ATENÇÃO HUMANIZADA NA SAÚDE – Uma Visão do Profissional da Saúde Gisele Rozone De Luca A compreensão da atenção humanizada na saúde perpassa por todas as dimensões que envolvem uma pessoa, desde o cuidar, prevenir, promover, proteger, produzir, tratar e recuperar seu bem estar biopsicossocial. As reflexões deste artigo são originadas a partir de uma vivência ambulatorial, e buscam apresentar ao leitor os anseios, angústias e dificuldades enfrentadas pelos usuários frente à organização dos serviços e sistemas de saúde. INTRODUÇÃO Breve histórico da Humanização na Medicina Em seus primórdios, a medicina ocidental era uma ciência fundamentalmente humanística, com bases alicerçadas no campo da filosofia da natureza e suas teorias se apoiavam em uma compreensão holística que considerava o homem como um ser provido de corpo e espírito1,2. Assim, para médicos como Hipócrates (460-377 a.C. Grécia) “as doenças não são consideradas isoladamente e como um problema especial, mas é no homem vítima da enfermidade, com toda a natureza que o rodeia, com todas as leis universais que a regem e com a qualidade individual dele, que [o médico] se fixa com segura visão”1,2. Foi no período do Renascimento, caracterizado por aprofundar o conhecimento, que muitos dos pressupostos clássicos foram reavaliados, sem, entretanto, abalar a concepção filosófica da medicina, que, muito mais neste momento do que na Idade Média, se consolidava como uma ciência primordialmente humanística1. Inclusive a “Nova Ciência” do século XVII e o Iluminismo, que desenvolveu os princípios do método científico contemporâneo, reiteraram o caráter absolutamente humanístico da medicina, sendo esta concebida como ciência e arte1,2. Em 1796, um dos mais notáveis pioneiros da nova medicina, que evoluiria no século XIX, Marie-François-Xavier Bichat (anatomista e fisiologista francês; pai da moderna histologia e patologia), declarava que a “arte médica devia pagar um tributo a todas as ciências humanas”, no seu pronunciamento de fundação da “Societé Médical d’Emulation”1. Durante o século XIX, evidenciou-se a imagem romântica do médico intelectual e sensato, sabedor dos conhecimentos científicos nas áreas da clínica, da patologia e da farmacologia, e também apreciador da literatura, da filosofia e da história, utilizando-se destes recursos na formulação dos seus diagnósticos e suposições. Entretanto, completa incoerência fica evidenciada, marcadamente a partir da segunda metade desse século, quando consideráveis conquistas determinaram uma grande e real transformação técnica, levando a enormes modificações na ciência, em sua totalidade1. No começo do século XX, com o progresso dos meios laboratoriais e de outros recursos clínicos para a efetivação dos diagnósticos, e o avanço no campo das terapêuticas, a medicina estava alcançando o seu estágio de “ciência exata”. A partir desse momento, a medicina desconsiderava o suporte nas ciências humanas para se afirmar basicamente nas ciências exatas e biológicas, tendo essa sustentação baseada na ascensão das pesquisas na biologia celular e molecular1. Surgem críticos da teoria da ciência (cientificista-evolucionista), tais como, o filósofo francês, Gaston Bachelard, um dos pensadores de maior prestígio no mundo contemporâneo, que tem como ponto de partida de seus pensamentos uma filosofia das ciências naturais, em especial da física, invocando a atenção para a complexidade do real das teorias científicas. Em sua criação principal, o "novo espírito científico", apresenta a tendência para o concreto, "não porque se abandone ao irracional, mas porque tenta ampliar o alcance da razão"3. Outro grande crítico, Thomas Kuhn (19221996), foi um físico norte-americano e estudioso fundamental no ramo da filosofia da ciência, sendo extremamente importante na capacidade em instituir teorias que desconstruíam o paradigma objetivista da ciência4. As ciências humanísticas têm muito a coadjuvar para o desenvolvimento das ciências da saúde, porém tal cooperação somente ocorrerá quando todos os envolvidos (profissionais da saúde, historiadores, filósofos, antropólogos, psicólogos, literatos, pedagogos e alunos) entenderem a necessidade de se formarem redes de estudo, discussão e troca de experiências1. DESENVOLVIMENTO Considerando acessibilidade Assim dentro desta perspectiva, a humanização já se inicia quando se permite acessibilidade em todas as competências que abrange um atendimento ao paciente, possibilitando estratégias de diagnóstico e tratamento. E acessibilidade significa facilidade, possibilidade na aquisição, na aproximação, e é toda e qualquer medida responsável a facilitar o acesso, um processo de conseguir igualdade de oportunidade em todas as esferas da sociedade (ONU)5. Ou seja, a partir do momento que se articula acessibilidade, coerentemente se demonstra oportunidades. Partindo do princípio da acessibilidade é fundamental que se reflita sobre temas relevantes para o momento, discutidos a seguir. • Formação do Profissional de Saúde A acessibilidade já se inicia na formação do profissional de saúde quando se propicia ao aluno informações acerca do processo saúde/doença, laureado com enfoque humanístico, na busca incessante de promover tempo e meios para orientações e conversas sobre tais temas. Mas, analisando de uma forma melhor, é muito importante instigá-lo também em suas curiosidades, procurando respostas em suas indagações, indo mais além do que um banco de universidade. Assim proporcionar e fundamentar a aprendizagem dentro de um caráter humanístico determinará a verdadeira formação, pois o aluno será preparado para lidar com emoções supremas, saberá interagir com esperanças e fé, lutos e negações de pacientes e familiares, e aprenderá a conviver todos os dias com os extremos da vida e da morte. • Orientações sobre as Equipes de Referência A acessibilidade está infiltrada nas orientações corretas sobre a Equipe de Referência a ser procurada naquela situação em questão. Assim, quando realmente o profissional da saúde se preocupa em informar ao paciente porque procurar determinada equipe estará promovendo atenção humanizada. Vez por outra, os pacientes são encaminhados sem saber o real motivo, transitando entre os municípios, correndo riscos, muitas vezes sem respostas aos seus questionamentos. E assim o exercício da atividade profissional se torna fragilizado, tendo em vista que um encaminhamento incorreto gera aflições e incertezas tanto para o paciente quanto para o profissional da saúde que o está acolhendo. • Agendamento de consultas Dentre todas as necessidades às acessibilidades, uma das mais importantes e que gera angústias aos pacientes são certamente os agendamentos de consultas, já que a indicação do profissional mais adequado para aquele momento se torna imprescindível para os rumos a serem tomados quanto ao diagnóstico e ao tratamento. As marcações de consultas são consideráveis desafios dentro das práticas de humanização, pois requerem estratégias de articulação dentro do processo da atenção e gestão em saúde. • Conteúdo das informações A relação paciente e profissional da saúde valoriza a capacidade de compreensão emocional, o respeito, a escuta ativa, o não julgamento e a linguagem acessível, considerados recursos essenciais para essa relação6. Assim, a forma como se transmite uma informação está inerentemente vinculada as reações emocionais de quem fala e de quem ouve, como também aos aspectos culturais e educacionais envolvidos. É crucial que a acessibilidade à informação esteja sustentada em um caráter humanístico, já que as habilidades de comunicação são determinantes nas interações entre profissionais da saúde e paciente, demonstrando assim sensibilidade à prática da humanização na área da saúde. • Estratégias diagnósticas Procurar todos os meios que são necessários para viabilizar o diagnóstico, torna-se imprescindível no processo de produção de saúde, sabendo que, muito além de um ato técnico, é fundamental que seja evidenciada a atenção humanizada. A elaboração do diagnóstico caminha em vários momentos pelos serviços de atendimento laboratorial e de imagem, determinando sérias angústias no tempo de espera, tanto para o paciente quanto para os profissionais envolvidos no processo. Portanto, atitudes humanizadas geram confiança e credibilidade. • Estratégias de tratamento A busca incessante de atualizações no meio científico, a humildade suficiente para entender que uma conduta não mais se aplica dando lugar a uma mais atual, o entendimento da necessidade do trabalho em equipe, todas são ações que deflagram humanização em nossos cotidianos. Os esforços incessantes na utilização de todos os meios para realizar o tratamento adequado devem estar imbuídos dos conhecimentos técnicos necessários, mas, acima de tudo, norteados por atitudes humanizadas. • Equipe interdisciplinar Trabalhar em equipe requer sapiência para saber falar, e principalmente saber escutar. A humildade suficiente para entender o que se sabe e o que está para se aprender, na medida certa, é condição fundamental dentro de uma clínica ampliada. Assim, os saberes se encontram e se somam, universalizando e integralizando a linguagem, favorecendo sobremaneira as dimensões a serem alcançadas no processo e promoção da saúde. A interligação entre os serviços assistenciais e de referência constitui-se um verdadeiro desafio a ser sempre alcançado, já que essa comunicação é fundamental para o processo de trabalho, intervindo assim favoravelmente nos acompanhamentos adequados. • Grupos de apoio A integração dos profissionais da saúde a associação de pacientes de uma determinada condição clínica demonstra uma relação de reciprocidade que auxilia completamente os serviços de atendimento, trazendo facilitadores na compreensão dos diversos momentos envolvidos com o diagnóstico, tratamento e supervisão de saúde. O auxílio oferecido pelos Grupos de Apoio, das mais diversas Associações de Pacientes, no Estado, estimula coerentemente um trabalho de cogestão e coresponsabilização. • Direitos assistidos A abordagem sobre os direitos do paciente nos atendimentos caracteriza um conhecimento mais amplo e humanístico do profissional da saúde, certamente promovendo a universalidade e garantias na integralidade do acompanhamento e tratamento. As informações e orientações acerca da legislação vigente asseguram o fortalecimento da relação entre o profissional da saúde e o paciente, aumentando a credibilidade do referido vínculo. Considerando integralidade, O direito de acesso a todas as competências de atenção em saúde constitui um dos princípios constitucionais garantidos do SUS, e contempla, desde ações assistenciais em todos os níveis de complexidade, até atividades incorporadas nas áreas da prevenção de doenças e de promoção da saúde. A constituição de uma rede de serviços é fundamental para proporcionar uma atenção integral7. Considerando equidade, Refere-se aos meios necessários para se alcançar a igualdade, na linguagem do SUS, estando correlacionada a ideia de justiça social, promovendo condições para que todas as pessoas tenham acesso aos direitos que lhe são garantidos. Para que se possa exercer a equidade, é preciso que existam ambientes favoráveis, acesso à informação, experiências e habilidades na vida, assim como oportunidades que permitam fazer escolhas por uma vida mais sadia8. CONCLUSÃO Para que a atenção humanizada na saúde se torne uma realidade presente nos cotidianos dos ambientes que cuidam e promovem saúde, faz-se necessário comprometimento e formação de vínculos, ultrapassando o ato técnico, e evidenciando relação mútua de confiabilidade, companheirismo, respeitabilidade e reciprocidade entre os usuários, os profissionais e gestores da saúde. AGRADECIMENTOS Agradeço aos usuários, trabalhadores e gestores da saúde, que com suas atitudes, permitem reflexões para a melhoria dos serviços. Agradeço a colaboração na revisão do texto dos amigos do Serviço de Atenção Humanizada do Hospital Infantil Joana de Gusmão, Dra. Leonice Teresinha Tobias, as psicólogas Simone Scheibe e Leisi Aparecida Domit Bittar e ao Sr. Mário José Machado. Agradeço especialmente a Dra. Leonice Teresinha Tobias pelos ensinamentos, carinho e dedicação REFERÊNCIAS 1. Gallian DMC - A (re)humanização da medicina - Rehumanizing Medicine - Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Unifesp – EPM - Psiquiatria na prática médica-Órgão Oficial do Centro de Estudos-Departamento de Psiquiatria UNIFESP/EPM Disponível em http://www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/especial02a.htm 2 - Publicado porkid_ota1218 Retirado de: JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1995. pp. 61-84. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/28921462/JAEGER-Werner-Paideia-A-Formacao-do-HomemGrego 3. - Enciclopédia Mirador Internacional – ÍNDICE DE BIOGRAFIAS Disponível em http://educacao.uol.com.br/biografias/gaston-bachelard.jhtm 4. Última atualização da biografia de Thomas Kuhn: 31/01/2012. Disponível em http://www.e-biografias.net/thomas_kuhn/ 5. Dicio: Dicionário Online de Português, definições e significados Disponível em http://www.dicio.com.br/acessibilidade/ 2009 - 2014 7Graus 6. Grosseman S, Sisson MC e Stock FS - Pesquisa - Percepção de estudantes de medicina sobre aprendizagem da relação médico-paciente após mudança curricular – UFSC. Revista Brasileira de Educação Médica; vol.36; no.1; Rio de Janeiro; Jan./Mar. 2012 7. O SUS no seu município: garantindo saúde para todos / [Ana Lucia Pereira et al.]. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. 40 p.: il. color. - (Série B. Textos Básicos de Saúde) 8. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2. ed., 5. reimp., Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2010. 44 p. : il. color. – (Série B. Textos Básicos de Saúde)