a gagueira e seus aspectos vocais

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CENTRO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FONOAUDIOLOGIA CLÍNICA
CEFAC
VOZ
A GAGUEIRA E SEUS ASPECTOS VOCAIS
MARIA LUIZA de SANCHES PEREIRA e AVELLAR CORSINI.
São Paulo
1997
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CENTRO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FONOAUDIOLOGIA CLÍNICA
CEFAC
VOZ
A GAGUEIRA E SEUS ASPECTOS VOCAIS
MONOGRAFIA DE CONCLUSÃO DO CURSO
DE
ESPECIALIZAÇÃO
EM VOZ PARA
FONOAUDIÓLOGOS.
ORIENTADORA: MIRIAM GOLDENBERG
São Paulo.
1997.
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“Uma voz é como um diamante.
Se polido, ele brilha e atrai.”
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RESUMO
A voz é uma das extensões de nossa personalidade. Ao ouvirmos uma voz
vários sentimentos são desencadeados. A voz é o veículo de nossa comunicação com o
mundo exterior.
O gago sofre tensões nas regiões: oral, cervical e diafragmática. O gago
não nasce assim, ele se torna gago num determinado momento.
Ele passa a usar gestos e expressões corporais que significam palavras. O
tratamento da gagueira desvinculado do corpo tem seu resultado limitado.
Com a terapia gradativamente vão desaparecendo o medo, a ansiedade e
a tensão, levando-o a um estado psicofísico equilibrado, de maneira a não interferir na
voz.
Os sentimentos e reações das outras pessoas, “Aspectos Sociais da
Gagueira” exercem grande influência no gago. Ou seja, diante de reação negativa ele
piora, diante de reação positiva ele melhora.
Daí a importância do gago aceitar e saber lidar com a gagueira, tendo
consciência de quando e porque ela ocorre.
Em equilíbrio psicofísico, os estados-de-mente não se alteram tão
facilmente e não interferem na voz do gago.
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AGRADECIMENTO
Muitos são aqueles a quem gostaria de agradecer pela colaboração na
execução do presente trabalho.
Com carinho especial a Ignês Maia Ribeiro e Maria Elisa Cattoni.
À minha orientadora Miriam Goldenberg e a minha professora Silvia Pinho,
pela ajuda significativa, paciente e carinhosa.
A voz é uma das extensões mais fortes de nossa personalidade e se
aguçarmos nossos sentidos reconheceremos que esta extensão é mais profunda em sua
dimensão não-verbal do que na verbal.
Além disso, em todas as situações de emissão podemos ter vários níveis
de análise de leitura vocal: leitura dos parâmetros físicos, psicológicas, sociais, culturais
e educacionais de um determinado falante.
Ouvimos a voz e o indivíduo está à nossa frente. Tua imagem viva forma-se
em nossas mentes e uma série de projeções, sentimentos, emoções e julgamentos são
automaticamente desencadeados pelo simples fato de ouvirmos.
Assim, a voz é o veículo de nossa inter-relação, de comunicação, um meio
de atingir o outro; é o “tato a distância”. Isto nos leva refletir sobre o porque de algumas
vozes nos “tocarem” mais que outras, comunicando mais profundamente sua mensagem.
Buscando desvelar a gagueira como fenômeno, no contato direto com o
gago, notou-se que este fenômeno não se mostra inicialmente. Os invólucros o ocultam.
O fenômeno gagueira pode ser visto apenas no final de uma terapia que cuida da
dissolução dos invólucros. Os invólucros são tensões nas regiões oral, cervical e
diafragmática, que se correlacionam impedindo o cinergismo muscular exigido para a
fala. Manifestam-se como: bloqueio do diafragma, movimentos desordenados da laringe,
proximidade excessiva das cordas vocais, esforços de articulação, etc; aos quais se
acrescentam muitas vezes sincinesias de difusão mais ou menos importantes.
Na terapia, caminha-se com o gago num sentido de profundidade, em
direção à liberdade, em direção à tomada de consciência de seu corpo e de seus
invólucros, em direção ao conviver com a gagueira, isto é, ao atribuir-lhe existência, ao
viver em propriedade com ela, ser autêntico com ela, dissolver os invólucros e atingir a
essência da gagueira.
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Dessa forma, não se trabalha na terapia o desaparecimento da gagueira
mas a retirada dos invólucros e um novo comportar-se do gago diante da gagueira.
A escolha do título é muito oportuno, pois a gagueira é algo específico,
presente aí no mundo do humano, antes mesmo de qualquer possibilidade de análise. Os
estudos em geral conduzidos dentro de um empirismo científico têm-se apresentado
como modelos artificiais, pois, referem-se um conjunto de
sínteses sucessivas,
repetindo-se ou refazendo-se em termos de idades em que a gagueira surge de
possíveis causas, como, por exemplo, resultado das pressões e tensões sociais.
Como acontecimento, como um real humano, a gagueira precisaria ser
descrita e não constituída, não poderia ser formada ou controlada através de variáveis,
nem sempre possíveis de serem autenticamente detectadas. Ao focalizar a gagueira,
mostrou-se que não se tratava de um fato, nem de um objeto que poderia ser identificado
e assumido nas suas leis ou nos seus princípios reguladores. A gagueira foi então
assumida como horizonte de possibilidade. Não se nasce gago, nem se fabricam gagos,
eles se tornam num momento de sua existência no mundo.
A análise da gagueira e as formas de expressão dos gagos estudados
mostra a natureza do corpo como expressão e fala. O falar, os gestos, a própria
manifestação múltipla de esforços do gago para se expressar transfiguram o corpo. De
fato, é o corpo que faz indicações e que fala. A expressão manifesta a significação
insipiente do corpo vivo, amplia-se para o mundo sensível. Este corpo impulsionado
pelas experiências vividas descobre nas coisas, nos objetos e nos outros a forma de
expressão.
Há um grande esforço e um dispêndio de energia dos terapeutas em
produzir a fala fluente no gago. Esse esforço centralizado na gagueira como fato,
acontecimento apenas, desvinculado do corpo, tem resultado em trabalhos cada vez
mais árduos e com uma obtenção limitada de resultados.
O ponto de partida foi a idéia de corpo encarnado. Um corpo que além de
ser espacialidade é também expressão e fala.
Foi constatada, também que a dificuldade do gago, observada no início da
terapia, em lidar com os seus estados afetivos, gradativamente desaparece. No início,
qualquer estímulo é motivo para um aumento exagerado do medo, da ansiedade e,
consequentemente, também da tensão. No decorrer da terapia, o gago parece
gradativamente, aproximar-se de um equilíbrio psicofísico e seus estados de mente, não
se alteram mais tão facilmente e passam a não interferir na gagueira.
As reações e sentimentos de outras pessoas e as influências destas
reações e sentimentos sobre o gago são chamadas, pelos autores, de “aspecto social
da gagueira”. O gago se deixa influenciar pelas reações e sentimentos percebidos e
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reage às percepções do outro através da manifestação de angústia, ansiedade, medo,
raiva que indicam um nível de tensão alterado.
Ao que me parece, o gago, por toda a sua vivência não aceitando a
gagueira, tem um nível de tensão aumentado. Quando diante do outro, manifesta
gagueira caracterizada por fortes tensões. Estas tensões são percebidas e assimiladas
pelo outro que também, se não tiver condições de lidar com a nova carga de tensão, se
torna mais tenso e reage apresentando tensão que se disfarça, muitas vezes, em crítica,
em sorriso, ou mesmo em expressões faciais peculiares que indicam o nível aumentado
de tensão.
Eu acredito que o gago ao perceber estas reações que são manifestações
de uma não aceitação da gagueira, angustia-se e aumenta seu nível de tensão. Esta
tensão acaba manifestando-se na voz.
Isto pode tornar-se um círculo vicioso, até que o gago, ou o interlocutor,
interrompa a comunicação por não suportar mais o nível de alteração de seus estadosde-mente e de sua tensão. O que o gago não percebe, de início, é que cada um reage a
seus próprios estados-de-mente e é responsável por eles. Não é responsabilidade do
gago o sentimento e o nível de tensão do interlocutor. O interlocutor reage a seus
próprios conteúdos afetivos e não à gagueira apresentada pelo gago.
Os estados-de-mente do gago podem determinar uma melhora ou piora da
gagueira, mas não se identificam com a gagueira. Quando há dificuldade do gago em
conviver com seus estados-de-mente e com a gagueira, estes estados-de-mente se
alteram facilmente e esta alteração interfere na voz do gago, com mais intensidade.
Quando vive em propriedade, convivendo com seus estados-de-mente e
habitando sua gagueira, em equilíbrio psicofísico, os estados-de-mente não se alteram
tão facilmente e não interferem tanto na voz do gago.
A busca da essência da gagueira não é um caminho fácil; ao contrário, é
dificultado pelo esforço constante que o gago faz para ocultar a gagueira, pela tentação
em aceitar passivamente o que a bibliografia indica, de acreditar no que todos os
profissionais que trabalham com a gagueira afirmam e, finalmente, no que o gago relata
sobre suas próprias visões de gagueira. Todos os relatos são saturados de conceitos,
de hipóteses preestabelecidas e mostram um não envolvimento com a gagueira.
Para que fosse possível compreender a trajetória para o fenômeno
gagueira foi preciso distanciar-se desta postura e deixar que a gagueira se mostrasse
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em sua pureza, na sua estrutura própria, deixando de lado o julgamento dos autores, dos
profissionais e dos gagos.
Os autores referem-se, exaustivamente, às “emoções” sentidas pelos
gagos, vistas, muitas vezes, como sendo a própria gagueira. Elas são descritas,
equacionadas e apresentadas como características próprias do gago ou da gagueira.
É possível, no entanto, estabelecer as relações dos estados-de-mente do
gago com a gagueira percebida - não é uma relação direta. O estado-de-mente do gago
correlaciona-se em primeiro lugar com a tensão.
Já KRETSCHMER se refere à intima ligação observada entre afetividade,
tensão muscular e tensão visceral. Ele dizia que a toda alteração no tônus muscular
corresponde uma alteração na afetividade e uma alteração no tônus visceral. A toda
alteração no tônus visceral corresponde uma alteração na afetividade e uma alteração no
tônus muscular.
O trabalho de ROCHA (1986) na área da lingüística, e os trabalhos de
FRIEDMAN (1996) mostram que a gagueira é natural a todos nós, entretanto muitas
vezes ela é inadvertidamente julgada como imprópria pelos indivíduos. Esse tipo de
julgamento indevido é feito com freqüência por alguns pais e professores, e às vezes,
também por médicos e fonoaudiólogos. Tal fato parece se dever, em parte, a uma visão
idealizada da fala, segundo a qual ela não pode ter o menor sinal de quebra, interrupção
ou hesitação. Esta imagem de uma fala que não contém gagueira é distorcida e está
apoiada em valores sociais que vão sendo transmitidos aos outros por meio das
relações de comunicação, e muitas vezes, motivam posturas inadequadas frente à
mesma.
Como vimos, inúmeros são os fatores que podem produzir rupturas na
fluência da fala, formando a gagueira. As rupturas que deles surgem, acrescidas de
conteúdos negativos em relação à fala só tendem a aumentar. O indivíduo, ao vivenciar
repetidamente essas situações num contexto de não aceitação de seu padrão da fala,
poderá desenvolver estratégias que visam evitar essa gagueira, para tentar fugir do
estigma com que ela está sendo marcada.
Sendo a fala expressa por meio de movimentos que o indivíduo usa sem
que tenha muita consciência, ao tentar interferir nos movimentos nela evolvidos o
indivíduo se distância cada vez mais do seu objetivo de não gaguejar, colocando-se
numa situação que FRIEDMAN (1986, 1982) descreve, de acordo com WATZLAWICK
(1981), como paradoxal. Segundo WATZLAWICK (1981), ao tentar realizar, de modo
planejado, comportamentos que exigem espontaneidade, o indivíduo fica impedido não
só de produzir adequadamente tais comportamentos, mas acaba realizando outros não
desejados, nem planejados.
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Unindo emoções e sentimentos negativos em relação ao ato de fala, às
tentativas planejadas para não gaguejar, o indivíduo se distância da possibilidade de
articular livremente. Passa, então, a antecipar a gagueira e a tentar controlar uma fala que
ainda não ocorreu, o que provoca ainda mais imprecisões e o leva, cada vez mais, a
tentar evitá-las, num ciclo vicioso que se auto-alimenta e que é gerador de muito
sofrimento. (FRIEDMAN, 1996). Nesse contexto a autora explica o surgimento dos
diferentes comportamentos que caracterizam o quadro de fala que ela denominou
Gagueira Sofrimento, como, por exemplo, trocas de palavras, alterações no conteúdo do
discurso, evitação de situações de fala, entre outros. Esses comportamentos visam
alcançar a fluência e acabam compondo o conhecido quadro de gagueira.
JOHNSON, SHEEHAN, BLOODSTEIN, WISCHNER, VAN RIPER (1982),
consideram a gagueira um comportamento aprendido e enfatizam que na gagueira o
ponto básico é a dificuldade na relação entre o falante e o ouvinte. Dentre os sintomas,
destacam-se os mais importantes: tensão na região oral, movimentos articulatórios
reduzidos e incoordenados, tremores, inabilidade para realizar alguns movimentos que
envolvam a musculatura oral, dor e cansaço após algum tempo de movimentação,
posturas tensas ou movimentos atípicos, alteração da tensão dos músculos pterigóides,
temporal e masséter, nos músculos aritenóideo oblíquo, aritenóideo e cricoaritenóideo,
espasmos e movimentos bruscos dos músculos masséter, episódios de rouquidão
ou soprosidade e depois de algum tempo evidenciam-se sinais de espasticidade, tensão
cervical e diafragmática. No que se refere ao tratamento da gagueira dão ênfase a
tomada de consciência das suas tensões (localização e intensidade) que ocorram
durante a fala e na ausência de fala, de suas posturas respiratórias, das características
de sua fala, das relações de suas tensões com seus estados de mente, dissolução dos
invólucros, a fim de aprender a viver em propriedade com a gagueira; técnicas de
relaxamento e exercícios de relaxamento específico aliados à fonação soprosa.
BOONE (1994), em seu livro “A voz e a Terapia Vocal”, afirma que em
casos de alteração na voz (Disfonia espasmódica, também denominada de gagueira
laríngea), os fonoaudiólogos tendem a tratar o distúrbio comportamentalmente e,
também, psicologicamente.
O aspecto emocional assume importante papel, interferindo, tanto no
aspecto motor, uma vez que a emoção tem como característica a alteração muscular,
podendo provocar tremores, alterações do ritmo respiratório, etc; quanto ao aspecto
cognitivo, já que, quanto maior a intensidade da emoção que se vivência, menor a
capacidade de racionalizar uma determinada situação. Uma pessoa, simplesmente pelo
fato de ser tímida, pode experimentar intensas emoções ao falar em público, ou frente a
uma câmera de filmagem. Tem-se, então, que a presença de alterações na fluência da
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fala podem ser vistas como naturais a qualquer pessoa e inúmeros são os fatores que
podem levar a elas.
Alguns autores explicam alterações na fala e na voz como sendo um
problema de identidade. Referem-se que uma imagem estigmatizada de falante pode ser
construída pelo indivíduo durante as relações de comunicação em que seu padrão natural
de fala não é aceito por parte do ouvinte ou por parte dele mesmo que age da mesma
forma que os demais ouvintes por ter também formado uma imagem idealizada da fala.
Portanto, a imagem que cada indivíduo tem de si mesmo depende da
relação dialética entre o indivíduo (compreendido orgânica e psicologicamente) com o
meio social-intermediada pela linguagem. A partir disso, é possível entender que
diferentes imagens de falante possam aparecer de acordo com as características de
cada pessoa, interagindo com as crenças e valores que perpassam as relações de
comunicação entre o indivíduo e a sociedade. Nesse contexto, podemos falar que
imagens distorcidas de falante surgem quando o processo de desenvolvimento da
identidade vai sendo marcado de forma negativa ou estigmatizada pelas relações
sociais em que o indivíduo está inserido.
A posição assumida neste trabalho é a de que, se numa sociedade as
alterações na voz e fala já tiverem um significado estigmatizado, aumentará a
possibilidade do quadro da alteração na voz e da fala se instalarem quando as demais
condições aqui citadas, relativas à produção de fala do indivíduo forem favoráveis para
tal.
Articulando a manifestação de uma fala repetitiva, com o meio social em
que persiste um tipo de relação de comunicação que rejeita a repetição, criam-se
condições para que se desenvolva uma imagem de mal falante, carregada de emoções e
sentimentos negativos que se disparam diante da necessidade ou eminência da fala.
Tal processo leva alguns pacientes a assumirem comportamentos desnecessários e
incompatíveis com o ato da fala (como fechamento dos olhos, tremores sucessivos de
pescoço e mandíbula, entre outros) na tentativa de esconder a manifestação da gagueira.
No plano mental criou-se uma visão estigmatizada de falante que, no plano corporal,
corresponde `as tensões que, por sua vez, vão interferir no sinergismo dos movimento da
fala.
Estas leituras enfatizaram a estreita relação entre as características das
relações de comunicação, os conteúdos da identidade, as emoções, os sentimentos e a
atividade de fala.
A relação entre o sentimento, a manifestação da fala, as relações de
comunicação e as características da identidade requerem mais estudos no sentido de
compreender cada vez mais e com maior clareza as suas mútuas dependências na
produção da fala.
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1 - BLOODSTEIN, O . - Stuttering as Tension and Fragmentation, Harper and Row
Publishers, N.Y., 1975.
2 - BOONE, D.R. & McFARLANE, S.C. - A voz e a Terapia Vocal. Porto Alegre. Artes
Médicas, 1994.
3 - DINVILLE, C. - A Gagueira: Sintomatologia e Tratamento. Biblioteca
Fonoaudiológica. Editora Enelivros, 1993.
4 - FRIEDMAN, S. - A Construção do Personagem Bom Falante. São Paulo: Summus
Editorial; 1994.
Gagueira, Origem e Tratamento. São Paulo: Summus Editorial; 1986.
5 - GOMES, I.C.D. & FRIEDMAN, S. - Conversando com Pessoas que Manifestam
Gagueira: uma análise das relações subjetivas e objetivas na situação de diálogo
pessoas que gaguejam. In: MARCHESANI.; et al. Tópicos em Fonoaudiologia III.
São Paulo: Editora Lovise; 1996.
6 - MEIRA, I. - Gagueira: Do fato para o fenômeno. Editora Cortez. São Paulo; 1983.
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