nella larsen e jamaica kincaid traduzindo os estados unidos

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NELLA LARSEN E JAMAICA KINCAID TRADUZINDO OS
ESTADOS UNIDOS
Renata Thiago Pontes (Mestre UERJ)
O principal objetivo deste artigo é investigar e analisar como os
movimentos diaspóricos exercem influência na construção das identidades das
mulheres afro-descendentes em Quicksand, de Nella Larsen, e Lucy, de
Jamaica Kincaid e o papel da tradução intercultural no contexto do mundo
globalizado.
Na década de 90 a questão da identidade começou a ser destacada pelos
Estudos Culturais, pois ela passou a delinear e a ser o ponto central dos
principais conflitos sociais, manifestações culturais e trabalhos literários. A
globalização enfatizou ainda mais a existência de conflitos baseados nas
diversas identidades sociais, politicas, étnicas, religiosas,...
Desde a década de 80 um amplo campo de estudos foi formado
concentrando-se nas então chamadas culturas subalternas ou pós-coloniais.
Uma nova geração de pesquisadores começava a questionar a visão
eurocentrista da história sobre as culturas do chamado terceiro mundo. Eles
começaram a refletir sobre o imaginário oficial das identidades e histórias
nacionais.
Os Estudos pós-coloniais assumiram como ponto de partida as
discussões apresentadas nas últimas grandes compilações do Centro
de Estudos Contemporâneos (Center for Contemporary Cultural
Studies-CCCS) da Universidade de Birmingham (MATTELART &
NEVEU: 2004, p.173 – 174).
O pós-colonialismo aborda os efeitos da colonização nas culturas e
sociedades. O que precisa ser observado é o fato de que o colonialismo e o pós-
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colonialismo não são modelos rígidos e independentes de outros aspectos. São
altamente dependentes das condições sociais em que ocorreram. Na verdade, é
dificil considerar esses termos no singular, pois o que observamos através da
história é a existência de muitos e diferentes colonialismos e póscolonialismos.
O poder colonial começa com e é baseado no discurso. A construção do
sujeito colonial e o exercicio do poder colonial através do discurso é possível
devido a uma articulação de formas de diferença: étnica, sexual, linguística e
outras.
Na história das grandes literaturas do mundo, poucas tradições têm
origens como as das obras criadas por escravos africanos e ex-escravos. Uma
literatura que se manifestava contra seus dominadores e testemunhava o desejo
de ser livre e alfabetizado. A escravidão em si e as exigências por sua abolição
transformaram-se em uma inspiração irônica para a criação de uma nova
literatura, uma literatura denunciando a opressão e criada pelo oprimido.
Contudo, havia o preconceito em relação ao texto produzido por afrodescendentes. A Resistência ao fato de que um africano, afro-descendente ou
escravo pudesse produzir literatura era real e baseada nas pressuposições de
que os negros não eram parte da humanidade e que deveriam ser considerados
animais. Na verdade, o que começava a ser temido era o poder da
alfabetização. Autores como Phillis Wheatley precisaram provar que os afrodescendentes eram capazes de ser escritores excelentes.
Quase um século depois, no inicio da decada de 1920 um movimento
então conhecido como, “the New Negro Renaissance”, e que agora
chamamos de “the Harlem Renaissance”, comecou a florescer e
sobreviveu até o final da depressão econômica dos Estados Unidos. A
renascença do Harlem foi inicial e principalmente um movimento
literário e intelectual composto por uma geração de escritores negros
nascidos no final do seculo XIX e inicio do século XX (WATSON:
1995).
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Um tema que começou a ser desenvolvido por muitos escritores da
Renascença do Harlem conquistaria grande amplitude nas décadas seguintes ao
movimento e sobreviveria até os dias de hoje: a busca pela alteridade. “Os afrodescendentes que participaram do movimento pelos direitos civis da década de
60 trouxeram para seus trabalhos questões politicas e também desenvolveram
discussões sobre a sua alteridade” (SALGUEIRO: 2004, p.55).
Nas últimas décadas a literatura afro-descendente tem vivido
uma renascença em quantidade e qualidade através dos textos de
escritoras como Toni Morrison, Alice Walker, Maya Angelou, Gloria
Naylor, Jamaica Kincaid e muitas outras. Essas autoras tem recebido
muitos premios por suas obras e apareceram por diversas vezes na
lista dos best-sellers do jornal the New York Times. A literatura afrodescendente também conquistou um espaço antes impensável:
alcançou a Academia e agora é parte do curriculo de muitos cursos e
programas acadêmicos do mundo (GATES: 1997, p.33).
Os romances Lucy de Jamaica Kincaid e Quicksand de Nella Larsen
abordam diversos temas como identidade, hibridismo, questões de gênero,
relações familiares e diasporização e foram escolhidos como objetos de estudo
para a minha dissertação de mestrado porque são exemplos singulares de
literatura poscolonial. Analizei, mais especificamente, as relações familiares e
a diasporizacao e, ambas as obras, tentando evidenciar sua importância e
influência na formação da identidade das mulheres afro-descendentes e
descobri que a palavra chave que caracteriza as referidas obras, as questões
referentes à identidade, a diasporização e a minha própria dissertação é
hibridismo.
Ao ler os dois romances ja citados podemos notar que ambos são
exemplos de tentativas de mulheres afro-descendentes de criticar a sociedade
pós-colonial e o patriarcalismo que impedem que elas alcancem uma posição
igual a dos homens, brancos ou negros, em suas sociedades. Além disso,
também podemos notar que ambas são narrativas híbridas escritas por sujeitos
híbridos. São narrativas híbridas porque habitam um entre-lugar em relação a
ficção e o que muitos acreditam ser a ‘realidade’. Estão na fronteira entre a
imaginação e a autobiografia das autoras, os pontos de vista que as próprias
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autoras possuem de eventos em suas vidas. Lucy e Quicksand também sao
narrativas de sujeitos híbridos, visto que suas personagens principais, Lucy e
Helga Crane, enfrentam uma jornada na busca por suas identidades e seu lugar
nas sociedades que encontram.
Durante a primeira metade do século XX muitos afro-descendentes que
habitavam nos Estados Unidos estavam viajando e vivendo fora das fronteiras
estadunidenses.
“A
cultura
afro-descendente
conquistava
amplitude
internacional. Muitos artistas que tinham conexões com a Renascença do
Harlem viajavam para outros países para trabalhar, estudar ou descansar”
(DAVIS: 2002, p.7).
A internacionalização dos afro-descendentes, especialmente após a
Primeira Guerra Mundial, coincidiu com a ascensão de Nella Larsen como
romancista durante a Renascença do Harlem. Quicksand, o primeiro romance
escrito por Larsen, explora as possibilidades inerentes da identificação de sua
autora Nella larsen, com sua herança étnica. As características híbridas da
autora enriquecem a descrição de Helga crane e a vida da comunidade afrodescendente no ocidente e suas implicações se tornam o tema central da obra
de Larsen.
Helga Crane sofre muito em sua vida, pois seu pai biológico abandona
sua familia, seu padrasto e meio-irmãos não a tratam bem e sua mãe morre
muito jovem. O conflito interno que a personagem vive, na busca por sua
identidade, por um lugar a que pertença está relacionado com a visão que ela
possui dos Estados Unidos e da Dinamarca. O primeiro claramente apresenta
uma grande diversidade étnica e cultural, mas não trata todas as culturas da
mesma forma. O segundo possui uma população formada principalmente por
pessoas brancas e uma espécie de racismo velado que faz com que as pessoas
tratem Helga bem, mas como um ser extremamente exótico e diferente.
Helga Crane viaja para vários lugares na busca por sua identidade, na
busca por um lugar em que se sinta confortável sendo como é. Não
encontrando um lugar que possa considerar como seu lar nos Estados Unidos
ou na Dinamarca, ela começa a compreender sua diferença como um
hibridismo cultural, no qual não existe outra denominação para ela a não ser o
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termo pejorativo “mulata” e não existe outra solução a não ser a negação, por
parte dela e dos outros, de pelo menos uma de suas ascendências, já que a
sociedade exigia uma identidade fixa, muito bem delineada. Seria ela negra ou
branca? Americana ou dinamarquesa? Seria possivel fazer tal escolha? Ela
descobre que nao há lugar para ela em tais sociedades e que é impossivel
negar, parcialmente ou totalmente, quem ela é.
Na obra de Jamaica Kincaid, Lucy, nos deparamos com uma adolescente
caribenha consciente da situação de dominação que sua terra natal vive e que
busca uma vida independente em Nova York. No romance acompanhamos
Lucy a partir de sua chegada em Nova York como au pair até sua vida
independente em um apartamento que divide com uma amiga, e somos
testemunhas de sua luta contra uma sociedade permeada por um racismo
latente. A fim de minar toda a opressão colonial em sua vida, Lucy evita
contato com sua mãe, uma personagem que representa tudo o que ela rejeita (a
subserviência, o conformismo, as normas de conduta impostas pela
colonização Britânica,...).
Lucy nunca consegue encontrar um lugar na sociedade e nem estabelecer
uma identidade sólida. Lucy é um hibrido cultural que termina sua história
sozinha, pois ela, que nasceu em Antígua, foi criada sob os rígidos padrões
britânicos e vive nos Estados Unidos, personifica características pertencentes a
todas essas culturas em que viveu e ao mesmo tempo nao é representante de
nenhuma delas.
Langston Huges, um grande poeta, novelista, teatrólogo e colunista dos
anos vinte, que conquistou reconhecimento internacional por sua consciência e
percepção do processo diaspórico africano e por sua utilização de
características da herança cultural afro-americano em seus trabalhos, sintetizou
em seu poema Cross (1926) o dilema de Nella Larsen, Jamaica Kincaid e de
muitos afro-descendentes:
My old man died in a fine big house.
My ma died in a shack.
I wonder where I’m gonna die,
Being neither white nor black?
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(Meu pai morreu em um belo casarão,
Minha mãe em uma choça.
Me pergunto onde morrerei,
Não sendo branco nem negro?) 1
Homi K. Bhabha, em The Location of Culture, afirma que “através do
contato estabelecido entre colonizador e colonizado, a identidade abandona um
caráter monolítico e totalizante para dar lugar a identidades construídas nos
“entre lugares””(BHABHA: 1994,p. 2). Em Signs Taken for Wonders, Bhabha
declara constata o surgimento de modalidades híbridas de expressão que
desafiam a pressuposição dos conceitos “puros” e “autênticos” sobre os quais a
resistência se estabelece (BHABHA: 1997, 34).
O tema da resistência, o qual se encontra, aberta ou veladamente, na
maioria dos textos pós-coloniais, revela não somente o revide do sujeito
colonizado ou do oprimido, mas também a ambiguidade e a fragmentação do
colonizador ou opressor. Em The wretched of the Earth, publicado pela
primeira vez em 1961, Fanon parece encontrar na violência o único meio que o
sujeito colonial possui para revidar. Bhabha insiste sobre a resistência do
sujeito colonial praticada através do questionamento da autoridade colonial e
justifica, em termos teóricos, a mímica, a paródia, o hibridismo e a cortesia
dissimulada (BHABHA: 1997, 34). A resistência, em todas as formas, dá ao
sujeito pós-colonial a percepção crítica da sua condição e o meio para
recuperar a subjetividade.
A ideologia referente à repressão das sociedades pós-coloniais e dos
sujeitos coloniais pertence a uma categoria em que o oprimido é fixado pela
superioridade do dominado. Essa relação dialética se intensifica quando os
estudos versam sobre gênero e abordam a condição feminina e a dupla
colonização da mulher nas sociedades pós-coloniais.
Barbara Smith, ao abordar o tema da simultaneidade de opressões
sofridas por mulheres negras, afirma que a pouca importância dada ao assunto
talvez seja o obstáculo mais importante para a construção de uma identidade.
Para ela a existência da mulher negra, sua experiência, sua cultura e os
1
Tradução de minha autoria.
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sistemas de opressão brutalmente complexos que a moldam são na verdade o
‘mundo real’ da consciência branca e/ou masculina péssima, invisível,
desconhecida (SMITH: 2000,p.132).
Stuart Hall afirma que no mundo inteiro identidades mutáveis,
intercabiantes, emergem, sendo produtos de complicados cruzamentos e
misturas culturais que são cada vez mais comuns no mundo globalizado. A
tradução descreveria, seria uma metáfora para, essas formações identitárias que
atravessam e conectam fronteiras naturais, e que são compostas por pessoas
que deixaram para sempre suas terras natais.
Essas pessoas possuem fortes conexões com seus lugares de origem e
tradições, mas não possuem a ilusão de um retorno ao passado... São
obrigadas a perder totalmente suas identidades e a encarar as culturas
que habitam, sem apenas assimilá-las. Elas nunca serão unificadas
como antes porque pertencem ao mesmo tempo a muitos lugares. As
pessoas que pertencem a culturas híbridas precisaram renunciar ao
sonho de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural ou absolutismo
étnico. Elas estão irreversivelmente traduzidas (HALL: 2005, p.629).
Sherry Simon afirma que o hibridismo das culturas diaspóricas e a
mobilidade de todas as identidades são fundamentais para os Estudos Culturais.
A língua, assim como a posição do falante dentro dos códigos dominantes,
adquiriu um importante papel no panorama do mundo globalizado. As línguas
são entendidas como peças centrais nos processos de construção das
identidades de indivíduos e de grupos.
De acordo com Simon, a tradução é frequentemente utilizada pelos
teóricos dos Estudos Culturais como uma metáfora, uma figura retórica
descrevendo por um lado a crescente internacionalização da produção cultural
e por outro o destino daqueles que se dividem entre dois mundos e duas
línguas. As mulheres traduzem a si mesmas para a língua do patriarcalismo; os
imigrantes lutam para traduzir seu passado para o presente. A tradução passou
a representar a dificuldade de acesso à língua, uma exclusão dos códigos
daqueles que estão no poder. Para aqueles que se sentem marginalizados pelos
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códigos autoritários da cultura ocidental, a tradução representa uma metáfora
para sua experiência ambígua na cultura dominante. Os imigrantes começam a
se definir como seres traduzidos.
Os Estudos Culturais trazem para a tradução uma compreensão das
complexidades de gênero e cultura e enfatizam a multiplicidade das
línguas circulando no mundo hoje, a competição entre as formas
locais e globais de expressão, as reatualizações das formas culturais
(SIMON: 1996, p.136).
A globalização, ao contrário do que inicialmente se pensou, ao mesmo
tempo em que interligou todas as partes do globo e conectou culturas
diferentes, não as tornou homogêneas. No produto resultante entre os contatos
culturais criados por ela podemos notar a mistura de características de culturas
diferentes, mas também um movimento de acentuação de diferenças entre as
culturas e uma criação de culturas e sujeitos híbridos, traduzidos, diferentes e
cada vez mais interessantes. É fundamental que esses sujeitos e suas produções
em todos os campos do saber recebam atenção da academia e das autoridades
competentes, pois eles possuem histórias e características únicas, que precisam
ser conhecidas e estudadas cada vez mais.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BHABHA, H. K. The Location of Culture. London: Routledge, 1994.
________ “Signs Taken for Wonders”. In: ASHCROFT, Bill et all (eds.). The Post
Colonial Studies Reader. London: Routledge, 1997, p.29-35.
DAVIS, T. Introduction. In: LARSEN, N. Quicksand. New York: Penguin Books, 2002.
FANON, F. The wretched of the Earth. New York: Grove Press, 1986.
GATES, H. & MCKAY, N. (Eds). The Norton anthology of African American
literature. New York: Norton, 1997.
HALL, S. New Ethnicities. The question of cultural identity. In: HALL, S. et al., eds.
Modernity: an introduction to modern societies. Malden: Blackwell Publishing, 2005.
HUGHES, L. Cross. In: The Weary Blues. New York: Knopf, 1926.
KINCAID, J. Lucy. New York: Penguin Books, 1991.
LARSEN, N. Quicksand. New York: Penguin Books, 2002 [1928].
MATTELART, A.; NEVEU, E. Introdução aos Estudos Culturais. Tradução: Marcos
Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
SALGUEIRO, M. Escritoras negras contemporâneas: estudo de narrativas – Estados
Unidos e Brasil. Rio de janeiro: Caetés, 2004.
SMITH, B. Toward a Black Feminist Criticism. In: NAPIER, W. (Ed.). African
American Theory: A Reader. New York: New York University Press, 2000, p.132-145.
SIMON, S. Gender in Translation: Cultural Identity and the Politics of Transmission.
London and New York: Routledge, 1996.
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WATSON, S. The Harlem Renaissance: hub of African-American culture (1920-1930).
New York: Pantheon Books, 1995.
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