda. "No supermercado mais chique do Brasil ainda encontro fornecedores que nem chegaram à era do código de barras", diz Czapiski. Há ainda uma série de obstáculos físicos que os engenheiros não conseguiram superar. A água, por exemplo, absorve as ondas de rádio. Com metais acontece o contrário - eles refletem as ondas. Por causa disso, ainda não se tem a menor idéia de como colocar uma etiqueta com chip numa lata de refrigerante. Há problemas típicos de sistemas sem fio. Falha de cobertura é um deles. Assim como acontece com antenas de telefonia celular, as etiquetas precisam estar ao alcance dos sensores - algo difícil num supermercado cheio de prateleiras. Finalmente, há o risco da interferência causada por outros aparelhos: rádios, celulares, etc. Some-se o preço aos obstáculos e o estágio atual das etiquetas se revela: estão prontas para auxiliar, com alguma dificuldade, a logística envolvida numa cadeia de suprimentos. Por enquanto, a Unilever tenta colocar uma tarja com chip num pallet que contém uma dúzia de caixas, cada uma delas com 12 embalagens de Omo. Ou seja, uma etiqueta de RFID para 144 caixas de sabão em pó. Em relação ao código de barras, a inovação proporcionada, até agora, se limita a um rastreamento automático do pallet e seu conteúdo. O dia em que cada caixa de Omo terá sua própria etiqueta ainda está longe. A chief information officer (CIO) do Wal-Mart, Linda Dillman, aposta na popularização da tecnologia a partir de 2006 nos EUA. Otimista, Kassab, da Deloitte, prevê a adoção a médio prazo no Brasil. "Em quatro anos, um saco de feijão virá com RFID", diz. Para Czapiski, será preciso uma década até cada produto ter sua etiqueta. "A tendência é que o RFID conviva durante muito tempo com o código de barras", diz. Tempo e dinheiro à parte, é inexorável que tarjas de identificação equipem cada produto vendido em supermercados. Nos Estados Unidos e na Europa, essa constatação tem apavorado entidades de defesa do consumidor, preocupadas com a invasão de privacidade que a tecnologia pode causar. Segundo elas, há mais esperteza que inteligência dentro das etiquetas. Teme-se que os movimentos de um cidadão possam ser vigiados permanentemente, com o objetivo de mapear seus hábitos de consumo. Se isso vier a ocorrer, ao cruzar dados da etiqueta inteligente com informações de um cartão de fidelidade do supermercado ou de um cartão de crédito, diretores de marketing poderiam personalizar ofertas de produtos que as pessoas acabaram de pôr no carrinho. Um grupo americano que defende o consumo com privacidade, o Caspian, chegou a acusar a indústria de estar escondendo o jogo - a tecnologia já estaria mais madura do que fabricantes e supermercados alegam. Um indício dessa conspiração seria a encomenda bilionária de chips da Gillette. "Quando se encomenda uma quantidade dessas, a teoria se torna realidade", declarou Katherine Albrecht, diretora do Caspian. Vigilância permanente A coisa vai mais longe. Uma vez equipados com selos eletrônicos, nada impede que produtos sejam rastreados depois de passarem pela porta do supermercado. Em tempos de terrorismo, as etiquetas podem se transformar em dispositivos de vigilância. "Utopicamente falando, é possível", admite Almeida. "Mas não sei se acontecerá." Para combater essa possibilidade, discute-se o desenvolvimento de aparelhos que "matem" a etiqueta no instante em que ela deixa o supermercado. Atualmente, não existe nada do tipo. Talvez a preocupação com a vida privada seja exagerada. Em artigo publicado na revista americana Wired, Paul Saffo, futurólogo e consultor de tecnologia de grandes empresas, escreve que provavelmente os americanos deixarão de ligar para a intimidade se puderem colocar uma etiqueta de RFID na mochila do filho ou na coleira do cão. "A imensa maioria dos consumidores aceita trocar privacidade por conveniência", afirma Saffo.