Filosofia e Cultura Brasileira

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O r g a n i z a ç ã o : André Masseno e Tiago Barros
Filosofia e Cultura Brasileira
A CAIXA Cultural tem a satisfação de apresentar
"Filosofia e Cultura Brasileira", um ciclo de palestras
abordando o que há de comum entre a filosofia ocidental e a
cultura brasileira.
O projeto, selecionado pelo Programa de Ocupação
dos Espaços da CAIXA Cultural, pretende ao longo quatro
dias de debates, mostrar um pouco da história de nossa cultura
e os pensamentos filosóficos que a influenciaram e ajudaram a
moldá-la e enriquecê-la.
Ao patrocinar esse projeto, a CAIXA espera trazer
ao público uma importante colaboração para a reflexão
sobre a filosofia e a cultura brasileira, reforçando seu papel
institucional de estimular a discussão artística, ao mesmo
tempo em que reafirma sua vocação social e sua disposição de
democratizar o acesso a seus espaços.
edição única
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
Rio de Janeiro
Quintal Rio Produções Artísticas Ltda
ISBN: 978-85-64438-01-9
2012
Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 3
f
APRESENTAÇÃO
O ciclo de palestras Filosofia e Cultura Brasileira tem
por objetivo difundir e debater pensamentos que ofereçam um
panorama do diálogo da tradição filosófica com o percurso
cultural do Brasil contemporâneo.
Seguindo este propósito, e como forma de ampliar o
alcance dessa iniciativa, o evento promove a publicação deste
livro, em que o leitor tem a oportunidade de entrar em contato
não apenas com os eixos temáticos do ciclo, mas também,
e principalmente, com alguns dos pensadores que estão
promovendo a reflexão da cultura brasileira, haja vista que,
em suas áreas de atuação e experiência, todos os convidados
têm promovido importantes contribuições ao tema.
Abrindo o debate, Antônio Cicero apresenta a
perspectiva de que a primeira filosofia conduz a uma verdade
absoluta, universal e necessária que corresponderia ao que
diversos filósofos classificaram como niilismo. Na seqüência,
Ana Cristina Chiara, a partir da performance O Confete da
índia de André Masseno, examina variáveis de figurações do
corpo da índia/índio, do corpo da negra/negro, no trabalho de
artistas brasileiros modernos e contemporâneos. Por sua vez,
Luiz Carlos Maciel trata da importância da idéia da liberdade
em sua formação pessoal e na experiência de sua geração
Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 4
dos anos 1960/70. Patrick Pessoa reflete sobre a autonomia
estética da obra de Machado de Assis. Adriany Mendonça
discute os principais aspectos filosóficos presentes na noção de
antropofagia desenvolvida por Oswald de Andrade, enquanto
Alexandre Mendonça explora a valorização da cultura popular
feita pelo filósofo Nietzsche. Já Rosa Dias reconstrói a
importância da produtora cinematográfica Belair e do filme
A família do Barulho de Júlio Bressane no cenário filmico,
político e cultural brasileiro dos anos 1970. E, encerrando,
Jorge Mautner escreve a respeito da atualidade do amálgama
cultural brasileiro, expresso através de suas emblemáticas
frases "Ou o mundo se Brasilifica ou se tornará nazista" e
"Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé".
Com o patrocínio da Caixa Econômica Federal, temos
o prazer de oferecer ao leitor um material que servirá de
referência aos estudos do interessado na relação Filosofia e
Cultura Brasileira.
Os organizadores
Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 5
índice
09
Filosofia e Niilismo Antônio Cicero
30
0 salto da índia: corpos na cultura brasileira Ana Cristina Chiara
46
0 sol da liberdade
59
Brás e o Brasil: a Filosofia da Arte de Machado de Assis
76
Aspectos filosóficos da antropofagia oswaldiana Adriany Mendonça
90
Filosofia e cultura popular Alexandre Mendonça
98
A Família do Barulho na Belair de Júlio Bressane
106
Luiz Carlos Maciel
A amálgama do Brasil universal
Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 7
Jorge Mautner
Patrick Pessoa
Rosa Dias
O salto da índia: corpos na cultura brasileira
A n a Cristina Chiara
policiados,
corpos
expectadores,
corpos-que-não-dançam-não-
gritam-não-fodem-não-podem-não-explodem/ corpo-convite, corpo
que seduz, corpo que chama, corpo em c h a m a s , corpo x a m ã , corpo-
Aqui cada palavra vive, é íntima, é profunda; nem
faltam instâncias dolorosíssimas, havendo palavras que
propriamente manam sangue. Sobretudo, porém sopra
um vento de ampla liberdade; a própria dor não aparece
como objeção.
desbunde contra corpos domesticados/ corpo-animal, corpo-cobra/
corpo tudo pode/ tudo fode, fode c o m tudo, corpo-deboche/ corpodesbunde contra corpo-social deixando exposto o código de conduta
1
que se manifesta./ Ao artista é permitido pirar porque entra e sai da
experiência, porque a conduz/ a platéia obedece às regras da não
Um corpo que toma de assalto o espaço de um retângulo
e faz com que outros corpos (desejantes) se colem às paredes/ um
corpo em transe que suga o ar deixando um vácuo irrespirável em
interferência para n ã o pirar, não manifestar seu corpo/ eis a equação
corporal exposta/ o teatro, a performance c o m o "miroitemenf', c o m o
"éclat" dos corpos do público, do corpo-público?
torno c o m o se o ar estivesse sendo sugado dos p u l m õ e s / um corpo
que se arrasta, se esfrega, grita, corre, respinga suor, excreta mijo,
cospe/ enquanto outros corpos cujo nojo, espanto, piedade só pode
se manifestar em músculos tesos, m ã o s atadas, sorrisos, em olhares
que se desviam da manifestação de um excesso corporal que os leva
ao estático, contidos, espremidos, na expectativa de u m a queda, um
ferimento, cacos de u m a garrafa, restos de arroz e feijão, de milho
cuspidos, restos de sidra espirrando nas roupas, um tombo por cima/
c o m um grito "get o u t " libertando, soltando, convocando d e m ô n i o s /
corpo-música, corpo-rítmico, corpo-singular, corpo-coletivo, corpoisso, corpo-aquilo, um corpo alucinado entre corpos contidos/ um
Trato aqui da performance
O
Confete da índia,
com a
concepção, direção, coreografia e execução de André Masseno,
premiada com o Prêmio Funarte Klauss Vianna de D a n ç a 2011 e
F A D A 2011 - Fundo de A p o i o à Dança, da Secretaria Municipal de
Cultura do Rio de Janeiro, e realizada em 2012 nos dias 10 a 20 de ,
setembro no Solar de Botafogo, e nos dias 05 e 06 de outubro no
Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro.
No centro de um retângulo um corpo envolto por um saco
de lixo, do qual só se v ê e m as canelas equilibradas sobre enormes
saltos de um sapato vermelho, dança ao ritmo da canção portuguesa
2
corpo extático, envultado por entidades-multidão, " m e u n o m e é
legião", lugar de p a s s a g e m dos gestos culturais, dos confetes da índia
(da índia???)/ corpo m a c u n a í m i c o em mímicas diversas, colagem de
máscaras, de poses, corpo perverso polimorfo, corpo-proteiforme,
corpo-cultura, corpo-político, corpo-endemoniado contra corpos1
NIETZSCHE, 1984, p. 98.
Filosofia e C u l t u r a Brasileira I 30
"Milho v e r d e " ; o público está em p é , encostado às paredes. Daí por
diante serão sucessivas coreografias c o m trocas de músicas, roupa,
ingestão de bebidas, de comida: um caju, o conteúdo de u m a lata de
milho verde, arroz e feijão de u m a quentinha, serão gritos, gemidos,
respiração forte, urina e suor. Neste trabalho o corpo do artista é
2 Canção folclórica portuguesa, recriada e adaptada por Gilberto Gil para o álbum índia, de Gal Costa
(1973).
Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 31
levado a extremos incômodos. N ã o raro se p o d e m ver arranhões,
se c o m o necessidade de reagir à atividade intelectual frenética e/ou
esfolados na pele, n u m circuito de dentro (o suor, o sangue, a urina)
totalmente exteriorizada e banal que p o d e ser encontrada nas imagens
para fora (a superfície da pele, poros, furos), c o m o duplicadores de um
da cultura. Este corpo quer provar o que a arte da fotografia de Arthur
exercício corpo-pensamento da cultura brasileira, seus estereótipos,
Ornar retém nas "faces que não duram mais que breves instantes".
seus clichês, ao m e s m o tempo em que faz o desmonte dessas imagens
Assim, de um extremo total da introversão/devoração de estereotipias
congeladas e reatualizadas no ritual xamânico do transe cultural, de
da cultura brasileira, passa-se ao m o v i m e n t o contrário da extroversão
seus trânsitos.
total por m e i o dos líquidos, dos gritos, das expressões faciais. São os
A experiência do êxtase, que nada deve à moral religiosa
estados gloriosos do corpo. N e s s e corpo, desdobram-se os caminhos
m e s m o estando mergulhada até a m e d u l a em seu ambiente (lembremos
que vão da arte experimentação ou encenação do erótico ao c a m p o
Santa Teresa D ' Á v i l a e São João de La Cruz), será sagrada ou
da presentificação da morte (o corpo some, desaparece ao final). O
profana, ou ainda de profanação do que é t o m a d o c o m o sagrado
corpo, no m o v i m e n t o de alçar-se e de desmaiar, arrastando-se pelo
n u m a cultura, p o d e n d o exercer-se de maneira desafiadoramente
chão imundo, perturba todas as noções de física, contraria a ordem
blasfema e perturbadora, c o m o ânsia de complementaridade, de
do m u n d o , desmente a moral que separa gozo e beatitude, excesso e
abarcar o todo, e o conseqüente estado de derrelição, de desamparo
privação, deleite e nojo. A graça aparece n u m a dimensão ao m e s m o
e de vazio. Cito a frase de Hilda Hilst no livro A Obscena Senhora
t e m p o divina (dos caboclos e dos orixás) e profana (dos mascarados,
D: "engolia o corpo de Deus c o m o q u e m sabe que engole o Mais, o
das dançarinas de dancing, dos corpos alucinados nas boates), c o m o
Todo, o Incomensurável, por não acreditar na finitude me perdia no
um apelo irrecusável aos sentidos, c o m o materialização poética do
absoluto infinito". As leituras dos místicos p o d e m provocar "violento
coração de Pindorama/Brasil, c o m o um desafio à razão, que p o u c o s
processo de introspecção", em contraposição ao desgaste dos "usos
p o d e m atingir.
3
do c o r p o " efetuados na cultura contemporânea.
A experiência do público de estar espionando u m a dimensão
Neste caso, de O Confete da índia, a figura a m b í g u a em cena
vedada às pessoas c o m u n s raia o silêncio total, é incomunicável, nela
(homem/mulher/animal/coisa), embora exposta em toda a superfície
explodem as palavras, as palavras p e r d e m a capacidade comunicativa,
da pele, quando nua, guarda algo c o m o u m a sede de profundezas,
são potências. Potência do que é dádiva, entrega total - c o m o diz
abismações, sob o saco de lixo que a envulta, sob a máscara de
Bataille a propósito do sol - excede, m a s t a m b é m p o d e queimar.
Clóvis, sob a peruca, soltando o grito gutural, por reação contrária
Nesta coreografia do desejo, tudo ameaça se romper, e o público teme
ao excesso de superfície e ao superficial. O corpo da índia impõe-
tocar o nada. Junto da experiência radicalmente arrebatadora do êxtase,
3 HILST, 1986, p. 62.
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sobrevêm as experiências da transgressão como as que encontramos
adentro, em 330 versos contrariados, fluxo de palavras pesando, de
no domínio da poderosa literatura da crueldade sadiana, com seu
pesar (sofrer) e de pesar, pensar, meditar, sente a dor do m u n d o que
opressivo clima de violência e da vontade maníaca voltada para o
o mataria logo adiante. Neste admirável e sombrio poema, as águas
mal, assim como da positivação do excesso erótico de um melancólico
escuras do rio preparam o mergulho do poeta heróico, do vanguardista
como Bataille em seus festins mortíferos. As releituras críticas desses
da pauliceia desvairada, do poeta arlequinal, do poeta que "ouviu"
dois clássicos são importantes no sentido de pensá-los na perspectiva
histórias de Macunaíma, herói sem caráter, herói de nossa gente. No
contemporânea da cultura brasileira tal como desfiadas e desafiadas
poema, se pressente a uiara, a moça do furo na nuca nas águas da
na desafiadora performance. Também seria necessária a retomada de
lembrança, mergulho mortífero e contaminador. Também a índia de
textos basilares sobre a cultura brasileira - como o "Estilo tropical"
5
ou " O h o m e m cordial" de Raízes do Brasil
4
salto n'0 Confete repete os movimentos coleantes e sedutores da uiara,
- no sentido de se
no filme Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade, no qual se podia
compreender o m o d o como a morte, a melancolia e o tédio conformam
pressentir o furo na nuca. Por este furo na nuca da moça, o herói foi
o estado de privação do sujeito e se inscrevem com disfarces insidiosos
tragado ao fundo do rio e despedaçado; pelo furo do negrume denso
no discurso da cordialidade brasileira no corpo da cultura da alegria.
do rio na "Meditação...", as esperanças do poeta, no poema, esvaem.
M a s não só d ' O Confete da índia quero tratar. Falo a partir de figuras
de corpos de índios, de negros, mas também de outros corpos, como o
corpo da "tristura" de Mário de Andrade e o corpo ofiiscante do desafio
de Flávio de Carvalho, sua capacidade de atravessar o corpo da cultura
oficial, penso o corpo pensando no e o Brasil, para chegar a Itamar
Assumpção e a ruptura do corpo negro com a situação de vítima.
Se antes, na densidade negra que assomava ao final do livro
fluvial que é Macunaíma, na densidade de negro do herói sem caráter,
no murmúrio solene do Uraricoera, o poeta se recolhe na tristura; neste
poema da "Meditação...", ele mergulha para morrer antes de morrer,
mergulha no Tietê. Neste trajeto às avessas: " M e u rio, m e u Tietê,
onde me levas?/ Sarcástico rio que contradizes o curso das águas/
Volto a 1945, quando um poeta paulistano encosta o peito
E te afastas do mar e te adentras dentro da terra dos h o m e n s " (MT,
no peito escuro do rio Tietê. Peito c o m peito, abraço indissolúvel
p. 305), movimento contrariado, na contramão do fluxo dos rios, na
na densidade negra da noite, M á r i o de A n d r a d e escreve "Meditação
contramão do tempo dos homens, o poeta mergulha, ensimesmando-
6
sobre o Tietê" , um testamento-testemunho, lamento, mantra político,
se. A densidade e peso tornam o motivo da noite solene e agourento:
c o m o se adivinhasse a contração fatal do coração exausto, pesado,
"É noite e tudo é noite. U m a ronda de sombras,/ Soturnas sombras,
devastado, contraído e enfartando. O poeta modernista mergulha rio
enchem de noite de tão vasta" (MT, p. 305).
4
Cf. ARARIPE JR, 2011, [1888].
É pelo furo da falta que o Brasil imprime na sua alma que ele
5 Cf. HOLANDA, 1989 [1933].
6 Todas as referências do poema referem-se à edição de Poesias Completas, 1972, e serão indicadas
por MT e a respectiva página.
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se deixa ir, neste atrapalho, neste fundo sem fundo de quem desalmou,
e m b o r a c o m a , bote pra dentro, m i l h o , arroz e feijão, as c o m i d a s do
perdeu a força revolucionária do grito de ódio ao burguês. Quando
"brasileiro", d i g a m o s assim).
Mário curva seu corpo sobre o Tietê, cola seu peito às águas lutuosas
E x a m i n o a partir de agora u m a figuração do negro na obra
do rio, neste m o m e n t o de profundo cansaço, crispação e dor, ele se
de M á r i o de A n d r a d e muitas vezes citada p o r Silviano Santiago. Em
encontra cada vez mais colado a São Paulo, comoção de sua vida,
carta a Carlos D r u m m o n d (1924), o poeta paulistano recorta de um
como metonímia do Brasil. As luzes da cidade se refletem nas águas
cortejo carnavalesco a i m a g e m de u m a negra cuja alegria imprime
do rio, o rio inflete o reflexo das dores humanas na dor do poeta: "A me
forte impressão em seu espírito: " D a n ç a v a c o m religião. N ã o olhava
reconciliar com a dor humana pertinaz,/ E a me purificar no barro dos
para lado n e n h u m . Vivia a dança. E era sublime. [...] Aquela negra
sofrimentos dos h o m e n s " (MT, p. 306). Adorno, na palestra "Palestra
me ensinou o que milhões, milhões é exagero, muitos livros não me
sobre lírica e sociedade" (2003), aponta u m a corrente subterrânea
ensinaram. Ela me ensinou a felicidade" O corpo da negra na dança
coletiva que preside o encontro do poeta com a sociedade, n u m ponto
se desembaraça dos códigos culturais esgotados e faz emergir u m a
nodal onde a subjetividade se enlaça c o m a crise coletiva, com sua
aparição, ou aquilo que G u m b r e c h t (2010) explica c o m o produção
presença ou falta. Afirma que não se trata da "pessoa privada do poeta",
de presença. Esta figura do corpo em transe da negra afetou Mário
diz respeito, ao poeta no poema, quando o indivíduo e o coletivo
e, provavelmente, o leitor dessa carta, provocando-o c o m o desejo e
se colam e se descolam, solvendo-se e dissolvendo-se um no outro.
a inveja dessa vivência tão magnificamente plena, ao m e s m o t e m p o
"Meditação sobre o Tietê" promove esse compartilhamento da crise da
individual (não olhava para lado n e n h u m ) e coletiva (dançava c o m
sociedade humana provocada por u m a guerra sem precedentes, crise
religião). O corpo da negra contamina c o m a potência de perder-se
da sociedade brasileira sob um estado de exceção, crise do indivíduo
um p o u c o na multidão dos corpos. N e m à frente, para não projetar
n u m m u n d o desidentificado, sem heróis sem glória.
u m a sombra onipotente e solitária à volta do poeta, n e m atrás, c o m o
7
Se as figuras de índio r o m â n t i c a s , c o m o Iracema, foram
no gabinete na R u a Lopes Chaves, onde M á r i o de A n d r a d e quis se
revisitadas p o r M á r i o de A n d r a d e em Macunaíma, M a s s e n o , ao
refugiar dos ataques da crítica à sua posição político-existencial. O
coreografar O Confete da índia, revisita os anos 70, no corpo de
corpo da negra e n s i m e s m a d o não se afoga, ele gira.
G a l Costa, c o n v o c a d a à p e r f o r m a n c e d'O Confete e reatualizada
Diferentemente do coração exausto de Mário, Flávio de
São sobreposições difratadas de um
Carvalho, artista m o d e r n o e arquiteto, criou novos m o d o s de
corpo s e m alívio, u m corpo t a m b é m s e m u m a o r i g e m certa, u m
atravessamento do corpo nas multidões. Segundo Camillo Osório,
c o r p o esgotado que se esvazia (em mijo e suor) s e m n u n c a estar
"[...] O [seu] interesse era buscar novas maneiras de pensar a
em trilhas musicais dance.
c o m p l e t a m e n t e cheio ( e m b o r a entorne café e cidra sem parar,
7 Apud SANTIAGO, 2006, p. 69.
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,
10
subjetividade: o " e u " não c o m o entidade autônoma, m a s sim c o m o
sobre vestimenta e cultura , o artista criou um traje tropical para o
8
"novo h o m e m " . Tratava-se do New Look, u m a roupa arejada c o m
É, portanto, por m e i o da fricção dos corpos, do atravessamento e
saia, usada por ele, n u m desfile p â n d e g o , nas ruas da cidade, em
do atrapalho que Flávio, em inusitadas performances, busca um
mais um confronto com os h o m e n s de terno das ruas de São Paulo.
m o d o de unir lírica e sociedade, e, por m e i o disso, provocar um
Segundo Flávio, em artigo, no Diário de São Paulo do dia 4 de m a r ç o
deslocamento, do b o m c o m p o r t a m e n t o do rebanho.
de 1956" tratava-se de " u m traje em trânsito", precursor, segundo
algo " i n v e n t a d o " no embate c o m o outro, c o m a cultura e a história".
Foi assim
que, em 1931, realizou u m a performance formidável opondo seu
corpo em m o v i m e n t o contrário ao deslocamento de u m a procissão
de
Corpus
Christi.
Trata-se da Experiência n°2.
Luis Camilo Osório, do transe dos parangolés de Hélio Oiticica.
Se essas experiências fazem de Flávio um contraponto à
12
Em plena voga
atitude corporal tensa e quase fixa de Mário em " M e d i t a ç ã o . . . " , a
do racionalismo modernista, ele buscava inventar o novo h o m e m
índia de O Confete fará t a m b é m da fricção u m a estratégia corporal
gerando u m a fricção do corpo individual contra a força da m a n a d a
para a d e s m o n t a g e m de estereótipos, usando um saco de lixo, c o m o
obediente. Garboso, c o m um chapéu verde, sem deixar seu corpo
um parangolé, dois vestidos, máscara e peruca para repensar o m e i o
se afogar no corpo místico, m a s tendo sido quase linchado por
tropical em seus cruzamentos c o m a estética pop.
causa disso, reinventa a j u n ç ã o do erótico, do ético e do estético:
Evoco - para finalizar este conjunto de corpos emblemáticos
"caminha de forma atrevida na contramão do fluxo dos fiéis [...] o
da cultura nacional - a presença de um negro j u n t o à índia, ao Flávio
que interessa é a ousadia de enfrentar o estabelecido, de se colocar
e à negra. Este negro encarna no corpo de poeta Itamar A s s u m p ç ã o
9
em risco, de viver o desconhecido e o inesperado". Flávio t o m a v a
que surge nas noites do Teatro Lira Paulistana, em 1980, c o m o um
para si as ousadias dadaístas trazendo o artístico para a rua, para o
dos n o m e s da cena alternativa, conhecida c o m o Vanguarda Paulista,
meio da massa dos corpos obedientes, mas sem aviso prévio, sem
cujos poetas eram c h a m a d o s " m a l d i t o s " . A s s u m p ç ã o recusou-se
autonomear-se c o m o intervenção artística. Aparição de Flávio, c o m o
a submeter sua carreira ao controle do sistema fonográfico, corpo
a contravenção crioula da negra que, no carnaval, não quer mais se
que se esquivou ao sistema, este crioulo c o m sotaque paulistano-
13
submeter à colonização do corpo escravo e que busca nas brechas
do desfile entrar em contato com seu ritmo, c o m o seu corpo e com
o corpo recalcado da cultura negra. Outro atravessamento de Flávio
de Carvalho dar-se-ia em outubro de 1956, depois de vários artigos
8
OSÓRIO, 2000, p. 17.
9
Idem, p. 19.
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10 Trata-se da série "A Moda e o Novo Homem", publicada por Flávio de Carvalho (1899-1973) em
coluna homônima no Diário de S. Paulo, entre março e outubro de 1956.
11 Apud OSÓRIO, 2000, p. 05.
12 Aproveito a observação arguta de Luis Camillo Osório que, ao associar a figura de Flávio ao
Boi de coice de João Cabral de Melo Neto - "o mais importante boi de coice de nosso modernismo"
(OSÓRIO, 2000, p.47) - cria a imagem tradutora da diferença dos dois artistas. Se, para Camillo Osório,
o boi de coice, com energia nova, puxa o carro do Modernismo para frente, observo que a resistência
melancólica do Boi Paciência que figura no poema "Meditação..." de Mário torna essa energia em culpa
e resignação solitária: "Nem siquer o Boi Paciência/ Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!...
e os corpos/ podres envenenam estas águas no bem e no mal." (MT, p. 307).
13 Junto a Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Preme (Premeditando o Breque), dos Pracianos - Dari Luzio,
Pedro Lua, Paulo Barroso, Le Dantas & Cordeiro e outros.
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paranaense, dicção e divisão harmônica singularíssima entre o samba,
acordo com a tese da cordialidade como em Raízes do Brasil. C o m o se
o soul, o j a z z e outras influências afrolatinas, aproxima-se de Mário
sabe, para Sérgio Buarque de Holanda, a cordialidade não se confunde
pela identificação c o m a cidade de São Paulo, metonímia do Brasil.
com amabilidade (nem com bondade), para o sociólogo paulistano essa
A s s i m c o m o o coração de Mário de A n d r a d e , o coração de Itamar
característica apontava para uma ambigüidade oscilatória, uma confusão
ficou identificado, ligado, às veias da cidade. Na letra de "Persigo
entre esferas do privado e do público, inclinação cultural para o arranjo
São Paulo", ele confessa: " N ã o , não/ São Paulo é outra coisa/ N ã o é
pessoal em detrimento do legal. Para Silviano, isso quer dizer que, no
exatamente amor/ É identificação absoluta". De algum m o d o , estes
caso dos modernistas, se o descentramento quanto à cultura européia
dois poetas encarnaram u m a possibilidade tradutória da experiência
permitia o ensaio de desrecalque das etnias negra e indígena, este deveria
das ruas da cidade; u m a possibilidade tradutória da cultura nacional.
ser acompanhado também do acesso aos bens culturais europeus,
Se para o modernista de 22, século X X , o herói de nossa gente é sem
abrindo: "dois buracos no cercado da europeização", o nacionalismo
caráter, polimorfo perverso, piá c o m cabeça grande, consciência na
e o cosmopolitismo, a fim de não só permitir a entrada dessas etnias
ilha de Marapatá, para o maldito dos anos 80/90 do século X X , o
recalcadas no discurso da cultura brasileira, mas também retirar os
herói é isca de polícia, N e g r o Dito, senha para o século X X I . N ã o
brasileiros do complexo de inferioridade cultural.
se trata mais da Antropofagia Cultural, do Oswald, a m i g o do Mário,
No caso dos poetas da Vanguarda Paulista, no caso de
n e m sequer da atual política afirmativa das cotas. Trata-se de u m a
Itamar, este buraco passa a ser mais embaixo, n ã o na cerca, não
possibilidade erótica, de sedução do outro, de (con)fusão c o m o
no que cerca, m a s naquilo que liberta o próprio desejo e mobiliza
outro, possibilidade irônica de u m a transa, de tesão.
para o outro, mobilizando o outro. No corpo musical de Itamar
Antes, para a geração Modernista de 22, segundo artigo "Destino:
A s s u m p ç ã o , o c a m i n h o , c o m o para Flávio de Carvalho, não é mais
globalização. Atalho: nacionalismo. Recurso: cordialidade", de Silviano
atalho, é atrapalho e a mistura étnica, fusão globalizada. Na letra de
14
Santiago , a questão era o corpo miscigenado, pluralidade das etnias,
"Aculturado", Itamar ironicamente aponta para a confusão cultural
com hegemonia imposta da cultura européia, cristã e branca, o "atalho"
do brasileiro:
para o universal, seria a construção pré-fabricada de um universalismo
Líbio, libanês, árabe turco/ A c h a farinha do m e s m o saco/ N ã o saca
compassivo para qual Gilberto Freyre, nos anos 30, cunhara o seguinte
croata, curdo/ N ã o saca iugoslavo / N e m belga, n e m m a m e l u c o /
emblema "No Brasil ninguém é branco" solução utópica vivida, na
N ã o saca Platão, n e m P l u t a r c o " . Registro o viés crítico de Itamar,
"Culturalmente confuso/ Brasileiro é aculturado/
15
prática, com recalque da cultura indígena e afrobrasileira sob o disfarce
do cordial conforme indica Silviano em análise mais apurada e mais de
14
Apud DUARTE, 2001, p. 167.
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15 Essa aculturação confusa se aproxima do conceito de avacalhado para o comportamento cultural
brasileiro, que foi tomado de empréstimo por Silviano Santiago a Rogério Sganzerla. Silviano define
assim a avacalhamento da cultura: "Qualifico o pensamento crítico e arte avacalhados, se for verdade
que na etimologia do verbo avacalhar, como atesta o dicionário, está a noção de vazio, de vácuo. O
avacalhado é aquilo que o cidadão desprovido, falto de recursos, experimenta ao buscar acesso ao que
ambiciona" (SANTIAGO, 2011, p. 37).
Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 41
,
para positivar a palavra confusão, no que etimologicamente traz
com um dar de ombros b e m h u m o r a d o : " T u d o que tenho é humilde/
de desrecalque e fusão. Vinda diretamente do latim confusio onis,
Sou do m a t o / Sou mulato/ Alfiderzen". E um outro coração, não o
"ação de juntar, reunir, misturar"; neste sentido a desordem cultural,
coração do sacrifício do artista do poeta, não o coração transtornado,
o vazio avacalhado, para ser redundante, cede vez à capacidade da
mas o coração-tesão: "Ich liebe dich frau / e m Tubigen M u n i q u e ou
experiência do poeta de desafiar a ordem imposta, de misturar as
Gerdau/ Duzist / m e i n e gau/ genau genau".
influências e de atrapalhar as definições e rótulos. N ã o se trata mais
Silviano Santiago terminou o citado artigo c o m um p o e m a de
de antropofagia, de digestão, assimilação da cultura do outro, de
A d ã o Ventura, cuja metáfora central retomava a i m a g e m do coração
acesso ao que falta, m a s de inversão de pólos, de oferecimento, de
ferido e tumultuado de Mário na "Meditação...": "para um negro/ a
dádiva e de gozo. Do m e s m o m o d o que a índia de M a s s e n o vomita
cor da pele/ é u m a faca/ que atinge/ muito mais em cheio/ o coração".
o excesso em pleno gozo/morte trans-antropofágicos, o que este
Este p o e m a traduz séculos de exclusão e lutas, unindo, no sentido
negro, este preto, este crioulo tinha a dizer, por exemplo, em Berlim,
adorniano, o individual ao coletivo; entretanto, apesar de bela e
em 1993, no Podenville, aos europeus? Disse: "Ich liebe dich", de
cortante, a i m a g e m da faca no coração, ainda faz c o m que o negro
m o d o afirmativo, de q u e m sabe ter feito um trabalho "às próprias
apareça de forma vitimizada. Contra este coração exposto, crístico,
custas" (título de um dos seus C D s , de 1989). O corpo deste herói
proponho a bela metáfora da orquídea de Itamar. A s s i m c o m o Tom
p ó s - m o d e r n o , cibernético, peito nu, óculos espaciais, índio, africano
Zé, que ganhou a vida c o m o jardineiro em São Paulo durante u m a
ensina ao Outro o gozo diferente, gozo do diferente. E o gozo, c o m o
época, t a m b é m c o m o Lenine, é sabido que A s s u m p ç ã o cultivava
disse Marina Silva em Back2Black (27 de agosto de 2011), é a
orquídeas, essa singular, e difícil, espécime de flor, entre o selvagem
dimensão estética da sustentabilidade.
e a j a r d i n a g e m , entre a força da natureza e a ordem da cultura, flor
6
Na letra de "Ir para Berlim", Itamar brinca: "Você quer por
que não serve para cura, não serve para os chás, só embeleza a v i d a . '
mar/ Ir para Berlim/ Quer m u d a r de ar/ Qualquer coisa assim/ M a s
Esta flor rara - a orquídea - plantada, por Itamar, n u m a lata de óleo
é melhor levar limão,/ Feijaozin/ Café, guaraná/ m e u cuidar sem fim
de cozinha - fura camadas de ressentimento e melancolia, encarna o
[...]". Podia ser a tópica romântica da saudade no exílio, m a s creio
artístico, o b e m simbólico a conquistar, cultivar e oferecer.
que não. São outros tempos para os poetas de São Paulo. Outras
O Confete da índia expõe j u n t o s n u m só todos estes corpos
vias, outros dutos, outros rios correndo por baixo, outro sangue nas
como o Nu descendo a escada, de D u c h a m p , entre gritos de dor
veias, outra atitude. A letra da canção continua c o m a sedução para
e de gozo, n u m a conjunção de tempos, ela atinge em cheio, c o m o
que o outro/a não se vá: "Tudo que tenho é L o u Reed/ possível que
explosão, o coração de Pindorama. N ' ( 9 confete um corpo em espiral
ce duvide/ Alzira, Zélia, D a ú d e / Cássia, sua m ã e e swing". Termina
16
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A banda de Itamar Assumpção composta por mulheres chamava-se As Orquídeas.
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dança, grunhe, n u m reino onde se abolem as diferenças entre o alto e
o baixo, o m a c h o e a fêmea, o h u m a n o e o animal, subindo e descendo
do salto. Vinda de não sei onde, a índia bamboleia, coleia, inferniza e
some não se sabe pra onde. A índia somos nós. A índia é aqui.
SANTIAGO, Silviano. Ora (direis) puxar conversa: ensaios literários. Belo
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