PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP Cibele Simões Ferreira Kerr Jorge RAUL SEIXAS: Um Produtor de Mestiçagens Musicais e Midiáticas DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Linha de Pesquisa: Cultura e Ambientes Midiáticos SÃO PAULO - SP 2012 Cibele Simões Ferreira Kerr Jorge RAUL SEIXAS Um Produtor de Mestiçagens Musicais e Midiáticas DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Doutor José Amálio de Branco Pinheiro. SÃO PAULO - SP 2012 Jorge, Cibele Simões Ferreira Kerr Raul Seixas: Um Produtor de Mestiçagens Musicais e Midiáticas / Cibele Simões Ferreira Kerr Jorge. São Paulo, 2012. 231f. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - SP, Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica. Orientação: Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro. 1. Processo Criativo e Ambientes Midiáticos. 2. Memória Musical. 3. Mestiçagem Musical. Palavras-Chave: Mídia, Mestiçagem, Música, Barroco, Raul Seixas. Banca Examinadora _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ Dedicatória Dedicada a Raul Seixas, incomparável gênio da cultura brasileira, pela grandeza de seu caráter e riqueza de sua obra. AGRADECIMENTOS A Deus, por tudo. Aos meus pais, Norman e Izabel, por sua dedicação infinita e admirável, por terem sempre garantido e apoiado meus estudos e por me presentearem com a fita do Plunct Plact Zuum - O Carimbador Maluco, em meu aniversário de quatro anos, o que desencadeou minha paixão por Raul Seixas. A Priscila Jorge, por trazer de longe o aparato midiático e tecnológico com o qual a tese foi confeccionada, e por me auxiliar com as traduções. A Luciana Jorge da Silva, minha “raulseixista” predileta por me explicar a obra de Raul em minha adolescência e me emprestar sua coleção de LPs 1, em meu aniversário de treze anos, fato que me levou a estudá-lo em livros, a ouvir suas músicas assiduamente e a desejar contribuir para perpetuar sua obra. A Waldir Gonçalves e Gabriel Gonçalves, pela gentil acolhida que me permitiu desenvolver minha pesquisa de campo. A Edna Zarino e Helio Alves, por me presentearem com vídeos históricos de Raul. A Silvia Jorge da Silva pela torcida animada. A Alaercio Pizani por sempre ter acreditado em mim. A Elton Magalhães de Lemos, por me acompanhar em nove anos de peregrinação em manifestações de homenagem a Raul Seixas, pela dedicação e carinho, e por me auxiliar com o site. A Mateus do Carmelo, por sua eterna amizade e por me explicar as passagens rítmicas musicais, com paciência e dedicação. A Beatriz Zeballos, pela alegria com que acompanhou o meu mestrado, pela maravilhosa amizade e incentivo. A Maria da Gloria de Souza, pela amizade e pela torcida. A Martha Gomes, por acreditar no meu sonho e me incentivar maravilhosamente a realizá-lo. A Dany Demétrio, Janine Nakazone, Felipe Garcez e Marcio Girardi, pela eterna amizade. A Maria do Desterro, pela amizade, pelas palavras de apoio e boa culinária. A Edna Aparecida Simões Ferreira, Maria Madalena Simões e Helena Bazzoti Ferreira pela torcida. 1 LP: Long Play – disco de vinil com gravações musicais. A Elaine Resende, por me apoiar e incentivar em nossas conversas e me auxiliar com o direcionamento para o estágio. A Neide Marinho, pelo apoio e amizade, e nossas risadas nos momentos mais difíceis. A Silvia Regina, pela amizade, presteza e pela super acolhida em sua revista. A dona Alice Moraes, por encontrar meu CD. Ao professor Tsuneu Tomimoto, por me auxiliar com abençoada dedicação nos percalços que surgiram durante o percurso. À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e a todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, e aos professores convidados para cursos e palestras, com quem muito aprendi. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), pela concessão da bolsa integral que me permitiu dedicação exclusiva à pesquisa. À Universidade Paulista (UNIP), pelo estágio no Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Ao Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem, coordenado pelo Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro, pelo aprendizado. Ao Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro, meu orientador, pelas riquíssimas aulas e orientações sobre a América Latina, o barroco e as teorias da mestiçagem, sem as quais esta pesquisa não seria possível. À Profa. Dra. Jerusa Pires Ferreira, pelo carinho com que contribuiu para esta pesquisa com suas maravilhosas aulas e apontamentos. À Profa. Dra. Cecília Almeida Salles, pela participação em minha banca de qualificação e por seus valiosos apontamentos. Ao Prof. Dr. Sérgio Bairon de Blanco Santana, pelos direcionamentos no primeiro semestre do curso. Ao Prof. Dr. Edilson Cazeloto, por me receber em sua brilhante disciplina como estagiária do Programa de Pós-Graduação da UNIP. À Profa. Dra. Malena Contrera, do Programa de Pós-Graduação da UNIP, que gentilmente me acolheu em suas aulas. À Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves, pela acolhida nos cursos de seu grupo de pesquisa. A Dirceu Martins, pela dedicação e revisão dos textos do grupo de pesquisa. Ao Prof. Dr. Arnaldo Daraya Contier pela riquíssima orientação em meu mestrado. À Profa. Dra. Petra Sanchez Sanchez pelos valiosos apontamentos em meu mestrado. À Profa. Dra. Maria Aparecida de Aquino pelas valiosas sugestões em meu mestrado. A Cida Bueno por sua dedicação em seu trabalho na secretaria do programa. A Rosa Lídia da Silva, pelas palavras de incentivo, pela paciência e pelo capricho com que realizou a revisão do texto. A Sylvio Passos, tanto por me atender sempre prontamente e tirar minhas dúvidas sobre a obra de Raul Seixas como por se dedicar a perpetuar sua obra ao longo destas décadas, de forma admirável. A Kika Seixas, por dar continuidade à obra de Raul e pela solicitude com que me atendeu. A Denis Feijão, produtor do filme Raul: O Início, o Fim e o Meio, por nossa conversa, e ao Bigode, por me presentear com seu CD em homenagem a Raul Seixas. A Edy Star, a Jesus Pezza e a Eduardo Lampeão, por terem sido tão solícitos com relação ao cantor, conversando sobre sua vida e obra. A todas as pessoas que se dedicam a, de algum modo, perpetuar a obra de Raul Seixas, aos fãs que participam das passeatas e shows em praças e bares, aos diretores de teatro e atores, músicos, cantores, escritores e organizadores de livros, artistas cover, aos familiares e à sua primeira banda, Os Panteras, e a Edy Star, por estarem novamente dando vida às obras que desenvolveram em parceria. Rio de Janeiro você não me dá tempo De pensar com tantas cores Sob este sol (Raul Seixas, letra de Aos Trancos e Barrancos) RESUMO O objeto de estudo deste trabalho são as mestiçagens musicais e midiáticas produzidas por Raul Seixas em sua obra, em diálogo com a tradição híbrida da cultura. O Problema de Pesquisa é investigar Raul Seixas como um produtor de mestiçagens musicais que atua entre as mídias e os ambientes midiáticos, e como um tradutor da cultura livresca para a linguagem popular. A pesquisa foi realizada na cidade de São Paulo, estado de São Paulo, por ser onde ele morou na fase madura de sua carreira e por concentrar seu maior público. O período de pesquisa abrange do início de 2008 ao início de 2012. A ênfase da pesquisa está no intervalo de duração de sua carreira, de 1962 a 1989. O objetivo geral é analisar as obras de Raul Seixas como formas de construção entre as mídias e os ambientes midiáticos. O objetivo específico é analisar textos da produção discográfica de Raul Seixas, tais como letras de músicas e melodias, onde se comprovam suas mestiçagens musicais e midiáticas. A tese se justifica porque não há trabalhos do gênero que abordem a mestiçagem e a tradução cultural na obra de Raul Seixas. As hipóteses são: 1 - A obra de Raul Seixas se utiliza de procedimentos comunicativos barrocos e 2 - Os elementos verbais e corporais dos textos de Raul são traduzidos, na mídia e nos ambientes midiáticos, por meio de procedimentos de mestiçagem. Metodologia: Realizei estudos sobre a atuação de Raul Seixas na mídia (nas rádios, televisão, shows, videoclipes, entrevistas e discos); para tanto, fiz pesquisas de campo com alguns de seus amigos, parentes e fãs, e coletei informações em mídias digitais e impressas, como: LPs, CDs, DVDs, fotografias, livros, revistas e internet. A base teórica conta com os estudos de Semiótica da Cultura, Teorias da Mestiçagem e do Barroco desenvolvidos pelos seguintes autores em suas obras: Severo Sarduy, com Barroco; Iuri Lotman, com La Semiosfera I; Serge Gruzinsky, com O Pensamento Mestiço; Paul Zumthor, com A Letra e a Voz e Introdução à Poesia Oral; Alexis Nouss e François Laplantine, com Mestizajes; Jesús-Martín Barbero, com Dos Meios às Mediações; Eduardo Viveiros de Castro, com A Inconstância da Alma Selvagem; Amálio Pinheiro, com O Meio é a Mestiçagem e Aquém da Identidade e da Oposição, e Octavio Paz, com Convergências. Palavras-Chave: Mídia, Mestiçagem, Música, Barroco, Raul Seixas. ABSTRACT The study object of this work is the musical and media mixes produced by Raul Seixas in his work, in dialog with the hybrid culture tradition. The research problem is to investigate Raul Seixas as a musical mix producer that acts between the media and the mediatic ambient and as a translator of the book culture to the popular language. The research was made in São Paulo city, São Paulo state, for being the where he lived in his carrier mature phases and for concentrate his biggest audience. The research period includes from beginning 2008 until beginning 2012. The research emphasis is on his carrier length period, from 1962 to 1989. The general objective is to analyze Raul Seixas discography production texts, as the lyrics and melodies were are proved his musical and mediatic mixes. The thesis justifies because there are no works of this kind that includes the mix and the cultural translate in Raul Seixas work. The hypothesis are: 1- the Raul Seixas work uses baroque procedure and 2-The verbal and body elements of Raul Seixas texts are traduced on media and mediatics ambient through mix procedure. Method : I have done a study of Raul Seixas medias action (on radio, television, shows, video clips, interviews and discs); for that are done research with his friends, parents and fans, and collected information in digital and printed media, like LPs, CDs, DVDs, photography, books, magazines and internet. The theoretic base counts with the culture Semiotic studies, mix and baroque theories developed by authors: Severo Sarduy with Baroque, Iuri Lotman with The Semiosphere I, Serge Gruzinsky with The Mestizo Thought, Paul Zumthor with The Letter and the Voice and Oral Poetry: An introduction, Alexis Nouss and François La Plantine with Mestizajes, Jesús-Martín Barbero with From the Media to Mediations, Eduardo Viveiros de Castro with The Inconstancy of the Indian Soul, Amálio Pinheiro with The Means is The Mestizaje and From this Side of Identity and Opposition and Octávio Paz with Convergences. Key-Words: Media, Mix, Baroque, Music, Raul Seixas. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Foto de Raul Seixas.............................................................................................................................. 45 Figura 2 - Raul vestido de sultão com Chacrinha (Abelardo Barbosa) - 1980 ..................................................... 53 Figura 3 - Cópia do manuscrito oficial da música Tente Outra Vez..................................................................... 57 Figura 4 - Foto da capa do disco Metrô 743 ........................................................................................................ 59 Figura 5 - Foto de Raul cantando Ouro de Tolo na Av. Rio Branco, Rio de Janeiro - 1973 ................................ 68 Figura 6 - Raul tocando músicas do álbum Gita - 1974 ....................................................................................... 76 Figura 7 - Carteirinha de associado do próprio fã-clube Raul Rock Club ........................................................... 79 Figura 8 - Foto de Raul com sua banda (sentado abaixo) .................................................................................... 96 Figura 9 - Foto de Raul cantando (ao centro) .................................................................................................... 123 Figura 10 - Raul lendo Orwell ............................................................................................................................ 136 Figura 11 - Chave da Sociedade Alternativa ...................................................................................................... 168 Figura 12 - Raul desenhando a chave da Sociedade Alternativa no abdômen, no Festival Phono - 1973 ......... 169 Figura 13 - Love is Magick - manuscrito ........................................................................................................... 172 Figura 14 - Ideias: Gita - manuscrito ................................................................................................................. 178 Figura 15 - Cópia do manuscrito original da música Gita – Parte 1 ................................................................. 180 Figura 16 - Cópia do manuscrito original da música Gita – Parte 2 ................................................................. 181 Figura 17 - Raul em entrevista a Pedro Bial - 1983 ........................................................................................... 187 Figura 18 - Raul Seixas interpretando o personagem do carimbador maluco ................................................... 197 Figura 19 - Tradicional concentração da passeata em frente ao Teatro Municipal - 2005 ............................... 208 Figura 20 - Passeata sobre o Viaduto do Chá, no centro de São Paulo ............................................................. 208 Figura 21 - Tradicional concentração em frente à Catedral da Sé, destino final da passeata - 2011 ................ 209 LISTA DE SIGLAS CBS Columbia Broadcasting System CD Compact Disc DJ Disc Jockey ou disco-jóquei DOPS Departamento da Ordem Política e Social DVD Digital Video Disc EUA Estados Unidos da América LP Long Play MPB Música Popular Brasileira RCA Radio Corporation of America SESC Serviço Social do Comércio URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas WEA Warner Music/Elektra Records/Atlantic Records SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................ 14 1.1 Objetivos ..................................................................................................................................................... 16 1.1.1 Objetivo Geral ..................................................................................................................................... 16 1.1.2 Objetivos Específicos .......................................................................................................................... 16 1.2 Justificativa ................................................................................................................................................. 16 1.3 Problema de Pesquisa ................................................................................................................................. 19 1.4 Hipóteses ..................................................................................................................................................... 19 1.5 Metodologia ................................................................................................................................................ 19 1.6 Critérios Teórico-Metodológicos ................................................................................................................ 20 1.6.1 Livros ................................................................................................................................................... 20 1.6.2 Revistas ................................................................................................................................................ 24 1.6.3 CDs ...................................................................................................................................................... 25 1.6.4 DVD..................................................................................................................................................... 25 1.6.5 Vídeos .................................................................................................................................................. 25 1.6.6 Internet ................................................................................................................................................. 26 1.6.7 Homenagens Presenciadas ................................................................................................................... 26 1.6.7.1 Peças de Teatro Assistidas ................................................................................................................ 27 1.6.7.2 Shows Assistidos ............................................................................................................................... 28 1.6.7.3 Passeatas Frequentadas ..................................................................................................................... 29 1.6.7.4 Debates Abertos ao Público Presenciados ........................................................................................ 29 1.6.7.5 Visitas a Exposições ......................................................................................................................... 29 1.6.7.6 Presença em Lançamento de Livro ................................................................................................... 29 1.6.7.7 Contatos Telefônicos Efetuados ....................................................................................................... 30 1.6.7.8 Pesquisas de Campo Realizadas e Algumas Constatações ............................................................... 30 1.6.7.9 Filmes Assistidos .............................................................................................................................. 32 2 PRIMEIRO CAPÍTULO – Processo Criativo e Ambientes Midiáticos....................................................... 34 2.1 As Relações Culturais ................................................................................................................................. 36 2.2 A Arte como Missão: A Semente Libertária ................................................................................................ 41 2.3 Processo Criativo ........................................................................................................................................ 46 2.4 A Linguagem Popular ................................................................................................................................. 47 2.5 Personagens ................................................................................................................................................ 50 2.6 Temáticas Musicais ..................................................................................................................................... 56 2.6.1 Discussão sobre o Comportamento Condicionado .............................................................................. 56 2.6.2 O Medo ................................................................................................................................................ 59 2.6.3 As Abordagens do Amor ..................................................................................................................... 60 2.6.4 As Críticas Sociais ............................................................................................................................... 64 2.6.4.1 Ouro de Tolo ..................................................................................................................................... 68 2.7 Trajetória Midiática e LPs .......................................................................................................................... 71 2.8 Entorno Social e Metrô Linha 743 .............................................................................................................. 84 2.9 Censura e Metáfora .................................................................................................................................... 88 3 SEGUNDO CAPÍTULO - Memória Musical ................................................................................................. 94 3.1 A Descoberta do Rock ................................................................................................................................. 95 3.2 O Rock....................................................................................................................................................... 103 3.2.1 Rock e Mestiçagem............................................................................................................................ 109 3.3 Blues.......................................................................................................................................................... 114 3.4 Gospel ....................................................................................................................................................... 115 3.5 Jazz............................................................................................................................................................ 116 3.6 Rhythm and Blues (R&B) .......................................................................................................................... 117 3.7 Country e Folk .......................................................................................................................................... 118 3.8 Beatles ....................................................................................................................................................... 120 3.9 A Profissionalização de Raul .................................................................................................................... 123 3.10 Luiz Gonzaga e o Baião .......................................................................................................................... 127 3.11 Rockabilly e Elvis Presley ....................................................................................................................... 132 3.12 Diálogos Culturais .................................................................................................................................. 135 4 TERCEIRO CAPÍTULO – Mestiçagem musical ........................................................................................ 139 4.1 Algumas Sociedades Alternativas e o Rock............................................................................................... 151 4.1.1 Beatnik ............................................................................................................................................... 152 4.1.2 Hippie ................................................................................................................................................ 155 4.1.3 Metamorfose Ambulante ................................................................................................................... 159 4.1.4 Maluco Beleza ................................................................................................................................... 161 4.1.5 Woodstock ......................................................................................................................................... 163 4.2 Sociedade Alternativa ............................................................................................................................... 163 4.2.1 Misticismo ......................................................................................................................................... 170 4.2.1.1 Bhagavad Gita ................................................................................................................................ 175 4.2.2. Novo Aeon ........................................................................................................................................ 182 4.2.3 Anarquia ............................................................................................................................................ 188 4.2.3.1 Um País Chamado Anarkland ......................................................................................................... 201 4.3 Carnaval e Riso......................................................................................................................................... 203 4.4 As Homenagens ......................................................................................................................................... 207 5 CONCLUSÃO ................................................................................................................................................ 215 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................................ 221 Publicações ..................................................................................................................................................... 221 Websites .......................................................................................................................................................... 228 Filmes.............................................................................................................................................................. 229 Documentários ................................................................................................................................................ 230 14 1 INTRODUÇÃO Este trabalho é um estudo da obra do cantor e compositor brasileiro Raul Seixas que considera sua proximidade com a estética e o fazer barrocos. Raul é estudado como um produtor de mestiçagens musicais que atua sobre as séries culturais e os ambientes midiáticos. Seu modo de trabalhar relacionando grande diversidade de elementos culturais é pensado aqui sob a ótica das teorias da mestiçagem. Daí, a importância de mostrar as análises das composições que apresentam as interações mestiças de elementos melódicos e culturais. Também é evidenciada sua contribuição como tradutor de uma cultura livresca ou erudita para a linguagem popular, que possibilitou a abrangência de sua obra em todas as classes sociais. Outro aspecto abordado é o viés social de seu trabalho, fomentado por seus estudos filosóficos, anárquicos e místicos e pelo senso de missão que assumiu. Desenvolveu uma obra libertária, que prima pela valorização do ser humano enquanto indivíduo livre, e buscou conscientizá-lo de seu direito de exercer sua vontade a despeito do cumprimento dos papéis sociais impostos. Tal direcionamento se evidencia tanto em suas músicas críticas e satíricas como naquelas que incentivam os esforços libertários e a não desistência ante as dificuldades. A pesquisa também narra sua trajetória, e busca contextualizar seu trabalho no momento histórico e social brasileiro, a fim de facilitar a compreensão da relação de seu trabalho com o entorno social, fora do qual os diálogos que estabeleceu não podem ser devidamente observados. O primeiro capítulo, Processo Criativo e Ambientes Midiáticos, estuda o desenvolvimento de suas criações, desde o despertar do interesse que motivava seu processo criativo até a produção do LP como uma obra conceitual, e também discorre sobre seu percurso na mídia. Para elucidar os diálogos com o rock e demais ritmos, como o baião, o segundo capítulo, Memória Musical, é dedicado ao seu repertório. Não apenas os estilos musicais têm espaço aqui, como os movimentos comportamentistas que tiveram reflexos em sua obra, a exemplo da contracultura, e os artistas e obras literárias que os compõem e despertaram seu interesse. O terceiro capítulo, Mestiçagem Musical, estuda as relações de mestiçagem presentes em suas composições, e analisa de que modo elas se dão, não como uma mistura de conhecimentos dispersos, mas como frutos mestiços da interação de elementos culturais, que formam algo novo a ser absorvido pelo movimento contínuo e renovador da cultura. Aqui 15 também são estudadas as inter-relações que compõem sua obra mais mestiça, a Sociedade Alternativa. Devemos lembrar que Raul serviu-se, não apenas de repertórios bibliográficos e musicais, como da própria cultura popular brasileira, e contribui para a mesma com uma obra criativa e mestiça, na qual personagens eruditos e populares convivem com humor. O local de realização da pesquisa é a cidade de São Paulo 2, cuja escolha justifica-se pelos motivos que se seguem: a cidade, que conta hoje com seu maior público, sedia uma série de eventos anuais em sua homenagem, os quais constituíram uma vivência enriquecedora para a pesquisadora e possibilitaram pensar quais assuntos deveriam tomar espaço nesta investigação. Foi onde Raul morou e trabalhou na fase madura de sua carreira. Cidades vizinhas que sediam homenagens, como Jundiaí e o ABC Paulista, também foram visitadas, assim como a mineira São Thomé das Letras, onde Raul goza do status de artista favorito. Venho estudando a obra de Raul Seixas desde 2003, quando ingressei no Programa de Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde desenvolvi a dissertação Raul Seixas e o Rock Brasileiro (1962-1989), trazendo, desde então, algumas questões. No doutorado, estou continuando a pesquisa inicial, com novo enfoque e aprofundamento teórico nas teorias da mestiçagem. Este trabalho está vinculado ao long play 3, mídia principal de sua carreira e à qual ele dedicou tempo integral, em constante aprimoramento intelectual, técnico e profissional. A pesquisa de doutorado, que foi realizada desde o início de 2008 até o início de 2012, compreende a análise do período em que Raul Seixas viveu: de 1945 a 1989, com ênfase no intervalo de duração de sua carreira, de 1962 a 1989. Esta pesquisa partiu de um profundo interesse meu pela obra de Raul Seixas, motivado por indiscutível apreço, que se iniciou na primeira infância, de modo que não pretende esgotar a discussão sobre quaisquer aspectos de sua obra, mas, ao contrário, contribuir para despertar novos interesses e discussões. 2 3 A cidade de São Paulo referida nesta pesquisa fica no estado de São Paulo (SP). Long play ou LP: Disco em acetato com gravação de músicas. 16 1.1 Objetivos 1.1.1 Objetivo Geral Analisar as obras de Raul Seixas como formas de construção entre a cultura e os ambientes midiáticos. 1.1.2 Objetivos Específicos • Analisar os textos musicais de Raul Seixas como lugar de confluência entre cultura, mídias e ambientes midiáticos. • Analisar como se dão as mestiçagens nas suas produções, partindo de seu processo criativo e de suas indissociáveis relações com a cultura da América Latina e com as demais sociedades que pesquisava. • Estudar as relações destas mestiçagens com os textos da cultura. • Investigar de que forma Raul Seixas trabalhou como um tradutor de textos eruditos e populares para a cultura popular, de entendimento acessível à maior parte das pessoas. • Contribuir para a área de Comunicação, mostrando as relações dos textos artísticos com as culturas mestiças e plurais brasileira e latino-americana, e seus diálogos com alguns fatos históricos. 1.2 Justificativa Busco justificar a escolha da obra de Raul Seixas como tema, por sua riqueza e complexidade, que constituem significativa contribuição para o campo cultural brasileiro. Outro aspecto relevante é o de não haver trabalhos que abordem a mestiçagem e a tradução cultural na obra deste artista. A importância desta pesquisa para a área da Comunicação está relacionada à força comunicativa da obra de Raul Seixas, à sua contribuição artística e trajetória midiática, e à sua relação com a história e com a mídia brasileiras. No âmbito documental, seu legado encontra-se nos diálogos com o quadro social e político de um período conturbado da história brasileira, compreendido entre as décadas de 1960 e 1980. Nessa época, o país vivenciou a deposição de seu presidente por um golpe de Estado, negando-se ao povo o direito de escolha democrática. Foi, então, governado por uma sucessão de presidentes militares por mais de duas décadas, com o controle da liberdade de 17 expressão e a suspensão de alguns direitos civis. A atmosfera de fechamento provocou o estímulo da atuação de forças contrárias, que, em resposta, contribuíram para o enriquecimento do quadro cultural, ao criar movimentos artísticos de vanguarda carregados de expressão libertária. “A arte é o espelho social de uma época.” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 41). Seu trabalho desenvolveu-se em meio às transformações sociais que os brasileiros vivenciaram, como: a valorização institucional da família, da Igreja e do Estado; o incentivo à economia nacional, acompanhado do crescimento da dívida externa; o florescimento de ricos movimentos artísticos e culturais; a discordância entre o Estado e a Igreja; a aprovação da lei do divórcio; a implantação dos programas governamentais de controle de natalidade; e, por fim, o descrédito popular na ação do Estado e o declínio do regime, que culminou com a suspensão da censura, a anistia aos presos e exilados políticos, a abertura política e econômica, e o fim do próprio regime. Em 1955, no governo de Café Filho, chega ao Brasil o primeiro rock: Rock Around the Clock, de Bill Halley, no filme norte-americano Sementes de Violência (The Blackboard Jungle). Em seguida, a cantora de samba-canção Nora Ney emprestou sua voz a essa música, e, nos anos 1960, uma série de artistas — tendo como o mais conhecido expoente o pessoal da Jovem Guarda — cantou rock no país. O pequeno Raul Seixas, com apenas onze anos, apaixonou-se pelo ritmo e tornou-se um rocker, passando a usar jaqueta de couro preta e goma nos cabelos sob o sol de Salvador. Aprendeu a falar inglês, fabricou sua própria guitarra, montou clubinhos com os amigos, e uma banda, que chegaria ao status de conjunto mais caro da capital baiana por volta de 1962. Sua relação com o rock se dá, portanto, desde a infância, quando ele acompanha tanto o cenário musical brasileiro como o norte-americano pelos discos que chegam à loja Cantinho da Música e ao consulado americano de Salvador, e pelos filmes exibidos no cinema. Dez anos mais tarde, em meio ao afluxo cultural do Rio de Janeiro de 1972, diante do júri do VII Festival Internacional da Canção, Raul traçou os caminhos do rock nacional, apresentando uma composição mestiça de baião brasileiro com rock norte-americano, intitulada Let me Sing, Let me Sing (Deixe-me Cantar, Deixe-me Cantar). No ano seguinte, alcançou sucesso nacional com a autobiográfica Ouro de Tolo, alertando para a apatia da classe média brasileira diante do quadro socioeconômico. Em 1974, obteve a consolidação do sucesso, com as altíssimas vendas de mais de seiscentas mil cópias do álbum Gita, o que lhe rendeu seu primeiro disco de ouro. 18 Raul marca o início do rock brasileiro e, não se prendendo a qualquer estilo, trabalha realizando intervenções sonoras em suas canções, como onomatopeias e introduções faladas, e tecendo criações em diversos ritmos, como o tango Canto Para Minha Morte, o bolero Sessão das Dez, o xote Quero Mais, as marchinhas de carnaval Eterno Carnaval e Eu Vou Botar Pra Ferver e o samba Aos Trancos e Barrancos — apenas para citar alguns. Carregou sua música com conteúdo filosófico e trabalhou de modo a traduzi-lo em linguagem popular. Na parte melódica, utilizou desde os ritmos brasileiros, afro-brasileiros e latino-americanos até os norte-americanos. A dedicação incessante à pesquisa e à criação caracteriza seu trabalho. Raul enriqueceu o campo artístico, desenvolvendo mestiçagens musicais com bases na filosofia e repletas de experimentações sonoras. Foi um inovador no campo musical, incorporando novos elementos ao rock nacional, como ao misturar rock com música afrobrasileira de terreiro, em Mosca na Sopa e Ê Meu Pai, e ao colocar candomblé, rumba, rock e baião na eclética É Fim de Mês. Produziu também raps, como Metrô Linha 743, e mesclou baião com rock, em Let Me Sing, Let Me Sing e em Blue Moon of Kentucky. Artista performático, herdou a espontaneidade da arte nordestina e incorporou a atitude desafiadora do rock norte-americano. Provido de rara perspicácia e capacidade de improviso no palco, dificilmente seguia a letra original das canções, reinventando sempre, em repentes melódicos. Em sua obra, composta por temas e ritmos diversos, expressou como poucos a característica latino-americana de incorporação de culturas mencionada pelas teorias da mestiçagem. Em tempos de uma política avessa à liberdade de expressão, levantou questionamentos constantes, incitando ao livre direito de realização individual e social, produzindo uma obra musical mestiça, que utilizou como veículo de comunicação. Filósofo e intelectual, escolheu o povo como público e trabalhou na tentativa constante de libertá-lo de suas amarras psicossociais. Artista em tempo integral, mergulhou num processo criativo intenso, tomando para si a tarefa tradutória de tornar inteligível ao público um vasto conteúdo filosófico, do qual se serviu como suporte para a criação de sua obra metafórica. Seu trabalho parte do empenho na assimilação literária para o desenvolvimento de composições culturalmente mestiças e acessíveis à compreensão popular. Influenciado por outras culturas, acabou por incorporar elementos estrangeiros à cultura brasileira, como as escrituras sagradas hindus Baghavad Gita, que inspiraram seu 19 maior sucesso, Gita, e o livro sagrado chinês Tao Te Ching, sobre o qual compôs O Conto do Sábio Chinês. Misticismo e Astrologia tematizam músicas como Novo Aeon e Trem das Sete. A anarquia foi uma forte vertente de sua obra. Sociedade Alternativa, que mescla misticismo e anarquia, espontaneamente tornou-se hino popular por mais de trinta anos. Uma trajetória semelhante confere importância político-cultural a Pra não Dizer que não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, trilha sonora do enfrentamento jovem ao governo militar nos anos 1960. Quando trabalhadores e estudantes cantam Sociedade Alternativa como forma de protesto, em movimentos sociais, dão voz a um hino místico-anárquico que incita a massa a reivindicar seus direitos. Ao som de Sociedade Alternativa, os estudantes “caras-pintadas” 4 simbolicamente depuseram o presidente Collor, numa tentativa de findar a injustiça, como seus pais haviam feito, mais de vinte anos antes, cantando Pra não Dizer que não Falei das Flores. 1.3 Problema de Pesquisa O Problema de Pesquisa é investigar Raul Seixas como um produtor de mestiçagens musicais que atua entre as mídias e os ambientes midiáticos, e como um tradutor da cultura livresca para a linguagem popular. 1.4 Hipóteses 1.4.1 A obra de Raul Seixas utiliza-se de procedimentos comunicativos barrocos. 1.4.2 Os elementos verbais e corporais dos textos de Raul são traduzidos, na mídia e nos ambientes midiáticos, por meio de procedimentos de mestiçagem. 1.5 Metodologia Tenho realizado um estudo de toda a atuação de Raul Seixas na mídia, utilizando como base teórica a Semiótica da Cultura, Teoria da Mestiçagem e Teorias do Barroco. Também realizei pesquisas de campo com pessoas que conheceram Raul Seixas, como seus parceiros musicais, amigos e parentes. Para traçar o trajeto midiático que Raul percorreu e as homenagens que lhe prestam, coletei dados em: livros, revistas, jornais, emisoras de rádio e de televisão, internet, vídeos, 4 Caras-pintadas foi o nome dado aos jovens e estudantes que, em agosto e setembro de 1992, pintaram o rosto de verde e amarelo e organizaram passeatas pelo impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u397259.shtml>. Acesso em: 24 nov. 2011. 20 videoclipes, entrevistas gravadas, CDs 5, DVDs 6, apresentações de teatro, de bandas, passeatas, tributos, debates abertos ao público, exposições, lançamentos de livros, telefonemas e e-mails (correspondências eletrônicas). As fontes de informação que alimentaram esta pesquisa são tão heterogêneas quanto possível. Analisei a atuação de Raul nas mídias e a produção de seus discos. Esta tese está dividida em três capítulos: O primeiro capítulo, Processo Criativo e Ambientes Midiáticos, investiga o percurso de Raul na mídia e seu trânsito entre mídia e cultura. O segundo capítulo, Memória Musical, pretende mostrar seu repertório cultural e musical. O terceiro capítulo, Mestiçagem Musical, tem por objetivo analisar as mestiçagens melódicas e temáticas presentes em sua obra, e suas relações culturais. 1.6 Critérios Teórico-Metodológicos 1.6.1 Livros A base teórica desta pesquisa conta com os seguintes autores e obras: Severo Sarduy com Barroco, obra onde o autor disserta sobre as incertezas e o desassossego que acompanham o homem barroco. Distante dos conceitos classicizantes de equilíbrio, ordem, simetria e harmonia, o barroco está ligado ao desequilíbrio, ao excesso, à assimetria e ao conflito; e dessa não tendência à perfeição é que surgem suas melhores produções. As obras barrocas são ricas em acúmulos culturais e combinações mestiças, com propensão ao erro e ao exagero. Uma vez que a arte é um dos campos que melhor aproveitam esse acúmulo de excessos culturais, este livro é um dos condutores desta pesquisa. Iuri Lotman com La Semiosfera I, em que ele trabalha o conceito de fronteiras e as possibilidades de interligação dos códigos do que não está no “centro”. Raul atuou como um tradutor de códigos diversos e como um produtor de mestiçagens de elementos culturais, desenvolvendo seu trabalho nas fronteiras, onde as trocas culturais são mais intensas e constantes, e a arte flui sem cessar, porque o material cultural é abundante. Lotman também trabalha os conceitos de cultura e memória, correlacionando o acervo de maior quantidade de memória ao aparecimento da escrita e consequente possibilidade de atribuição à autoria pessoal. O autor vê a cultura como uma inteligência coletiva, e, sendo Raul Seixas um tradutor cultural cuja obra não se alimenta apenas do conhecimento erudito mas também da cultura 5 6 CD: Compact Disc – Disco digital com leitura por raio laser. DVD: Digital Video Disc. 21 popular, e intencionalmente torna a ela, esses conceitos constituem imprescindível base para este trabalho. Lotman fala da escolha do que lembrar ou esquecer como fruto da seleção cultural, embora o “esquecido” possa ser trazido à tona conforme mudam os tempos e os valores. Fala, ainda, dos textos culturais, incluindo os artísticos, e da diferenciação de velocidade de desenvolvimento, onde as culturas que se saturam de textos criados por elas mesmas tendem a se desenvolverem mais lentamente, enquanto aquelas que trabalham com a inserção constante de textos externos tendem a um desenvolvimento mais rápido, como é o caso do Brasil e da América Latina em geral. Todos esses temas abordados por Lotmam constituem importante base teórica para esta pesquisa. Paul Zumthor com A Letra e a Voz, que traz o histórico da oralidade desde os tempos medievais, permitindo analisar com segurança os assuntos relativos à voz, à força da oralidade e à expressividade, sobretudo em países onde a oralidade predomina sobre a língua escrita, como é o caso do Brasil. Esse livro é de grande auxílio a esta pesquisa, uma vez que Raul Seixas foi poeta, cantor e compositor e utilizou a música como forma de expressão. Paul Zumthor, ainda, com Introdução à Poesia Oral, que analisa a oralidade, a voz, sua materialidade, o tom, o timbre e o alcance, ligados a um valor simbólico tanto na arte como na vida cotidiana, trazendo estudos sobre sua projeção em diferentes culturas — como a dos cristãos, para os quais o sopro da voz é criador — e sobre sua espessura concreta e carregada de expressão; também mostra como a voz representa o corpo daquele que fala, e discorre sobre performance e mídia, prestando grande auxílio à minha pesquisa. Serge Gruzinsky com O Pensamento Mestiço, que traz um estudo de situações da América Latina e do processo de ocupação pelos europeus no século XVI, mostrando como, na Cidade do México, os jesuítas foram-se indigenizando no convívio com os índios, e estes, por sua vez, foram deglutindo a cultura europeia no que ela tinha de mais refinado, como o aprendizado do latim, da arte da pintura, do entalhe em madeira e da caligrafia perfeita dos copistas. Elucida, ainda, como, desde a vinda dos europeus, passamos a ser um povo mestiço, não só no sangue como nos costumes entranhados na cultura, sendo a obra mais importante para a compreensão do quadro histórico e do desenvolvimento comportamental do povo latino-americano nesta pequisa — sua leitura ajudou-me a relacionar a capacidade inata de interligar códigos culturalmente diferentes de tal povo com o viés mestiço da arte de Raul Seixas. Octavio Paz com Convergências, que traz um apanhado de temas variados, como a Torre de Babel e as histórias dos viajantes e tradutores de livros, passando por temas como as 22 mídias, o erotismo e o amor, livro que me presta auxílio ao me permitir relacionar diversos temas com esta pesquisa. Jesús Martín-Barbero com O Ofício de Cartógrafo, em que realiza um estudo a respeito da comunicação na América Latina, abordando temas como a sociedade convertida em espetáculo, consumo, música, linguagem popular, cultura popular e de massas e o caráter não dualista destas manifestações no continente Latino-Americano, foi um autor de grande importância para esta pesquisa. Jesús Martín-Barbero com Dos Meios às Mediações, em que estuda a cultura popular, os processos comunicacionais, o mercado e a sociedade, outro livro de fundamental contribuição para meus estudos. Boaventura de Sousa Santos com A Gramática do Tempo, em que faz um desdobramento desde o colonialismo até o pós-colonialismo, falando das metamorfoses do sistema, biodiversidade, espaços eletrônicos, sociabilidades alternativas, Estado e direitos humanos, assuntos que, relacionados a este trabalho, enriquecem minha base teórica. François Laplantine e Álexis Nouss com Mestizajes: De Arcimboldo a Zombi, dicionário detalhado sobre mestiçagem, que analisa as palavras relacionando-as ao conceito e traz no prefácio as definições do tema. Por tratar com riqueza de detalhes do tema escolhido para relacionar com a obra de Raul Seixas, o livro é essencial para a minha pesquisa. Amálio Pinheiro com o livro O Meio é a Mestiçagem, de seu Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem, que traz na introdução e orelha explanações sobre os conceitos das teorias da Mestiçagem e analisa os aspectos culturais onde estas se fazem presentes, é essencial para o desenvolvimento conceitual que direciona a pesquisa. Nos estudos dos movimentos juvenis norte-americanos, A Contracultura, de Theodore Roszak, foi de grande relevância para a compreensão do fenômeno conhecido como contracultura que eclodiu nos Estados Unidos nos anos 1960, tendo início nos anos 1950 com as atitudes da geração beat. Este livro elucida uma série de questões sociais e econômicas a respeito da revolução comportamental da época. Para os estudos específicos de música, vida e obra de Raul Seixas, utilizo os seguintes livros: Rock and Roll: Uma história social, As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, Raul Seixas: Uma Antologia, Raul Seixas por Ele Mesmo, O Baú do Raul, Raul Rock Seixas, O Sonho da Sociedade Alternativa, Dez Anos sem Raul Seixas, Raul Seixas: A Verdade Absoluta, O Baú do Raul Revirado, Vivendo a Sociedade Alternativa: Raul Seixas no seu Tempo. Exceto o primeiro, todos os demais são sobre a vida do cantor. 23 Rock and Roll: Uma história social foi um estudo de fundamental importância para estruturar a história da música nesta pesquisa. De autoria do professor norte-americano Paul Friedlander, o livro-documentário da história do rock apresenta análises do ritmo, desde o seu surgimento até a atualidade, mostrando os momentos históricos e as transformações que sofreu ao longo de cinco décadas. Tem por mérito seu caráter analítico, descritivo e didático. As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor é o livro mais importante sobre Raul Seixas, por ser o único publicado por ele. Lançado em 1983, é uma compilação de desenhos, reflexões particulares, fotos e poemas, feitos entre os sete e os vinte e um anos de idade. Traz cópias de seus manuscritos, sem corrigir os erros gramaticais da infância ou censurar suas fantasias adolescentes. Em algumas páginas, ele enumera seus artistas prediletos; nas seguintes, os de que não gosta. Há os desenhos que fazia de Elvis, planos para a vida adulta, contos digitados à máquina e histórias em quadrinhos. Sua leitura leva-nos à constatação de que suas composições, dotadas de genialidade e senso crítico, estavam latentes desde a infância, sendo algumas criadas ainda na adolescência. A edição é raridade de colecionador. Raul Seixas: Uma Antologia foi escrito por seus amigos Toninho Buda e Sylvio Passos, fundador de seu primeiro e maior fã-clube oficial, e que atua como organizador e participante de eventos referentes ao artista no estado de São Paulo, uma das pessoas que mais entende de Raul Seixas. O livro disserta sobre a vida particular e artística do cantor: a família e os amigos, os momentos da carreira, suas convicções políticas e filosóficas, os diálogos intelectuais, as parcerias artísticas, as inspirações musicais e suas relações com o rock, anarquismo, movimentos alternativos e misticismo. Integram a edição: a cronologia de vida, a discografia e as letras das músicas, sendo o livro mais completo para se entender Raul. Raul Seixas por Ele Mesmo, organizado por Sylvio Passos, é uma compilação de entrevistas concedidas ao jornal O Pasquim, à revista Bizz, declarações, frases e trechos de músicas. Sua leitura é importante para se entender seu comportamento perante a mídia, pontuado por inusitadas respostas que contribuíam para mitificar sua imagem. O livro ajudanos a compreender a visão dos meios de comunicação sobre ele. O Baú do Raul, organizado por Kika Seixas, ex-esposa e promotora de eventos sobre o artista no Rio de Janeiro, traz poemas, versos e reflexões que ele escreveu e guardou em um baú por toda a vida, com a intenção de perpetuar e publicar o conteúdo. Assim como As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, essa leitura revela sua sensibilidade e visão crítica inatas, sendo imprescindível para o entendimento de ideias íntimas que permeavam seu trabalho. 24 Raul Rock Seixas, também organizado por Kika Seixas, traz pensamentos, poemas e fotos do artista e, tal qual As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor e O Baú do Raul, expõe a complexidade e o senso crítico desde os poemas da infância. Algumas ideias que usou para compor quando adulto apareceram em escritos anteriores, como as expressões “mosca na sopa” e “metamorfose ambulante” e inúmeras críticas ao comportamento social condicionado. O Sonho da Sociedade Alternativa, escrito por Luciane Alves, contextualiza o artista em seu momento histórico, traz a análise de algumas músicas, ideias e entrevistas, pensamentos e letras, e mostra de que modo sua obra está sendo perpetuada. Dez anos sem Raul Seixas, escrito pelos fãs Tiago Sotero de Sá e Mirela Barella, contém entrevistas com sua primeira banda, Relâmpagos do Rock, com Zé Geraldo e com pessoas que dão continuidade às suas ideias. Raul Seixas: A Verdade Absoluta, escrito pelo jornalista e editor Mário Lucena sob a forma de viagem fictícia com Raul no trem das sete — na qual cada estação é um capítulo —, proporciona um momento descontraído e onírico. O Baú do Raul Revirado, idealizado por Kika Seixas e escrito pelo jornalista Sílvio Essinger, traz manuscritos, depoimentos de amigos e análise de cada um dos álbuns, mostrando seus diálogos com o rock dos anos 1950, com sua vida pessoal e acontecimentos mundiais. É ilustrado com mais de mil imagens cedidas por Kika, entre manchetes de jornais, capas de discos, fotos, roupas, documentos, capas de revistas, o gibi-manifesto Krig-Ha, desenhos, frases, músicas e versos. Mostra, ainda, a dissensão entre as notícias jornalísticas veiculadas e a realidade dos fatos. Vivendo a Sociedade Alternativa: Raul Seixas no seu Tempo, livro da tese de doutorado em História de Luiz Lima, que correlaciona a contracultura, os acontecimentos e o quadro social e político da época com a obra de Raul, é de grande relevância para minha pesquisa e bastante próximo de minha dissertação de mestrado. Demais autores que escrevem a respeito do panorama político do Brasil dos anos 1960 a 1989, assim como as obras que compuseram o repertório intelectual de Raul também foram estudados. 1.6.2 Revistas Complementando a leitura dos livros, foram pesquisadas as seguintes revistas referentes a Raul Seixas, por relacioná-lo com o quadro musical brasileiro e trazer depoimentos inéditos de amigos e fãs: Caros Amigos: Especial Raul Seixas; Super 25 Interessante: História do Rock Brasileiro; Contigo: Biografias. Raul Seixas; Caros Amigos Especial - Enquete na Praça da Sé: Toca Raul! e Rolling Stone: Raul Seixas. 1.6.3 CDs Os CDs utilizados para este estudo contêm gravações dos LPs lançados por Raul durante sua carreira — Raulzito e Os Panteras, Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, Compacto Simples, Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock, Krig-Ha, Bandolo!, Gita, O Rebu, 20 Anos de Rock, Novo Aeon, Há Dez Mil Anos Atrás. Também: Raul Rock Seixas, O Dia em que A Terra Parou, Mata Virgem, Por Quem os Sinos Dobram, Abre-te Sésamo, Raul Seixas, Metrô Linha 743, Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, A Pedra do Gênesis, A Panela do Diabo, a coletânea Caroço de Manga. E, ainda, três CDs com raridades: Se o Rádio Não Toca; O Baú do Raul Revirado e Anarkilópolis, com música homônima e a música intitulada Gospel. Todos compondo uma lista de materiais de fundamental importância para a compreensão da sua obra. 1.6.4 DVD O DVD analisado foi O Baú do Raul, show realizado em outubro de 2004 no Rio de Janeiro, promovido por Kika Seixas, do qual participaram Caetano Veloso, Pitty, Nasi e vários outros artistas brasileiros cantando as músicas de Raul. 1.6.5 Vídeos Para esta pesquisa, foram estudadas onze fitas de vídeo, com duração de 30 horas, do acervo do fã-clube oficial Raul Rock Club, nas quais Raul pode ser visto em várias situações da vida familiar e artística, em videoclipes, shows, entrevistas, depoimentos, vídeos caseiros e alternativos. Há também shows de bandas covers, homenagens e reportagens realizados após seu falecimento. O registro traz reportagens feitas por entrevistadores como Marília Gabriela, Pedro Bial, Jô Soares, Glória Maria; apresentações em programas de televisão, como o do Faustão; e shows em muitas cidades do Brasil. As fitas apresentam todos os videoclipes musicais que Raul Seixas gravou para a televisão: Sociedade Alternativa, Ouro de Tolo, Trem das Sete, Eu Também Vou Reclamar, Maluco Beleza, Mosca na Sopa, Judas, Abre-te Sésamo, Rock Around the Clock, Os Números, Gita, Cowboy Fora da Lei, Plunct-Plact-Zum, Geração da Luz, É Fim de Mês, A 26 Maçã, Caminhos, Rock do Diabo, Tente Outra Vez. E também os clipes alternativos: How Could I Know, Sunseed e Sociedade Alternativa. Uma das fitas registra a homenagem prestada a Raul pela Escola de Samba Mocidade Alegre de São Paulo, que o escolheu como tema em 1995, colocando na avenida 2.800 integrantes e sete carros alegóricos. Outra fita apresenta o filme Tanta Estrela por Aí, de Tadeu Knudsen, com Marisa Orth no papel de Kika Seixas e Rita Lee interpretando Raul Seixas, retratando com humor o show na cidade de Caieiras, interior do estado de São Paulo, em que o cantor foi tomado como impostor de si mesmo e espancado pelas autoridades locais, recebendo um cheque sem fundos como pagamento. O acesso a este material visual possibilitou um estudo comportamental, principalmente de seu viés performático, e deixou nítidos fatores de seu comportamento, como a indisfarçável timidez em entrevistas e a extroversão debochada nos shows. Também deixou clara sua qualidade de repentista, caracterizada pela espontânea reinvenção das letras nos palcos, e sua cautela com a presença de censores militares nos shows, que o levava a suprimir as letras quando os percebia presentes. Estas são algumas de inúmeras percepções suscitadas pelo acesso a um material fiel de sua vida, de indescritível valor para esta pesquisa. 1.6.6 Internet As pesquisas na internet foram realizadas em fontes confiáveis, como os sites dos dois fã-clubes oficiais presididos pelos dois guardiões e promotores de sua obra: “Raul Rock Club” 7, de responsabilidade de Sylvio Passos, e “Raul Seixas”, de responsabilidade de Kika Seixas. Ambos hospedam dissertações de mestrado, poemas, informações, álbuns fotográficos, manuscritos e os convites das homenagens organizadas em todo o Brasil. O site de hospedagem virtual de vídeos You Tube 8 foi de grande importância para o acesso rápido e prático a vídeos de shows, entrevistas e programas televisivos de Raul, bem como dos pioneiros do rock, parentes, amigos e fãs que postam homenagens com releituras populares. 1.6.7 Homenagens Presenciadas As visitas pessoais às homenagens a Raul foram realizadas no período de 2003 a 2012, tendo sido presenciados: encenações teatrais, espetáculos musicais, manifestações populares, 7 8 Raul Rock Club. Disponível em: <www.raulrockclub.com.br>. Acesso em: 20 out. 2011. You Tube. Disponível em <www.youtube.com>. Acesso em: 20 out. 2011. 27 debates, exposições e lançamento de livro. Foram feitos também diversos contatos com fãs e estudiosos de Raul Seixas, em extensa pesquisa de campo. 1.6.7.1 Peças de Teatro Assistidas • Novo Aeon, no shopping de Jundiaí, realizada pelo grupo Novo Aeon e dirigida por um jovem que é também ator da peça. Conta a história da vida do artista, por meio de diálogos, de um texto biográfico e de interpretações; é pontuada por apresentações musicais onde o personagem Raul canta com playback 9. A mensagem da peça é alegre e mostra que, apesar da imagem debochada veiculada pela mídia, Raul desenvolvia um trabalho sério e voltado ao bem comum. • A peça Raul Seixas Há Dez Mil Anos na Frente, da diretora Maria Tornatore, apresentada no SESC de Santos pelo grupo Arte no Dique sob a organização de José Virgílio, contou com uma montagem belíssima, que mostrava as intenções místicofilosóficas de Raul e seu reflexo na vida dos personagens. A encenação biográfica começa com os personagens amigos e parentes de Raul em Salvador, e desenrola a história narrando seus sucessos e insucessos ao longo dos anos, comentados por eles num texto fiel à vida do artista, com ênfase na entrada da nova era, na chegada do trem das sete e na metamorfose entre artista e homem. A peça é musicalmente acompanhada pela família de músicos Simonian, um jovem cantor do Arte no Dique cantando, e as crianças e adolescentes do projeto tocando tambores e percussão. Raul fora escolhido como tema para o aniversário de três anos de formação do grupo — constituído por moradores da zona noroeste de Santos, área de mangue da cidade —, cujo trabalho tem a função de gerar oportunidades a essa parcela economicamente pouco favorecida da população. O espetáculo foi enriquecedor para esta pesquisa, também por mostrar a importância de Raul para a comunidade. • Raul Fora da Lei, com direção de Deto Montenegro, no Teatro Oficina dos Menestréis, Ana Rosa, São Paulo, em 2009. Peça ritmada por músicas e danças do grupo de jovens atores da escola de teatro, pontuada com monólogo interpretando textos de pensamentos escritos por Raul, cuja publicação póstuma está em O Baú do Raul. 9 Playback: Acompanhamento musical previamente gravado. 28 1.6.7.2 Shows Assistidos • Show especial de tributo a Raul Seixas, com Paulo Mano, no Empório Bar, em São Paulo, em 20 de agosto de 2004, acompanhado de show de uma banda local. • Show na Galeria do Rock, em São Paulo, com cover de Raul e trio elétrico, em 21 de agosto de 2004, 2005, 2006, 2007 e 2009. • Show O Baú do Raul, com organização e presença de Kika Seixas, Vivian Seixas, Sylvio Passos e apresentação de vários cantores famosos, no Casebre Rock Bar, em São Paulo, em outubro de 2004. • Show da Banda Alternativa, banda cover de Raul muito atuante e que canta todo o seu repertório, realizado no bar Camelot, em Mogi das Cruzes, em 2005. • Shows alternativos, no SESC, São Paulo, em julho de 2005, com: Roberto Seixas, cover de Raul, banda Ludov, a banda de ThunderBird, todos cantando Raul. • Shows internacionais de rock: Velvet Revolver e Aerosmith, Roger Waters e Jethro Tull, em 2008. • Show Palco Raul Seixas 24 horas de música, na Virada Cultural 2009, em maio, no metrô Luz, em São Paulo. • Show com o artista Edy Star e Caverna Guitar Band, na Virada Cultural 2010, em maio, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. • Show de Zé Ramalho em São Thomé das Letras, Minas Gerais, no Centro de Múltiplos Eventos, em agosto de 2010, onde ele tocou Trem das Sete, de Raul. Ramalho o regravou no álbum em sua homenagem: Zé Ramalho Canta Raul Seixas, lançado pela BMG em 2001, cuja capa traz fotografia composta com uma metade do rosto de cada um. • Show de abertura do projeto Prata da Casa, com Edy Star e Caverna Guitar Band, no SESC Pompeia, em São Paulo, em setembro de 2010. O show homenageia Raul e outros cantores da MPB, com performance musical e músicas de Edy Star, antigo parceiro de Raul no álbum Sessão das 10, lançado em 1971. Edy contou, ainda, com a participação musical de Sylvio Passos, na gaita, e Juliano Gauche. • Show de rock no café Piu-Piu, em São Paulo, em abril de 2011. • Show de rock no café Piu-Piu, em São Paulo, em maio de 2011. 29 • Shows de rock na Virada Cultural, em São Paulo, incluindo a banda Beatles For Ever, em maio de 2011. • Show da banda hippie de Ventania, artista associado a Raul Seixas pelo público da região, em São Thomé das Letras, em junho de 2011. • Bourbon Street Festival, em São Paulo, em 2011. • Show Beatles For Ever, no Teatro Coliseu de Santos, em setembro de 2011. • Show da banda Putos Brothers Band (banda de Sylvio Passos) e Dylan Seixas, no Bar Adega Original, em 25 de janeiro de 2012, em São Paulo. 1.6.7.3 Passeatas Frequentadas • Passeatas anuais em tributo a Raul Seixas, em 21 de agosto de 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009 e 2011, no centro de São Paulo, com concentração às 14 horas em frente ao Teatro Municipal, show de tributo na saída da Galeria do Rock e passeata até a Catedral da Sé, onde o público canta o repertório de Raul até as 21 horas. 1.6.7.4 Debates Abertos ao Público Presenciados • No Sesc Ipiranga, São Paulo, em 3 de julho de 2005, com Sylvio Passos e convidados. • Na Saraiva Mega Store, no Shopping Morumbi, em São Paulo, em 8 de dezembro de 2005, com: Silvio Essinger, escritor do Baú do Raul Revirado; Sylvio Passos, presidente do Raul Rock Club; Kika Seixas, presidente do fã-clube do Raul no Rio e idealizadora do livro; e Maurício Baia. 1.6.7.5 Visitas a Exposições Exposições visitadas, entre 2004 e 2008, com pertences pessoais, como roupas e acessórios, fotografias, documentos e obras de Raul: • Expo Raul Seixas, no bar Camelot, em Mogi das Cruzes. • Exposição de toda a obra de Raul Seixas, no Empório Bar, em São Paulo. • Exposição em tributo a Raul Seixas, no SESC Ipiranga, em São Paulo. 1.6.7.6 Presença em Lançamento de Livro Lançamento do Baú do Raul Revirado, em 8 de dezembro de 2005, em São Paulo, na Saraiva Mega Store. 30 1.6.7.7 Contatos Telefônicos Efetuados Foram muitos os telefonemas feitos a Sylvio Passos, sempre muito solícito em esclarecer todas as dúvidas que surgiram em relação à vida e obra de Raul ao longo deste trabalho. 1.6.7.8 Pesquisas de Campo Realizadas e Algumas Constatações As pesquisas de campo empreendidas foram de ordem qualitativa, e contaram com a observação dos acontecimentos em eventos relativos a Raul Seixas, e com conversas com seus fãs, pesquisadores e amigos. O local escolhido foi a cidade de São Paulo, onde as homenagens ao cantor se dão anualmente em 21 de agosto, por ocasião de seu falecimento, sendo realizadas diversas outras vezes, sem data preestabelecida, em shows, encontros de fãs, peças de teatro e exposições ao longo dos anos. Frequentei os eventos relativos ao artista, desde o início de 2003 até o início de 2012, com o objetivo de observar as reações dos fãs, interagir, ouvir suas opiniões e encontrar pessoas que dão continuidade a seu trabalho, comercializando camisetas, acessórios e vídeos, escrevendo livros, pesquisando sua sobre vida, como mestrandos e doutorandos, contando suas histórias, trabalhando como imitadores, fazendo parte de bandas cover, regravando-o, criando paródias e músicas em sua homenagem, postando suas fotos e sua trajetória na internet, organizando espaços virtuais para falar a respeito de sua obra, e organizando shows em bares e casas noturnas. Frequentei vários shows realizados por amigos seus, como Edy Star, Sylvio Passos e Os Panteras, a exemplo da Virada Cultural paulistana do ano de 2009, que contou com o palco Toca Raul, destinado a apresentar todos os seus LPs. Ali, diversos artistas o homenagearam durante 24 horas ininterruptas de apresentação, das quais estive presente por mais de 12 horas. Também estive no show O Baú do Raul, em São Paulo, no ano de 2005, em que os artistas convidados tocaram suas músicas. Compareci, no mesmo ano, à apresentação no SESC Pompeia em que recebeu homenagem dos artistas convidados. Assisti aos shows de Edy Star tanto na Virada Cultural 2010 como no projeto Prata da Casa no SESC Pompeia. E, ainda, em 2010, assisti às peças de teatro já citadas. Realizei duas viagens para a cidade de São Thomé das Letras, em Minas Gerais, nos anos de 2010 e 2011, por tratar-se de um conhecido roteiro de fãs do cantor, onde ele goza do 31 título de artista predileto, com o fim de observar como se dá sua aceitação na vida dos moradores e turistas que lotam a cidade nos fins de semana. Participei da festa de agosto, em 2010, em que mais de vinte mil pessoas visitaram a cidade, e do festival gótico do ano seguinte. No primeiro ano, permaneci no local por dez dias, observando os pontos em que se davam as reuniões musicais e conversei com os fãs. Essas observações de campo contribuíram para o desenvolvimento do trabalho teórico e ajudaram-me a entender a força social de sua obra atualmente, as opiniões e o comportamento dos fãs. Comparando meus estudos sobre sua obra, que se encerra em 1989, com os desdobramentos que ela vem tendo nos últimos nove anos em que passei a observá-la em campo, pude tanto definir os aspectos que minha pesquisa deveria abordar como compreender a permanência e a abrangência de seu legado, hoje, em São Paulo e em São Thomé das Letras. Um dos pontos observados foi sua aceitação em todas as classes sociais, contando com maior incidência de adeptos entre as classes sociais trabalhadoras, não abastadas, como os camelôs, as secretárias domésticas, os motoristas de ônibus, funcionários de lojas, trabalhadores da construção civil e estudantes jovens. Não é nos bairros das classes altas que estão as manifestações em sua homenagem, mas no centro de São Paulo, nos redutos da cultura popular e nos bares das periferias. Suas músicas são cantadas nas greves de trabalhadores ou em reivindicações de melhorias organizadas pelo povo. As peregrinações em busca dos eventos e pessoas relacionados a Raul Seixas constituíram a vivência enriquecedora deste trabalho. Por meio delas, pude constatar que, por seus fãs, ele é percebido sob dois aspectos: o primeiro é o de artista visionário que compreende tanto seu viés intelectual quanto místico; o segundo é o de amigo do povo, que expressa a voz popular em situaçãoes de luta por direitos e em seu cotidiano sofrido, um porta-voz do povo contra a injustiça social e em favor de valores de liberdade e igualdade. Ele é ídolo de milhares de pessoas de diversas idades e classes sociais, que comparecem aos eventos com famílias inteiras, levando desde bebês de colo a adultos, a maioria de origem simples, trajados com roupas estampadas com sua imagem. De acordo com sua ex-esposa Kika Seixas e com reportagens de jornais, seu público tem crescido depois de sua morte. 32 1.6.7.9 Filmes Assistidos Dando sequência à pesquisa, assisti ao filme Raul: O Início, o Fim e o Meio, com direção de Walter Carvalho e idealização de Denis Feijão, na 35ª Mostra de Cinema de São Paulo, em 2011. Assisti também ao documentário Por Toda a Minha Vida: Especial Raul Seixas exibido pela rede Globo em 2009. 33 34 2 PRIMEIRO CAPÍTULO – PROCESSO CRI ATIVO E AMBIENTES MIDI ÁTICOS Eu Num planeta chamado Terra Num paiz chamado Brasil Num Estado chamado Bahia Numa cidade chamada Salvador Numa Rua chamada Avenida 7 Numa casa número 108 Nasceu um menino gordinho, com 4 kilos e meio chamado Raulzito (SEIXAS, Raul, 1983, p. 12, grifo do autor) O trecho apresentado foi escrito por Raul ainda criança e figura no livro As aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor. Raul Santos Seixas nasceu em 28 de junho de 1945, na cidade de Salvador, Bahia. No ano em que a segunda guerra mundial chegou ao fim e as esperaças de paz se renovavam, veio ao mundo um artista libertário que empreenderia uma obra sonora e verbal no contrafluxo dos sistemas de legitimação e poder. Filho primogênito do casal de classe média Raul Varella Seixas e Eugênia Santos Seixas, cresceu numa família com estabilidade econômica e emocional em que o pai era engenheiro ferroviário e a mãe, dona de casa. Seu único irmão, Plínio, quatro anos mais novo, foi o grande amigo com quem dividiu as aventuras da infância e adolescência. Raul viveu em Salvador até 1967, quando se casou com a filha de um pastor protestante norte-americano, no dia de seu aniversário, e mudou-se para o Rio de Janeiro com o objetivo de expandir sua carreira, de músico local, em âmbito nacional. Ao longo dos anos, ele se casaria cinco vezes, as duas primeiras com norteamericanas, e teria três filhas: Simone com Edith, Scarlet com Gloria e Vivian com Kika. Ele não teve filhos com sua terceira parceira, Tania, nem mesmo com a última, Lena. As relações desfeitas acarretaram-lhe sofrimentos que contribuíram para o consumo de álcool. A distância das primeiras filhas tornara-se dolorosa, e sua família com Kika trouxe-lhe tamanha alegria que o fez parar sua carreira e dedicar-se somente à filha, para logo após retomá-la com grande sucesso. Mas, por conta de vícios, teve também esse casamento desfeito. Vivendo no Rio de Janeiro desde que saíra de Salvador definitivamente em 1970, Raul moraria, ainda, em Nova Iorque em 1974, de onde voltaria para a Guanabara; e em São Paulo, a partir de 1980, voltando ao Rio dois anos mais tarde. Em 1983, retornou à capital paulista, 35 onde viveu até o final da década de 1980. Durante todos esses anos, retornaria a Salvador com frequência para rever a família e descansar. Inquieto e perspicaz, o artista, que viveu apenas quarenta e quatro anos, empreendeu uma obra insone, que conta com mais de duzentas músicas gravadas, distribuídas em dezesseis discos, e alguns materiais inéditos, lançados postumamente. Isso, além de seus escritos pessoais, pensamentos e versos publicados em livros, entrevistas e videoclipes. Na página de seu diário reproduzida a seguir, datada de 1983, ele fala de si: • • • • • • • • • • • • • • Li a bíblia várias vezes Aprendi latim para ler Metamorfoses de Ovídio no original Bebi muito, hoje já não posso Repentinamente comecei a acreditar no meu país Tupi-guarani Radical Pai e educador. Campônio do amor Não creio em livre-arbítrio Detesto “bossa nova”... lai-á-á-lai-á-á [...] Kafka Kika e uma vida novíssima Nunca tomei um ácido Meus ídolos: Professor Pardal, Elvis, Nero e passarinho caga-sebo Não durmo fácil; passo a noite acordado quando Vivi, minha filha, está tossindo • Respeito cego pelo ser humano • Amo a mulher • Não sou chegado a brincadeiras... seriíssimo • Cheio de preconceitos, mágoas e caretices • Embora seja ótimo o palco, prefiro o trabalho de cientista Silvana Jr. cheio de tubos de ensaio no laboratório • A “politicagem com tendências paleolíticas inferiores” não adiciona nada a minha meta como ser humano • Meu polegar carimbando a História • O brasileiro não faz História; ele é um espectador da História • Tenho muita vontade de atuar, gostaria de fazer um filme este ano • O selo Eldorado me salvou • Li Sartre, Capitão Marvel, filmes da Pel-Mex, Schopenhauer, Augusto dos Anjos, Durango Kid e História Geral de Edgar Burns. • Fui interno em convento de padre • Com catorze anos fui ao psiquiatra pela primeira vez • Expulso do Brasil em 1974, fui para Nova York • Pertenci a sociedades esotéricas • Três filhas, três mulheres • Psicologia, fotografia, míope e du Rock!!! • Sou escritor por excelência, ator por desejo e compositor por raiva • Materialista dialético, por vezes acredito em Deus (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 20-21). 36 2.1 As Relações Culturais Apresento um breve panorama sobre as relações culturais latino-americanas que cercam Raul Seixas e sua obra, fora do qual nem ele nem sua produção podem ser devidamente compreendidos. O Continente Latino Americano conta com a capacidade inata de seus povos de lidar com o afluxo cultural proveniente de todas as partes do mundo, de modo a incluir o que é diferente. De acordo com Amálio Pinheiro (em aula) 10, a respeito da América-Latina: Nós somos sociedades que nasceram de fragmentos de todas as partes do mundo. Estas sociedades lidam, de partida, com o fragmento. Trabalham o dinamismo cultural e estético na sociedade. [...] É uma sociedade da tradução dos fragmentos com troca e incorporação do outro que se dá em situação de conflito, mas a tendência é a incorporação do outro. Desde a chegada dos primeiros navegantes espanhóis e portugueses, seus habitantes naturais, os índios, tiveram de enfrentar o choque cultural do convívio com visitantes que traziam consigo os valores do “velho mundo”. Vindos de um continente regido por sólidas instituições sustentadas pelo capital financeiro, e experientes nas disputas por poder, os europeus tinham um épico histórico de batalhas, com grandes vitórias e devastadoras derrotas. Habitavam um mundo de fortes contrastantes entre luxo e miséria, dominadores e dominados. Quando esses europeus vieram para a América, a Europa Ocidental já havia chegado ao Renascimento, contando com o refinamento nas artes, na pintura, no desenho, na arquitetura, na escultura, na música, nas danças, no teatro, e, com o empenho eclesiástico, no processo civilizatório. De acordo com Amálio Pinheiro (em aula) 11: Quando o Renascimento já tinha vingado na Europa, na América Latina tinha o nomadismo da voz. Por sermos uma sociedade nômade, a voz e a voz popular tiveram esse movimento muito forte, isso alimentou a poesia. [...] A voz tem uma movência e carrega um erotismo impossível de se deter. [...] A América Latina sempre foi a civilização da voz e da imagem. A Igreja exercia esforços educacionais no sentido ético e moral, sobretudo nas escolas medievais, onde os clérigos ensinavam a disciplina, a boa conduta e a submissão a Deus, comportamento que implicava o domínio dos gestos corporais e orais. 10 11 PINHEIRO, Amálio, em aula na PUC de São Paulo, em: 14 abr. 2010, na disciplina Ambientes midiáticos e mosaicos culturais: das oposições aos mosaicos mestiços. PINHEIRO, Amálio, em aula na PUC de São Paulo, em: 16 jun. 2010, na disciplina Ambientes midiáticos e mosaicos culturais: das oposições aos mosaicos mestiços. 37 A voz deveria livrar-se da expressividade performática e da variação tonal, encaixando-se num tom mediano e constante, desprovido de qualquer peculiaridade. Indissociável do corpo que pensa, fala e gesticula, não deveria deixar-se contaminar pelo caráter gestual e erótico do corpo e das coisas terrenas, elevando-se para o alto e para Deus. Zumthor fala a respeito da eroticidade da voz: Paradoxo da voz. Ela constitui um acontecimento do mundo sonoro, do mesmo modo que todo movimento corporal o é do mundo visual e táctil. Entretanto, ela escapa, de algum modo, da plena captação sensorial: no mundo da matéria, apresenta uma espécie de misteriosa incongruência. Por isso ela informa sobre a pessoa, por meio do corpo que a produziu: mais do que por seu olhar, pela expressão de seu rosto, uma pessoa é “traída por sua voz”. Melhor do que o olhar, a face, a voz se sexualiza, constitui (mais do que transmite) uma mensagem erótica. (ZUMTHOR, 1997, p. 14-15). O Renascimento contou com o aprimoramento da qualidade dos produtos, das ciências e das artes. A Europa comprava produtos refinados, como os tapetes e especiarias do Oriente, e vendia suas melhores produções, contando com os saberes e a riqueza cultural obtidos pelos anos de diversas dominações imperiais. Vivenciava um processo cultural onde o esmero pela sublimação da variedade mundana convivia com a pluralidade abundante da cultura popular. Os europeus que primeiro chegaram ao continente americano vinham da Península Ibérica, que havia sido ocupada por árabes de 711 a 1492, trazendo consigo a experiência de misturas culturais entre árabes, espanhóis e portugueses. Estas misturas se davam nas relações humanas, nos valores sociais, na religiosidade dos cristãos, muçulmanos e moçárabes, na culinária, nas danças, nas festas, nas artes e nos ofícios dessa região, que menos poderia representar os ideais de pureza e unidade almejados pelos sistemas de legitimação da Europa Ocidental naquele momento. Ignorando tais processos históricos, as nações indígenas viviam nuas nas Américas, culturalmente regidas pelas crenças em sua interação com as forças da natureza, e voltadas às produções pelo bem comum. Ao se depararem com a visita inesperada dos invasores, incluíram-nos em suas vidas, com seus hábitos e objetos e um potencial de transmissão de doenças inimaginável, num impressionante intercâmbio cultural entre dois mundos até então entre si desconhecidos. A capacidade desses índios de incluir o diferente lhes era inata, e, não sem lutas, povos mestiços dos relacionamentos entre índias e europeus nasceram daí. Mais tarde, com a vinda dos negros, esses povos formaram quadros socioculturais e genéticos mais complexos, que se intensificaram com a posterior vinda de imigrantes italianos, japoneses, alemães, holandeses, árabes e do mundo todo, num afluxo multicultural que até hoje não se fez cessar. 38 O processo de mestiçagem trabalha a incorporação prazerosa do “outro”, pela assimilação e inserção daquilo que parece estranho na teia cultural, criando mosaicos móveis, em constante movimento de troca, em vaivém. Dispensando a lógica binária oposicionista, em lugar de se opor, as coisas convivem umas ao lado das outras, em estado permanente de transformação e incorporação. Os processos se dão de modo não linear e não ortogonal, aproximando-se da diversidade natural do continente e contrariando a ordem hierárquica, opositiva e linear a que tendem os sistemas de poder. Amálio Pinheiro fala da queda dos binarismos: A aceleração dos contágios entre séries culturais (poéticas, arquitetônicas, paisagísticas, mobiliárias, culinárias, etc.) e mediáticas (rádio, jornal, televisão, cinema) redesenhou e redistribuiu em vaivém formas (linhas, traços, grafias, vozes) porosas, não ortogonais, não proporcionais e assimétricas, aquém e além da razão dual, habilitadas às traduções interfronteiriças. Caem por terra os binarismos entre centro e periferia, matriz e variante, espírito e matéria, visto que o centro não se coloca mais em totalizações unitárias, mas nos encadeamentos (sintaxe) do bordado ou mosaico. (PINHEIRO, 2009, p. 10). A América Latina tende ao barroco, pela capacidade de lidar com a confluência de elementos vindos de várias partes, num trabalho constante de inclusão, ressignificação e criação, que se dá por acúmulo incorporante. “O espaço barroco: o da superabundância e do desperdício [...] a linguagem barroca compraz-se no suplemento, na desmesura e na perda parcial do seu objeto, ou melhor: na busca frustrada por definição, do objeto parcial.” (SARDUY, 1974, p. 94). Segundo Viveiros de Castro (2002), os índios latino-americanos tinham por hábito travar intenso intercâmbio cultural e afetivo com os inimigos que capturavam, incluindo a concessão de festas, presentes e o amor das índias, que se estendiam num convívio amigável por anos, até por fim os exterminarem. Serge Gruzinski (2001) relata o rico intercâmbio cultural entre índios e jesuítas, desde o início das missões jesuíticas, e os modos como foram assimilando as culturas uns dos outros. Destaca a impressionante facilidade de aprendizado dos índios com relação à língua oral e escrita, e às artes e ofícios europeus, como a pintura, o entalhe, a arquitetura, replicando obras com um grau de perfeição que não permitia aos europeus discernir quais eram os originais. A assimilação dos valores aparece em suas criações artísticas mestiças, em que as suas figuras temáticas e religiosas tradicionais são retratadas interagindo naturalmente com os personagens religiosos e culturais que os estrangeiros lhes ensinavam. 39 A América Latina é, de partida, mestiça; enquanto a ciência moderna esmerou-se por domar a enorme variação da natureza, este é o lugar onde essa variação está em abundância, tanto na fauna, na flora e nas formações geológicas como no transcorrer da vida cotidiana. O trecho a seguir, de LAPLANTINE e NOUSS, observa que, a partir das línguas únicas e da religião católica, trazidas pelos povos europeus que primeiro migraram para a América Latina, no século XVI, esta inventou formas originais de civilização: maneiras de ver o mundo, de falar, amar e relacionar-se em que a pluralidade se dá como valor constitutivo. Éstas son sociedades que se reconstituyeron a partir de una lengua única en sus dos modalidades, española y portuguesa, de una religión única cuyo centro sigue estando en Italia, valores únicos importados de Madrid y Lisboa, luego de Londres y París, por último de Nueva York. Desde hace cinco siglos se encuentran resueltamente descentradas respecto del Occidente, expropiadas, espoliadas y saqueadas económicamente. Su americanidad propia fue negada tanto por los europeos como por los otros americanos, aliados a las oligarquías locales. Todo actuó para que las diversidades de esos países elaborados en la confluencia de varias culturas se vean reducidas a la unidad. En pocas palabras, se trató de producir y reproducir réplicas de lo idéntico bajo tutela. Pero esta heterogeneidad fundamental de las Américas ecuatoriales, tropicales y australes, permanentemente amenazada de ser confiscada por los modelos homogeneizantes procedentes de Nueva York, Londres y París, está más viva que nunca. Lo que estas Américas – que por tanto no son sólo “latinas” – inventaron son formas de civilización (en particular la mexicana y la brasileña) plenamente originales. Son estilos de vida, maneras de ser, de ver el mundo, de relacionarse con los otros, de hablar, de amar, de odiar en las cuales la pluralidad es afirmada no como fragilidad provisional sino como valor constitutivo. (LAPLANTINE; NOUSS, 2007, p. 90) “Há na América Latina essa tendência à barroquização das narrativas, onde os elementos da natureza invadem a cultura” (PINHEIRO, em aula) 12. Apresenta a variação e a desordem, o aproveitamento de quaisquer elementos, e a criatividade, onde a natureza é indissociável da cultura. “Não se trata apenas de acúmulo externo de informação enciclopédica, mas de interconexão interna e movediça dos materiais e linguagens.” (PINHEIRO, 2009, p. 11). Enquanto a mestiçagem conta com a incorporação constante de novos elementos e transformação cultural fluida, Raul Seixas realizava a tradução artística desses mosaicos culturais, trabalhando com o jogo tradutório entre suas criações e os elementos da cultura, seguindo a tendência própria da arte de integrar elementos dispersos em textos únicos. Uma definição de Sarduy, em seu livro Barroco, faz-nos lembrar Raul procurando respostas, insone, detalhista, observador, genial, inquieto: 12 PINHEIRO, Amálio, em aula na PUC de São Paulo, em: 9 jun. 2010, na disciplina Ambientes midiáticos e mosaicos culturais: das oposições aos mosaicos mestiços. 40 A viagem do homem barroco é entre a luz e a sombra. O seu quotidiano é um deserto de desassossego dominado pela desmedida importância de todos os pormenores, uma ponte para a transcendência. A dúvida, a inquietação, a emotividade extrema geram os grandes visionários do tempo barroco. (SARDUY, 1974, p. 15). Barroco para Sarduy não é um conceito atado a um tempo histórico, mas um conjunto de características. “[...] No centro da estética barroca está o desequilíbrio, a paixão. O homem “perdeu o pé”, anda à deriva num oceano de incertezas, sem bússola e sem norte.” (SARDUY, 1974, p. 15). O barroco é sobrecarga e desmesura, quer o excesso e o residual. As músicas de Raul trazem o questionamento, a carnavalização, a subversão da ordem, o riso, o deboche, o caráter anárquico como negação da ordem estabelecida e das hierarquias de poder. “O barroco será a extravagância e o artifício, a perversão de qualquer ordem fundada, equilibrada: moral.” (SARDUY, 1974, p. 51). Sua figura artística complexa conseguia representar, a um só tempo, a cultura popular brasileira, com seus elementos baianos, sertanejos, urbanos, bregas, místicos, sacroprofanos, e a rebeldia roqueira vinda da América do Norte, com seus movimentos corporais de quadris e ombros, trejeitos e vestes. Esse contexto filosófico imagético estendia-se para a proximidade com outras culturas e nacionalidades. Sua figura profética estabelecia conexões com o misticismo de São João da Cruz e do místico inglês Aleister Crowley, com os livros sagrados do Oriente, como o hindu Bhagavad Gita e o chinês Tao Te Ching. Também com a astrologia, como a indumentária de sábio ancião que ilustrava a capa do disco Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás com música-tema de mesmo nome, ou a figura de mago que ilustrava a capa do disco a Pedra do Gênesis. O manto de mago que ilustra sua biografia Raul Seixas Uma Antologia é uma peça lendária da exposição de seus pertences. Sua imagem como artista era a própria tradução mestiça de elementos diversos incorporados em transformação. Seu caráter criativo performático atípico manteve-o fora das classificações musicais da época, como a Jovem Guarda, a Bossa Nova, a MPB, a Tropicália, o estilo brega ou de música baiana, embora dialogasse com várias delas. Quando na dificuldade em classificá-lo, os entrevistadores perguntavam-lhe como chamava o que fazia, e ele prontamente respondia: “Raulseixismo”. Seu perfil geográfico latino-americano é, portanto, um fator potencializador de suas mestiçagens. 41 2.2 A Arte como Missão: A Semente Libertária “Sou escritor por excelência, ator por desejo e compositor por raiva.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 21). A missão que Raul Seixas assumiu como objetivo de carreira foi proporcionar a libertação do indivíduo de todas as amarras psicossociais, alertando-o para seu potencial de ação. Ao manter sua proposta insistente de que cada um acreditasse em si, pretendia despertar reações individuais que levassem à realização pessoal, condição na qual o indivíduo estaria livre da obrigatoriedade do cumprimento de quaisquer normas sociais e hierárquicas. Para tanto, propôs que cada qual avaliasse seus ideais de realização, em lugar de empreender esforços para manter a posição social e o satisfatório funcionamento do sistema. As escolhas de cada indivíduo seriam guiadas por seus desejos e aptidões, não mediadas por pressões sociais, políticas, religiosas, familiares e educacionais, de ordem física ou psicológica. “Para Marcuse, portanto, a libertação começa quando desfazemos o nó da dominação social.” (ROSZAK, 1972, p. 125). O desejo de perpetuar suas ideias o acompanhou desde a infância, e ele se habituou a anotar seus pensamentos e poemas e guardá-los num baú, que manteve pela vida toda. Seu conteúdo está publicado nos livros: As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, O Baú do Raul, Raul Rock Seixas e O Baú do Raul Revirado, sendo apenas o primeiro lançado por ele, em 1983, enquanto que os demais contaram com edição póstuma. Em 1983, ao lançar seu livro As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, Raul falou da importância do baú em sua vida: Há 37 anos que esse velho baú me acompanha aonde quer que eu vá. É enorme e pesado. Tenho minha vida toda escrita e jogada nesse baú. Desde garoto eu tinha essa idéia fixa de deixar escrito tudo o que eu vivenciava. Escrevendo e guardando, eu sentia que estava marcando as minhas pegadas pela vida. Achando que já tinha chegado o momento de utilizar o que fiz, transformei tudo o que tinha no baú em um livro. Nada poderia ser esquecido. (SEIXAS, Raul apud SOUZA, 1993, p. 11). O sistema será visto por ele como algo passível de envolvimento perigoso, que exige constante cautela. Em suas anotações particulares, Raul fala de seu trabalho libertário contra as armadilhas do sistema: A arapuca está armada e o alpiste é tentador. Eu sou pacifista, trabalho pela paz para um mundo melhor. Trabalho contra os caretas do mundo, contra o torpor, a imprecação, contra a arapuca que nos foi armada e durante séculos vivemos conformados, presos 42 nela comendo o alpiste que nos dão. E o pior é que os que prepararam a arapuca também caíram nela, comem do mesmo alpiste e não sabem disso. Trabalho para sair da arapuca com todos os que estão querendo ser pássaros livres outra vez. Os que estão cegos ficarão soterrados dentro dela quando ela desabar. Sou um pacifista, a mando de forças exteriores. Pensando que estão por cima, os imbecis vivem dentro do mesmo esquema: a neurose, a preocupação criminosa e doentia de manter-nos a todos dentro da armadilha. Mas é preciso sair dela de qualquer maneira, é a única salvação ou seremos eternos pássaros tristes, presos numa arapuca com alpiste racionado. Porque às árvores nós pertencemos. Eu quero ver o mundo do cume calmo de uma montanha!!! (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 84, grifo do autor). Sua visão do sistema como arapuca da qual devemos nos libertar está impressa em muitas de suas produções, por vezes de forma mais contundente em suas anotações caseiras do que nas músicas. Em entrevista ao jornal Canja em 1980, Raul fala de como teve de adaptar-se ao sistema e procurar seu calcanhar de Aquiles para alfinetá-lo. Fala, ainda, de sua chateação com as pessoas que não agem na direção de modificá-lo, e de seu senso de missão: – Houve uma época da “Sociedade Alternativa”, da música Gita – “eu sou a luz das estrelas, eu sou...” – em que você foi considerado por alguns uma espécie de sábio, um profeta. Embora você tenha dado “alguns passos”, o seu lado de profeta ainda persiste em seu trabalho. Ou não? – Talvez a gente até seja. Todos nós somos profetas em potencial. É só ter um momento. Agora eu acho o momento. Eu não estou me impondo nada. Eu não estou impondo coisa nenhuma. Estou apenas propondo. – Antes você estava propondo ou tentando impor “o caminho da salvação”? – Eu estive sempre propondo, as firmas de disco é que entraram numa. Que eu era profeta, que tinha de impor. Queriam faturar em cima disto, em cima do apocalipse. Na época as fábricas me forçaram, gostaram da idéia, né? Eu tive de aprender com o sistema, a me adaptar a ele ardilosamente, a procurar os calcanhares de Aquiles. E procurar sem imposições. Como estou agora mais idoso. E muito mais filho da puta, com agulhas fininhas a entrar no Zé Carlos da Silva de Aquiles. É que sou chato, bicho. Eu sou o plim-plim do pentelho do pentelho do pentelho. Eu sou muito chato. Mas eu fico zangado com os meus amigos, com pessoas como você, gente bonita, todo mundo aí. Tanta gente bonita deixando o rio passar. [...] Acho que existem pessoas com embrião. Existem escolhidos que têm que botar o calcanhar não... isso que a gente põe na polícia... – Impressão digital. – Isso, impressão digital. A gente tem de pôr nossa impressão digital no mundo. Tem o dever. Você tem uma missão pra cumprir aqui, você não está aqui por nada, acho que todos têm esse direito, o dever de marcar a presença, a passagem. Esses que têm o embrião. Porque o povo sempre foi o povo, sempre foi liderado. Eu estou cooperando devagarzinho, quero botar minha impressãozinha, quero sair na História, ser lembrado. Porque tem gente que morre e gente que não morre. Estou fazendo minha pequena participação aqui, de passagem por este lugar. (PASSOS, 1993, p. 121-122). 43 A relevância do trecho apresentado está em mostrar dois fatores motivacionais desse artista: a percepção de seu trabalho como missão e a intenção de perpetuá-lo, nas palavras dele: “Sair na História, ser lembrado”, que o levaram à produção insone e ao armazenamento dos frutos de seu labor. Seu trabalho é movido por suas inquietações filosóficas e por sua aposta no potencial humano. Artista contestador, provido de forte senso crítico, queria ter sido escritor, mas descobriu na música um meio mais eficaz de comunicação. “A música e a literatura se misturaram; poderia ter sido escritor, mas canalizei para o rock. Troquei a filosofia pela música porque um microfone é mais importante do que qualquer outra coisa.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 59). A respeito de sua função, em 1983, Raul escreveu em anotação particular: Eu sou simples, acanhado, educado, incapaz de ferir alguém com este propósito. Sou primeiramente o cara que só quer ver tudo e todo mundo feliz. A mim não importa pensar que estou triste, pois sei que sou feliz. Por ser feliz é que eu agüento, numa boa, a infelicidade do próximo. Podem vir a mim; aqui está o seu abrigo, eu jamais me negarei a receber e ajudar quem quer que seja, de qualquer nível ou raça. Minha função é essa. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 48). Em A Poética do Mito, Mielietinski fala da opinião de Carl Jung sobre o que é ser artista: Segundo seu ponto de vista, o artista projeta seu destino pessoal ao nível do destino da humanidade, ajudando outras pessoas a libertarem as suas forças interiores e evitarem muitos perigos. Isto ocorre pelo fato de o artista ter relações diretas intensivas com o inconsciente e ser capaz de expressá-las graças não só à riqueza e a originalidade da imaginação mas também a uma força plástica. (MIELIETINSKI, 1987, p. 67). Raul foi primeiramente um questionador, filósofo, estudioso, investigador das relações humanas e da condição do ser no universo, que utilizou a música como veículo para a transmissão da mensagem. De acordo com depoimento seu em videodocumentário do acervo do fã-clube Raul Rock Club: Antes da música existe uma coisa muito mais importante. A música pra mim é só o canal onde eu posso liberar as coisas que eu tô dizendo, as coisas que eu penso, as coisas que vocês pensam também. A música é apenas um veículo, cara, é um veículo. Eu tô com o microfone na mão, isso é uma coisa importante, é uma arma tão poderosa como a bomba atômica, pô! Embora tenha trabalhado com afinco os ritmos e arrajos musicais, o valor comunicativo de sua produção coloca a letra sobre a melodia. Num país de tradição oral, ele utilizou a força da mensagem como elemento-chave para o trabalho de conscientização social 44 que desenvolveu: “É só falando para milhões de pessoas que eu vou deixar minha marca, minha impressão digital no planeta.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 54). Assumiu o papel social de tradutor de uma cultura tradicional para a linguagem popular acessível a todos. “Traduzo nossa cultura, nossa história, de uma forma que todo mundo possa ouvir, compreender.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 54). Atuando como socializador da cultura livresca a que teve acesso, disseminou conhecimentos complexos, simplificando-os para o entendimento comum. “Eu uso a música para passar minhas ideias, para colocar adiante o que aprendi com a filosofia.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 59). De acordo com Lotman (1996), do ponto de vista da Semiótica, a cultura é uma inteligência coletiva e uma memória coletiva e, nesse sentido, o espaço da cultura pode ser definido como o espaço de certa memória comum. Para o autor, a cultura em sua totalidade representa um dispositivo pensante, um gerador de informação. Cabe ao artista o papel de tradutor de textos culturais coletivos para os textos artísticos, ao criar algo novo a partir do que conhece, para que seja assimilado pela cultura. O esforço criativo, portanto, ao mesmo tempo em que transcende ao senso comum para propor uma inovação, também se alimenta dele e para ele retorna. Quero minha música num movimento novo, criativo, não mais uma contestação de classe média, com calças Lee ou tachinhas nas blusas. Sou o único no Brasil que faz iê-iê-iê realista, pós-romântico. É uma nova visão das coisas. Quero minha música vendável, consumível, pra ser entendida por todo mundo. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 59) Acreditando resolutamente no potencial humano, desenvolveu uma obra libertária de cunho social, cuja aposta estava não no povo como massa, mas na ação individual e no seu potencial de autorrealização. Nesse sentido, a expressão “levantar a cabeça” aparece várias vezes em seu trabalho, como no trecho: “Que Gita ecoe no coração dos homens e os faça levantar novamente a cabeça.” (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 91). Na música Murungando 13, que integra o LP O Rebu, trilha sonora da novela de mesmo nome apresentada pela Rede Globo em 1974: Levanta a cabeça mamãe/ Levanta a cabeça papai/ Levanta a cabeça Hipão/ E tira seus olhos do chão/ O chão é lugar de pisar/ Levanta a cabeça vovó/ Levanta a cabeça povão/ Levanta a cabeça vovô/ Pra turma do amor e da paz/ Levanta a cabeça rapaz/ Não tenho outra coisa a dizer/ Que eu sou mais eu que você. 13 Letra disponível em: <http://letras.terra.com.br/raul-seixas>. Acesso em: 12 fev. 2012. 45 A permanência da apatia popular, mesmo diante de seu trabalho, era motivo de desprazer, mas também um estímulo para que continuasse tentando despertar uma reação. Em anotação particular datada de 1984, ele escreve a esse respeito: Eu sinto o acomodamento e o intolerável desprazer de mostrar meu ponto de vista e ninguém mover uma palha, sem nem sequer pensar no assunto. Dedico minha vida, minhas noites inteiras, cada segundo, cada momento, a jamais permitir que minha cabeça pare de pensar. Eu vivo cada segundo ligado aos meus pensamentos; na rua, no táxi, anotando tudo em maços de cigarros ou nas mãos para que em casa eu possa passar para o papel e trabalhar para a utilidade dos que sentem. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 55, grifo nosso). Em seu diário, Raul fala da intenção de plantar a semente libertária que trará paz e, novamente observando a apatia popular, convida a levantar e agir: Antes eu não sabia o que era, mas tinha certeza que não era aquilo. Hoje eu sei que é possível o Mundo Novo, porque estou sentindo que a semente libertária já foi plantada, sem imposição; o próprio processo histórico, o próprio sofrimento humano, as condições, a falsa ética, as mentiras convencionais, dogmas enganadores, guerras, desgraças e opressões, a própria arbitrariedade da sociedade foram pouco a pouco denunciando o caminho do universalismo, da paz e da harmonia. É tão fácil encontrar a paz. Os que são pela paz são a maioria! O problema é que ficam sentados esperando alguém resolver o problema. Os loucos que fazem a guerra são poucos e a eles se confere o poder!! Vamos levantar e acabar com isso agora? Eu estou pronto, e você? (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 85). Figura 1 - Foto de Raul Seixas Fonte: <http://www.vivaraulseixas.no.comunidades.net/index.php?pagina=1182493288>. Acesso em: 17 nov. 2011. 46 Em Geração da Luz 14, rock que ele compõe como um legado para a geração vindoura, deixa clara sua aposta na mesma, e acredita que a semente libertária que ajudou a plantar germinou: Eu já ultrapassei as barreiras do som/ Fiz o que pude às vezes fora do tom/ Mas a semente que eu ajudei a plantar já nasceu/ Eu vou embora apostando em vocês/ Meu testamento deixou minha lucidez/ Vocês vão ter um mundo bem melhor que o meu [...] Vocês serão o oposto dessa estupidez/ Aventurando tentar outra vez/ A geração da luz é a esperança no ar!!. 2.3 Processo Criativo Raul Seixas dedicou-se a um intenso processo criativo, empreendeu estudos em filosofia, misticismo e comportamento humano, que constituíram a base filosófica de seu trabalho. Sua característica dedicação a cada detalhe da produção da obra permitia pensar seu trabalho de maneira global, desde as primeiras ideias até o lançamento mercadológico. Uma vez interessado em determinado assunto, passava a estudá-lo de maneira obstinada, tirando deste estado de imersão a composição das letras e das melodias. Simultaneamente, tomava forma o universo imagético que seria representado tanto pelo projeto gráfico do disco como pelo figurino de palco e videoclipe, e pela criação de um personagem que traduzisse todo o processo. Suas fontes de pesquisa englobavam tanto a observação do comportamento social quanto longos estudos literários. O LP era, portanto, composto por uma série de músicas que partiam de um mesmo eixo temático, realizado como uma obra conceitual em que a mensagem tinha prioridade sob quaisquer outros aspectos. No decorrer do labor criativo, a investigação, baseada num interesse central, passava a alimentar-se das interconexões de grande diversidade de assuntos e ritmos e das experimentações sonoras que pudessem enriquecer o tema proposto. Ao conceber sua música como um veículo de transmissão de ideias, seu viés intelectual prevalecia sobre o papel artístico de intérprete. A seguir, ele fala sobre seu trabalho de pesquisa e a importância do conteúdo que veicula: Eu espero que meu LP ensine alguma coisa para a moçada de hoje. Eu, que estudei história, filosofia, literatura, latim, tenho o que dizer. Não trago uma coisa imposta, um rótulo, como a tal niu uêive. Não estou enchendo lingüiça. [...] Nunca li um romance. Só leio tratado, e ainda olho as notas de rodapé, para procurar os nomes de outros livros sobre o mesmo assunto. Meu 14 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 287). 47 trabalho é de pesquisa, mesmo! [...] O que importa em minha casa é a luz vermelha, meus tubos de ensaio, meus livros, meu violão e minha janela aberta para ver onde jogo meus experimentos. Estudo o esoterismo, suas práticas e métodos, a antipsicanálise, e faço minhas pesquisas [...] Eu fico em casa, mas meus experimentos vão para a rua. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 54-55). Sua personalidade investigativa o levou a ter sempre um projeto em andamento, a desenvolver-se contra o correr do tempo, motivo pelo qual ele dormia pouco para produzir com intensidade. Raul portava-se como investigador e criador em tempo integral, não conseguindo desvencilhar-se dos questionamentos e do estágio criativo latente ou producente. Eu estou sempre experimentando, inventando, não se pode é deixar parar, porque quando se pára, apodrece e fede. Tem-se que conservar o dinamismo e buscar. O quê? Não sei, não importa. Buscar. As portas estão sempre abertas para as pessoas; é questão de coragem aceitá-las abertas e entrar. Eu entrei, entro e viajo apenas, começo agora a grande viagem: “Raul Seixas no País das Maravilhas”. (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 70) 2.4 A Linguagem Popular A linguagem popular figura na obra de Raul Seixas como um de seus traços mais importantes, aquilo que lhe possibilita estabelecer uma conexão direta com o grande público. Ela será a ponte que levará sua mensagem filosófica para o seio da cultura popular de forma rápida e inteligível. O uso dessa linguagem fez dele um grande tradutor dessa cultura, sintetizando conteúdos complexos em textos simples e abordando temas cotidianos de maneira humorística. Seu trabalho apresenta algumas características que se dão como reflexo de sua concepção de mundo, como seu apurado senso crítico somado à comicidade e à sátira, que marcam seu modo de tecer críticas com humor. Mostra sua aversão às imposições do sistema; o uso da linguagem popular; a preferência por cantar em primeira pessoa do singular; a utilização de eclética variedade de ritmos numa só canção; o largo uso de metáforas; a aproximação verbal com grandes personagens da história, como Jesus, Freud, Isaac Newton, Nero, Júlio César, Lampião, Al Capone. E, por fim, faz a abordagem conjunta de temas filosóficos e personagens históricos com fatos cotidianos, num constante processo de desierarquização, trazendo quaisquer assuntos para o mesmo plano, usando linguagem simples. Confere abordagem popular aos grandes homens da história e seus feitos, em músicas como: Todo Mundo Explica, na qual Zigmund Freud aparece como personagem popularizado: “Papai mordeu a cabeça de doutor Dom. Sugismundo/ Porque sem querer cantou de galo/ Que 48 cada cabeça era um mundo/ Gismundo”. Em Como Vovó já Dizia 15, menciona a lei da gravidade observada por Isaac Newton: “José Newton já dizia: se subiu tem que descer”. E, por fim, em Conversa pra Boi Dormir 16, trata são João Batista e o fundamento do batismo na religião cristã com notável simplicidade: “Jota batista batizou Jesus/ De água e sal e o sinal da cruz/ Com a profecia que já tava esquecida para que seu povo encontrasse a luz”. Em Al Capone 17, ele dá um recado de alerta, em tom de amizade, ao figurão norteamericano, ao ex-imperador de Roma, Julio César, ao cangaceiro brasileiro Lampião, ao guitarrista Jimmi Hendrix, como se todos coexistissem no mesmo tempo histórico: Hei Al Capone vê se te imenda/ Já sabem do teu furo nego/ No imposto de renda/ Hei Julio César vê se não vai ao senado/ Já sabem do teu plano/ Para controlar o Estado/ Hei Lampião dá no pé desapareça/ Pois eles vão à feira exibir tua cabeça/ Hei Jimmi Hendrix abandone o palco agora faça como fez Sinatra/ Compre um carro e vá embora. Após citar São João Batista e o batismo, Conversa pra Boi Dormir continua: Faz muito tempo que o Brasil não ganha/ Isso é conversa para boi dormir/ Confio em Deus porque ele é brasileiro/ Pra trazer o progresso que eu não vejo aqui/ Num tenho saco para ouvir artista/ Comendo alpiste na mesma estação/ Cantando regra com o rei na barriga/ E só de preguiça eu não mudo o botão. A ausência de uma ordem de importância hierárquica e a disposição de diversos elementos no mesmo plano, uns ao lado dos outros, são algumas características da mestiçagem em seu trabalho. Em Gente 18, realiza uma análise do comportamento humano comum, em linguagem simples: Gente é tão louca/ E no entanto tem sempre razão/ Quando consegue um dedo/ Já não serve mais, quer a mão/ E o problema é tão fácil de perceber/ É que gente/ Gente nasceu pra querer/ Gente tá sempre querendo/ Chegar lá no alto/ Pra no fim descobrir/ Já cansado que tudo é tão chato/ Mas o engano é bem fácil de se entender/ É que gente/ Gente nasceu pra querer/ Em casa, na rua, na praia, na escola ou no bar, ah!/ É gente fingindo, escondendo seu medo de amar. Não apenas a linguagem popular como sua pronúncia aparecem em músicas como Lua Cheia, Não Fosse o Cabral, Quando Acabar o Maluco Sou Eu, Capim-Guiné e O Negócio É. Lua Cheia 19 traz palavras como “veve”, em lugar de vive; “óios”, representando olhos, e “ajudeia”, em lugar de judia, do verbo judiar: “Oh lua cheia véve piscando os seus óios para 15 Letra disponível em: <http://letras.terra.com.br/raul-seixas>. Acesso em: 11 fev. 2012. Letra em Passos e Buda (s.d., p. 253-254). 17 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 146). 18 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 300). 16 49 mim/ Oh lua cheia cê me ajudeia desde o dia em que eu nasci”. Em Não Fosse o Cabral20: “Por fora é só filó, dentro é um molambo só e o Cristo já num guenta mais” e “falta de cultura pra cuspir na estrutura... Ai meu Deus”. Quando Acabar o Maluco Sou Eu 21 traz a pronúncia corriqueira da palavra “título”: “Seu Zé preocupado anda numa de horror/ Falta um carimbo no seu tito de eleitor”. Em Capim-Guiné 22, composição feita com Wilson Aragão, ele interpreta o personagem sitiante do sertão nordestino, com a pronúncia característica dessa região: Dona raposa só véve na mardade/ Me faça a caridade se vire e dê no pé/ Sagui trepado no pé da goiabeira/ Sariguê na macaxeira, tem inté tamanduá/ Minhas galinha já num fica mais parada/ E o galo de madrugada tem medo de cantá/ Num planto capim-guiné pra boi abana o rabo/ Eu to virado no diabo, eu to retado cum vocês/ Tá vendo tudo e fica aí parado cum cara de viado que viu o caxinguelê. Há a brincadeira com a sonoridade: “Pardal foi pra cidade/ Piruá minha sagué (Gué, Gué Gué)”. No final, essa brincadeira se intensifica com a entonação propositalmente cômica de sua voz imitando a pronúncia sertaneja nordestina: “E fica aí parado, cum cara de viado, homi, que viu o caxinguelê/ Acuma, acuma é?/ Dondoje ele chega meu nêgo/ Oxente, é Piritiba, uma saudade retada”. Em O Negócio É 23, há uma convergência de elementos populares, como o jargão “O negócio é”, usado como título e refrão, que expressa o modo de raciocínio comum na cultura popular brasileira de que, quando a situação não é o que se esperava, o negócio é se lidar com o que se tem. A música tem o baião como ritmo e faz uso da linguagem corrente, com algumas pronúncias tal como se dão nos meios mais populares: O negócio é/ Chupar o caroço da fruta do cacau/ O negócio é/ Subir no coqueiro e do alto ver o mar/ O negócio é/ Fazer prantação pra depois puder culher/ O negócio é/ Criar uma vaca e ter leite pra beber/ O negócio é/ Saber que o mar não tá pra peixe e sair pra pescar/ O negócio é/ Dormir sem medo do outro dia que já vai chegar/ Que pra passar a noite na cocheira tem que ter/ O mesmo cheiro do cavalo pra não incomodar/ Mas o negócio é/ Tomar uma cana pro frio não pegar/ O negócio é/ Fazer um teiado pras águas não moiá/ O negócio é/ Fubá no almoço e farinha no jantar/ O negócio é/ Tocar na sanfona pra nêga rebolar. 19 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 269-270). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 267-268). 21 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 290). 22 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 273-274). 23 Letra disponível em: <http://letras.terra.com.br/raul-seixas>. Acesso em: 11 fev. 2012. 20 50 Assim como na música de grandes poetas populares, como Adoniran Barbosa 24, a tradução da fala coloquial esteve na obra de Raul de modo expressivo, travando com esse público uma empatia profunda e duradoura. Grande parte de suas composições falam do povo, mas todas a este se dirigem. 2.5 Personagens “Eu sou tão bom ator que finjo que sou cantor e compositor e todo mundo acredita.” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 47). Raul Seixas, enquanto artista, personificou uma figura questionadora, com declarado viés anárquico, dedicada a questionar a ordem estabelecida das situações cotidianas na cultura brasileira, com característica dose de humor. Em sua arte performática, criou uma série de personagens para ilustrar suas produções, figuras proféticas, como o sábio ancião de Há dez Mil Anos Atrás, o mago de A Pedra do Gênesis e o profeta de As Profecias. Também personificou a imagem do roqueiro enérgico em músicas como Rockixe, Eu Sou Egoísta e No Fundo do Quintal da Escola, e nos LPs UahBap-Luh-Bap-Lah-Béin-Bum! e A Panela do Diabo. Também foi autor de personificações singelas, como em Maluco Beleza, Réquiem para Uma Flor e Água Viva, e de figuras românticas, como os sujeitos apaixonados de Ângela, Mais I Love You, Mata Virgem e Tu és o MDC da Minha Vida. Há, ainda, o malandro do samba Aos Trancos e Barrancos e, por fim, o que se pretendia incômodo: o contestador de Mosca na Sopa e de As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor. Em entrevista ao jornal O Globo em 1983, ele fala sobre a postura de guru que assumiu e sobre as verdades individuais: − É... era essa coisa mesmo, eu não fazia shows propriamente. Eu fazia discurso... sei lá... pregações... queria dizer coisas às pessoas, mas ao mesmo tempo eu discutia aquilo, discutia o fato de... por que eu ali em cima do palco, se a verdade está em cada um?... aquelas pessoas todas deviam estar no palco, era isso que eu queria dizer, mas não sabia como... (PASSOS, 1993, p. 30). Seus personagens, portadores de questionamentos de fundo crítico e anárquico e também de novas propostas, ganharam a simpatia do público por sua abordagem humorística 24 Nome artístico de João Rubinato (1912-1982), cantor, compositor e poeta popular brasileiro, conhecido por sucessos musicais como Saudosa Maloca, Trem das Onze, As Mariposas e Samba do Arnesto. Sua expressiva narrativa em linguagem popular como poeta da cidade de São Paulo e suas andanças pelo boêmio bairro do Bixiga o identificaram com a classe de migrantes italianos residentes no Brasil na década de 1950, mas, sobretudo, o levaram ao posto de um dos principais representantes da cultura popular brasileira. 51 em linguagem popular, a exemplo do cowboy de Cowboy Fora da Lei, do carimbador de O Carimbador Maluco, conhecida como Plunct, Plact, Zuum ou do “maluco” de Maluco Beleza. Em 1977, ele brinca, em seu diário, com sua vontade de interpretar vários personagens: Eu na realidade sou um ator que não quero parar e só interpretar um personagem; eu quero interpretar o garotinho sem barba da novela das sete, o mocinho da novela das oito, o viado do filme pornô, o intelectualesquizofrênico Raul Seixas (o cantor), e de repente meu campo ficou restrito a somente interpretar um personagem. Eu queria ser um dos personagens de Hitchcock, de Fellini, de Nelson Rodrigues, da História da Humanidade tipo Nero, Calígula, Jesus, Crowley. De repente Ângela Ro-Ro, um Chico Anysio... Attention, Raul, para não se alienar sendo apenas um compositor carismático que é Raul Seixas. Este é um personagem que eu já esgotei. Vide a dica de Metamorfose Ambulante (que eu compus com quatorze anos ou menos) dizendo: “Se hoje eu sou estrela, amanhã já se apagou. Se hoje eu te odeio, amanhã...” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 38). Seus personagens e suas atitudes moldaram o modo como sua imagem era veiculada pela mídia, não apenas tal como se davam os fatos, mas com a característica manipulação do direcionamento feita pelos meios de comunicação. Houve um processo de mitificação dessa imagem, que acabou por reduzir a percepção pública de sua complexidade. Enquanto a imprensa privilegiava apenas sua ousadia performática, e a imagem do roqueiro debochado ganhava projeção, o compositor, estudioso, ligado à família, mergulhado num processo criativo intenso e enfrentando problemas de saúde, permanecia na obscuridade. Sua postura criativa e anárquica ajudou a torná-lo uma figura lendária. Em entrevista feita pelo jornal da imprensa alternativa O Pasquim, em novembro de 1973, narra uma história fantasiosa sobre o início de sua amizade com Paulo Coelho: O Pasquim – E o Paulo Coelho, teu parceiro? Raul Seixas – Eu conheci o Paulo na Barra da Tijuca, num dia que eu tava lá. Às cinco horas da tarde eu tava lá meditando. Paulo também tava meditando, mas eu não o conhecia. Foi o dia que nós vimos o disco voador. O Pasquim – Você pode falar nisso, já que tá na moda, todo mundo vendo disco voador de novo. Como é que foi isso? Raul Seixas – Foi depois do FIC, em que eu cantei o Let Me Sing. O Pasquim – Ano passado. Raul Seixas – Cinco horas da tarde. Então eu vi. Enorme, rapaz, um negócio muito bonito. Inclusive os jornais levaram a coisa pro lado sensacionalista: O CARA QUE VIU DISCO VOADOR. “O profeta do apocalipse”, eu dei muita risada com isso. Mas não foi nada, foi um disco voador muito bonito. O Pasquim – Dá pra descrever o disco? Raul Seixas – Dá sim. Foi... era meio assim... prateado. Mas não dava pra ver nitidamente o prateado porque tinha uma aura alaranjada, bem forte, em volta. 52 Mas enorme, entre onde eu estava e o horizonte. Ele tava lá parado, enorme. O Paulo veio correndo, eu não conhecia ele, mas ele disse: “Cê tá vendo o que eu tô vendo?” A gente aí sentou, o disco sumiu num ziguezague incrível. O Pasquim – Durou quanto tempo mais ou menos? Raul Seixas – Uns dez minutos. O Pasquim – Fazendo manobras? Raul Seixas – Não. Parado, estático. O Paulo chegou e nós começamos a conversar, sentados. Foi como se a gente tivesse feito uma viagem no próprio disco. E vendo a problemática toda do planeta. O Pasquim – A que você atribui essa aparição? Raul Seixas – Não é aparição. Tava lá, real, palpável. Bonito. O Pasquim – Não seria resultado da meditação? Raul Seixas – Não, que nada. O Pasquim – Qual foi o efeito que esse disco causou em você? Raul Seixas – Ouro de Tolo, que pintou aí. Essa música. (PASSOS, 1993, p. 89-90). Seu trabalho não se apresenta, de forma linear, na direção da construção de um tipo único de personagem ou de conduta artística, ele não se dedicou à consolidação de uma determinada imagem que representasse a si ou a sua obra, mas, ao contrário, conferiu a si e a seus personagens o direito de transitar entre diversos estilos. Interpretando Raul Seixas ou quaisquer de seus personagens, utilizou-se da performance como recurso intensificador da comicidade e da criticidade em seu trabalho. Em 1980, ele lançou o LP Abre-te Sésamo no Programa Discoteca do Chacrinha, que contava com massiva audiência popular. Apresentou sua sátira política musical embalada pela hilária performance de seu personagem: um sultão de óculos escuros cercado de odaliscas. Criticou o quadro político e social do país, com notável comicidade, utilizando uma linguagem corporal e verbal bastante popular. 53 Figura 2 - Raul vestido de sultão com Chacrinha (Abelardo Barbosa) - 1980 Fonte: Revista Contigo 2004. Ed. 5. Fotógrafo: Marcos Rosa. Disponível em: <http://pipocamoderna.com.br>. Acesso em: 2 fev. 2012. Em sua participação no programa do Chacrinha, da TV Bandeirantes, em 1981, aparece vestido de branco, usando uma peruca de longos cabelos louros, comicamente contrastando com sua barba e óculos escuros, cantando Aluga-se, sátira em que propõe alugar o Brasil para sanar a dívida externa. Tanto neste caso como em outros momentos de sua carreira, a comicidade de sua performance e do figurino constituíram o pano de fundo para a crítica política ou social que estava apresentando. Em sua obra, diversos assuntos aparecem encaixados uns nos outros como num trabalho de marchetaria. Como habitualmente apresentava seu viés anárquico carregado da comicidade característica, o público passou a esperar dele o inesperado, a quebra do decoro que determinada situação exigia. Raul comenta sua atitude performática, subversiva ao jogo de ibope da mídia, em entrevista ao Jornal da Música, em 1976: Quente mesmo foi o concurso de miss transmitido pela TV Tupi. Eu fui fazer o show do concurso e me deram uma roupa igual às do Mick Jagger. Como eu não sou Mick Jagger, vesti um pijama e entrei no palco escovando os dentes. A galera da geral vibrou, mas eu acabei preso durante cinco dias em Brasília. (PASSOS, 1993, p. 113). Ao apresentar-se no Clube do Bolinha, em 1987, ele derruba o microfone, depois deita no chão e coloca as pernas para cima, enquanto canta Cowboy Fora da Lei, numa atitude brincalhona bastante à vontade. 54 Em sua variação de indumentária, apresentou-se, em 1973, no programa do Silvio Santos vestido com sua grande capa preta de mago com desenhos da chave da Sociedade Alternativa e longas botas brancas. No videoclipe de O Carimbador Maluco, tema do musical infantil Plunct Plact Zuum promovido pela rede Globo em 1983, ele interpreta o personagem do carimbador que aparece voando diante de uma nave espacial pilotada por crianças, usando óculos, capa e chapéu com hélice giratória. No de Cowboy Fora da Lei, lançado pela mesma emissora em 1987, faz o papel de cowboy de filme norte-americano, figurando com violão e um cavalo, no cenário de um saloon. No videoclipe de Há Dez Mil Anos Atrás, ele figura vestido de preto, “flutuando” em pé, na frente da projeção de imagens das grandes cenas da humanidade. Dança, faz caretas e, então, passa a bater palmas, pular, dançar e girar com uma espontaneidade notória. Em sua performance mestiça, Raul trabalhou a espontaneidade do repente do norte e nordeste do Brasil e a atitude desafiadora do rock. Constantemente reinventava suas músicas e seu próprio personagem. “No show não me divirto tanto, erro a letra, sou o rei de inventar letras na hora. Não me preocupo com as marcações; deixo a força toda para o recado.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 22). Essa característica do repente em sua obra inclui a questão da memória, tanto das letras que ele esquece, e por isso as reinventa, quanto de novos recados que lhe apraz passar no momento em que está diante de determinada plateia. Logo, se dá pelo esquecimento, mas também pela renovação das ideias. De acordo com Pires Ferreira em seu livro sobre a memória: Poderíamos mesmo dizer que o esquecimento seria responsável pela continuidade, pela memória e até pela lembrança. Segundo Lévi Strauss é o esquecimento que vem quebrar uma certa continuidade na ordem mental, sendo responsável pela criação de uma outra ordem. Coloca aí algo que é fundamental: a noção de quebra, de hiato para futuras e renovadas retomadas e reconstruções, algo como a morte provisória que se faria seguir da ressurreição. Pois como nos lembra Paul Zumthor, nos mitos antigos, o esquecimento quer dizer, ao mesmo tempo, morte e retorno à vida [...] Lapso, hiato, fratura, ressurgimento têm a ver com a interrupção de um projeto, tanto de vida e de ação como de narrar. Formam uma espécie de morte momentânea, ritualizada, que daria lugar ao fluxo da vida. Tratando-se de sistemas de comunicação e de passagens rituais, seria inevitável recorrer também às dimensões psicológicas da comunicação, e, neste sentido, muitas pistas para o entendimento da questão nos chegam a partir de Freud, quando ao analisar aquilo que denomina atos falhos distingue os equívocos por esquecimento no oral (Versprechen), no escrito (Verschreiben) e na escuta (Verhoren). Fala-nos do olvido como coisa passageira e pede que se observe não só o sentido como os efeitos do lapso, prenunciando, portanto, os estudos de recepção. Com isto, nos remete a problemas do curso narrativo, trazendo algo que nos interessa muito de perto, pois supera-se a instância sociológica/antropológica e aponta-se para mecanismos da própria composição poética. Por exemplo, o efeito que os poetas sabem tirar do ato 55 falho e do esquecimento, enquanto motor do efeito narrativo. (FERREIRA, 1991, p. 15-16). Em entrevista a Walterson Sardenberg da revista Amiga, em 1982, Raul fala a respeito de sua timidez e sensibilidade, dos palcos e de jogar as próprias verdades para o público: − O meu signo é de câncer e, como bom canceriano, eu gosto mais é do trabalho de laboratório, como um cientista. Isso de gravar discos, transar estúdios. Mas no palco acho que pinta o meu signo ascendente, que é leão [...] Na verdade não sei o que dá em mim quando eu piso no palco. Não sei se entra alguma entidade em mim, você entende? Porque eu sou mesmo um cara muito tímido e com a sensibilidade à flor da pele . Aquele negócio de canceriano, de arrepios, de coração. Agora no palco é hora de vomitar. E com certeza. Com aquela segurança de que você nasceu para grudar sua impressão digital no planeta. Eu quero estar no dicionário, porque tem gente que morre e gente que não morre... cê ta entendendo? − Isso é ego. − Esse assunto é meio complexo. Eu acho que não nasci à toa. Mas meu ego e meu coração são hoje aliados. Os dois trabalham juntos, paralelamente. Então, o que eu jogo para as pessoas é uma verdade minha, sem querer impor, violar nada. Eu digo de coração o que penso e não poderia ser de outra forma. Mas não tenho a ganância do poder [...] Dentro da humildade, bicho, é tudo melhor. Os grandes rios, o Volga, o Nilo, só existem porque existem os pequenos. Os pequenos rios fazem os grandes rios. (PASSOS, 1993, p. 135-136). Nos palcos, antes de cantar Abre-te Sésamo, sátira à anistia política, ele gritava dezenas de vezes, com seriedade: “Abre-te”, com a plateia em uníssono, movimentando o braço como um maquinista, como se quisesse abrir o fechamento político com a força daquele gesto. “A transmissão de boca a ouvido opera o texto, mas é o todo da performance que constitui o locus emocional em que o texto vocalizado se torna arte e donde procede e se mantém a totalidade das energias que constituem a obra viva.” (ZUMTHOR, 1993, p. 222). Em seus shows apresentava diversos assuntos, de modo que o pergaminho do livro de Crowley, o rock dos “anos dourados” e suas próprias músicas funcionavam em conjunto. Ele personificava o rocker norte-americano dos anos 1950, interpretando em média duas canções dos pioneiros do rock, acompanhadas dos movimentos de quadris de Elvis Presley. Ajoelhava-se no chão, levantava, fazia poses à lá James Dean, apresentava suas próprias músicas e, ao final, cantava Sociedade Alternativa, desenrolando um grande pergaminho e recitando A Lei para a plateia encantada com a figura lendária. Zumthor fala da complexidade da performance: A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário e circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda de meios lingüísticos, as represente ou não) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis. Na performance se redefinem os dois eixos da 56 comunicação social: o que junta o locutor ao autor; e aquele em que se unem a situação e a tradição. (ZUMTHOR, 1997, p. 33). 2.6 Temáticas Musicais Um traço característico da carreira de Raul Seixas é seu trabalho com grande variedade sonora e temática. Sua música surge como o eco da alma de um artista questionador, e muito de seu labor esteve em expressar a problemática do homem comum. Ao abordar os assuntos do cotidiano, ele falava das ligações do indivíduo com o sistema social e o trabalho, e de sentimentos como o amor, o medo, a insatisfação e a necessidade de mudança. Movido por esse interesse no comportamento humano, se debruçou sobre estudos literários e empíricos, estendendo seu campo de observação do que havia de mais corriqueiro nas relações humanas até o extraordinário, o sobrenatural, a existência de algo que pudesse explicá-las em sua complexidade. “Deus é aquilo que me falta para compreender o que não compreendo.” (SEIXAS Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 58). 2.6.1 Discussão sobre o Comportamento Condicionado Sua obra estimulava a libertação de quaisquer opressões, das hierarquias de poder, das submissões e dos sentimentos de impotência, primando pela liberdade de pensar e agir genuína e não violenta, que se traduziu na idealização da Sociedade Alternativa, nas músicas libertárias e em todo o seu trabalho de conscientização social. De acordo com Rick Ferreira, amigo e guitarrista que tocava com Raul Seixas: Raul foi um cara realmente diferente dentro da música e dentro do rock brasileiro: seu trabalho reúne a rebeldia, o anarquismo e penetra o conhecimento incomum. Tudo isso sem amargura. Raul passou a alegria de negar a mesmice e a estupidez conformista, deixando uma legião incontável de adeptos. Raul foi o verdadeiro representante do rock social no Brasil. Raul vive! (FERREIRA, Rick, 1994, encarte do LP Se o Rádio Não Toca). Com refrão de incentivo à não acomodação, Não Pare Na Pista 25 é um exemplo de música dedicada à libertação das amarras psicossociais: Não pare na pista/ É muito cedo prá você se acostumar/ Amor não desista/ Se você pára o carro pode te pegar... Você me xingando/ De louco pirado/ E o mundo girando/ E a gente parado/ Meu bem me dê a mão/ Que eu vou te levar/ Sem carro e sem medo/ Do guarda multar/ Meu bem me dê a mão/ Que eu vou te levar/ Sem carro e sem medo/ Pra outro lugar. 25 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 178-179). 57 Ligado à questão do comportamento condicionado, o alerta sobre o potencial de mudança é uma linha condutora de seu trabalho presente em Loteria Babilônica e Se o Rádio Não Toca 26, em que incentiva a mudança em lugar da acomodação ante a insatisfação: “Se o rádio não toca/ A música que você quer ouvir/ Não procure dançar ao som daquela antiga valsa/ É muito simples/ É só mudar de estação/ É só girar o botão”. Faça Fuce Force 27 estimula a persistência para vencer a dificuldade: “Faça, fuce, force mais/ Não fique na fossa/ Faça, fuce, force mais/ Não chore na porta/ Faça, Fuce, Force vá/ Derrube essa porta/ Trace, Fuce, force vá/ Que essa chave é torta”. Figura 3 - Cópia do manuscrito oficial da música Tente Outra Vez Fonte: <espiritualizandocomaumbanda.blogspot.com>. Acesso em: 3 fev. 2012. A não desistência ante as adversidades é um tema recorrente na obra de Raul, do qual ele próprio deu testemunho, ao “recomeçar” frequentemente, tanto com a mídia e a indústria 26 27 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 177-178). Letra disponível em: <http://letras.terra.com.br/raul-seixas>. Acesso em: 11 fev. 2012. 58 fonográfica como com seus cinco relacionamentos amorosos, sua saúde e as mudanças de cidades. Sua mais famosa canção a respeito, Tente Outra Vez 28, é uma ode à não desistência: Veja/ Não diga que a canção está perdida/ Tenha fé em Deus, tenha fé na vida/ Tente outra vez/ Beba/ Pois a água viva ainda está na fonte/ Você tem dois pés para cruzar a ponte/ Nada acabou, não, não, não, não/ Tente/ Levante sua mão sedenta e recomece a andar/ Não pense que a cabeça aguenta se você parar/ Há uma voz que canta, uma voz que dança, uma voz que gira/ Bailando no ar/ Queira/ Basta ser sincero e desejar profundo/ Você será capaz de sacudir o mundo, vai/ Tente outra vez/ Tente/ E não diga que a vitória está perdida/ Se é de batalhas que se vive a vida/ Tente outra vez. Afirmação de perseverança, a canção Sim 29 é uma mensagem positiva, com entonação poética, que expressa a conduta humana de um modo geral, passando a ideia de cumplicidade entre o intérprete e o ouvinte: A dor é uma coisa real/ Que a gente está aprendendo a abraçar/ E não temer/ A velha história do mal/ Tão conhecida/ Que já nem pode mais nos assustar/ O amor é uma coisa real/ E a gente nunca deve se esquecer/ De festejar/ Cada momento pra nós/ É pura alegria/ É tudo o que a vida tem pra dar/ Vem pegar o que é seu/ A gente sofre/ A gente luta/ Pois nossa palavra é sim/ A gente ama/ A gente odeia/ Mas nossa palavra é sim/ Viver é coisa irreal/ Uns chamam de magia e é tudo tão normal/ Mas tá legal/ Tem mágica solta no ar/ Faz parte do astral/ E é isso o que a vida tem pra dar/ Vem conquistar o que é seu/ A gente sofre/ A gente luta/ Pois nossa palavra é sim/ A gente ama/ A gente odeia/ Mas nossa palavra é sim/ Sim. A discussão do comportamento condicionado do sujeito que serve ao sistema é uma das linhas condutoras de sua obra, que aparece em graus variados em uma série de músicas. Meu Amigo Pedro, Dr. Paxeco, Você, Aquela Coisa e Medo da Chuva são composições inteiras sobre o tema, que serão discutidas mais adiante, quanto à sua relação com o anarquismo. Ouro de Tolo também traz essa reflexão. Em Réquiem para uma Flor 30, fala dos poucos homens que dizem algo, em contraste com a maioria, que sofre calada: “Fruto do mundo/ Somos os homens/ Pequenos girassóis/ Dos que mostram a cara/ E enorme as montanhas/ Que não dizem nada/ Incapaces los hombres/ Que hablam de todo/ Y sufrem callados”. De acordo com Baudrillard: “A indiferença política e a passividade, seu silêncio, é o modo de atividade das massas.” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 98). 28 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 182). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 225). 30 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 247). 29 59 2.6.2 O Medo A trajetória do medo em sua obra parte de seus próprios valores e estabelece relações com uma série de outros fatores, como: as críticas anárquicas de Max Stirner, o direcionamento libertário contraimpositivo dos movimentos da contracultura, e as obras literárias que criticam a manutenção do controle pelo medo, como 1984, de George Orwell, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e O Estranho no Ninho, de Ken Kesey. Figura 4 - Foto da capa do disco Metrô 743 Fonte: <http://museuanosoitenta.blogspot.com/2007/06/raul-seixas-ontem-hoje-e-sempre.html>. Acesso em: 25 out. 2011. O tema tomou força com o desenvolvimento de seu receio pessoal de sofrer algum tipo de atentado, como John Lennon, o Papa João Paulo II e Mahatma Gandhi. Esse temor ligado à perseguição se presentifica em Cowboy Fora da Lei 31: “Mamãe não quero ser prefeito/ Pode ser que eu seja eleito/ E alguém pode querer me assassinar”. Metrô Linha 743 32 apresenta o medo de ser cassado pelo intelecto: “Ele ia andando pela rua meio apressado e nem sabia que estava sendo vigiado/ Cheguei pra ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?/ Ele disse eu dou mas vá fumar lá do outro lado/ Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado”. Essa precaução em não ser flagrado aparece de forma correlata na narrativa do livro 1984, onde um sistema de vigilância 31 32 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 291). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 278). 60 onipresente assegura o poder a uma entidade misteriosa, temida por causar o desaparecimento dos que cometessem as mais sutis infrações à ordem vigente. Tanto a obra de George Orwell como a música de Raul traduzem a atmosfera aterrorizante da vigilância. A música Para Nóia 33 traz o temor em relação à onipresença do desconhecido, presentificado não apenas na letra como também na melodia, conforme as teclas do piano sugerem passos amedrontados do personagem pela casa: [...] Minha mãe me disse há tempo atrás/ Onde você for Deus vai atrás/ Deus vê sempre tudo que cê faz/ Mas eu não via Deus/ Achava assombração/ Mas eu tinha medo!/ Eu tinha medo!/ Vascilava sempre a ficar nu lá no chuveiro/ Com vergonha/ Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo/ Vendo fazer tudo que se faz dentro de um banheiro [...] dedico esta canção: para nóia/ Com amor e com medo... Para Nóia é uma das músicas prediletas dos fãs paulistas, entoada com grande entusiasmo em encontros raulseixistas. Um dos principais traços do instinto de sobrevivência, o medo é ainda incentivado como forma de preservação da vida em Conserve Seu Medo 34 (composta em parceria com Paulo Coelho): “Conserve seu medo/ Mantenha ele aceso/ Se você não teme/ Se você não ama/ Vai acabar cedo [...] Mantenha em segredo/ Mas mantenha viva/ Sua paranóia”. Na obra deste artista, o tema encontrou diversos enfoques, indo desde a atmosfera aterrorizante de Metrô Linha 743, passando pelo mistério de Para Nóia e pela comicidade de Cowboy Fora da Lei, chegando, finalmente, ao incentivo à sua conservação em Conserve Seu Medo. 2.6.3 As Abordagens do Amor O amor compreende uma abordagem bastante ampla na obra de Raul Seixas. Debruçado sobre o tema, deu vasão à sua veia poética com inclinações românticas, mas também expressou o desejo ardente e a comicidade do envolvimento amoroso. Aparece inocente nas primeiras músicas, como Vera Verinha e Menina de Amaralina, feita para sua primeira esposa, ainda sob inspiração dos Beatles, e revela sua pureza em Mata Virgem 35: Você é um pé de planta/ Que só dá no interior/ No interior da mata/ Coração do meu amor [...] Qual flor de uma estação/ Botão fechado eu sou/ Se amadurecendo/ Pra se abrir pro meu amor [...] Úmida de orvalho/ Que o sol não enxugou/ Você é mata 33 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 190-191). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 234). 35 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 235). 34 61 virgem/ Pela qual ninguém passou/ É capinzal noturno/ Escuro e denso protetor/ De um lago leve e morno/ Teu oásis seu amor. O disco Krig-Ha, Bandolo!, lançado pela Philips em 1973, considerado pela crítica seu melhor álbum, abriga três canções sobre o tema: A Hora do Trem Passar 36, As Minas do Rei Salomão e Cachorro Urubu. A primeira traz o amor romântico em meio aos desencontros: [...] Onde eu passo agora não consigo te encontrar/ Ou você já esteve aqui ou nunca vai estar/ Tudo já passou, o trem passou, o barco vai/ Isso é tão estranho que eu nem sei como explicar/ Diga, meu amor, pois eu preciso escolher/ Apagar as luzes, ficar perto de você/ Vou aproveitar a solidão do amanhecer/ Pra ver tudo aquilo que eu tenho que saber. As Minas do Rei Salomão 37, em parceria com Paulo Coelho, também aborda o tema: “Entra e vem correndo para mim/ Meu princípio já chegou ao fim/ E o que me resta agora é o seu amor...”. Cachorro Urubu 38, que conta com a mesma parceria, remete ao diálogo com o movimento jovem da contracultura: Todo jornal que eu leio/ Me diz que a gente já era/ Que já não é mais primavera/ Ô baby, a gente ainda nem começou/ Baby, o que houve na trança/ Vai mudar nossa dança/ Sempre a mesma batalha/ Por um cigarro de palha/ navio de cruzar deserto. Em ritmo alegre, Coisas do Coração 39, composta com Kika Seixas e Cláudio Roberto e lançada em 1983, no álbum Raul Seixas, expressa a reciprocidade do sentimento compartilhado entre duas pessoas: [...] Eu vou poder pegar em sua mão/ Falar de coisas que eu não disse ainda não/ Coisas do coração!/ Coisas do coração!/ Quando a gente se tornar rima perfeita/ E assim virarmos de repente uma palavra só/ Igual a um nó que nunca se desfaz/ Famintos um do outro como canibais/ Paixão e nada mais!/ Paixão e nada mais!/ Somos a resposta exata do que a gente perguntou/ Entregues num abraço que sufoca o próprio amor/ Cada um de nós é o resultado da união/ De duas mãos coladas numa mesma oração! Sua série sobre o tema traz as letras românticas, como Ângela, composta com Cláudio Roberto para as esposas de ambos, cujos nomes coincidiam, e Tu és o MDC da Minha Vida, em parceria com Paulo Coelho, chegando até o sentimento abnegado de Mas I Love You 40: 36 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 232-233). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 146). 38 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 152-153). 39 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 265). 40 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 286-287). 37 62 O que é que cê quer/ Que eu largo isso aqui/ É só me pedir/ Eu largo o que sou/ Vou ser zelador de um prédio qualquer [...] Mas diga o que cê quer/ Se acaso não quiser/ Feliz eu serei seu nada/ Mas um nada de amor. Diferente dos demais estilos trabalhados pelo cantor, Tu és o MDC da Minha Vida 41 representa o estudante apaixonado, que sofre ao relembrar as minúcias de um amor vivido; para ele, a exposição de seu sentimento entre os colegas beira as raias da breguice, mas, após sofrer uma alucinação, conduz a narrativa ao desfecho quando decide anunciar seu amor publicamente. Elogiada pelo jornalista Pedro Bial no filme Raul: O Início, o Fim e O Meio, por sua força poética, a música, longa e marcadamente narrada, é motivo de grande apreço entre os fãs. Entoada vigorosamente nos encontros em homenagem ao artista, continua pouco lembrada pelo público em geral. Tu és o grande amor da minha vida/ Pois você é minha querida/ E por você eu sinto calor/ Aquele teu chaveiro escrito love/ Ainda hoje me comove/ Me causando imensa dor/ Eu me lembro/ Do dia em que você entrou num bode/ Quebrou minha vitrola e minha coleção de Pink Floyd/ Eu sei que eu não vou ficar aqui sozinho/ Pois eu sei que existe um careta, um careta em meu caminho/ Ah! Nada me interessa nesse instante/ Nem o Flávio Cavalcanti/ Que ao teu lado eu curtia na TV/ Nesta sala hoje eu peço arrego/ Não tenho paz nem tenho sossego/ Hoje eu vivo somente a sofrer/ E até o filme que eu vejo em cartaz/ Conta nossa história e por isso eu sofro muito mais/ Eu sei que dia a dia aumenta o meu desejo/ E não tem Pepsi-Cola que sacie/ A delícia dos teus beijos/ Ah! Quando eu me declarava, você ria/ E no auge da minha agonia/ Eu lhe citava Shakespeare/ Não posso sentir cheiro de lasanha/ Me lembro logo das Casas da Banha/ Onde íamos nos divertir/ Eh! Hoje o meu Sansui - Garrard - Gradiente/ Só toca mesmo embalo quente/ Pra lembrar do teu calor/ Então, eu vou ter com a moçada lá no Pier/ Mas pra eles é careta/ Se alguém, se alguém fala de amor/ Na faculdade de Agronomia/ Numa aula de energia/ Bem em frente ao professor/ Eu tive um chilique desgraçado/ Eu vi você surgindo ao meu lado/ No caderno do colega Nestor/ Por isso, é por isso que de agora em diante/ Pelos cinco mil auto-falantes/ Eu vou mandar berrar o dia inteiro/ Que você é/ O meu Máximo/ Denominador/ Comum. Inspirado no misticismo de Crowley, Raul compôs dois de seus maiores sucessos sobre o tema, A Maçã, Medo da Chuva e, em inglês, Love is Magick. A primeira refere-se ao ritual de libertação das amarras do ciúme proposto por Crowley; a segunda questiona o fato de estar compromissado com uma só pessoa, dialogando com contestações de Max Stirner, e a terceira fala do amor na magia de Crowley, grafada com “K” no final da palavra, para diferenciar das demais. 41 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 187-188). 63 O álbum Raul Seixas, gravado em 1983 pelo estúdio Eldorado, trouxe o animado xote Quero Mais 42, composto por Raul Seixas, Kika Seixas e Cláudio Roberto e interpretado por Raul e Wanderléa, com suspiros e gemidos acompanhando o ritmo: Ai! Ai! Ai!/ Eu quero é muito mais/ Eu quero mais, muito mais dessa brincadeira/ Se enrolando na esteira/ Coisa boa de brincar/ Eu sou que nem um vira-lata vagabundo/ Que o maior prazer do mundo é ter você pra farejar... A eroticidade de Pagando Brabo 43 encontra sua expressão não apenas na letra mas também no ritmo dinâmico produzido em estúdio, com destacados efeitos sonoros acompanhando o enredo: Eu quero é ver você mexer às quatro e meia da manhã/ Com a cara linda de dormir/ Se espreguiçando no divã [...] Eu e tu fazendo yoga no chuveiro [...] Eu quero é ver você pedir/ Querendo mais quando acabar/ Eu quero é ver você sentir/ Vontade de me machucar. Para finalizar o ciclo da temática amorosa em seu trabalho, citaremos suas canções de maior comicidade sobre o tema: A primeira é Fazendo o que o Diabo Gosta 44: Casamos num motel/ Bem longe do altar [...] Não fui o seu primeiro/ Você já tinha estrada/ Dois filhos, um travesseiro e a empregada/ Um anjo embriagado/ Num disco voador/ Jurou que o nosso amor era pecado/ Mas a história mostra que a gente agrada Deus/ Fazendo o que o diabo gosta. E, por fim, sua narrativa cômica sobre o relacionamento entre uma garota de programa e um namorado que apela para ela deixar a profissão. Entitulada Babilina45, a música é sua versão para Be Bop a Lena, de Gene Vincent: Babilina, Babilina/ saia do bordel [...] Eu quero exclusividade do teu amor/ Cutis cubidu-bilina por favor!/ Eu tava seco a muito tempo quando eu lhe conheci/ Provei do seu chamego e nunca mais me esqueci/ A noite cê trabalha diz que é pra me sustentar [...] Quando cê chega com a bolsa entupida de tutu/ Imagino quanta gente se deu bem no meu baú/ Você me garante que não sente nada não/ E que só comigo você tem satisfação [...] She is my girl, and I Love her so/ I sad Cutis-cubidu-bilina go girl go! (Ela é minha garota, e eu a amo/ Eu disse Cutis-cubidu-bilina vai garota vai!). Temos, assim: desde o amor sublime ao desejo ardente e a comicidade, dentro da concepção barroca que viemos estabelecendo no trabalho. 42 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 268-269). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 235-236). 44 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 309). 45 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 274-275). 43 64 2.6.4 As Críticas Sociais Em meio à diversidade de temas que o cantor desenvolveu, as críticas sociais foram a linha condutora de seu trabalho de conscientização social. Tanto em seus diários quanto nas canções, termos como a “arapuca” e “cutucar” o sistema se fazem presentes para referir-se ao stablishment, assim como a expressão “buraco de ratos”, relativa às transações de interação com o mesmo. A entrevista ao jornal Canja, em outubro de 1980, concedida ao repórter Ricardo Porto de Almeida, transcrita a seguir, apresenta a ideia de “cutucar” o sistema vigente, como a agulha que o espeta para que haja conscientização e atitude na direção de uma humanização de valores. Cita, ainda, o desarmar da “arapuca do sistema”, referindo-se a jogos de interesse e poder; e, por fim, a expressão “jogo de xadrez”, como a interação cuidadosa que se deve ter com o sistema. Tais expressões aparecem em sua música As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor e em Loteria Babilônica, que tomam a mesma direção da entrevista. Nessa entrevista, a primeira pergunta é a respeito da obra 666 idealizada por Raul; e as demais, que seguem na mesma linha ideológica, são sobre o disco Abre-te-Sésamo, cujo tema é a anistia política brasileira concedida pelo governo militar em 1979: [...] – No Opus 666 há esse critério, e dentro desses critérios eu vou cobrando cada um, cada compartimento. O conceito da psicologia é completamente modificado. A lei trabalhista é completamente modificada, justamente porque o trabalho não dá trabalho e a gente ganharia dinheiro fazendo o que gosta. – Seria o estabelecimento de uma nova ordem? – Não, a nova ordem já está vigente, entende? Dentro do peito de cada um ela já existe, dentro de mim, de você, de quem for ler isto aqui. A gente está com o saco cheio de lei trabalhista. Quem é que está satisfeito trabalhando para alguém? Mas puta-que-pariu, vamos sempre servir alguém? Então vamos servir alguém sabendo, jogando o jogo do rato dentro da armadilha dele, sabendo mexer com os palitos. Eu vou dizer: seremos a agulha que vai enfiar no calcanhar de Aquiles que existe na nossa civilização, que está completamente destruída. Mas a gente continua indo ao banco, quando tudo já está por água abaixo. – Em Abre-te Sésamo, o disco que você está lançando agora, você confirma tudo isso, não é? – É isso. Em abre-te Sésamo está presente essa agulha incisiva que penetra no calcanhar de Aquiles do sistema, entendeu? [...] – Você então pretende desmistificar essa falsa felicidade? – Abre-te Sésamo mostra uma abertura mentirosa. E todo mundo continua indo ao banco, continua com perguntas intelectualóides, continua criando valores falsos, que não existem mais. [...] – Vou gravar o Opus 666. Passo seis meses aqui e seis meses lá nos Estados Unidos, gravo em Los Angeles, que é onde fica o estúdio (...) Pra desarmar a arapuca tem-se de entrar dentro dela, está me entendendo? – Isto requer muita habilidade, você não acha? 65 – Aprender o jogo de xadrez e aproveitar o microfone? Qual é o nosso microfone? O nosso microfone é a Columbia Broadcasting System, certo? Então vamos aprender a desarmá-lo e armá-lo da maneira que nós queremos. [...] (PASSOS, 1993, p. 117-122). A ideia presente na última frase do trecho apresentado, que consiste em entender a interação com o sistema como um jogo, no qual a atitude mais acertada seria reverter a jogada em favor próprio, é uma força de resistência ideológica constante em seu trabalho. Falando do naufrágio da revolução musical como movimento, ele vai usar outra de suas expressões: o “buraco de rato” no qual se deve entrar para interagir com o sistema, expressão presente em sua sátira As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor. Em entrevista a Sônia Maia, da Revista Bizz: Bizz – Tem esse escrito seu que eu consegui com o Sylvio, e que achei muito interessante: “Duas palavras sobre a Revolução Pop”. Quando você escreveu isso? Fale um pouco do que está dito aí. Raul – Olha! legal isso! Isso está ligado justamente ao que Mick Jagger conversou comigo. Foi mais ou menos na mesma época. Escrevi para o meu pai, nem sei se ele chegou a ler... a mudança em todos os meios de comunicação. Eu digo isso numa música chamada A Verdade Sobre a Nostalgia, do disco Novo Aeon: “Mamãe já ouve Beatles, papai já deslumbrou. Com meu cabelo grande, eu fiquei contra o que eu já sou”. Não é isso?! É o seguinte: essa coisa, esse movimento todo, foi por água abaixo, porque o sistema se utilizou disso e os jovens não notaram que estavam comprando roupa hippie; como os punk, estão raspando a cabeça e comprando músicas que o sistema está comercializando. Não é assim que se entra. Tem que entrar em buraco de rato, e rato você tem de transar. Mas transar conscientemente – jogar com dinheiro, com valores que debitam em você, mas sabendo. Não como esses conjuntos que a Globo faz, que são meteoros e são “sucumbidos”. Eles não têm consciência da estrutura, não têm uma estrutura básica formada, uma visão ideológica, ontológica e metafísica do mundo circundante. Esse é o grande erro a meu ver. (PASSOS, 1993, p. 142-144). Nesse trecho, ele ressalta a importância de se ter uma visão ideológica, ontológica e metafísica do mundo ao redor para se fazer um movimento no contrafluxo do funcionamento do sistema, explicando que este utilizou as vanguardas contra-hegemônicas juvenis a seu favor sem que os jovens percebessem. Na linha de contestação política, Raul fez Abre-te Sésamo 46 em parceria com Cláudio Roberto, lançada em LP homônimo em 1980, em homenagem à anistia política: Lá vou eu de novo/ Um tanto assustado/ Com Ali-Babá e os 40 ladrões/ Já não querem nada com a pátria amada/ E cada dia mais/ Enchendo os meus botões/ Lá vou eu de novo/ Brasileiro nato/ Se eu não morro eu mato/ Essa desnutrição/ Minha teimosia braba de guerreiro/ É que me faz o primeiro dessa procissão/ Fecha a porta!/ Abre a 46 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 250). 66 porta!/ Abre-te Sésamo!/ E vamos nós de novo/ Vamos na gangorra/ No meio da zorra/ Desse vai-e-vem/ É tudo mentira/ Quem vai nessa pira/ Atrás do tesouro do Alibem-bem/ Fecha a porta!/ Abre a porta!/ Abre-te Sésamo! Em Aluga-se 47, outra parceria com Cláudio Roberto, Raul satiriza o momento econômico brasileiro de 1979, com a dívida externa resultante do milagre econômico, propondo alugar o Brasil para saná-la: A solução pro nosso povo eu vou dar/ Negócio bom assim ninguém nunca viu/ Tá tudo pronto aqui/ É só vir pegar/ A solução é alugar o Brasil!/ Nós não vamos pagar nada/ Nós não vamos pagar nada/ É tudo free, ta na hora/ Agora é free, vamos embora/ Dar lugar pros gringos entrar/ Esse imóvel tá pra alugar/ Os estrangeiros, eu sei que eles vão gostar/ Tem o Atlântico, tem vista pro mar/ A Amazônia é o jardim do quintal/ E o dólar deles paga o nosso mingau. Raul satiriza o descaso do governo para com a miséria, impostos altos e a falta de instrução, em Não Fosse o Cabral 48: Tudo aqui me falta/ A taxa é muito alta/ Dane-se quem não gostar/ Miséria é supérfluo/ O resto é que tá certo/ Assovia que é prá disfarçar.../ Falta de cultura/ Ninguém chega à sua altura/ Ó Deus!/ Não fosse o Cabral/ Por fora é só filó/ Dentro é mulambo só/ E o Cristo já não guenta mais/ Cheira fecaloma/ E canta La Paloma/ Deixa meu nariz em paz/ Falta de cultura/ Ninguém chega à sua altura/ Ó Deus!/ Não fosse o Cabral/ E dá-lhe ignorância/ Em toda circunstância/ Não tenho de quem me orgulhar/ Nós não temos história/ É uma vida sem vitórias/ Eu duvido que isso vai mudar.../ Falta de cultura/ Prá cuspir na estrutura/ E que culpa tem Cabral? As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor 49 é uma de suas críticas que melhor representam sua habitual bricolage de pensamentos diversos. A disposição de assuntos diferentes como em um mosaico, para reforçar um conceito, é uma das características da mestiçagem em seu trabalho. Na primeira estrofe, coloca os detentores do poder como carrascos e vítimas do mecanismo criado por eles: “Tá rebocado meu compadre/ Como os donos do mundo piraram/ Eles já são carrascos e vítimas/ Do próprio mecanismo que criaram”. Na segunda, um alerta para as armadilhas do stablishment que quer interagir com ele: “O monstro SIST (sistema) é retado/ E tá doido pra transar comigo/ E sempre que você dorme de touca/ Ele fatura em cima do inimigo”. Na terceira parte, refere-se à armadilha do sistema: “A arapuca está armada/ E não adianta de fora protestar”; e diz que, para adentrá-la, faz-se necessário interagir: “Quando se quer entrar num buraco de rato/ De rato você tem que transar”. 47 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 251). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 267-268). 49 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 162-163). 48 67 A quarta fala da exploração do homem sobre o planeta: “Buliram muito com o planeta/ E o planeta como um cachorro eu vejo”, e da reação da natureza em provocar desastres naturais para reequilibrar o ecosistema, onde o homem metaforicamente aparece como pulga, e o desastre natural como sacolejo: “Se ele já não aguenta mais as pulgas/ Se livra delas num sacolejo”. A quinta critica a estereotipia em que caíram os movimentos contra-hegemônicos: “Hoje a gente já nem sabe/ De que lado estão certos cabeludos/ Tipo estereotipado/ Se é da direita ou dá traseira/ Não se sabe mais lá de que lado”. Na sexta, ressalta seu caráter alerta: “Eu que sou vivo pra cachorro/ No que eu estou longe eu tô perto/ Se eu não estiver com Deus, meu filho/ Eu estou sempre aqui com o olho aberto. A sétima satiriza o estágio tecnológico alcançado pela humanidade e a fragilidade de seu invento: “A civilização se tornou complicada/ Que ficou tão frágil como um computador/ Que se uma criança descobrir o calcanhar de Aquiles/ Com um só palito pára o motor”. A oitava indica que a solução de um problema exige sanar a causa: “Tem gente que passa a vida inteira/ Travando a inútil luta com os galhos/ Sem saber que é lá no tronco/ Que está o coringa do baralho”. A nona faz uma crítica ao sensacionalismo midiático e abriga o mistério de seu posterior falecimento em data próxima a um eclipse raro: “Quando eu compus fiz Ouro de Tolo/ Uns imbecis me chamaram de profeta do apocalipse”, desabafo relativo ao fato ter sido chamado pela imprensa de profeta do apocalipse quando lançou esta música. Seguido de: “Mas eles só vão entender o que eu falei/ No esperado dia do eclipse”. Na décima, esclarece sua isenção na evolução da música popular brasileira: “Acredite que eu não tenho nada a ver/ Com a linha evolutiva da Música Popular Brasileira/ A única linha que eu conheço/ É a linha de empinar uma bandeira”. A décima primeira narra sua trajetória em busca da verdade, acrescida do fato de que, aos onze anos, já era interessado em filosofia: “Eu já passei por todas as religiões/ Filosofias, políticas e lutas/ Aos 11 anos de idade eu já desconfiava/ Da verdade absoluta”. Na décima segunda, finaliza seu recado esclarecendo que o artista Raul Seixas e o homem Raulzito eram indissociáveis: “Raul Seixas e Raulzito/ Sempre foram o mesmo homem”; e que, para lidar com o sistema, interagiu com Deus e com o lado escuro: “Mas pra jogar o jogo dos ratos transou com Deus e com o lobisomem”. 68 2.6.4.1 Ouro de Tolo Ouro de Tolo foi sua crítica social de maior sucesso, lançada quando Raul ainda era um artista desconhecido para o grande público. Surpreendeu pela autenticidade e simplicidade de seu contexto narrativo. Em 1973, Raul saiu às ruas do centro do Rio de Janeiro, com seu violão, cantando Ouro de Tolo, fazendo seu lançamento em meio ao povo. “Não adianta dizer as coisas para grupos pequenos, fechados. Minha música entra em todas as estruturas.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 59). Figura 5 - Foto de Raul cantando Ouro de Tolo na Av. Rio Branco, Rio de Janeiro - 1973 Fonte: <http://www.revistadehistoria.com.br>. Acesso em: 10 jan. 2012 A música autobiográfica narra a trajetória de um sujeito inconformado que, embora tenha conseguido bom emprego e sucesso após passar fome na “cidade maravilhosa”, sente-se entediado e com coisas grandes para conquistar – referência ao seu penoso percurso rumo ao sucesso entre os anos de 1967 e 1969. A respeito desta fase, ele escreveu em seu diário, em 1981: Hoje vivi intensamente os dias de Raulzito e seus Panteras no Rio, passando fome com um disco debaixo do braço. Gravava por sede de cantar, indo sempre a pé do Leblon até a avenida Rio Branco. Tinha um “buteco” que eu comia mais barato; quando comia!! Perdi a conta das vezes que olhei vitrine de padaria. Os programadores de rádio cuspindo no meu disco. Com fome olhando as vitrines de doce. Hoje eu me lembrei disso. Estou arrasado. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 45). 69 Traduzindo os sentimentos que os brasileiros estavam experimentando com a estabilidade do “milagre econômico” proposto pelo governo, seguidos da desconfiança de que havia algo rumo à realização pessoal a ser buscado, a melodia despretensiosa é acompanhada com voz narrada em linguagem popular, que começa com “Eu devia estar contente”, e o público prontamente se identificou. Em muitas de suas composições, o processo de identificação é facilitado pela escolha da flexão verbal: quem fala em primeira pessoa do singular automaticamente fala de si. Em entrevista à revista Pop, concedida a Carlos Caramez em 1975, Raul fala sobre a importância do uso do verbo “ser” e do pronome “eu” para a tomada de consciência do respeito a si e aos demais: Raul Seixas - A verdade é prenúncio de um momento, o caos é prenúncio de um momento. Quando eu digo que sou a luz das estrelas, não estou falando de mim. O pedreiro lá da frente de casa, que está construindo um edifício, canta essa música como se fosse ele. Isso porque nós somos o verbo ser. Sendo o que você tem a vontade de ser, não existe mais nada. Nós somos, e está acabado. Tudo é. Então, o eu é fortíssimo. Você tem que ter primeiro a consciência do eu para poder respeitar terceiros e então fazer o que você quer, que é tudo da lei, da sua lei. (PASSOS, 1993, p. 107). Em seu diário, encontra-se um poema com o final relacionado a Ouro de Tolo: Sala de espera [...] O jornal Sangrento Oleoso, Untado Vende-se no açougue Sangue de fato Fato de sangue nas paredes do Hotel do Sossego Nas cercas embandeiradas que separam quintais Nas cabeças ornamentadas de penicos de metais No peito entupido o estilhaço de aço bagaço De gente junta Trincheiras abertas em bocas fechadas A Bolha toma vulto Arrolha a rolha O gargalo Pressão Prisão Sobe não pára Dispara o elevador eterno às nuvens... o caos 70 ...e no cume calmo no meu olho que vê assenta a sombra sonora dum disco voador. (SEIXAS, Raul, 1983, p. 47-48). Em um trecho da entrevista ao jornal O Pasquim, em novembro de 1973, Raul fala a respeito da aceitação de seu trabalho entre as diversas classes sociais e a exemplifica citando Ouro de Tolo: O Pasquim - Basicamente que público você acha que atinge? Raul Seixas - Todas as classes sociais. Isso é que é bom. Sabe por quê? Eles assimilaram Ouro de Tolo dentro de níveis diferentes, mas no fundo era a mesma coisa. O intelectual recebia de uma maneira. O operário, de outra. Lá em casa tá acontecendo uma coisa muito engraçada. Atrás do edifício estão construindo um outro edifício enorme, então os operários cantam o dia inteiro Ouro de Tolo, com versos que eles adaptam para a realidade deles. Eles transformam os versos, dizem: “Eu devia estar feliz porque eu ganho vinte cruzeiros por dia e o engenheiro desgraçado aí...” Eu ouço o dia inteiro eles cantando isso aí. E as cartas que eu recebi da revista POP, que fez uma transação aí, negócio de diga o que você acha da música “Ouro de Tolo”. Veio do Brasil inteiro. Fantásticas aquelas cartas, eu guardo um monte. Eu li essas cartas todas. Todo mundo entendeu, dentro de uma conotação própria, dentro de um nível diferente. Porque existem vários níveis. Eu achei fantástico isso. Quer dizer tá funcionando. (PASSOS, 1993, p. 103, grifo do autor). A melodia simples em estilo folk, em que se sobressai o violão acompanhado da narração, lembrava, para alguns, as canções de Bob Dylan. A esse respeito, Raul falou: O Pasquim - Você falou sobre Caetano e Gil, falou sobre John Lennon. E a sua influência do Bob Dylan? Raul Seixas - Isso é engraçado, todo mundo fala sobre esse negócio do Bob Dylan. Eu gosto de Dylan, mas não foi uma coisa tão marcante. Não me marcou muito não. O Pasquim - Ouro de Tolo, e também essa música que você fez com letra em inglês. Aí tem uma influência? Raul Seixas - A letra de Ouro de Tolo saiu antes que a música. Veio a letra primeiro. Eu só podia dizer aquela monstruosidade de letra quase só falando. Então calhou. Aquela coisa de Dylan, falada, calhou. (PASSOS, 1993, p. 102). Ouro de Tolo projetou-o como artista de sucesso nacional, e o compacto lançado pela Polyfar precisou ser prensado duas vezes na mesma semana, pelo excesso de vendas. Posteriormente, Raul gravou-a também em castelhano e em inglês, com o título Fool’s Gold. Ouro de Tolo 50 (Raul Seixas) Eu devia estar contente/ Porque eu tenho um emprego/ Sou o dito cidadão respeitável/ E ganho quatro mil cruzeiros por mês/ Eu devia agradecer ao senhor por ter tido 50 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 153-155). 71 sucesso na vida como artista/ Eu devia estar feliz porque/ Consegui comprar um Corcel 73/ Eu devia estar alegre e satisfeito/ Por morar em Ipanema/ Depois de ter passado fome por dois anos/ Aqui na Cidade Maravilhosa/ Eu devia estar sorrindo e orgulhoso/ Por ter finalmente vencido na vida/ Mas eu acho isto uma grande piada/ E um tanto quanto perigosa/ Eu devia estar contente por ter conseguido tudo que eu quis/ Mas confesso abestalhado/ Que eu estou decepcionado/ Porque foi tão fácil conseguir/ E agora eu me pergunto: E daí?/ E tenho uma porção de coisas grandes/ Pra conquistar, eu não posso ficar aí parado/ Eu devia estar feliz pelo Senhor/ Ter me concedido o domingo/ Pra ir com a família ao jardim zoológico/ Dar pipocas aos macacos/ Ah, mas que sujeito chato sou eu/ Que não acha nada engraçado/ Macaco, praia, carro, jornal, tobogã/ Eu acho tudo isso um saco/ É você se olhar no espelho/ Se sentir um grandessíssimo idiota/ Saber que é humano, ridículo/ Limitado, e que só usa dez por cento de sua cabeça-animal/ E você ainda acredita que é um doutor/ Padre ou policial/ E que está contribuindo com sua parte/ Para o nosso belo quadro social/ Eu é que não me sento no trono de um apartamento/ Com a boca escancarada/ Cheia de dentes, esperando a morte chegar/ Porque longe das cercas embandeiradas/ Que separam quintais/ No cume calmo do meu olho que vê/ Assenta a sombra sonora/ Dum disco voador. 2.7 Trajetória Midiática e LPs Raul iniciou seu percurso na mídia em 1968, ao gravar seu primeiro LP, Raulzito e Os Panteras, embora sua vivência nos ambientes midiáticos tenha se dado apenas três anos mais tarde, ao trabalhar como produtor da CBS em 1971. No transcorrer de 1971, esteve imerso no aparato tecnológico de uma grande gravadora, compondo e produzindo mais de oitenta músicas para artistas brasileiros. Em seu cargo, ele não apenas analisou o sistema da produção musical e a reação pública aos discos lançados no mercado, como aprendeu a fazer música de comunicação simples e direta com o público. No ano seguinte, se lançaria em sua carreira solo, experimentando a reação popular e midiática incidindo diretamente sobre sua música. Conforme ele comentou em seu diário em 1980, seu percurso na mídia foi tão abrangente quanto conturbado: Fiz-me cantor e compositor em 1973. Discutido, polêmico, maldito, o “demolidor solitário”, segundo os críticos. Através da música expunha meu ponto de vista sobre a humanidade. Em 1974, com a ordem de prisão do 1º Exército, fui detido e deportado para a América, acusado de subversão contra a ditadura Geisel. Após desistir de “tomar” a RCA Victor brasileira, fui concebido paxá da Rede Globo de Televisão. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 63). Em sua oscilante relação com as mídias, vivenciou um ciclo repetitivo de alternância entre a exposição prestigiosa no horário nobre televisivo, acompanhada das rádios e 72 gravadoras, e o abandono. Havia tempos em que suas criações eram automaticamente vendáveis, dada a comicidade dos personagens ou sua aceitação midiática, mas houve a noite escura dos anos difíceis em que percorreu gravadoras em busca de uma oportunidade, mesmo com comprovado sucesso anterior. Nessas épocas, não o tocavam nas emissoras de rádio, e sua obra não era mencionada pela televisão ou jornal, e, por longos meses, uma espécie de contra-ação midiática não lhe permitia sair da obscuridade até que alguém inesperadamente aceitasse gravar seu LP, ou noticiá-lo novamente. Em 1982, escreveu em suas anotações pessoais: Há quatro anos que venho engolindo meus sentimentos, minha arte, minhas emoções. Tem sido assustador!! Estou profundamente magoado por não ouvir minhas músicas tocando nas rádios, nem ser chamado para programas de televisão. Eles me esqueceram. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 47). Se o desabafo do trecho acima ocorreu em 1982, no ano seguinte o lançamento concomitante de seu livro As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor e do LP O Carimbador Maluco foi de grande repercussão, e a música-título colocou-o no topo do sucesso no Brasil novamente. No panorama musical, ele não se enquadrou em quaisquer das linhas disponíveis na época. Eu não pertenço a grupo nenhum. Eu não pertenço ao grupo baiano, nunca pertenci, acho que sou estrangeiro nele. Nem queria pertencer. São uns caras muito esquisitos (risos). Esquisitos mesmo. Eles não me querem; eu não os quero. Eu sou eu mesmo, o do raulseixismo, faço uma linha mais individualista. Não o individualismo no sentido egoísta. Não. É bonito dizer: “Seja!” E mais: “Faça o que tu queres que será da lei. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 137) Historicamente, Raul construiu sua obra em meio às pressões políticas atravessadas pelos países da América Latina por conta dos regimes militares, entre eles o Brasil. Seguindo a tendência característica do surgimento de esforços libertários em períodos de fechamento político, sua postura e desenvolvimento artístico tomam essa direção. Sua produção midiática mais importante foi toda em formato de long play (LP). Pensado como uma obra conceitual em que todas as músicas tinham uma conexão temática, sua prioridade era a mensagem a ser passada ao público, o que exigia todo o tempo e esforços do artista. Seu primeiro LP, lançado em 1968 pela gravadora Odeon com o nome de sua banda, Raulzito e os Panteras, não obteve vendas. A banda, composta por Eládio, Mariano, Raul e 73 Carleba, não era conhecida no Rio de Janeiro, onde o disco foi lançado, como o era na Bahia, e o insucesso do disco acarretou o fim do conjunto. Com o passar dos anos, o disco foi relançado, adquirindo um valor especial. A capa original traz a foto dos quatro rapazes usando o corte de cabelo dos Beatles. Raul participou de todas as músicas do álbum, compôs Vera Verinha com Eládio; Alice Maria e Me Deixa em Paz, com Eládio e Mariano. Em O Dorminhoco, Carleba também participa, além de Eládio e Mariano. Raul ainda realizou sozinho as composições de: Um Minuto Mais, Você Ainda Pode Sonhar (versão para Lucy in The Sky Whith Diamonds, dos Beatles), Menina de Amaralina, Dê-me Tua Mão e Trem 103. O álbum tem o que Raul chamou de hermetismo, sua fase de pouco poder comunicacional, comparada ao restante de sua carreira. Em 1971, Raul compôs um álbum anárquico, com seus amigos Edy Star, Miriam Batucada e Sérgio Sampaio, chamado Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, lançado no mesmo ano pela gravadora CBS, onde ele trabalhava como produtor. O LP, que sumiu misteriosamente do mercado, tem na capa Miriam vestida de super-homem, Raul fantasiado de hippie, Edy com paletó lantejoulado e faixa de escola de samba, e Sérgio com camisa de time de futebol. Esse álbum traz a relação de diversos elementos musicais e mesmo culturais. Foi feito por quatro amigos como ato de diversão, escondido do diretor da gravadora, de modo que se desvencilhou das regras mercadológicas da indústria fonográfica. O trabalho reúne bolero, samba, baião e xaxado, em tom de humor. Raul mandou trazer uma harpa egípcia de São Paulo para o Rio de Janeiro, por caminhão, para dar um único acorde. Sessão das Dez 51 começa com a voz de Edy Star apresentando: “A nossa homenagem aos boêmios da velha guarda”. Então, tem início o bolero, que traz a tragédia de um rompimento amoroso, com um tom de comicidade dado tanto pela letra quanto pela entonação vocal de Raul: Ao chegar do interior/ Inocente puro e besta/ Fui morar em Ipanema/ Ver teatro e ver cinema/ Era minha distração/ Foi numa sessão das dez/ Que você me apareceu/ Me ofereceu pipoca/ Eu aceitei e logo em troca/ Eu contigo me casei/ Curtiu com meu corpo por mais de dez anos [...]/ Foi tamanho o desengano que o cinema incendiou. A canção finaliza com o apresentador dizendo: “Foi demais rapaz, aliás, esta seresta está demais”. O samba Eu Acho Graça, na voz de Raul em tom malandro: “Ah, vou te contar contigo eu to [...] O tempo todo eu to contigo/ Sigo na jogada/ Eu não to com nada [...] Passo 51 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 131). 74 pela praça e acho graça/ Falam mal de mim eu acho graça/ Todo tempo ido ta contido na manhã”. Segue uma vinheta cômica de Miriam Batucada, que finaliza em coro: “Há um hippie bem no meu portão, no meu portão, no meu portão, há um hippie bem no meu portão, no meu portão!”. A carnavalesca Eu Vou Botar Pra Ferver 52, com trechos alternados entre Raul e Sérgio Sampaio, tem como introdução um diálogo, acompanhado de uma musiquinha dos anos 1960 entre os dois: Ih, rapaz, hoje eu vi meu ídolo da juventude. – Essas coisas já não me assustam mais, as laranjas continuam verdes e... – I cara espera aí, não complica, eu disse que eu vi meu ídolo da juventude. – Ei amigo, desse jeito os discos-voadores nunca irão pousar. E, então, tem início um animado baião: Eu vou botar pra ferver no carnaval que passou [...] Quero ver o sol fervendo no salão entediado/ Quero ver as menininhas/ No salão desarrumado [...] Quero ver muitas cadeiras/ No salão desarrumado/ Quero ver por quatro noites no salão partido alto... Segue uma vinheta cômica com um telefonema: “Alô” “Oi, é Jorginho Manil, é verdade que agora você é hippie? Ao que responde um coro perturbador, com guitarra ao fundo: “Podes crê, podes crê, Podes crê, podes crê”. Soul Tabarôa é um xaxado com a introdução: “Eu vou dançar o soul musis” (em lugar de music); e começa a música, na voz de Miriam Batucada: “Eu vou sentir saudade, bate chinelo, bate pé, bate gibão”. Então, surge outra vinheta, que comicamente diz: “Está no ar? Estamos aqui em plena Cinelândia gravando um programa para Brasa Viva, vamos entrevistar um presente: Ei, é, você aí, qual o tipo de música que você prefere melodiosa ou barulhenta?”, ao que uma voz cômica responde: “Barulhenta né, eu sou jovem”. Todo Mundo Está Feliz é cantada por Sérgio Sampaio, com refrão em coro feminino. Dr. Paxeco 53 tem a introdução: “Ah”, de Raul. Então, entra Edy Star, com a voz em efeito distorcido e barulho de gotas caindo ao fundo: “Lá vai nosso herói Dr. Paxeco, com sua careca inconfundível, a gravata e o paletó, lá vai nosso herói Dr. Paxeco, misturando-se às pessoas que o fizeram”; e, só então, começa a música crítica ao sistema, na voz propositalmente aveludada e suave de Raul. 52 53 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 131). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 134-135). 75 Quero Ir 54 tem baião, com trechos alternados de rock, é cantada por Raul e Sérgio Sampaio, sobre a vontade de voltar para casa: “O sol daqui é pouco, o ar é quase nada, a rua não tem fim/ Eu volto pra Bahia ou para Cachoeiro do Itapemirim [...] Quero ir/ Quero um pouco espera/ Pela primavera/ Quero ir/ Se eu pensar já era”. A marchinha Eta Vida 55 começa com som de palmas e “Ehhhh”, seguido com áudio de apresentação de circo: “Respeitável público, a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista pede licença para vos apresentar o maior espetáculo da Terra”. Segue com a voz de Raul: “Papapaparapapapapapaparapa”, e entra a música: Moro aqui nesta cidade que é de São Sebastião/ Tem Maracanã domingo/ Pagamento à prestação/ Sol e mar em Ipanema/ Sei que você vai gostar/ Mas não era o que eu queria/ O que eu queria mesmo/ Era me mandar/ Mas eta vida danada/ Eu não entendo mais nada/ É que esta vida pirada/ Eu quero ver/ São Sebastião do Rio/ Tudo aqui é genial/ Na televisão à noite/ Tem cultura e carnaval/ Tem garota propaganda num biquini que é demais/ Mas não era o que eu queria/ O que eu queria mesmo/ Era estar em paz/ Mas eta vida danada/ Eu não entendo mais nada/ É que esta vida pirada/ Eu quero ver. Segue outra vinheta cômica: “Eu comprei uma televisão, à prestação, à prestação, eu comprei uma televisão que distração, que distração”, que termina em coro “Que distração”. Tanto a música quanto a vinheta satirizam as distrações corriqueiras, como a televisão e as propagandas da cidade. Finalizando o disco, há a vinheta Finale, que começa com “Eeeh” em coro, e, então, entra o som da descarga de um vaso sanitário, como ato debochado. Raul compôs apenas Eta Vida e Quero Ir com Sérgio Sampaio, sendo as demais canções: Sessão das Dez, Eu Vou Botar Pra Ferver, Aos Trancos e Barrancos e Dr. Paxeco, de sua única autoria. A respeito do disco, Raul fala: Acho que esse disco foi mais revolta do que qualquer outra coisa [...] Foi um disco delicioso de ser feito. Chamamos o porteiro pra cantar, pegávamos gente na rua pra entrar no coro, uma grande confusão... (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 43). Em 1972, Raul apresenta, no VII Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho, Rio de Janeiro, a música mestiça de rock com baião intitulada Let Me Sing, Let Me Sing, do compacto simples Let Me Sing My Rock’n’Roll, de sua autoria. Em 1973, lançou o compacto simples Ouro de Tolo, que foi prensado duas vezes pela Polyfar, pois as vendas excederam o esperado. No mesmo ano, interpretou os grandes ícones 54 55 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 132-133). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 130). 76 do rock norte-americano, no disco Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock, lançado também pelo selo Polyfar. Ainda em 1973, lançou, pela Philips, Krig-Ha, Bandolo!, seu primeiro álbum solo, considerado pela crítica seu melhor trabalho, com show de lançamento no Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro. Raul compôs com Paulo Coelho as músicas: As Minas do Rei Salomão, A Hora do Trem Passar, Rockixe, Cachorro Urubu, Caroço de Manga e Loteria Babilônica. As demais canções do LP: Mosca na Sopa, Metamorfose Ambulante, Dentadura Postiça, Al Capone, How Could I Know? e Ouro de Tolo são de autoria apenas de Raul. Em setembro do mesmo ano, ele fez seu primeiro show em São Paulo, no Teatro das Nações, no qual distribuiu gibis com o título A Fundação de Krig-Ha, feitos por ele e por Paulo Coelho e ilustrados por Adalgisa Rios, que lhe renderam o exílio. Num ano repleto de compromissos, participou do Festival Phono 73, no Anhembi, em São Paulo, e do show Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e ainda produziu e participou do primeiro LP de seu amigo Sérgio Sampaio. Em 1974, o álbum Gita, lançado pela Philips, vendeu mais de seiscentas mil cópias, rendendo-lhe seu primeiro disco de ouro e o retorno do exílio. Novamente, Raul conta com a parceria de Paulo Coelho nas músicas: Super-Heróis, Medo da Chuva, Água Viva e Gita; em Moleque Maravilhoso, Sociedade Alternativa, em Como Vovó já Dizia, Porque, Se o Rádio Não Toca, Vida à Prestação e Não Pare na Pista. As demais canções que compõem o LP: As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, O Trem das Sete, S.O.S., Prelúdio, Planos de Papel, Murungando e Um Som para Laio, são de autoria exclusiva de Raul. Figura 6 - Raul tocando músicas do álbum Gita - 1974 Fonte: <raulseixaseterno.blogspot.com>. Acesso em: 28 jan. 2012. 77 Naquele ano, gravou os videoclipes de Sociedade Alternativa e Gita, o segundo videoclipe colorido do Brasil, para o Fantástico, o Show da Vida da rede Globo. No auge do sucesso, suas músicas entraram na trilha sonora da novela O Rebu, da mesma emissora, com LP lançado pela Som Livre. Em 1975, Raul recebeu seu primeiro disco de ouro por Gita, participou do Festival Hollywood Rock, no Rio de Janeiro, e gravou ainda o videoclipe da música Trem das Sete para a rede Globo. Ainda nesse ano, lançou o LP Novo Aeon pela gravadora Philips. Em entrevista ao Jornal de Música, em novembro de 1976, ele fala a respeito da vertente individualista do álbum como reflexo de um momento pessoal. O Novo Aeon é o fruto de uma época diferente, quando eu já estava sabendo que o tempo de sofrer havia passado. Ser crucificado como Jesus Cristo é coisa do passado. O Novo Aeon é um momento particularmente meu e por isso tem aquela música Eu Sou Egoísta. Eu acho que o individualismo é muito mais sincero do que as preocupações com a coletividade [...] O Novo Aeon é o disco que traz essa nova maneira de pensar. É o disco do caminho individual. (PASSOS, 1993, p. 110) Contrariando as expectativas, o disco vendeu apenas sessenta mil cópias, dez vezes menos que o anterior. O álbum contou com diversos parceiros musicais: as músicas Rock do Diabo, Tu És o MDC da Minha Vida e A Verdade Sobre a Nostalgia tiveram a parceria de Paulo Coelho; os sucessos Tente Outra Vez e A Maçã foram feitos com Paulo e Marcelo Motta. Eu sou Egoísta e Peixuxa tiveram a participação somente de Marcelo Motta. Caminhos e Caminhos II foram feitas com Paulo Coelho e Eládio Gibraz. Sunseed foi feita com sua esposa Glória Vaquer; e a faixa-título, Novo Aeon, foi composta com Marcelo Motta e Cláudio Roberto. As demais canções do álbum, Para Nóia e É Fim de Mês, foram compostas somente por Raul. Em 1976, o lançamento do LP Há Dez Mil Anos Atrás, pela Philips, rendeu-lhe grande sucesso, recuperando seu bom volume de vendas. A capa chamativa trazia Raul de barba branca, vestido como um sábio ancião, e a surpreendente música-tema agradou prontamente ao público. No LP, a parceria com Paulo Coelho continuaria, em: Canto Para Minha Morte, Meu Amigo Pedro, Ave Maria da Rua, Os Números, Cantiga de Ninar, Eu Também Vou Reclamar, O Homem, e Eu Nasci Há 10 Mil Anos Atrás. Quando Você Crescer foi feita com Paulo Coelho e Gay Vaquer. O Dia da Saudade foi composta apenas com este último, e Love is Magick, com Glória Vaquer. 78 Em 1977, lançou O Dia em que a Terra Parou, pela recém-fundada WEA 56, trazendo Maluco Beleza, uma homenagem aos grandes iluminados, como Jesus Cristo e Mahatma Gandhi, que conquistou imediatamente o apreço popular e acabou por carinhosamente rotulálo. Gilberto Gil participou com arranjo e violão na faixa Que Luz é Essa? Cláudio Roberto fez parceria com Raul em todas as músicas do álbum: Tapanacara, Maluco Beleza, O Dia em que a Terra Parou, No Fundo do Quintal da Escola, Eu Quero Mesmo, Sapato 36, Você, Sim, Que Luz é Essa? e De Cabeça Pra Baixo. Raul fez o show de lançamento do disco no Teatro Bandeirantes, em São Paulo, gravou o videoclipe de Maluco Beleza para a Rede Globo e a gravadora Fontana/Phonogram, e lançou o LP Raul Rock Seixas, com um material de gravações em estúdio. Em 1978, fez quatro dias de show com O Dia em que a Terra Parou, no Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro. Ainda em 1978, lançou o LP Mata Virgem, pela WEA, com a belíssima música-tema falando do estado puro do amor. Raul voltou a compor com Paulo Coelho em: Judas, As Profecias, Tá na Hora, Conserve seu Medo e Magia de Amor. Pepeu Gomes participou da animada Pagando Brabo, que é de coautoria com Tânia Menna Barreto, assim como a faixatítulo. A canção Todo Mundo Explica é de autoria somente de Raul. Ele fala sobre o sentimento de libertação que o LP representou e, novamente, menciona o abandono de seu sofrimento, como já havia feito em Novo Aeon: Com o disco Mata Virgem, deixo de ser um robô, deixo de ser homem biônico para me tornar apenas um homem comum, capaz, por exemplo, de fazer um bolero. Eu não agüentava mais ser guru, ser Cristo pregado na cruz. Eu, Raul Seixas, não podia mais sofrer. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 30, grifo da autora). No ano seguinte, fez o show Mata Virgem no Banana Power, em São Paulo. Em 1979, lançou o LP Por Quem Os Sinos Dobram, pela WEA. Sérgio Dias participou de algumas músicas. Raul fez parcerias com Oscar Rasmussem, em: Ide a Mim Dada, Diamante de Mendigo, A Ilha da Fantasia, Na Rodoviária, O Segredo do Universo, Dá-lhe que Dá, Réquiem para uma Flor, além de Por quem os Sinos Dobram, inspirada na Revolução Espanhola, logo, no filme homônimo. A canção Movido a Álcool contou com a parceria de Rasmussem e Tânia Menna Barreto. Com a saúde abalada, Raul submeteu-se a uma operação na qual perdeu uma parte do pâncreas. 56 WEA ou WEA Records: sigla para as gravadoras musicais Warner Music/Elektra Records/Atlantic Records. 79 Em 1980, lançou o álbum Abre-te Sésamo, pela CBS 57, recheado de sátiras à anistia política. A faixa-título cita Ali Babá e os Quarenta Ladrões, e Aluga-se propõe alugar o Brasil aos estrangeiros, como pagamento da dívida externa; mas somente Rock das Aranha foi vetada, por censura moral. Raul contou com vários parceiros neste disco: com Cláudio Roberto compôs: a faixatítulo, Aluga-se, Ângela, Rock das Aranha, Baby, Ê Meu Pai e À Beira do Pantanal; enquanto Só Pra Variar foi feita com Cláudio Roberto e Kika Seixas; e Anos 80, com Dedé Caiano. Neste álbum, também gravou a linda e melancólica Minha Viola, de autoria de seu pai, Raul Varella Seixas. As demais canções do LP, Conversa Pra Boi Dormir e O Conto do Sábio Chinês, são de autoria somente de Raul. Ainda em 1980, mudou-se do Rio de Janeiro para São Paulo e fez o lançamento do disco no Programa do Chacrinha, na Rede Bandeirantes. Também fez o show Abre-TeSésamo, em uma temporada de grande sucesso no Teatro Pixinguinha, e no Colégio Equipe, ambos em São Paulo. Em 1981, o jovem paulistano Sylvio Passos fundou seu fã-clube oficial em São Paulo: o Raul Rock Club. Raul passou a participar ativamente de seu próprio fã-clube, e formou-se uma amizade que, transcendendo à existência física, dura até hoje, tendo Sylvio como guardião e divulgador de sua obra. Figura 7 - Carteirinha de associado do próprio fã-clube Raul Rock Club Fonte: <www.copacabanadetoledo.blogger.com.br>. Acesso em: 28 jan. 2012. Superando as expectativas de sucesso, em 1982, Raul apresentou-se no Festival de Música na Praia, em Santos, para um imenso público de mais de cento e oitenta mil pessoas. No mesmo ano, aborrecido e bebendo, atravessou crises de hepatite e um triste incidente que o deixou arrasado por meses: ao apresentar-se alcoolizado e sem documentos 57 CBS: Columbia Broadcasting System. 80 em Caieiras, interior do estado de São Paulo, foi acusado de impostor de si mesmo, preso e mal tratado. Logo depois, voltou a viver no Rio de Janeiro com a família. Em 1983, Raul fez um show na Sociedade Esportiva Palmeiras, em São Paulo, homenageando os primeiros tempos do rock’n’roll. Numa fase bastante feliz, voltou a morar em São Paulo e lançou, no Gallery, o álbum Raul Seixas, pelo Estúdio Eldorado, junto com seu livro As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, pela Xogum, editora de Paulo Coelho na época. Coloquei o nome do disco apenas Raul Seixas porque quase todos os meus trabalhos são feitos dentro de um ponto de vista filosófico, algo como se fosse uma faixa única, com todas as músicas concebidas dentro de um certo prisma. Este já é uma coleção de momentos diversos que não fogem ao meu estilo, mas também não fecham uma concepção filosófica. Assim pensei que neste disco não havia nada para guruzar. (SEIXAS, Raul apud PASSOS; BUDA, s.d., p. 86) O álbum contou com a parceria de Kika em Segredo da Luz e em DDI, na qual Deus telefona para a humanidade cobrando uma atitude, desligando em seguida, pelo alto custo da ligação. As músicas Aquela Coisa, Coisas do Coração e Quero Mais foram compostas por Raul Seixas, Kika e Cláudio Roberto. Coração Noturno foi feita com Kika e Raul Varella Seixas, e Capim-Guiné foi feita com Wilson Aragão. As demais canções deste LP: Não Fosse o Cabral, Lua Cheia, O Carimbador Maluco e Babilina, são de autoria só de Raul. Não Fosse o Cabral é sua versão para a melodia de Slippin and Slidin, de Little Richard. No LP, Wanderléa participou do animadíssimo xote Quero Mais, que ele compôs com a esposa Kika. O disco trouxe a música O Carimbador Maluco, que foi calorosamente recebida por adultos e crianças e rendeu seu segundo disco de ouro. Tema do musical infantil Plunct Plact Zuum, promovido pela rede Globo, o videoclipe de O Carimbador Maluco apresenta Raul no personagem do carimbador, surgindo no espaço diante de uma nave espacial pilotada por crianças. Ainda em 1983, Raul participou do Primeiro Festival de Rock de Juiz de Fora, em Minas Gerais, e em seguida realizou uma turnê pelo Brasil, que foi encerrada na Sociedade Esportiva Palmeiras, em São Paulo. Interessado no que estava acontecendo nos EUA em termos musicais, viajou com a esposa Kika e visitou várias gravadoras, por quase um mês, trazendo para o Brasil o músico Clive Stevens e novas ideias para realizar um trabalho diferente de tudo o que havia feito até então. O LP Metrô Linha 743, lançado pela Som Livre em 1984, foi um disco no qual Raul idealizou todo o projeto em “preto e branco”, não só o projeto gráfico como a parte musical. 81 A melodia da música-tema é uma precursora do ritmo norte-americano rap. Clive Stevens participou de Meu Piano. Raul fez parceria com Kika Seixas em: Canção do Vento; Messias Indeciso, inspirada em Ilusões, de Richard Bach — assim como o livro, a composição fala de um messias que não queria sê-lo —; e Geração da Luz, na qual ele deixa um recado de esperança e responsabilidade às novas gerações. Com Kika e Cláudio Roberto, fez Meu Piano; com Kika e A. Simeone, fez Quero ser o Homem que Sou (Dizendo a Verdade) e, com Rick, fez Mas I Love You (Pra Ser Feliz). As demais canções deste LP, Metrô Linha 743 e Mamãe Eu Não Queria, são composições apenas de Raul Seixas. Em 1985, sem gravadora, Raul lançou o LP Let Me Sing My Rock and Roll, pelo Raul Rock Club, o primeiro LP produzido e distribuído de maneira independente por um fã-clube brasileiro. No mesmo ano, fez o show Metrô Linha 743, na danceteria Rio Laser, em São Paulo, e o inusitado show Ouro de Tolo, por três dias, no garimpo Marupá, na floresta Amazônica. No final do ano, apresentou-se em São Caetano do Sul, no Estádio Lauro Gomes. Em 1986, enfrentando problemas de saúde e internações, ele assinou contrato com a gravadora Copacabana, mas, por seu estado, o disco só ficou pronto no ano seguinte. No ano de 1987, resolveu homenagear o rock’n’roll, lançando o LP Uah-Bap-Lu-BapLah-Béin-Bum! pela gravadora Copacabana, no qual contou com os parceiros Cláudio Roberto e Lena Coutinho em Quando Acabar o Maluco Sou Eu, Paranóia II (Baby, Baby, Baby) e Loba. Raul e Cláudio Roberto fizeram Cowboy Fora da Lei, Gente e Cantar, enquanto que I am (Gita) foi feita com Paulo Coelho, e Muita Estrela Pouca Constelação é fruto de uma parceria com Marcelo Nova. As demais canções desse LP, Cambalache e Canceriano Sem Lar, são composições só de Raul Seixas. Escolhendo como título o grito de guerra do rock criado por Little Richard para a música Tutti Frutti, Raul afirmou ter feito esse disco para que os roqueiros ouvissem e não deixassem o rock morrer: Fiz o disco Uah-Bap-Lu-Bap-La-Bein-Bum para os roqueiros ouvirem, para eles não deixarem o Rock’n Roll morrer. É um disco dos 40 anos, uma nova fase, um manifesto ao mundo sem a metafísica dos discos anteriores, a preocupação política das outras fases, ou o magicismo de Crowley e outras entidades terrenas. É um disco de Rock’n Roll, não róqui, mas sim Rock’n’Roll, que eu dedico a essa moçada que ta aí de guitarra na mão meio perdida, mas buscando uma linguagem, suas raízes. Eu acho que tenho algo a ensinar: o diálogo dos instrumentos que faz o Rock ou qualquer outra música. Se eles continuarem acoplando tantos equipamentos, preocupados apenas com a quantidade de som, vão acabar num trem surreal, sem direção e essência: vazio. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 32, grifo da autora). 82 O disco trouxe Cowboy Fora da Lei, que fez imediato sucesso e rendeu seu terceiro disco de ouro. Com esse trabalho, ele voltou a ser destaque nas principais mídias do país, e a música foi incluída na trilha sonora da novela das dezenove horas da rede Globo. Nesse mesmo ano, gravou o videoclipe Cowboy Fora da Lei e participou da gravação da música Muita Estrela Pouca Constelação, com a banda Camisa de Vênus. Em 1988, lançou o LP A Pedra do Gênesis, pela Copacabana, contando com a parceria de José Roberto Abrahão e Lena Coutinho na faixa-título. As músicas Fazendo o que o Diabo Gosta e Senhora Dona Persona (Pesadelo Mitológico n° 3) foram composições de Raul com Lena. I Don´t Really Need You Anymore foi feita com Cláudio Roberto. As demais canções desse LP: A Lei, Check-Up, Cavalos Calados, Não Quero Mais Andar na Contra-Mão e Areia da Ampulheta são composições apenas de Raul. O disco fala da Sociedade Alternativa e trouxe a canção A Lei, sua versão musicada da Lei de Crowley, que é uma das bases da Sociedade Alternativa e desmistifica o ritual em torno da existência de um segredo original. “A pedra do gênesis, está bem aqui, agora, você pode tocar”. “Este disco A Pedra do Gênesis marca a retomada da minha carreira.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 43, grifo da autora). O disco traz uma volta ao seu viés místico depois da imersão no universo rocker do LP anterior. Em entrevista ao jornal O Globo, em 1988, Raul falou sobre o LP: Este disco marca a retomada da Sociedade Alternativa, onde cada homem é o embaixador de seu país, e fim de papo. Esta retomada da minha carreira era necessária. Estava sendo egoísta com as pessoas. Já deixei muita gente na mão. Agora tenho um dever a cumprir com as pessoas. E não é um dever apenas comigo, mas com os outros. Não posso mais viver sozinho (...) A arte é o espírito social de uma época. A arte se espelha em um momento vigente e aí está a cultura de uma época. Daí que hoje só estão fazendo droga. É aquele negócio: falta cultura pra cuspir na estrutura — e que culpa tem Cabral? (ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 197). Naquele ano, ele participou do show de Marcelo Nova na concha acústica no Teatro Castro Alves, em Salvador. Separou-se de Lena e mudou-se para um apartamento pequeno no centro de São Paulo. Em 1989, estando havia três anos afastado dos palcos e com a saúde seriamente abalada, Raul recebeu o convite de Marcelo Nova para ir a Salvador, onde este se apresentaria, e, surpreendentemente, os dois realizaram uma grande temporada de mais de cinquenta shows pelo país e muitas apresentações em programas de rádio e televisão. 83 A turnê teve como resultado seu último LP, A Panela do Diabo, lançado pela WEA/Warner Bros. Raul fez todas as canções em parceria com Marcelo Nova: Rock and Roll, Carpinteiro do Universo, Banquete de Lixo, Pastor João e a Igreja Invisível, Século XXI, O Best Seller, Você roubou meu Videocassete e Câimbra no Pé. Ele também lançou, no mesmo álbum, Nuit, que havia sido composta com Kika Seixas anos antes. Entre os músicos que trabalharam com Raul, alguns foram seus parceiros por quase toda a carreira, como o grande maestro Miguel Cidras, arranjador das músicas do cantor, que participou de todos os álbuns, exceto dos três últimos. Raul o conheceu quando era produtor da CBS, no início dos anos 1970, e o convidou para fazer o arranjo de Ouro de Tolo, que foi um grande sucesso. Embora uruguaio de Montevidéu, ele desenvolveu sua carreira no Brasil, sendo responsável por sucessos como Gita e Sandra Rosa Madalena, a Cigana, de Sidney Magal, trabalhando com vários grandes artistas. Em reportagem de Edmundo Leite, Miguel falou do cantor: “O meu trabalho com Raul foi uma fantasia, uma coisa muito bonita. Ele falava que bastava dar um toque que eu entendia o que ele queria. Mas isso é por conta da molecagem dele.” (LEITE, 2008). O guitarrista Rick Ferreira, que trabalhou com diversos grandes artistas brasileiros, esteve presente em todos os discos de Raul a partir de 1974. Ele produziu o LP Uah Bap Luh Bap Lah Béin Bum! em 1987, e trabalhou no LP Zé Ramalho Canta Raul Seixas em 2001. Posteriormente, foi guitarrista de Erasmo Carlos por vinte anos. No videodocumentário Pra Todo Mundo Ouvir, do acervo do Raul Rock Club 58, ele fala sobre a mitificação crescente da imagem de Raul: “Foi um fenômeno, eu acho. Acho que Raul hoje é o, eu te falo, é o maior mito brasileiro, o maior mito brasileiro, acho que o Raul... isso eu acho que está começando, viu? Isso eu acho que é só o começo”. O ex-cunhado de Raul, o norte-americano Jay Vaquer, trabalhou em Krig-HáBandolo!, Gita e O Dia em que a Terra Parou. O multi-instrumentista argentino Tony Osanah, que se mudou de Buenos Aires para o Brasil em 1966, participou de Gita e acompanhou Raul nos shows dos anos 1980. Paulo Cesar Barros, ex-integrante do conjunto Renato e Seus Bluecaps, que trabalhou com uma infinidade de artistas brasileiros, tocou contrabaixo em todos os LPs de Raul, exceto nos 3 últimos. Raul teve dezesseis álbuns lançados em vida – 1968: Raulzito e Os Panteras; 1971: Sociedade da Grã-Ordem Kavernista - Apresenta Sessão das 10; 1972: Compacto Simples; 1973: Krig-Ha, Bandolo!; 1974: Gita; 1975: Novo Aeon; 1976: Há 10 Mil Anos Atrás; 1977: 58 Disponível em: <http://raulsseixas.wordpress.com/videos-selecionados/>. Acesso em 5 fev. 2012. 84 O Dia em que a Terra Parou; 1978: Mata Virgem; 1979: Por Quem os Sinos Dobram; 1980: Abre-te Sésamo; 1983: Raul Seixas; 1984: Metrô Linha 743; 1987: Uah-Bap-Lu-Bap-LahBéin-Bum!; 1988: A Pedra do Gênesis; 1989: A Panela do Diabo. Os discos especiais, gravações de shows e coletâneas lançados em vida foram: o LP Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock, em 1973, em que ele interpreta as canções de rock de maior sucesso, que são de outros artistas, com duas músicas interpretadas por um cantor desconhecido, também lançado com o título 20 Anos de Rock; o disco Ao Vivo Único e Exclusivo, de 1984, e Let Me Sing my Rock and Roll, de 1985. Houve também sua participação especial na trilha sonora da novela O Rebu, da rede Globo de televisão, em 1984, e a coletânea Raul Rock volume 2, em 1986. Há, ainda, os LPs póstumos, como: O Baú do Raul, de 1992; Raul Vivo, do mesmo ano; Se o Rádio não Toca, de 1994, com a inédita música homônima; Documento, com composições em inglês, de 1998; Anarkilópolis, de 2003, também lançando a música de mesmo nome; e O Bau do Raul Revirado, de 2006. Sylvio Passos fala sobre a importância histórica do LP Se o Rádio não Toca: Quando Raul me entregou aquele saco plástico cheio de fitas, falou-me: “Fique com elas, pois estarão mais seguras com você do que comigo. Recupere-as da maneira que for possível. Estou lhe passando parte da minha vida.” [...] Minha curiosidade em ouvir aquelas fitas era enorme, mas a surpresa e a emoção em escutá-las foi um milhão de vezes maior. [...]. Este show foi realizado em Brasília durante o primeiro semestre de 1974 [...]. Foi gravado em um único canal num gravador Akai, a pedido de Raul, apenas para posterior avaliação de seu desempenho no palco, portanto sem nehuma preocupação técnica em relação a gravação. (PASSOS, Sylvio, 1994, encarte do disco Se o Rádio não Toca). 2.8 Entorno Social e Metrô Linha 743 Desde os anos 1950, o cenário mundial contava com grandes transformações políticas e sociais, cujos reflexos nas artes eram imediatos. Tendo montado sua primeira banda ainda criança, em 1957, Raul desenvolveu sua arte em meio às modificações políticas e sociais da época. Enquanto a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a ex-URSS havia acirrado o temor ao regime comunista no mundo para a direita política, a vitória da Revolução Cubana, em janeiro de 1959, encorajou as lutas da esquerda, num âmbito global, e o movimento comunista avançou na Europa, Ásia, África e até no Caribe. Na América Latina, na década de 1960, teve início uma sucessão de articulações, nas quais os militares assumiram o poder político: em setembro de 1963, na República 85 Dominicana; em abril de 1964, no Brasil. Em novembro de 1964, na Bolívia, assumiu o general René Barrientos; em junho de 1966, na Argentina, assumiu o general Ongonía; em outubro de 1968, no Peru, assumiu o general Velasco Alvarado; em agosto de 1971, com a ajuda do Brasil, na Bolívia, assumiu o coronel Hugo Banzer; em setembro de 1973, no Chile, com a morte de Allende, assumiu Pinochet. Em 1964, o Brasil assistiu à tomada militar do poder, que, no dia primeiro de abril, culminou na deposição do presidente João Goulart. O temor da direita agravou-se, provavelmente, quando Jango propôs a reforma agrária em seu discurso na Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964. Considerado herdeiro das ideias de Getúlio Vargas, não apenas por ter sido seu ministro do trabalho como por suas inclinações políticas, Jango foi deposto e viveu exilado no Uruguai até o fim de seus dias. O Brasil atravessou vinte anos de regime militar, que contaram com censura às manifestações populares, às sindicâncias, às formações de grupos esquerdistas, aos meios de comunicação, aos intelectuais e às produções artísticas. Quando, em 13 de dezembro de 1968, o então presidente general Costa e Silva implantou o Ato Institucional número cinco (AI-5) e decretou o fechamento do congresso por tempo indeterminado, a censura foi institucionalizada. O decreto, que deveria durar meses, prolongou-se por uma década, na qual produções artísticas e intelectuais eram examinadas por censores à procura de material ofensivo ao governo, à moral e aos bons costumes. Do teor das obras apreendidas, havia a exigência da substituição da parte censurada. Logo, artistas e formadores de opinião passaram a trabalhar com o uso de metáforas e datas retrocedidas. Quando o ato foi revogado, dez anos depois, o saldo foi de 1.607 punições. Destas, trezentas e vinte e uma eram cassações de mandatos políticos, que resultaram no cancelamento de seis milhões de votos. Foram mutilados: quinhentos filmes, quatrocentas e cinquenta peças de teatro, duzentos livros, mais de quinhentas letras de músicas, inúmeros programas de rádio e capítulos de novelas. No restante do mundo, também estavam ocorrendo grandes mudanças nos cenários políticos dos anos 1960: revoltas estudantis na Europa, manifestos contra a guerra do Vietnã, nos EUA. O saldo não era apenas de revolta e violência, mas o desenvolvimento de um ideário libertário coletivo, que se traduzia nos movimentos artísticos e culturais de vanguarda, que clamavam pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos. Em 1974, em seu primeiro show em São Paulo, Raul distribuiu, com Paulo Coelho, o fanzine do Manifesto Krig-Ha, que falava da Sociedade Alternativa, de autoria de ambos e ilustrações de Adalgisa Rios, então esposa de Paulo. Visitados por autoridades que os 86 chamaram a se explicarem, os amigos tiveram os gibis recolhidos e um convite para deixar o país. Eles foram morar em Greenwich Village, Nova Iorque, com suas respectivas esposas, até meados do ano, quando um rapaz do consulado bateu à porta de Raul, e ele foi chamado a retornar — concessão merecida pelo sucesso de Gita, que vendeu mais de seiscentas mil cópias e rendeu-lhe seu primeiro disco de ouro. Em 1984, refletindo a atmosfera de repressão que havia vivenciado dez anos antes, Raul lançou o álbum Metrô Linha 743, com a música-tema homônima, alertando sobre o risco de ser apanhado pensando, pelos atentos canibais de cabeça, que avaliam seu valor de acordo com o nível mental. Tradução musical do medo, a música é uma narração contundente de um sujeito vigiado que enfrenta sua própria captura. A sonoridade abafada, dada quadro a quadro com sons blocados que se repetem, ajuda a construir mentalmente a “história em quadrinhos” da trajetória do personagem. Sons de tiros cortam a música, intensificando a atmosfera de perigo. O título do LP Metrô Linha 743 tem, nos dois primeiros números, o ano em que Raul enfrentou o fato que inspirou a música, enquanto que o ano de lançamento, 1984, coincide com o título do livro de narrativa similar de George Orwell, 1984, que Raul havia lido. No disco, foi censurada Mamãe Eu Não Queria, crítica ao ato de servir o Exército e morrer pela pátria, inspirada em I don’t Wanna Be a Soldier Mama, I Just Don’t Wanna Die (Eu não Quero Ser um Soldado Mãe, Eu não Quero Morrer), de John Lennon. De acordo com seu depoimento no livro Raul Seixas Por Ele Mesmo, Raul pensou em uma sonoridade que lembrasse madeira, um novo som, que neste caso foi o rap, um ritmo norte-americano derivado do rock, com pouca melodia e narração bem marcada, usado para denunciar a injustiça social. Portanto, essa música pode ser vista como uma das precursoras do ritmo no Brasil. Ele tinha acabado de viajar aos EUA para saber o que estava acontecendo em termos musicais, e retornou com a ideia de realizar um LP todo em “preto e branco”, inclusive o som. Musicalmente, a concepção do que a gente vai ouvir é, igualmente, música preta e branca. Não vai haver o colorido condicionado dos clichês de violinos de metais e nem guitarras elétricas, nada além do simples violão acústico e a voz mais para flat. Eu vou juntar a concepção musical à concepção visual, nesse LP [...] O colorido aprisiona a imaginação. O preto e branco é mais forte, é livre porque dá asas a cada um de projetar sua imaginação; de criar o que você sente sem se prender ao óbvio das cores impostas pelo colorido do mundo. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 53) 87 Metrô Linha 743 59 (Raul Seixas) Ele ia andando pela rua meio apressado Ele nem sabia que tava sendo vigiado Cheguei pra ele e disse: Ei, amigo, você pode me ceder um cigarro? Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado! Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado! Disse: o prato mais caro do melhor banquete é o que se come cabeça de gente Que pensa, e os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam porque quem Pensa, pensa melhor parado! Desculpe minha pressa fingindo atrasado, Trabalho em cartório, mas sou escritor. Perdi minha pena nem sei qual foi o mês... Metrô linha 743!!! O homem apressado me deixou e saiu voando Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando Três outros chegaram com pistolas na mão, Um gritou: Mão na cabeça, malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos Eu disse: Claro, pois não! Mas o que é que eu fiz? Se é documento eu tenho aqui... Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí! Eu quero é saber o que você estava pensando Eu avalio o preço me baseando no nível mental que você anda por aí usando, E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando. Minha cabeça caída, solta no chão Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez Metrô linha 743!!! Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha E eu era agora um cérebro vivo à vinagrete Meu cérebro logo pensou: Que seja, mas nunca fui tiete Fui posto à mesa com mais dois e eram três pratos raros E foi o maitre que pôs Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado Meu último pedaço antes de ser engolido, ainda pensou grilado: Quem será o desgraçado dono dessa zorra toda!!! Já ta tudo armado, o jogo dos caçadores canibais Mas o negócio aqui ta muito bandeira!!! Ta bandeira demais, meu Deus!!! Cuidado brother, cuidado sábio senhor Eu aconselho sério pra vocês Eu morri, e nem sei mesmo qual foi aquele mês Metrô linha 743!!! É... Por aí! 59 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 278). 88 2.9 Censura e Metáfora A metáfora foi fartamente utilizada na obra de Raul, tanto como recurso de camuflagem ideológica ante o crivo dos censores como por seu poder intuitivo de transmissão conceitual. Esse recurso de linguagem conta com o potencial de associação mental do ouvinte, possibilitando duas ou mais interpretações. Permite o jogo de linguagem, que pode enfatizar tanto a comicidade como a tragicidade, ou, ainda, camuflar a ironia. Uma linguagem na qual predominam, no vocabulário e nos gestos, as expressões ambíguas, ambivalentes, que não apenas acumulam e dão vazão ao proibido, mas também, ao operar como paródia, como degradaçãoregeneração, “contribuíam para a criação de uma atmosfera de liberdade”. (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 106) A metáfora também confere certa atemporalidade ao assunto abordado, fato que se evidencia atualmente na obra do cantor, quando, mais de vinte anos após sua partida, muitas de suas letras parecem atuais. Seu apreço pela linguagem figurada foi fomentado por suas leituras de obras místicas e filosóficas e de livros sagrados, a exemplo da Bíblia, do Bhagavad Gita e do Tao Te Ching. Como nos grandes livros da humanidade, a metáfora esteve em sua obra como facilitadora do processo cognitivo, servindo como veículo para levar conceitos complexos ao povo. Em entrevista ao jornal O Pasquim, ele fala a respeito de seu uso da linguagem simbólica para abrir as portas para as verdades individuais, e da abrangência de sua obra: Raul Seixas - Vamos citar o Apocalipse bíblico. Foi escrito numa época incrível, você tinha que falar numa linguagem simbólica, uma linguagem mágica. Mas é uma coisa que se adapta a qualquer época [...] É quase a mesma linguagem que nós estamos usando pra tentar dizer, tentar chegar a um objetivo. Não é o objetivo de uma verdade absoluta. Porque ninguém aqui quer chegar a uma verdade absoluta e impô-la. Apenas se quer abrir as portas. Pras verdades individuais. [...] O Pasquim - Você faz isso pra se entender ou para que os outros te entendam? Raul Seixas - Pra que os outros me entendam. Pra que eu penetre todas as estruturas, em todas as “classes”, em todas as faixas. Todo mundo tá cantando A Mosca na Sopa. (SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 94-95). Visando a contornar a questão da censura, o processo criativo exigia do artista liberarse de todas as pressões e, ao mesmo tempo, considerá-las, num exercício mental possibilitado pelos recursos de linguagem e pela confiança na capacidade associativa dos receptores. “Eu utilizo o que sei de música. Admito que não sou um bom músico; minha música é intuitiva.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 64). Podemos citar algumas músicas de Raul em que a linguagem figurada se evidencia: 89 • A Maçã 60, cujo tema é liberdade sexual, e onde a referência ao sexo oposto é feita, não por acaso, pelo “fruto do pecado” com o qual a serpente tentou Eva no paraíso, na cosmogonia cristã: “Porque quem gosta de maçã irá gostar de todas, porque todas são iguais”. • Sapato 36 61, onde a figura do pai opressor representa a autoridade do governo brasileiro na época em que a música foi lançada, 1978: Eu calço é 37/ Meu pai me dá 36/ Dói, mas no dia seguinte/ Eu aperto meu pé outra vez/ Por que cargas d’água você acha que/ Tem o direito/ De apertar tudo aquilo/ Que eu/ Sinto em meu peito/ Você só vai ter o respeito que quer/ Na realidade/ No dia em que você souber respeitar a minha vontade/ Meu pai/ Meu pai/ Pai já estou indo me embora/ Quero partir sem brigar/ Pois eu já escolhi meu sapato/ Que não vai mais me apertar. • Metrô Linha 743, onde a canibalização da cabeça representa o castigo ao ser pensante. • Na melancólica Réquiem para uma Flor, na qual os girassóis que se mostram representam os homens que se expõem pelos direitos dos demais, enquanto as enormes montanhas que se calam são a maior parte das pessoas: “Fruto do mundo/ Somos os homens/ Pequenos girassóis/ Os que mostram a cara/ E enorme as montanhas/ Que não dizem nada”. A ênfase da mensagem está no final, em castelhano: “Incapaces los hombres/ Que hablam de todo/ Y sufrem callados”. • Abre-te Sésamo, onde o título é voltado para a abertura política brasileira que se deu em 1979, ano anterior ao lançamento do disco. A sátira faz referência a alguns políticos como “Alibabá e os 40 ladrões” e enfatiza o aborrecimento que eles causam: “Já não querem nada com a pátria amada/ E cada dia mais enchendo os meus botões”. Continua satirizando a instabilidade da situação política: “E vamos nós de novo/ Vamos na gangorra/ No meio da zorra desse vai e vem”. • Não Fosse o Cabral 62, que também foi censurada, satiriza a situação do país, impostos altos e o descaso para com a opinião pública e a miséria: “Tudo aqui me falta, a taxa é muito alta/ Dane-se quem não gostar/ Miséria é supérfluo/ O resto é que ta certo/ Assobia que é pra disfarçar”. E continua, tecendo uma crítica à falta 60 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 184). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 223). 62 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 267-268). 61 90 de preparo popular para refutar a estrutura: “Falta de cultura pra cuspir na estrutura/ E que culpa tem Cabral?”. • A sertaneja Capim-Guiné 63, já citada na análise sobre sua linguagem popular, fala sobre um sítio e suas plantações, e traz um refrão crítico à falta de atitude quanto à semente libertária que Raul plantou: “Num planto capim-guiné/ Pra boi abaná rabo/ Tô virado no diabo, eu tô retado cum você/ Tá vendo tudo e fica aí parado/ Cum cara de veado que viu caxinguelê”. Enfatizando que “plantou” tudo sozinho e acabou abrindo espaço para outros que vieram depois: “Com muita raça/ Fiz tudo aqui sozinho/ Nem um pé de passarinho/ Veio a terra semeá/ Agora veja cumpadi a safadeza/ Cumeçô a marvadeza/ todo bicho/ Vem pra cá”. • Mosca na Sopa é um recado de que teria vindo para incomodar e que não adiantaria a mosca ser dedetizada, porque viria outra em seu lugar. • A primeira versão de Como Vovó já Dizia, de 1973, que foi censurada, traz referência às comunicações entre os jovens de esquerda política na época: “Quem não tem papel/ Dá o recado pelo muro”; crítica ao momento político: “Quem não tem presente se conforma com o futuro”; e referências às manifestações de insatisfação: “Uma vez a gente aceita/ Duas tem que reclamar”. E, assim como em Mosca na Sopa, Raul dá o recado de que vai incomodar: “Vim de longe, de outra terra/ Pra morder teu calcanhar”. • Um jogo de linguagem figurada e entonação vocal de sincera recusa conferem comicidade a Não Quero Mais Andar na Contra-Mão 64, sua autobiográfica recusa às drogas, em 1988: Hoje uma amiga da Colômbia voltou/ Riu de mim porque eu não entendi/ No que ela sacou aquele fumo ho ho/ Dizendo que tão bom eu nunca vi/ Eu disse não não não não/ Eu já parei de fumar/ Cansei de acordar pelo chão/ Muito obrigado/ Eu já estou calejado/ Não quero mais andar na contra-mão/ Da Bolívia uma outra amiga chegou/ Riu de mim porque eu não entendi/ Quis me empurrar um saco daquele pó/ Dizendo que tão puro eu nunca vi/ Eu disse não não não não/ Eu já parei de (som de fungar de nariz)/ Cansei de acordar pelo chão/ Muito obrigado/ Eu já estou calejado/ Não quero mais andar na contra-mão/ Titia que morava na Argentina voltou/ Riu de mim porque eu não entendi/ Me trouxe uma caixa de perfume, ehê/ Daquele que não tem mais por aqui/ Eu disse não não não não/ Não brinco mais carnaval/ Cansei de desmaiar no salão/ Muito obrigado/ Eu já andei perfumado/ Não quero mais andar na contra-mão. 63 64 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 273-274). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 312-313). 91 Para o humorista e apresentador de televisão Jô Soares: “A principal importância de Raul Seixas é que a música dele transcende o rock pelo seu lado de crítica e irreverência, inclusive durante os anos da ditadura, quando ele usava muito bem os recursos do humor e da metáfora para falar da situação vigente.” (CAROS AMIGOS, n. 4, 1999, p. 20). Comprovando sua eficácia tática, Raul compôs mais de duzentas músicas, e apenas onze estiveram retidas pelo departamento de censura. Entre elas: Rock das Aranha, Fazendo o que o Diabo Gosta, Quero Mais e Babilina, por censura moral, e a redentora Não Quero Mais Andar Na Contra-Mão, onde se dizia cansado e não mais usuário de drogas quaisquer, além de Check Up, Não Fosse o Cabral, Como Vovó já Dizia e Murungando. Em 1974, a música Murungando, que faz parte da trilha sonora da novela O Rebu, com álbum homônimo lançado pela gravadora Som Livre, foi vetada por incitar a reação das pessoas no sentido de recobrar a dignidade, utilizando o jargão popular: Levanta a cabeça mamãe/ Levanta a cabeça papai/ Levanta a cabeça Hipão/ E tira seus olhos do chão/ O chão é lugar de pisar/ Levanta a cabeça vovó/ Levanta a cabeça povão/ Levanta a cabeça vovô/ Pra turma do amor e da paz/ Levanta a cabeça rapaz/ Não tenho outra coisa a dizer/ Que eu sou mais eu que você. Em Check-Up 65, teve de disfarçar os nomes dos remédios que tomava: Tive que camuflar o nome de alguns barbitúricos, Valium, Diempax e Triptanol, para colocar a música Check Up entre as faixas do disco A Pedra do Gênesis. Outra das músicas que freqüentaram as gavetas da censura foi a libertária Fazendo o que o Diabo Gosta: “A história mostra que a gente agrada a Deus fazendo o que o diabo gosta”. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 35, grifo da autora). Em 1983, Raul escreveu em seu diário uma perspicaz crítica à necessidade de substituição das palavras em suas músicas: Três músicas minhas foram vetadas, proibidas. A primeira eu canto com Wanderléa; é um forró cheio de humor, chamado Quero Mais. Vetada porque não se pode querer nada sem ordem. Nem mesmo o chamego da voz da Wandeca. A outra é uma versão de um rock’n’roll antigo, Bop-a-lu-la; essa eu entendi menos ainda! A terceira é Não Fosse o Cabral, uma gostosa sátira a lá Jô Soares na qual ponho em dúvida a influência do tal português nos dias de hoje. Chego quase à conclusão de que Cabral não gostava de música. Estou numa escola onde ensina-se a andar pra trás. De segunda a sábado, obrigatoriamente esse curso. O curso no qual eu não me matriculei. Estou andando pra trás até direitinho, depois dos anos pra frente desde que nasci. Está na praça, já chegou o Dicionário do Censor. De A a Z tem todas as palavras que um dicionário tem. A diferença está na cruzinha preta, logo após a palavra, significando que não pode. As que pode, o compositor deve conferir se não tem a cruz. A distribuição é feita para todos os compositores do país. Antes de colocar no papel um grande achado poético, consulte se 65 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 309). 92 existe uma palavra que não pode entre as outras da frase. Se não puder tente substituir por um sinônimo, embora o que você queria expressar era aquela primeira. O dicionário do censor é sério, e não é verdade o que dizem as más línguas: “O censor acaba sendo o seu parceiro na obra”? Método subliminar de indução parcerística por correspondência? Por exemplo: Você, compositor, cria um verso que diz “Eu canto para o meu povo, porque do povo é a minha voz, se eu pertenço ao povo, somente do povo será a minha canção”. Não se entusiasme, calma, lembre-se: o dicionário Vai lá no P. Lá está a palavra povo com duas cruzes negras. Portanto você há de aceitar que povo não pode. Tente um som próximo; que tal ovo? Ovo pode. Seu dever é decorar os pode e não pode. Assim você não dispersa! Não sei por que a palavra dentadura tem três cruzes!!! Agora todo cuidado é pouco pra quem tem miolo. Tem canibal excêntrico que dá banquetes de cabeças, entendeu? Miolos de gente que pensa são os mais caros do menu. Absurdo!! “O cantar tem sentido, sentimento e razão”. De todas as artes vigentes no Brasil, por que somente a música foi eleita como maldita? Medo de um eventual processo subliminar? Quem ouve discos ouve porque quer, ao contrário da TV. Em 1983, com promessas de abertura, eu pergunto em nome da música: – Seu medo é do meu sucesso? (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 71-72, grifo dos autores). Nesse trecho, aparece a menção aos “canibais de cabeça” que ameaçam aqueles que pensam, como em Metrô Linha 743, composta no mesmo ano. Em muitos países que atravessaram períodos de censura, as pressões contrárias ao livre direito de expressão funcionaram para as artes como força catalisadora. Lutando contra elas, os artistas refinaram seus processos criativos, condensando os valores que melhor funcionassem no processo libertário em obras que atingiram grandes níveis qualitativos. 93 94 3 SEGUNDO CAPÍTULO - MEMÓRI A MUSICAL Raul teve, na infância, o despertar precoce para os saberes das letras. Aos onze anos, já havia lido boa parte da vasta biblioteca de seu pai. Também gostava de desenhar gibis e de contar histórias sobre o universo para seu irmão e, para tanto, criou o seu próprio personagem: o Melô, um cientista maluco que viajava no espaço com Deus e o diabo e com grandes figuras. Raul não só narrava as histórias para o irmão como vendia a ele seus quadrinhos. Quando eu era guri, lá na Bahia, música pra mim era uma coisa secundária. O que me preocupava mesmo eram os problemas da vida e da morte, o problema do homem, de onde vim, pra onde vou, o que é que estou fazendo aqui. O que eu queria mesmo era ser escritor. Desde pequeno eu fazia e vendia livros pro meu irmão menor, 4 anos mais moço que eu. Eram uns gibis incríveis, pintados com lápis grossos. Tinha um personagem que aparecia em todas as histórias, um cientista louco. O nome dele era Melô, que na língua da gente queria dizer amalucado. Era uma parte de mim, o cara imaginativo, buscando as respostas, o eu fantástico, viajando fora da lógica em uma maquinazinha em que só cabia um só passageiro... Melô-eu. O Melô viajava para lugares louquíssimos, como Nada, Tudo, Vírgula, Xis, a Ao Cubo, Massas Dimensionais, Oceanos de Cores, e depois de tudo tinha a terra de Deus. Uma vez eu levei meu irmão lá, numa viagem imaginária, sentado na cama, tudo ali dentro do quarto... a gente passava o tempo todo trancado... mas Deus, também tinha necessidade de conhecer Deus, saber quem o tinha feito... Meu irmão ficava horas ouvindo, eu inventava mil personagens de cada vez, a cada momento mudava de voz, me vestia, botava óculos, uma loucura. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 12-13). Neste trecho, ele afirma que seu personagem Melô era uma parte dele, o cara imaginativo buscando respostas; portanto, podemos observar que, desde a primeira infância, afloravam a curiosidade e a criatividade que motivaram sua carreira. A curiosidade pelas questões universais e o entusiasmo em mostrar o que descobria constituíram a força motriz de seu trabalho: músicas, letras, poemas, organização de discos, temas de shows e criação de personagens. A biblioteca do pai era a porta para seu mundo imaginário, e o pai era a grande figura que lhe mostraria o quanto era vasto e curioso o universo dos livros. Mamãe vivia nos chás, era senhora de sociedade. Era ela quem mandava em casa, uma personalidade fortíssima. Meu pai teve uma influência muito grande sobre mim. Ele era engenheiro. Sempre foi um cara muito lido, tinha muitos livros e lia para mim desde que eu era pequeno. Me impressionei com Don Quixote de La Mancha, O Tesouro da Juventude, O livro dos Porquês. Muitos livros de astronomia sobre o universo, que me fascinavam. Meu pai sempre gostou de mistérios, de coisas estranhas, e me meteu nesse mundo estranho, de tudo que é inexplicável na face da Terra, debaixo do mar, no céu... (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 14). Esse era o começo das inquietações metafísicas sobre o funcionamento do universo. 95 Sem dar atenção à escola, foi reprovado várias vezes, metade delas por causa do rock, conforme ele afirma: “Eu era um fracasso na escola, a escola não me dizia nada do que eu queria saber. Tudo que eu aprendia era nos livros, em casa ou na rua. Repeti cinco vezes a segunda série do ginásio.” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 15). 3.1 A Descoberta do Rock O Brasil conheceu o rock em 1955, quando o filme Sementes da Violência (Blackboard Jungle), do diretor Richard Brooks, estreou no cinema, tendo ao fundo Rock Around the Clock, de Bill Haley. Rapidamente filmes norte-americanos sobre o tema ganharam os cinemas, trazendo seu universo temático, imagético e comportamental a conhecimento do grande público. Em novembro daquele ano, a cantora de samba-canção Nora Ney foi a primeira a cantar o ritmo no país, ao emprestar a voz a Rock Around the Clock, com disco de sucesso lançado pela gravadora Continental. Em 1957, Miguel Gustavo faz o primeiro rock de composição original em portugês, Rock and Roll em Copacabana, que foi cantado por Cauby Peixoto. No mesmo ano, Betinho gravou o sucesso Enrolando o Rock, que foi tema do filme Absolutamente Certo, de Anselmo Duarte. Agostinho dos Santos gravou Até Logo, Jacaré, sua versão para o rock norteamericano See You Latter, Alligater, e Carlos Gonzaga gravou Meu Fingimento inspirada em The Great Pretender, dos Platters. Raul conheceu o rock em 1957, quando sua família mudou-se para uma casa próxima ao Consulado Americano em Salvador. Ao tomar seu primeiro contato com o ritmo, tornou-se um rocker, passou a vestir-se, dançar, andar e cantar como os cantores do ritmo, e também aprendeu inglês. Nunca liguei muito pras letras das músicas. Apesar de ter sido com os discos de rock’n’roll que eu aprendi inglês, meu primeiro inglês, o dos caipiras (hillbilies) e dos negros cheios de sotaque. Era o ritmo tribal que me amarrava mesmo, gostoso, empolgava, eu sentia aquela coisa assim obscena, aquela coisa de tribo em volta da fogueira... era o contrário de tudo o que se passava no mundo ali da família. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 15). Nessa época, um grupo de norte-americanos foi trabalhar para a Petrobrás em Salvador, por conta da descoberta de petróleo na região, mudando-se com suas famílias para a cidade. Assim surgiu a amizade entre seus filhos e alguns garotos baianos, entre os quais se encontrava Raul. No Consulado Americano e na loja de discos Cantinho da Música, eles tinham acesso ao que era lançado nos Estados Unidos sobre o universo rocker: revistas, notícias, LPs. Raul frequentava a loja, em lugar da escola. Segundo ele: “Passava o dia todo 96 com a farda do colégio, encostado no balcão da loja Cantinho da Música, que hoje nem existe mais em Salvador. As vendedoras já me conheciam, eu ficava o dia todo ouvindo os discos novos de rock.” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 15). Figura 8 - Foto de Raul com sua banda (sentado abaixo) Fonte: Revista Contigo, 5. ed., 2004. Em seu diário, em 13 de setembro de 1987, ele lembraria como conheceu o blues e o rock em Salvador: 97 Naquela época a Bahia estava infestada de americanos que trabalhavam para a Petrobrás. Em 54 surge nos Estados Unidos Elvis e o Rock’n’Roll caipira, além do blues dos negros do sul. Os filhos dos gringos me apresentavam esse novo fenômeno através de discos e revistas. Quando a gente se encontrava na rua o papo era: “E aí, tudo bem, tem disco novo?”. Aprendi blues e rock antes destas músicas terem chegado ao Brasil. Além disso aprendi Inglês fluentemente. Troquei minha lambreta por dois velhos pares de violão e um contrabaixo de pau. Baixo acústico. Perdi a segunda série do ginásio por cinco anos para comparecer aos programas de rádio e ao Elvis Rock Club, onde se bebia e dublava os artistas americanos; e eu era o único que cantava e tocava ao vivo. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 18-19). Em entrevista concedida ao jornalista Pedro Bial em 1983 66, a qual integra o acervo do Raul Rock Club, Raul relembra as latinhas de discos de 45 rotações e o caráter empírico de suas primeiras experiências musicais. Bial - E você sempre teve um contato muito grande com a cultura norteamericana, quer dizer, através do rock’n’roll, desde criança. Raul - É, devido: eu morava perto do Consulado Americano, certo? É... lá na Bahia. Então, eles traziam naquelas latinhas, bicho, umas latinhas que sempre faço questão de frisar, nunca esqueço isso, umas latinhas de alumínio, que criança leva pra colégio, de merenda; aí levava aquelas latinhas cheias de 45 rotações de Chuck Berry, Eddie Cochran, Elvis, e a Bahia não conhecia nada disso, eu via aquelas festinhas americanas: pipoca, cigarrinhos nas mesas, uma porção de cigarros espalhados assim nas mesas (risos) pra todo mundo fumar, era um barato, festa americana, era uma loucura. Bial - Sei, aí você misturou. Raul - Aí eu comecei a cantar, eu inventei de fazer um grupo. Eu não sabia o que era contrabaixo, o que era guitarra. Eu ouvia, tem um negócio, fazia: bum, bum, bum, bum. Aí, digo: Vamos ver o que é isso. Aí, a gente inventava o contrabaixo, inventava aquelas coisas todas na Bahia. Ele ainda não tinha uma guitarra elétrica, símbolo da revolução do rock, mas já queria produzir seu próprio som; então, em 1957, montou uma, com seu amigo Mariano. Raul explica essa fase inicial: Comecei no violão, fazendo béngue, béngue. Mas não distinguia os acordes direito. Em 57, lá em Salvador as lojas continuavam a vender violões de náilon e contrabaixo de pau, enquanto já se usava o baixo elétrico e a guitarra. Então eu e um amigo, Mariano, fizemos a primeira guitarra do tipo que os americanos usavam. Nós simplesmente construímos uma guitarra feita com uma tábua e o braço de um violão velho. Não existia amplificador para vender, e nem que tivesse a gente não tinha dinheiro para comprar. Então a gente usava um rádio antigo do avô de Mariano como amplificador, e o fio do plugue era tão pequeno que o cara tinha de tocar sentado em cima do tal rádio, senão não dava. O som era horrível. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 16). 66 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=45MVOhsRpZE>. Acesso em: 12 fev. 2012. 98 Nessa época, Raul conta que conheceu um amigo rocker: Eu conheci um cara chamado Titó. Ele ficou entusiasmado quando eu lhe mostrei o que era rock, como se dançava. E ele me disse: “Olha, tem um cara que mora aqui perto da fábrica, é um cara humilde, mas ele tem mais disco que você, manja paca de rock, gosta de Elvis Presley”. Eu fiquei maluco e disse: “Traga esse cara aqui”. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 16). O novo amigo era o promotor de bailes Waldir Serrão. Anos depois, Raul lembrou esse encontro memorável: Esse encontro foi fantástico. Eu me preparei todo, botei a gola pra cima, engomei o cabelo, botei o topete, porque sabia que o Titó ia trazer o Waldir Serrão de tarde. Fiquei esperando ele, mascando chiclete, para mostrar que eu era mais cool. Ele chegou da mesma forma. Foi aquele aperto de mão assim de rock, sabe, meio de banda, aquela coisa de juventude transviada, James Dean, o maior barato. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 16). Recentemente, aos 67 anos, Serrão relembrou esse momento histórico, em entrevista à revista Rolling Stone: O Raulzito tinha mania de fazer pose de James Dean; e eu de Elvis. [...] Quem nos apresentou foi um cara chamado Titó, um amigo em comum, que marcou encontro no Largo da Boa Viagem. De cara, um perguntou ao outro: ‘Quem tem mais discos? Você ou eu?’ Eu ganhei porque tinha mais álbuns de coleção: Pat Boone, Little Richard, Buddy Holly. Falei para ele: ‘Quero ver sua discoteca’. Raul, então, levou-me à sua casa e mostrou seu acervo. Nossa amizade nasceu asssim. Durou até quando ele se foi. [...] Ele começou a me visitar no Elvis Rock Clube cuja sede era na minha casa. Lá se juntavam os fanáticos por Elvis. Raul foi o nono associado; Edy Star foi o 17º. Ele me chamava de Rei do Rock. E eu retrucava Rei do Rock é você! (ROLLING STONE, n. 35, 2009, p. 66-67). Raul sempre falou com entusiasmo dessa época de vivência do rock em sua adolescência, que ficou marcada de uma forma positiva, inspirando diversos trabalhos posteriores. Em Rock’n Roll 67, composta com Marcelo Nova em 1989, Raul canta sobre essa época: Há muito tempo atrás na velha Bahia/ Eu imitava Little Richard e me contorcia/ As pessoas se afastavam pensando/ Que eu estava tendo um ataque de epilepsia/ No teatro Vila Velha/ Velho conceito de moral/ Bosta nova pra universitário/ Gente fina intelectual/ Oxalá, oxum dendê oxossi de não/ Sei o quê/ Oh, rock n'roll, yeah, yeha, yeha, that's rock n'roll [...] Mas nunca vi Beethoven fazer/ Aquilo que Chucky Berry faz/ Roll over Beethoven, roll over Beethoven/ Roll over Beethoven tell Tchaikovsky the news. Há cinco rocks e um blues de Raul que remetem à rebeldia autoconfiante e travessa dessa fase em que integrava uma turma rocker em Salvador. Sem tal vivência não teria sido 67 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 318-319). 99 possível realizar traduções tão fidedignas desses sentimentos, expressos nos arranjos instrumentais, na melodia, na letra e na entonação vocal. Uma ode ao rock, sua música Rockixe 68, composta em parceria com Paulo Coelho e lançada em 1973, traduz, tanto na letra como na melodia enérgica e na empostação da voz, os sentimentos dessa época, em tom desafiador e autoconfiante: Vê se me entende, olha o meu sapato novo/ Minha calça colorida o meu novo way of life/ Eu tô tão lindo porém bem mais perigoso/ Aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo/ O que eu quero, eu vou conseguir/ O que eu quero, eu vou conseguir/ Pois quando eu quero todos querem/ Quando eu quero todo mundo pede mais/ E pede bis/ Eu tinha medo do seu medo/ Do que eu faço/ Medo de cair no laço que você preparou/ Eu tinha medo de ter que dormir mais cedo numa cama que eu não gosto só porque você mandou.../ Você é forte mais eu sou muito mais lindo/ O meu cinto cintilante, a minha bota, o meu boné/ Não tenho pressa, tenho muita paciência/ Na esquina da falência/ Que eu te pego pelo pé/ Olha o meu charme, minha túnica, meu terno/ Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar/ Eu vim de longe, vim de uma metamorfose/ Numa nuvem de poeira que pintou pra lhe pegar/ Você é forte, faz o que deseja e quer/ Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver/ E foi com isso justamente que eu vi/ Maravilhoso, eu aprendi que eu sou mais forte que você/ O que eu quero, eu vou conseguir/ O que eu quero, eu vou conseguir/ Pois quando eu quero todos querem/ Quando eu quero todo mundo pede mais/ E pede bis, e pede mais... Lançada em 1975, Eu Sou Egoísta 69 tem um tom rítmico e desafiador bastante próximo desta primeira: Se você acha que tem pouca sorte/ Se lhe preocupa a doença ou a morte/ Se você sente receio do inferno/ Do fogo eterno [...] Onde eu tô não há bicho-papão/ Eu vou sempre avante no nada infinito/ Flamejando meu rock, o meu grito/ Minha espada é a guitarra na mão [...] Enquanto eu/ Provo sempre o vinagre e o vinho/ Eu quero é ter tentação no caminho [...]. Loteria Babilônica 70, lançada em 1974, tem um ritmo enérgico e igualmente autoconfiante. Com frases de incentivo dirigidas ao ouvinte em tom direto e imperativo: Vai e grita ao mundo que você está certo/ Você aprendeu tudo enquanto estava mudo/ Agora é necessário gritar e cantar Rock/ E demonstrar o teorema da vida/ E os macetes do xadrez/ Você tem as respostas das perguntas/ Resolveu as equações que não sabia/ E já não tem mais nada o que fazer a não ser/ Verdades e verdades/ Mais verdades e verdades para me dizer/ A declarar/ Tudo o que tinha que ser chorado já foi chorado/ Você já cumpriu os doze trabalhos/ Reescreveu livros dos séculos passados/ Assinou duplicatas, inventou baralhos/ Passeou de dia e dormiu de noite/ Consertou vitrolas para ouvir música/ Sabe trechos da Bíblia de cor/ Sabe receitas mágicas de amor/ Conhece em Marte um amigo antigo lavrador/ Que te ensinou a ter do bom e do melhor/ Do melhor/ Mas o que você não sabe por inteiro/ É como ganhar dinheiro/ 68 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 185-186). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 151-152). 70 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 156). 69 100 Mas isso é fácil e você não vai parar/ Você não tem perguntas pra fazer/ Porque só tem verdades pra dizer/ Pra declarar. No Fundo do Quintal da Escola, lançada em 1977, traz a figura do garoto traquinas: Não sei onde eu tô indo/ Não sei se eu tô no meu caminho/ Enquanto você me critica/ Eu tô no meu caminho/ Eu sou o que sou/ Porque eu vivo da minha maneira/ Só sei que eu sinto/ Que foi sempre assim, minha vida inteira/ Desde aquele tempo/ Enquanto o resto da turma se juntava/ Pra bater uma bola/ Eu pulava o muro com Zezinho/ No fundo do quintal da escola [...]. Lançada no LP Let Me Sing My Rock and Roll, em 1985, outro rock que remete à energia rebelde dessa fase é Caroço de Manga 71: Sempre que eu lhe dou a mão/ Você segura no meu pé/ Eu faço tudo por você/ Tudo o que você quiser/ Eu quero uma colher de chá/ No grande jogo do xadrez/ Não quero ver você chorar/ Não quero ver você chorar/ Tou aqui pro que vier/ Eu danço o que você tocar/ É só dar corda no boneco/ Tango, Rock ou tcha tcha tcha/ Não tenho nada a perder/ Aquilo que pintar eu tô/ Porque eu gosto de você/ Porque eu gosto de você/ Essa vida inteira é uma brincadeira / É só ficar quieto e não dar bandeira/ Você chupou a manga até o fim/ E só deixou o caroço para mim/ E melhor que isso só carnaval/ Pegue essa motocicleta/ E vá mostrar quem é você/ Bota o seu blusão de couro/ Agora é que eu quero ver/ Na arrancada do futuro/ Sem nunca pedir arrego/ Nos olhos cegos do morcego/ Nos olhos cegos do morcego. De 1974, Moleque Maravilhoso 72 é um blues com tom desafiador: Eu nunca cometo pequenos erros/ Enquanto eu posso causar terremoto/ E das tempestades já não tenho medo/ Acordo mais cedo/ Eu nunca me animo de ir ao trabalho/ Eu sou o coringa de todo baralho/ Sou carta marcada em jogo roubado/ A morte ao meu lado/ Eu sou o moleque maravilhoso/ Num certo sentido o mais perigoso/ Moleque da rua/ Moleque do mundo/ Moleque do espaço [...]. Anos mais tarde, ele se recordava dos encontros com os colegas para assistir aos filmes de rock: O Prisioneiro do Rock eu vi 28 vezes. O filme começava às 2 horas, às 9h30 eu já estava lá. Eu e os fanáticos. Já encontrava Waldir Serrão lá com um copo de leite na mão, sentado na porta do cinema, com seu blusão furtacor, óculos de Ronaldo. A calça não era Lee, era uma calça comum, mas o sapato era branco, furadinho, sapato de gangster. Tinha também o Marcos Presley, o TR, que era um estivador, o Vovó, um baleiro que cantava igual ao Little Richard; era fantástico – não entendia uma palavra do que estava dizendo, mas era igualzinho. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 18). A rebeldia juvenil do cinema norte-americano, representada por James Dean e Elvis Presley, foi absorvida por ele na capital baiana, juntamente com o baião de Luiz Gonzaga e a música cubana que tocava nas rádios. Passou não apenas a imitar seus ídolos, como a inserir 71 72 Letra disponível em: <http://letras.terra.com.br/raul-seixas>. Acesso em: 13 fev. 2012. Letra em Passos e Buda (s.d., p. 165). 101 suas atitudes em seu cotidiano. Ao incorporar os modos de andar, fumar, vestir, dançar e falar norte-americanos à sua vida na Bahia, ele experimentava a vivência cotidiana da mestiçagem cultural. Em entrevista à Revista Gostonomia 73, em março de 2010, concedida a Silvia Regina, Amálio Pinheiro fala a respeito da presença da mestiçagem na vida cotidiana: A mestiçagem está na capacidade de incorporar o outro nas mais diversas situações [...]. Não se trata de outro que você descobre e coloca num nicho, o endeusa. Trata-se de um outro para ser comido e digerido de maneira plural [...]. Existe uma forma de conhecimento não oficial que está nas cantigas de roda, nos bailes de periferia, no modo como as pessoas se vestem, nas conversas de rua que compõem um grande tecido de saberes, que são, realmente, o que importa. Embalado por seu entusiasmo e pela vontade de se expressar, Raul montou uma banda com os amigos em Salvador, Relâmpagos do Rock, que posteriormente passou a chamar-se Raulzito e Seus Panteras. De acordo com ele: Foi essa necessidade de dizer coisas, de fazer rock que me levou a fundar os Panteras. O grupo durou oito anos. No início a gente pagava para aparecer na TV, e apresentavam a gente como “música de caubói”. Em 1960 o grupo já estava bem melhor, tinha baixo elétrico. Era uma guitarra acústica Del Vecchio pintada de amarelo vivo e cordas de baixo “importadas” de São Paulo. Foi uma festa quando as cordas chegaram. Bebemos todas as garrafas de vinho do meu pai. Passávamos dias ouvindo discos. Horas e horas pegando detalhes naqueles discos todos arrebentados. A gente viajava pelo interior da Bahia, tocando rock pelo interior baiano, e as reações das pessoas, quando eu caía no chão com o microfone, era indescritível. Foi aí que eu descobri que gostava muito de estar no palco. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 19-20). Nesta fala de Raul estão presentes os dois fatores que moveram sua carreira: sua sede de transmissão de ideias, que aparece como objetivo na produção dos LPs, e o apreço pelo palco, que o fez um artista performático e de grande público. Um dos Panteras, Mariano fala sobre a formação do grupo ao jornalista Cristiano Bastos, em trecho de reportagem da revista Rolling Stone: A formação básica dos Panteras raiou por acaso, em 1962. Por meio de Olival, amigo em comum, Mariano costumava emprestar o seu violão para um desconhecido. A demora na devolução do instrumento, certa vez, fez com que o dono fosse cobrá-lo de volta. Mariano bateu, então, à porta da casa do jovem Raul Seixas, que morava no bairro Canela, perto da residência do baixista. Motivada pela admiração compartilhada por Elvis Presley, a cobrança virou conversa de tarde inteira: “Disse a Raulzito que eu tinha visto o filme de Elvis 36 vezes. Daí ele me falou: ‘Eu assisti 92. Vamos montar uma banda’”, conta Mariano, que aceitou o convite na hora. Raul faria vocais e guitarra e Mariano que era violonista assumiria o baixo. O grupo 73 Disponível em: <www.gostonomia.com.br/rev/2010/03/30/entrevista-amalio-pinheiro>. Acesso em: 13 fev. 2012. 102 firmou-se de verdade em 1963, com a entrada de Carleba e Eládio. (ROLLING STONE, n. 35, 2009, p. 70). Nessa época, estavam em moda as versões nacionais dos rocks norte-americanos, e Celly Campello alcançou grande sucesso ao gravar Banho de Lua, Túnel do Amor e Lacinhos Cor-de-Rosa, de Fred Jorge. Em 1960, surgiram grupos de rapazes, como Jet Black’s, Angels e Jordans. Artistas brasileiros, como Os Mutantes, Roberto Carlos e Erasmo Carlos, começaram a fazer covers de rocks norte-americanos, e uma geração de jovens, a maioria com menos de vinte anos, formou o ciclo do rock brasileiro dos anos 1960, conhecido como Jovem Guarda. Em 1964, Hervê Cordovil compôs Rua Augusta, gravada por seu filho Ronnie Cord. A música de sucesso é uma narrativa brasileira do sentimento jovem dos anos dourados, posteriormente regravada por Raul Seixas. A bossa nova foi ganhando espaço midiático, e o entusiasmo com o rock foi sendo em certa medida ofuscado aos olhos do público em geral; mas, obviamente, não para os fãs. Raul compara a bossa nova e o rock no Brasil e as diferentes camadas sociais que atingiam: A Bossa Nova surgiu junto com o Chá-Chá-Chá, e o Rock’n’Roll junto com a influência do Calipso. Era chique tocar Bossa Nova, e o Chá-Chá-Chá até era permitido. O Rock era outra estória; eu tinha que ir até o clube das empregadas para dançar com elas. A empregada lá de casa era minha fã. Chegou uma vez para minha mãe e disse que tinha dançado comigo. Minha mãe quase morreu. Eu ia dançar também com o pessoal da TR (uma transportadora de lixo). Era a moçada que curtia Rock. A Bossa Nova era com o pessoal do teatro Vila Velha. Na sociedade não se falava em Rock, era coisa de gentinha. Eu freqüentava o Iate e o Tenis Clube que eram os clubes mais metidos a besta de Salvador. Chegava de gola levantada e ficava encostado num canto tomando Cuba Libre, enquanto os outros dançavam. Eu me sentia diferente, importante, tipo: “Tô revolucionando tudo”. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 8, grifo da autora). Em 1964, o conjunto de Raul, Os Relâmpagos do Rock, mudou seu nome para The Panthers (Os Panteras), em homenagem a The Beatles (Os Besouros), que, por sua vez, faziam menção à banda de Buddy Holly, dos anos 1950, The Crickets (Os Grilos). Posteriormente, o grupo passou a adotar o nome de Raulzito e seus Panteras. No mesmo ano, o conjunto foi pela primeira vez a um estúdio para gravar Nanny, de Gino Frey, e Coração Partido, a versão do pai de Raul para Musidem, cantada por Elvis Presley. Embora o compacto não tenha sido lançado, seu acetato ganhou as rádios de Salvador, tornando-o bastante conhecido. The Panthers faziam covers dos Beatles e grande repertório de rocks norteamericanos. A projeção na rádio somada às apresentações em festas e clubes renderam shows 103 por todo o interior baiano. Eles eram chamados para tocar em locais de prestígio, incluindo o imponente Iate Clube. O grupo atingiu o status de conjunto mais caro de Salvador. Eu já tocava profissionalmente aos dez anos nos Relâmpagos do Rock. Eu tinha um amplificador que era um rádio de válvula do meu avô, adaptado por meu pai. O fio era curto e a gente tinha que ficar preso ao rádio. Isso em 54/55, ninguém sabia o que era Rock. Eu tocava e me atirava no chão imitando o Little Richard, como eu via nos filmes que os americanos passavam. Sempre notava que as primeiras filas ficavam vazias e que as mães pensavam que eu era epilético, com meu topete de brilhantina e camisa aberta com gola levantada. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 8, grifo da autora). Raul anotou, ainda muito jovem: “As letras em português não dizem nada, se eu pudesse unir as coisas que eu escrevia com o ritmo do rock vai ser um sucesso” (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 33). 3.2 O Rock Raul explica o início do rock: Porque o rock’n’roll nasceu mais ou menos em 54, com cinco influências diferentes: o rock de Chicago – Chuck Berry; do Alabama – Little Richard; os gospels (spirituals) dos negros americanos, e foi se transformando até o Elvis Presley fazer o rockabilly. Mas em 59 ele sofreu uma queda – o rock’n’roll mesmo, aquela coisa da dança... enfim, o rock era, na medida que eu conheço, um movimento comportamentista – ter o cabelo assim (Raul mostra uma foto sua ainda adolescente de topete e gola alta), cantar desse jeito, de uma maneira tão estranha que as mães tiravam os filhos da primeira fila, pensando que eles estavam tendo um ataque de epilepsia. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 143). O rock tem raízes no canto do povo africano, que, ao ser trazido para a América do Norte como escravo, trabalhava cantando com voz rouca e sentimental, ritmo sincopado e chamado e resposta. Desse modo de cantar surgiram ritmos como o jazz, o blues, o gospel e o rhythm and blues; da mistura destes, somada ao country e ao folk (norte-americanos), surgiu o rockabilly e o rock and roll. A escravatura nos Estados Unidos, que teve início antes mesmo de sua fundação, durou do começo do século XVII até dezembro de 1865, deixando uma grande população afrodescendente, cuja expressividade musical sempre foi notável. O ritmo musical, que começou a tomar forma nos Estados Unidos dos anos 1950, contou com a primeira geração de cantores aflorando por volta de 1953, com Fats Domino, Bill Haley, Chuck Berry e Little Richard. A segunda geração, dois anos mais tarde, com os rapazes do sul do país: Elvis Presley, Buddy Holly, Jerry Lee Lewis e os Everly Brothers, que o levaram a um sucesso comercial nunca antes imaginado. 104 Seu surgimento contou com fatores históricos e econômicos favoráveis: enquanto a economia dos Estados Unidos atravessava uma fase próspera, e o governo passou a dar um “extra” financeiro às famílias, os jovens que habitualmente trabalhavam nas férias não precisaram fazê-lo, dispondo de tempo livre e dinheiro. Os adolescentes dispõem de um enorme volume de dinheiro e gozam de muito lazer; era inevitável, assim, que passassem a constituir um mercado especial. Foram adulados, utilizados, idolatrados e tratados com uma deferência quase nauseante. O resultado disso é que tudo quanto os jovens criaram para si serviu de alimento à máquina comercial. (ROSZAK, 1972, p. 38) Raul fala de sua paixão pelo ritmo, e da revolução comportamental que este significou: Ouvi baião antes do rock, quando meu pai me trouxe o primeiro 78 rotações da minha vida. Depois misturou, porque Elvis era muito forte para mim. Foi na época em que uma geração subiu no banquinho e gritou: “Poxa, nós somos diferentes dos coroas!”. Era aquela rebeldia pura, sem a consciência exata do que se estava fazendo. Chegou o momento histórico que permitiu a eclosão daquele comportamento. A coisa do Rock foi, basicamente, uma revolução no comportamento. Aí eu fui ao cinema ver Love me Tender, o primeiro filme do Elvis. Fiquei doido. Pedi ao meu pai para comprar o disco, que eu tenho até hoje. Era o Hit Me-Up. Então a coisa toda começou. Eu, mais tarde, fugia do colégio interno para ouvir rock numa lojinha chamada Cantinho da Música. Contribuiu muito o fato de que morávamos em Salvador, perto do consulado americano e eu fiz amizade com uma garotada americana. Com 9, 10 anos eu passei a falar inglês, fluentemente, e também a ouvir tudo quanto era disco de rock. Era Eddie Cochran, Gene Vincent, Jerry Lee Lewis, caras que ninguém conhecia no Brasil. Eu e o Waldir Serrão, que hoje é o disc-jockey Big Ben, fundamos um clube de rock. Mas naquela época, bicho, jovem de sociedade não gostava de rock’n’roll. Sabe quem dançava rock? Só empregada doméstica, chofer de caminhão. E eu metido ali no meio, dançando. Minha mãe, que era muito ligada nesse negócio de sociedade, casada com um engenheiro, classe média bem situada e coisa e tal, ficava arrasada. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 129). A música que começava a surgir era empolgante, com compassos bem marcados, acompanhados de um dançar deselegante, com exessivo movimento de quadris. Sua sonoridade se aproximava do gospel, com ritmo mais inquietante e temas voltados aos sentimentos da juventude. O dançar desajeitado, em que se chacoalhava a cabeça e balançava as cadeiras, permitia jogar a moça pra cima ou passá-la por baixo das pernas e pegá-la do outro lado, embora cada um dançasse como quisesse como nos bailes de rhythm and blues. Visando a preservar sua reputação, as emissoras convencionais não tocavam rock; no início, era tocado nas rádios “piratas” e das comunidades afrodescendentes dos Estados Unidos, e a juventude branca começou a sintonizá-las. 105 O Estado, a escola, a família e a Igreja estavam contra sua proliferação. De acordo com Friedlander: O conselho dos cidadãos brancos do Alabama anunciou uma campanha para livrar o país deste “animalístico bop negro”. Muitos representantes governamentais, religiosos, e educadores ecoaram estes sentimentos, caracterizando a música como imoral e pecaminosa – e seus intérpretes como delinqüentes juvenis preguiçosos e indolentes. (FRIEDLANDER, 2002, p. 47). Para as instituições, o rock representava uma desordem moral proliferante de rápido contágio, um gospel distorcido que incitava o comportamento displicente e o descontrole emocional. Sua proximidade com o gospel estabelecia um grau comparativo onde ele representava o profano em oposição ao sacro. Em um país protestante, suas danças sugestivas e letras mundanas deitavam por terra o decoro. As características dos adeptos incluíam a atitude rebelde de subversão dos valores sociais, desde a aparência física: adotavam um modo de andar desafiador, colocavam a gola da camisa voltada para cima, usavam os cabelos penteados em topetes, jaquetas de couro pretas, jeans agarrados. Cultivavam o hábito de andar em grupos e tinham uma maneira estranha de mascar chicletes. Raul ouvia os discos até estragar os sulcos e assistia aos filmes dezenas de vezes. Aos onze anos, sua vida uniu-se ao rock, com a intensidade e a paixão que vimos no astro que se tornou depois. A esse respeito, ele explicou: Eu ouvia os discos de Elvis Presley até estragar os sulcos. O rock era como uma chave que abriria minhas portas que viviam fechadas. O rock era muito mais que uma dança pra mim, era todo um jeito de ser. Eu era o próprio rock. Eu era James Dean, o Rebel Without a Cause. Eu era Elvis Presley, quando andava e penteava o topete. Eu era alvo de risos e gracinhas, claro. Eu tinha assumido uma maneira de vestir, falar, agir que ninguém conhecia. Lá na Bahia eu estava na frente de todos em matéria do que estava acontecendo no mundo com relação à música. Claro que eu não tinha consciência da mudança social toda que o rock implicava. Eu achava que os jovens iam dominar o mundo. (SEIXAS, Raul apud PASSOS; BUDA, s.d., p. 76). A rejeição do ritmo por parte das instituições manteve os empresários à distância, até que a procura do público pareceu rentável o suficiente para que as rádios e gravadoras contratassem intérpretes brancos e bem comportados para imitar os cantores originais, amenizando as letras, e disponibilizaram essas versões para o mercado. Os jovens não gostaram das versões amenas e tornaram-se adeptos das rádios negras e “piratas”, tendência que cresceu com desmedida rapidez. 106 Essa não aceitação institucional do rock foi a “mola” propulsora da paixão adolescente que suscitou. Surgido com a vitalidade e rebeldia características, sempre se pretendeu na contracultura, na contramão dos valores sociais e morais instituídos. Sua rejeição fora do âmbito jovem o fez explodir como um grito de rebeldia. Economicamente, a constatação de seu potencial de comercialização levou empresários de vários setores a atenderem a uma fatia de mercado que se mostrava promissora: os adolescentes. Também as rádios e gravadoras, já próximas da falência, assumiram o possível desgaste da imagem, lançando os cantores de rock no mercado. Novos setores cresceram para atender jovens ávidos por se destacarem dos modos de vida de seus pais. Roupas, sapatos, bicicletas, carros, rádios, discos, cinema, filmes, músicas, revistas, propagandas, shows, drive-ins, lanchonetes, produtos de beleza, alimentícios e acessórios foram especialmente desenvolvidos para jovens, e o mercado americano mudou. A respeito da absorção mercadológica do ritmo nos anos 1960, Zumthor diz: Dez anos de festas libertárias, dezenas de milhões de fãs pelo mundo afora, uma tal abundância de experiências que nada jamais voltará a ser como antes. Escândalos, intolerâncias familiares e policiais: conhecemos essa breve história. A amplitude da reação testemunharia o poder dessas vozes contestatórias. Mas mais que essa contra-violência, mais que as edulcorações do twist, a indústria triunfou. Quando a cifra da rock music alcança milhões de dólares, as vozes nesse universo se calam [...] Na mesma época se multiplicam na América Latina os festivais da canção de protesto, empresas de bom rendimento (1997, p. 290). O rock e o mercado estavam propiciando mudanças comportamentais muito rápidas, e um novo senso de percepção individual e grupal florescia entre os jovens. A adolescência foi em larga escala reconhecida como um período passageiro, dotado de característico comportamento diferenciado, que precedia a vida adulta. Raul fala do que o atraiu no rock, da passagem para a adolescência como fase diferenciada do mundo adulto, e do poder de expressão que o ritmo trazia: O que me pegou foi tudo, não só a música. Foi todo o comportamento rock. Eu era o próprio rock, o teddy boy da esquina, eu e minha turma. Porque antes a garotada não era garotada, seguia o padrão do adulto, aquela imitação do homenzinho, sem identidade. Mas quando Bill Halley chegou com Rock Around The Clock, o filme No Balanço das Horas, foi uma loucura pra mim. A gente quebrou o cinema todo, era uma coisa mais livre, era minha porta de saída, era minha vez de falar, de subir no banquinho e dizer eu estou aqui. Eu senti que ia ser uma revolução incrível. Na época eu pensava que os jovens iam dominar o mundo [...] (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 14). 107 Portanto, o rock foi a causa do novo senso de percepção dos jovens, da quase falência e posterior enriquecimento das rádios e gravadoras, e da criação e crescimento de um novo nicho de mercado em diferentes setores. Sua disseminação deu-se por todo o mundo. Na Inglaterra, o fenômeno ocorreu em seguida ao dos Estados Unidos e, entre as inúmeras bandas caseiras formadas por amigos, algumas se sobressaíram com sucesso mundial, como The Who e os Beatles. Por reacender a chama da empolgação trazendo o rock inglês para os Estados Unidos nos anos 1960, o movimento ficou conhecido como “invasão inglesa”. Sobre a chegada do rock na Europa nos anos 1960, Zumthor afirma: No início dos anos sessenta produziu-se na Europa um fato novo cuja importância histórica, com o passar do tempo, tornou-se sem dúvida considerável: o rock’n roll caía da América sobre uma juventude de blusões negros, meio marginalizada e fértil de violências reprimidas. Nos Estados Unidos, o rock, herdeiro legítimo da renovação musical dos anos quarenta, tinha já dez anos de idade. Na Europa, ele prometia logo um Maio de 68 radical, totalmente irresponsável, cuja verdade, quando sobreveio, não passou de sombra efêmera. Canto, o rock integrava e resumia todas as poesias de contestação anteriores, mas dirigia a força delas no sopro de puras energias irracionais. Ele destruía o invólucro fônico do corpo, protetor e seguro; explodia em discordâncias furiosas a terna voz maternal, abjurada. Por isso o rock foi recebido e propagado como música e como ritmo coletivo: quase não havia necessidade de palavras para transmitir seu furor. Forma de ato puro, gozo arrogante, ruptura de linguagem invadida de onomatopéias e de urros (1997, p. 290). Contextualmente, o rock evoca os sentimentos e ritmos primitivos e antigas contestações medievais dos goliardos, ao mesmo tempo em que propõe novas alternativas comportamentais e serve-se das mais recentes tecnologias. Sua atitude anárquica está ligada à rebeldia contra os sistemas socioculturais estabelecidos. Portanto, entra no processo de carnavalização, subvertendo a ordem em meio à festa, à dança, à sátira e ao deboche. É um ritmo musical “visceral” emocionalmente exacerbado, ligado aos instintos primitivos, como o sentimento tribal, o desejo sexual, a revolta, a paixão e o grito libertário. Ressuscita o berro visceral há muito abafado pelas sociedades que se pretendem civilizadas. “O ritmo gostoso, tribal, a batida, tudo isso pegava fogo dentro de mim.” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 41). Se a voz havia sido domada em sua variação tonal e performática desde os tempos medievais — com a Igreja estabelecendo as normas de boa conduta na Europa Ocidental, conceito que se alastrou aos países da América Latina com o processo de colonização —, o rock rompe o véu do decoro corpóreo-vocal e traz de volta o gesto corporal livre, a eroticidade, a performance, a batida tribal, com a sensação de estar em volta da fogueira, a 108 liberdade sexual, o modo de vida em grupo, e o grito primal cuja alteração emocional resgata o que há de mais primitivo no prazer e na dor. Sua profundidade expressiva e tonal irrompe da variação emocional e anuncia algo novo: um urro de dor, um gemido de prazer, o estouro de alegria, o berro de revolta, os sons onomatopeicos pré-históricos, os cantos de chamado e resposta das tribos africanas, os berros nos campos de batalha, ou os gritos das danças indígenas que reforçam o sentimento de grupo. As emoções mais intensas suscitam o som da voz, raramente a linguagem: além ou aquém desta, murmúrio e grito, imediatamente implantados nos dinamismos elementares. Grito natal, grito de criança em seus jogos ou aquele provocado por uma perda irreparável, uma felicidade indizível, um grito de guerra, que, em toda sua força, aspira a fazer-se canto: Voz plena, negação de toda redundância, explosão do ser em direção à origem perdida — ao tempo da voz sem palavra. (ZUMTHOR, 1997, p. 13) O grito de guerra do rock: “Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!”, título do álbum de Raul lançado em 1987, foi criado por Little Richard para a entrada de sua música Tutti-Frutti. Muitos rocks trazem um grito representativo, que ecoa por toda a música, como “I Feel Good”, de James Brown, que inicia com o grito: “Whooooau! I Feel Good...”. O direcionamento emocional, ao mesmo tempo subjetivo e claro, é no rock uma herança do blues, onde as emoções são bastante acentuadas pela entonação vocal. Em seu universo, as emoções não estão mais controladas, vigiadas pelos sistemas institucionais responsáveis pelo nivelamento emocional mediano (família, Estado, religião); ao contrário, são expostas cruas tal como se dão. Não é incomum que um show de rock abrigue a subversão do decoro, seja com os artistas tirando a camisa, rasgando-a, quebrando os instrumentos, atirando-se na plateia ou, ainda, urrando, gritando, pulando, mostrando a língua ou mesmo o traseiro para o público. Outras bandas optam pela atitude politicamente engajada, que deixam clara sua participação em causas que permanecem marginais às prioridades do sistema, como luta contra a miséria, a opressão e a violência. Como os shows Live Aid, dos anos 1980, cujo objetivo era a arrecadação de verbas para os países pobres. Embora todo esse rompante de atitude contra-hegemônica já tenha sido capitalizado, contando, inclusive, com o apoio de grandes empresas, o rock lida com a representação do indecoroso, daquilo que não teria lugar no sistema. Traz à tona o pensamento contrário à ordem, quebrando a resistência do stablishment, contudo, diante de seu potencial milionário. Embora jamais se desfaça de sua aura marginal, sua inserção no sistema coloca-o na condição de produto, tendo sua rebeldia embalada e vendida pelo mercado. 109 Em A Verdade sobre a Nostalgia74, Raul aponta como a aceitação familiar do ritmo ofuscou sua aura de rebeldia, e fala da necessidade de renovação do movimento: Tudo quanto é velho eles botam pr’eu ouvir/ E tanta coisa nova jogam fora sem curtir/ Eu não nego que a poesia dos 50 é bonita/ Mas todo o sentimento dos 70 onde é que fica?/ Eu vou fazer o que eu gosto.../ Eu vou/ Dos 50 bonita-ta/ Mas os 70 onde é que ele está?/ Por isso a nostalgia eu tô curtindo sem querer/ Porque está faltando alguma coisa acontecer/ Mamãe já ouve Beatles/ Papai já deslumbrou/ Com meu cabelo grande/ Eu fiquei contra o que eu já sou [...] Na curva do futuro muito carro capotou/ Talvez por causa disso é que a estrada ali parou/ Porém, atrás da curva perigosa, eu sei que existe/ Alguma coisa nova/ Mais vibrante e menos triste. 3.2.1 Rock e Mestiçagem O rock é um estilo musical e comportamental mestiço, aberto à participação de uma ampla gama de elementos; trabalha seus temas entre os fatos da cultura da qual fala e aquilo que parece exótico a esta. Traduz o som das ruas e as sonoridades imaginárias, assim como busca na cultura do outro a sonoridade distinta daquela que conhece. Essa busca incessante pela expansão sonora e temática do rock, que traz elementos filosófico-religiosos de sociedades “distantes” para a cultura de massa, aparece de forma clara tanto nos trabalhos dos Beatles e em suas meditações com o guru indiano, como nos trabalhos de Raul Seixas e em seus estudos místicos. Também está presente nas músicas do Led Zeppelin, nas viagens de Jimmy Page e Robert Plant ao Oriente, e nas inovações sonoras e psicodélicas do Pink Floyd. O rock alimenta-se do que está fora, quer o outro, o elemento que desconhece, culturalmente distante e também por isso mais atraente. Traz para si aquilo que interessa, sem qualquer padrão ordenado. Relaciona grande diversidade de elementos, de forma não hierárquica, colocando num mesmo plano de importância desde a garota que dança no baile à grandiosidade de um livro sagrado, incompreensível em sua complexidade fora da trama cultural da qual foi tirado. Suas músicas apresentam grande variedade temática: um dos maiores sucessos do Grateful Dead, a música country Casey Jones, versa sobre o engenheiro ferroviário morto em uma colisão no Mississipi, no ano de 1900, que havia se tornado um mito na região, enquanto John Lennon fez Tomorrow Never Knows sobre o Livro Tibetano dos Mortos, e Erick Clapton fez seu grande sucesso Layla para a garota de seus sonhos. 74 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 189). 110 Se nos anos 1950 os principais temas do rock eram o comportamento jovem, a rebeldia, a escola e as namoradas, com a revolução cultural da década posterior, temas sociais e políticos, literatura e experiências alternativas, tudo foi inserido em seu universo temático. Os primeiros a realizarem essa expansão de forma diversificada foram os Beatles, que, embora ingleses, trabalharam com o questionamento e as novas experiências, tanto norteamericanas como inglesas. O campo do rock não opõe resistência ao sacro ou ao profano, ao excessivamente conhecido, nem ao erudito ou ao popular. De acordo com Amálio Pinheiro (em aula) 75: “A mestiçagem propõe uma abertura contínua, daí o estado de tensão intercomplementar entre os elementos que a compõem. A mestiçagem não oferece uma síntese. A relação entre o sagrado e o profano não se resolve a favor de nenhum dos dois”. Quando Chuck Berry canta Roll Over Beethoven, num trocadilho com o grande compositor da música clássica, o traz para o plano corriqueiro, para o meio de seu rock popular, socialmente marginalizado e composto sem partitura. Anos mais tarde, em seu último álbum, Raul Seixas e Marcelo Nova cantam sua composição Rock’n’Roll, que diz: “Mas nunca vi Beethoven fazer aquilo que Chuck Berry faz”, e segue, tal como no refrão da música de Chuck: “Roll over Beethoven, roll over Beethoven”. Tudo cabe e se tematiza no campo do rock, um movimento contracultural, revolucionário no aspecto comportamental, contestatório por natureza, que nasce livre e prima por exercer seu viés libertário tanto quanto puder. Suas composições não têm partitura, na maior parte das vezes, e, neste ponto da escrita do código, ele também rompe com a música clássica e com sua herança; porém, sem nenhum problema, dela se alimenta e a inclui quando assim o quer. Algumas bandas, como a inglesa Queen, se sobressaem pela excelência do trabalho que une a música clássica ao rock, colocando-os em relações tão emaranhadas que passam a não ser nem apenas uma coisa nem outra, nem mesmo a mistura, mas a mestiçagem rítmica que cria uma terceira coisa: um rock melódico. Não só o trabalho melódico instrumental se dá de forma mestiça como também a escolha temática e a entonação vocal de Freddie Mercury, que, partindo de sua formação como pianista e cantor clássico, realiza uma performance corpóreo-vocal mista de tenor com rocker, numa mesma canção, a exemplo das variações vocais e rítmicas da música Bohemian Rapshody. Outro exemplo é sua performance no palco, 75 PINHEIRO, Amálio, em aula em São Paulo, em: 4 ago. 2010, no Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem. 111 na qual alterna entre sentar-se ao piano com elegância e ter a conduta rocker, ao dançar e pular energicamente. Integrando o rock à música clássica tradicional, o conjunto inglês The Who assumiu o risco de criar uma ópera rock inspirada nos estudos místicos do guitarrista Pete Townshend e nos ensinamentos do guru Meher Baba. A Ópera Tommy, datada de 1969, é uma crítica ao sistema social e comercial, que narra a trajetória de um garoto que se torna cego, surdo e mudo a partir do episódio traumático da infância em que presencia a infidelidade conjugal da mãe. A despeito de suas dificuldades, ele se torna um exímio jogador de pinball idolatrado por multidões, enquanto produtos com o seu nome são industrializados e comercializados. Ao recuperar a visão, já adulto, em meio à efervescência mercadológica de seu sucesso, experimenta tamanho desgosto, que prefere tornar à sua deficiência. O rock coloca-se longe da ordem estabelecida; ele quer a desordem e o caos, mas é desse estado desordenado de coisas que surgem suas composições complexas. Combinar o uso da voz, a temática, os instrumentos, os ajustes de estúdio e os canais de som é um trabalho assaz refinado, que só se torna aprazível aos ouvidos do público quando muito bem realizado. Durante essa fase, o que nasceu do impulso da desordem mais dionisíaca é colocado em padrões de disciplina, adquirindo maturação com o trabalho árduo dos músicos e engenheiros de som, para ser lançado no mercado e, só então, interpretado da forma livre como foi concebido. É um estilo musical em certa medida barroco, alimenta-se do excesso e do desassossego, dos sentimentos profundos e das andanças errantes. Toma pé a partir da desmesura, do desperdício, do exagero, da boemia, do erro e da incerteza das experiências de seu público e de seus compositores. É movido pela paixão e pela desordem. Seus músicos colecionam experiências com excessos envolvendo drogas, álcool, festas, parceiras e comportamento inadequado; são protagonistas de vidas errantes, repletas de viagens e de desencontros, mas desfrutam também das grandes acolhidas de seus sucessos. Surgido da relação entre ritmos diferentes, como blues, gospel, jazz, rhythm and blues, folk e country, é, de partida, um ritmo sacroprofano assim como é mestiço. Esse caráter mestiço — sua mistura da sacralidade do gospel com os modos de dançar do rhythm and blues, que nasceu dos bailes das casas noturnas da periferia, tal como o tango na América-Latina — constituiu uma de suas principais dificuldades de aceitação institucional inicial. O povo afrodescendente das periferias norte-americanas havia criado modos livres, porém característicos, de se dançar o rhythm and blues tanto a sós quanto aos pares, e uma das 112 características era o movimento dos quadris incorporado à dança. Também o rockabilly de Elvis trazia a gestualidade espontânea do gospel misturada ao seu jeito próprio de dançar, movimentando os quadris para a frente de forma escandalosa para a época. Esses modos de dançar se misturaram, no rock, com a ampla gama de movimentos criados por músicos como Chuck Berry, Little Richard e Jerry Lee Lewis e pelo próprio público. Se nos anos 1950 o ritmo contava com o movimento rotatório lateral dos quadris, hoje se traduz pelo chacoalhar da cabeça e envergar do tronco para a frente, acompanhado do levantar enérgico de um dos braços nas partes principais da música. Entre os artistas pioneiros, Chuck Berry, com sua guitarra, fazia o movimento característico de cruzar o palco tendo um pé em apoio com o joelho flexionado e a outra perna esticada para a frente com o pé tocando o chão alternadamente, na direção em que se deslocava. Little Richard dispensou o banco do piano, tocando sempre em pé num frenesi enérgico enquanto cantava, e Jerry Lee Lewis, mesmo tocando sentado, empreendia uma energia frenética nas teclas, o que confere a ambos a subversão dos atributos clássicos da clareza sonora do instrumento e da elegância postural ao piano. No início, além do caráter sugestivo e mestiço da dança, havia o fato de os intérpretes afrodescendentes e brancos atingirem imenso sucesso, unindo ambos os públicos pela paixão em comum. Logo, de os elementos da cultura africana estarem penetrando os modos de dançar e andar da juventude branca, habituada a uma vivência separada de seus colegas, desde a habitação dos bairros à frequência nas escolas. Com essa aproximação sendo feita por meio da música, as trocas culturais passavam a ser inevitáveis. Embora tal união tenha se dado apenas de modo parcial. Para maior assombro dos adultos educados nessa condição de separação, os rockers e a contracultura tornavam-se um movimento só, por vezes sem conta, pois, tanto quanto o folk das canções de protesto e o blues dos guetos, este era o ritmo da contracultura, e esta, por sua vez, estava trazendo para o seio da América do Norte tudo o que de exótico se pudesse encontrar em outras civilizações. Essa juventude criada com limites de contato com outros povos estava descobrindo o prazer de conhecer o outro. Interessaram-se pela cultura africana, indígena e hindu e por suas práticas sacras, sociais e sexuais e, com isso, trouxeram: do México, o cacto peiote para ser usado como alucinógeno; as penas e miçangas dos índios de sua própria América; as práticas meditativas do Oriente, acompanhadas de incensos, batas e colares, e a alimentação vegetariana. Também passaram à não limitação de parceiros e à vida em comunidade. E esse conjunto de fatores era considerado obsceno para uma sociedade até então fechada à cultura 113 do outro, mesmo convivendo com outros povos em seu território, como era o caso de negros e índios. As experiências alucinógenas e sexuais, as meditações orientais, a vida em grupo e tudo o que parecesse exótico à cultura norte-americana, ainda que fosse milenar em seu local de origem, era trazido para o universo rocker, e essa tendência foi seguida por alguns artistas notáveis também na Europa ocidental e na América-Latina. A tentativa de se recorrer às práticas meditativas do Oriente como alternativa à insatisfação com a sociedade norte-americana foi praticada, desde os anos 1950, pelos beatnicks e continuada pela contracultura hippie na década seguinte. Tal busca foi expressa na música e vivenciada por artistas interessados nessa expansão sociocultural alternativa em todo o mundo. O folk de Woody Guthrie, Joan Baez e Bob Dylan contribuiu com o viés de protesto social e movimento popular, assim como o blues, com os temas de sofrimento causado por um sentimento de saudade e abandono social e financeiro. Então, tanto esse “grito” popular, que vinha desde a recessão com a queda da bolsa de Nova Iorque em 1929, como o romantismo e a rebeldia juvenil dos anos 1950, e a contracultura dos anos 1960 foram colocados no mesmo nicho de possibilidades temáticas do rock. O rock funcionava como um canal de comunicação por onde transitava toda a ilegalidade do comportamento mestiço. Incorporar o outro, vestir-se de uma série de outros, com penas de índio, bata indiana e farda de soldado, de uma só vez, constituía uma brincadeira de inclusão e de troca. A constante inclusão do outro, característica na América Latina desde os idos de mil e quinhentos, tomava a forma, na parte norte do continente, de uma descoberta espantosa, já nos anos 1960. Se, na América Latina, havíamos adotado o gingar das cadeiras trazido pelos passos afrodescendentes desde o tempo das colônias europeias, para os norte-americanos o mexer das ancas não havia sido incorporado aos modos de andar de seu povo, e só estava adentrando suas danças por conta da miscigenação rítmica da juventude. O que ocorria na periferia não deveria ganhar espaço no sistema social, mas esses modos mestiços estavam se espalhando socialmente até ganhar o mercado e, com isso, o seu lugar na sociedade. Os gritos de Richard, como Wah-Bap-Lu-Bap-Lah-Beín-Bum! em Tutti- Frutti, ou o vocal gritado de Luccile vão abrir o campo das possibilidades da expressão vocal. Richard, uma das figuras mais expressivas do rock, apresentava-se com o rosto maquiado e roupas brilhantes, em seu pioneirismo dos anos 1950, representando em si a energia do público afrodescendente. 114 Posteriormente, o ritmo continuaria sua montagem mestiça incorporando não só os elementos africanos e norte-americanos do início como hindus, havaianos, latinos, os cantos europeus medievais, como o folk irlandês, e os vocais guturais. O rock’n’roll constitui-se não apenas de sua estrutura tradicional e dos acordes da guitarra como daquilo que é incorporado ao movimento, como a música havaiana trazida por Elvis, o fuzz, a flauta e a cítara trazidos pelos Beatles. Constituiu-se também das traduções sonoras das meditações transcendentais e das “viagens” de alucinógenos das bandas da contracultura, como Jefferson Airplane, Big Brother and The Holding Company, Grateful Dead, e os longos e distorcidos solos de guitarra de Jimmy Hendrix e Eric Clapton, os sons do Oriente incorporados pelo Led Zeppelin e os sons e jogos de luzes psicodélicos desenvolvidos pelo Pink Floyd. Nas décadas de1970 e 1980, a banda inglesa Led Zeppelin incorporou ao rock: o soul, o funk, o reggae, os ritmos do Oriente Médio e da própria Europa — Immigrating Song é um grito de batalha viking inspirado por sua visita à Islândia. Se o rock é mestiço desde o ressoar dos primeiros acordes, um representante latinoamericano, baiano, apaixonado por esse ritmo, como Raul Seixas, estabeleceu tantas conexões temáticas e rítmicas quanto conseguiu imaginar, a começar por seu próprio personagem. 3.3 Blues Em gravação particular, Raul canta o blues Keeps on Rainning, de Billie Holliday, com a vocalidade dramática tradicional: “Oh Lord keeps on raining […]”. O blues surgiu no início do século XX. Sua vertente mais popular, o blues rural, foi representada pelo estilo dos vocalistas Bessie Smith e Ma Rainey, que conquistaram grande sucesso. Esse ritmo era tocado em teatros e casas de show principalmente no leste do Mississipi. “Homens negros desempregados, carregando seus violões, cruzavam o Sul durante os piores dias da Depressão, cantando sobre a vida difícil e dolorosa que levavam.” (FRIEDLANDER, 2002, p. 32). Essa frase descreve, em um quadro poético, a história de um povo pobre e imigrante, num país enfraquecido pela queda da Bolsa de Nova Iorque de 1929, que desestabilizou a economia de várias nações, sobretudo a dos EUA, gerando o período de desemprego e recessão conhecido como Depressão. Os temas do blues eram os conflitos e adversidades da vida. Musicalmente, esse ritmo tinha doze compassos e três acordes. O primeiro verso da estrofe era repetido duas vezes, e só aí entrava um verso diferente. Acompanhando o vocal, tocava-se um violão de cordas de aço; 115 às vezes, outro músico fazia o acompanhamento com outro violão ou com duas baquetas de percussão também chamadas de bones (ossos). As apresentações deste blues sulista foram perdendo a força em relação ao momento histórico após a Segunda Guerra, cedendo espaço à vertente urbana deste estilo musical conhecido como blues urbano. Tanto a Depressão norte-americana como a Segunda Guerra Mundial culminaram na migração dos povos afrodescendentes, formando comunidades afro-americanas nos centros urbanos do norte dos EUA. Para os imigrantes, o novo ritmo de vida fora do meio rural e a distância do lar e da família foram a base para o surgimento do blues urbano, cujo principal foco foi Chicago. O ritmo preservou a base do estilo rural e aumentou o uso da guitarra, e suas temáticas passaram a incluir a catarse rural, a depressão e a cidade. Segundo Friedlander (2002), nos anos 1940, o apanhador de algodão e cantor de blues rural do Mississipi Muddy Waters formou, em Chicago, uma banda importante do estilo, com bateria, baixo, guitarra rítmica e piano, acrescentando uma guitarra-base e harmônica como instrumento solo, formação essa que tornou-se modelo tanto para o rock moderno como para o clássico. O blues urbano, com mais guitarras e temas não depressivos, foi a primeira raiz afro-americana do rock and roll; a segunda foi o gospel. 3.4 Gospel Raul fala de seu apreço pelo gospel: Porque rock é uma coisa primitiva, musicalmente, uma batida selvagem. É pá-cum, pá-pá, caixa e pedal, só caixa e pedal, pá-cum-pá-cum, aquela repetição vai me levando ao êxtase. É como o gospel. O rock vem do gospel. Quando eu estive lá numa igreja em Memphis, eu quase recebi... como eles dizem... um santo... the spirit on me. Fiquei louco com aquela coisa insistente sem modulação, que vai entrando em meu sangue devagarinho... pá-cum-pá-cum... o pessoal batendo palma... aquele ritmo no contrabaixo, 4/4... dum-dum-dum-dum-dum-dum-dum-dum... e pá-cum-pá-cum... é isso que eu gosto, que eu curto. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 26). O gospel é a música religiosa afro-americana do período final da escravidão nos EUA, caracterizada por ritmo complexo, com chamado e resposta, batidas persistentes, percussão, palmas e improvisação melódica, acompanhados de gestos corporais livres, conjunto também encontrado no rhythm and blues e, posteriormente, no rock and roll. No início do século XX, foi criada uma versão contemporânea do ritmo, para a qual compositores como Thomas Dorsey contribuíram. Os grupos Soul Stirrers e Swan Silverstones se popularizaram dando destaque à expressividade emocional e ao fraseado 116 interpretativo, com significativa improvisação rítmica, os chamados e respostas eram interpretados pelo cantor principal e respondidos pela congregação. 3.5 Jazz Em seu show na Sociedade Desportiva Palmeiras em 26 de fevereiro de 1983, Raul fala para uma plateia de dez mil pessoas: “Outra influência do rock’n’roll, o estilo do jazz americano do negro”, antes de cantar Do You Know What it Means To Miss New Orleans (criada em 1947 por Eddie DeLange e Louis Alter, interpretada por Billie Holiday e, posteriormente, por uma série de cantores da época), lançada em seu LP Raul Seixas ao Vivo, em 1984. O jazz foi outro estilo que contribuiu para o rhythm and blues; logo, também para o rock and roll. Tornando-se conhecido do grande público no final da Segunda Guerra Mundial, assim como o rock, formou-se com uma aura de marginalidade que embalou os movimentos do pós-guerra e a contracultura. O jazz foi o som da geração beatnick, assim como o rock foi o da hippie. Laplantine e Nouss falam da formação do ritmo: El jazz es el desenlace (inconcluso) de un largo proceso de evolución y transformación de las músicas afroamericanas en los Estados Unidos, sobre un fondo de antimestizaje. Aparecido en las primeras décadas del siglo XX, emerge desde fines del siglo XIX en el contexto de formación de la sociedad estadunidense, erigida en el modo doble y contradictório del crisol y la exclusión (2007, p. 413). Para Laplantine e Nouss (2007), ele parece ter surgido simultaneamente de uma cristianização do sentimento religioso africano e de uma fecundação do monoteísmo por meio do politeísmo, porém sem produzir um sincretismo. Em sua proximidade com a música sacra gospel, o jazz foi vitimado com má reputação, antes de conquistar projeção nas grandes metrópoles norte-americanas. De acordo com Laplantine e Nouss: A comienzos de este siglo, las músicas afroamericanas todavía tenían una mala reputación. El jazz era percibido como un embrollo musical que amalgamaba los gospels songs y el spirituals practicados en la iglesia con el blues, los field hollers (gritos del campo) y los work songs, las marchas, los minstrels y las bambulas de Congo Square. Siguiendo la migración de los negros, quienes se remontaron hacia el norte y el oeste de los Estados Unidos, las características del jazz se codificaron y alcanzaron un equilibrio de cualidades técnicas y estéticas en las dos grandes metrópolis económicas, Nueva York y Chicago. En estas ciudades, donde se crearon grandes orquestras (entre las que se distinguen Louis Armstrong, Sidney Bechet y Bix Beiderbecke), inspiró a muchos discípulos blancos y desde entonces, no 117 estuve ya limitado a un color de piel. (LAPLANTINE; NOUSS, 2007, p. 413). Logo depois de conquistar os EUA, o jazz tornou-se famoso também na Europa e, posteriormente, na América Latina. Deixando sua antiga aura de marginalidade, é tocado hoje como um ritmo sofisticado, sendo também trabalhado junto a outros ritmos. De acordo com Friedlander (2002), musicalmente o ritmo era composto por cinco a seis instrumentos e um saxofone, que se destacava. As batidas com swing e os solos de saxofone foram levados também para o rhythm and blues. 3.6 Rhythm and Blues (R&B) A autobiográfica Canceriano sem Lar, ou Clínica Tobias (Blues), de Raul, é um retrato de suas internações clínicas, que traz três ritmos norte-americanos combinados: o rock, o gospel e o rhythm and blues. O rhythm and blues surgiu no final da década de 1940, nos Estados Unidos, com a mistura de elementos do blues, gospel e jump band jazz, realizada por músicos afrodescendentes. É um estilo musical com swing e otimista, que tem como temas a vida e os relacionamentos amorosos. Segundo Friedlander (2002), as bandas tinham a mesma formação das bandas de blues, com um solista de sax tenor do jazz, e a ênfase trazida do jazz na fase rítmica 2/4 marcada pela bateria. Suas batidas e autenticidade musical cativaram os ouvintes jovens do pós-guerra. O blues e o rhythm and blues eram considerados, tanto pelas classes altas como pelas grandes gravadoras, como música de classes desprivilegiadas, sendo passados para discos por pequenas gravadoras regionais até o início dos anos 1950, quando muitas destas cresceram em nível nacional com a venda de milhões de discos. As grandes estações de rádio, que não os haviam incluído pelos mesmos motivos, ao se verem ameaçadas pelo advento da televisão, inseriram-nos em suas programações, com a presença de disc jockeys brancos e negros. Enquanto as grandes gravadoras pagavam artistas da casa para regravarem os sucessos do rhythm and blues, amenizando as partes “pesadas” para o público branco e pagando royalties aos artistas originais, as pequenas estações de rádio dos centros urbanos com grande população afrodescendente passaram a transmiti-lo regularmente, cativando os adolescentes brancos. Em 1955, as rádios disponibilizavam versões amenizadas de músicas de rhythm and blues e rock, enquanto as originais eram condenadas por associações de pais, professores, comitês governamentais e líderes religiosos — e foram essas as que os jovens escolheram. 118 Alguns paradigmas vinham sendo quebrados com a ascensão de estrelas da música negra, como Ray Charles, com a carga gospel presente nas músicas de rhythm and blues, de rockabilly e rock’n roll, embalando o “indecoroso” chacoalhar de corpos, onde o movimento dos quadris conferia a pecha profana às danças afro-norte-americanas emergentes. Cantor e pianista, Ray Charles desenvolveu um ritmo dançante e alegre, que rapidamente incendiou os bailes das comunidades afrodescendentes e suas rádios, ganhando ampla projeção junto a toda a população. Seu dançante rhythm and blues alcançou um sucesso comercial notável, levantando questões polêmicas, como a perversão da sacralidade gospel, a conotação sexual da dança e a projeção da música negra sobre o restante do povo, num país que lutava para conter os lampejos de mestiçagem cultural e comportamental advinda da relação com outros povos. A grande projeção do ritmo representou a subversão de valores nos EUA dos anos 1950. Conforme seu nome cresceu, Ray Charles ajudou a quebrar as barreiras do preconceito racial, exigindo permissão para a entrada do público afrodescendente em seus shows. A atitude, que ficou decidida após deparar-se com um protesto em frente ao local de seu show na Geórgia, custou-lhe a proibição de entrar no Estado. A contenda só foi encerrada décadas mais tarde, quando foi convidado a apresentar-se lá, aproveitando para cantar seu conhecido clássico Geórgia. Criador do ritmo precursor do rock, com semelhanças rítmicas e morais, ele tornou-se não apenas um grande astro como um exemplo de determinação, ao vencer as dificuldades de ter nascido pobre, ter migrado para a cidade e enfrentado discriminação racial, além de ter-se tornado cego ainda criança. Daí por diante, houve uma abertura considerável para o lançamento de estrelas afrodescendentes, e Chuck Berry e Little Richard trabalharam para criar o rock and roll. O rhythm and blues foi a base para o rock and roll clássico, assim como o folk e o country, tradicionalmente norte-americanos e não afrodescendentes. 3.7 Country e Folk De acordo com Friedlander (2002), ambos os estilos musicais surgiram na década de 1920, e seus principais representantes, Jimmie Rogers e Carter Family, foram descobertos pelo mesmo caçador de talentos em 1927. Rogers foi a primeira estrela do country. Seu estilo, conhecido como country and western, sintetizava o folk e o blues rural, com temas sobre andanças pelas estradas, e ele vendeu mais de vinte milhões de discos em seis anos, até seu falecimento, em 1933. 119 O Carter Family foi o principal representante do folk, misturando tradicionais baladas anglo-saxãs com hinos e melodias eclesiásticas, acompanhados de uma harpa e de um violão, deixando um legado de acompanhamentos para músicas religiosas. O country surgiu no Texas e Oklahoma, oeste norte-americano, com Bob Wills and His Texas Playboys como seus representantes. Esse conjunto tinha como formação de base: rabeca, guitarra elétrica, baixo, bateria, steel guitar da música havaiana, piano e sax-tenor; por vezes, acrescentavam-se mais trompetes e rabecas. Seu repertório musical misturava country, blues e melodias tradicionais de rabeca. Observemos que sua formação tem elementos norteamericanos populares, afro-americanos e havaianos em combinação. Nos anos 1940, Hank Williams criou a moderna música country, abordando temas da vida cotidiana, como problemas amorosos, bebedeiras e infidelidade. Sua banda era composta de violino, violão, guitarra, steel guitar e baixo, que acompanhavam seu vocal emotivo em tom sincero e trêmulo. Ele atingiu grande sucesso durante seus seis anos com a banda, e faleceu em 1953. Não podemos deixar de mencionar o grande expoente do folk norte-americano Bob Dylan, cuja música ficou conhecida mundialmente. Tendo começado a direcionar seu trabalho com base em seu ídolo Woody Guthrie, um cantor de folk revolucionário no sentido políticosocial-musical, Bob assumiu um direcionamento poético altamente engajado com a revolução comportamental e com os questionamentos em andamento. Trabalhando como um grande tradutor dos sentimentos de milhares de pessoas, foi rotulado como cantor de protesto, embora rejeitasse o título. Foi tomado como símbolo contra as opressões aos direitos civis, e adorado pela geração hippie. Sua canção Blowing in the Wind tornou-se um hino do questionamento dos problemas sociais no país. Lançamos um breve olhar sobre a história, visando a elucidar, apenas para fins didáticos, as raízes que compõem a cinquentenária árvore chamada rock, cujos galhos tomaram diversas direções, como: o hip-hop, o rap, o hard rock, o metal, o heavy metal, o punk-rock e outros, que, por motivos de espaço, tempo e objetivos, não tiveram lugar nesta pesquisa. Considerando que o encontro de Raul com o rock começa aos onze anos de idade, ele já havia homenageado seus ídolos nos modos de agir, andar e cantar, e havia se dedicado profissionalmente ao ritmo na adolescência, quando encontrou o caminho para a realização de uma obra própria, que se firmou em 1972. Portanto, o objetivo de traçar as linhas gerais do rock é mostrar de onde ele partiu, e com que assuntos estabeleceu diálogos em seu trabalho. 120 3.8 Beatles Esta foi a banda de maior inspiração para Raul. Contemporâneo dos rapazes, ele estava no auge de sua paixão pela revolução comportamental do rock, quando ouviu Beatles pela primeira vez. A partir de então, passou a uma nova percepção sobre as possibilidades comunicacionais do ritmo. Ele tomou conhecimento de que poderia alcançar o sucesso criando suas próprias composições: Foram os Beatles que me deram a porrada. Foi quando eles chegaram e passaram a cantar as próprias coisas deles que eu vi, poxa, esses caras estão cantando realmente a vida deles, estão dizendo o que há pelo mundo, o que pensam. Então eu posso fazer a mesma coisa, dizer exatamente o que penso em minhas músicas. Foi quando eu comecei a compor, juntando tudo no meu caderninho. E tinha outra coisa: do ponto de vista musical, foram os Beatles que me abriram a cabeça, muito mais que o rock. Eu me lembro de quando ouvi I Want to Hold your Hand, eu disse, olha aí, olha aí, o baixo eletrônico na frente! Antes eu nunca tinha ouvido o baixo. Agora era facílimo, a gente ouvia os acordes. Vi 11 vezes A Hard Day’s Night, de Lester. Com eles eu vi que o rock podia ser usado como um veículo. E eu nunca tinha sacado isso antes. Eu usava o rock como revolta, uma revolta irracional. Mas os Beatles canalizaram a coisa, eles mostraram o outro lado de tudo. Me disseram: Vai, entre na máquina, entre na ratoeira, vá lá e faça, curta. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 20, grifo nosso). A banda, composta por quatro jovens ingleses: Paul McCartney, John Lennon, Ringo Starr e George Harrison, nascidos em Liverpool durante o turbulento período da Segunda Guerra Mundial, originou-se de sua formação anterior, chamada Quarrymen. Os Quarrymen, que tinham Paul, George, Stuart Sutcliffe e Lennon (como líder), começaram fazendo shows em clubes de Liverpool, além da temporada de quatro meses em Hamburgo, Alemanha. Posteriormente, com o falecimento de Stu, Ringo passou a integrar o grupo. De acordo com Friedlander (2002), Brian Epstein, proprietário de uma grande loja de discos, teve seu interesse pela banda despertado quando um cliente procurou pelo disco My Bonnie, não disponível em sua loja. Em 1961, ele passou a ser empresário da banda, e, no ano seguinte, eles assinaram contrato com a gravadora Electric and Musical Industries Ltd (EMI). No final de 1963, eles haviam lançado I Want to Hold Your Hand, seu quinto disco single, e o segundo álbum, With The Beatles, e estavam interessados pelos Estados Unidos. De acordo com Friedlander (2002), a gravadora EMI, subsidiada pela Capitol, preparou seu lançamento nos EUA, destinando cinquenta mil dólares para promovê-los. Como tática, foram distribuídos seus álbuns, uma entrevista e um roteiro aos principais DJs 76 dos EUA. 76 DJ: Disc Jockey ou disco-jóquei. Na época, era quem tocava os discos nas rádios. 121 Espalhados pelas cidades de Chicago, Nova Iorque e Los Angeles, havia cinco milhões de cartazes com a frase “Os Beatles estão chegando”. Quando o disco com I Want to Hold Your Hand e I Saw Her Standing There foi lançado nos EUA, em 26 de dezembro de 1963, entrou nas paradas de sucesso na semana seguinte, alcançando rapidamente o primeiro lugar, e o grupo fez shows em Washington e Nova Iorque. Os norte-americanos os chamaram de Fab Four; vestidos com terninhos e de cabelos compridos, levavam o público jovem a um estado de histeria coletiva. Em sete de fevereiro de 1964, foram recebidos por dez mil fãs descontrolados e duzentos jornalistas no aeroporto de Nova Iorque, marcando o início da Beatlemania que acometeria o mundo. Dois dias depois, sua participação no programa televisivo Ed Sullivan Show foi assistida por setenta e três milhões de telespectadores. Na semana seguinte, sua participação no mesmo programa superou esse número. De acordo com Friedlander (2002), o formato regular dos shows contava com a duração de trinta e cinco minutos, nos quais eram cantadas doze canções, abrindo com Lennon cantando Twist and Shout e fechando com Paul fazendo Long Tall Sally. George e Ringo cantavam uma música cada, e as demais eram divididas pelos dois primeiros. Eles fizeram shows de imenso sucesso por toda a América do Norte e Europa. Em seu show no Shea Stadium de Nova Iorque, em 1965, venderam cinquenta e cinco mil ingressos. No ano seguinte, em Tóquio, seu show precisou de três mil seguranças para manter nove mil pessoas em ordem. O momento histórico norte-americano foi favorável para o lançamento dos Beatles; eles apareceram quando o país estava fragilizado pela morte do presidente John Kennedy, e a imprensa procurava por um assunto alegre. Seu senso de humor foi imprescindível para o rápido sucesso, eles eram carismáticos e estavam fazendo coisas que ninguém fazia. Após conquistar a América, retornaram à Inglaterra para estrelar A Hard Day´s Night, do diretor Richard Lester, filme que mostra a vida da banda, tendo eles próprios como personagens, reforçando sua boa imagem como um grupo unido. Após o filme, foi lançado, com o mesmo nome, o primeiro álbum da banda a conter apenas músicas originais, com treze músicas de Lennon e McCartney. Seu sucesso mundial foi inédito, viviam em excursões, sendo assediados por repórteres e fãs, jamais conseguindo privacidade. Lamentavelmente, em 10 de abril de 1970, os jornais publicaram a separação definitiva da banda. Musicalmente, os Beatles expandiram as fronteiras do rock and roll, acrescentando piano, flauta, fuzz, cítara e cordas em algumas gravações. Também inovaram nas 122 experimentações sonoras: a introdução do álbum Revolver tem sons de arranhado e de tosse; na música Rain, foi utilizado o efeito de uma fita tocando de trás para a frente; e, em She Said She Said e Good Day Sunshine, há alterações dos tempos rítmicos do rock e mudanças de acordes. “As inovações musicais eram surpreendentes. Os Beatles usaram a tecnologia de estúdio de gravação como se fosse um outro instrumento.” (FRIEDLANDER, 2002, p. 135). Sua música inovadora também trazia elementos da música medieval irlandesa, segundo o depoimento do ator Kenneth Haigh no DVD de comentários do filme A Hard Days Night: Sou Irlandês e cresci em Yorkshire e percebo algo bem básico, folk do norte na música deles. É sério. É algo que toca fundo. É a mesma coisa que ouvem em Kentucky, na Virgínia ocidental. Algo folk, irlandês, embora seja em ritmo de rock. Há algo básico, do coração, que é eterno. Muitos outros grupos usam truques. Eles não, só tocavam o que gostavam de tocar. Alf Bicknell, ex-motorista dos Beatles. fala a respeito da música medieval Greens Leaves, em The Beatles Diary, seu documentário sobre a banda: Vou levar vocês ao “Cow Palace” em 1965. Um lugar muito grande. Os Beatles fariam dois shows nesse dia, o que era raro. Eu estava chegando no motor home, um grande trailer que tínhamos. Quando estava chegando à porta, ouvi essa música doce que era “Greens Leaves” que todos conhecem. Ao abrir a porta intrigado, olhei à minha esquerda e George estava lá sentado tocando “Greens Leaves” e havia uma moça cantando ao lado dele, Joan Baez. Suas experiências psicodélicas trouxeram novas entonações às composições e contribuíram para escolhas temáticas mais despreocupadas. Para Friedlander (2002), o processo de novas experimentações teve início em agosto de 1964, quando conheceram a maconha, e Bob Dylan deu-lhes dicas para utilizarem a expansão da mente no processo criativo. Suas músicas passaram a apresentar maior apelo psicológico, como o grito deprimido de Help, e um conteúdo filosófico maior: Hide Your Love Away e Norwegian Wood traziam referências abstratas, Nowere Man apresentava críticas sociais, e The World entoava mensagens de amor. A inserção do conteúdo crítico-filosófico no rock and roll modificou seus caminhos, conferindo-lhe maior poder social. Segundo Friedlander (2002), a percepção sensorial dos Beatles teve uma expansão mais profunda quando conheceram o LSD-25, em 1965, o que inspirou o álbum Revolver, com foco nos domínios psíquicos, contendo a música Taxman, que tinha um tom de crítica política à sociedade. O disco recebeu elogios da crítica por ser um trabalho musical de visão interior e exterior. 123 A obra literária infantil de Lewis Carroll Alice no País das Maravilhas serviu de inspiração para I Am The Walrus, de Lennon. Lennon era, dos Beatles, o mais crítico e empenhado em expandir a consciência. Tomorrow Never Knows foi uma amostra de seus interesses filosóficos, misturando ritmos sincopados com uma mensagem inspirada no Livro Tibetano dos Mortos. Nela, utiliza uma base religiosa e filosófica como tema para uma música com inovações sonoras, da mesma maneira que Raul Seixas o faz ao trabalhar a filosofia religiosa do Bhagavad Gita com uma melodia inovadora em Gita. De modo que esses livros sagrados são lançados para a cultura de massa, sendo inseridos em outros países num contexto cultural de entretenimento. Mais de quarenta anos depois, ao tocar pela primeira vez com Os Panteras, a primeira banda de Raul, na Virada Cultural paulista em 2009, o cantor Marcelo Nova, seu último parceiro, lembrou: “Lá na Bahia eu ia ver Os Panteras tocar, eu ficava na frente do palco, no gargarejo, como vocês estão agora, eu tinha uns quatorze anos e esses caras, uns vinte e poucos, esses caras eram demais! Os Panteras foram os meus Beatles!”. 3.9 A Profissionalização de Raul O ano de 1964 marca a profissionalização definitiva da banda e um novo estágio de consciência, adquirido pela observação do comportamento musical dos Beatles. Raul fala a esse respeito: Eu sempre quis ser cantor de rock. Foi a única música que me influenciou. Antes disso minha inclinação era a literatura. Estudava muito filosofia, literatura, e não tinha tempo para cantar profissionalmente; nunca havia pensado que a música poderia ser um veículo importantíssimo para dizer o que eu queria. Quando tomei consciência disso foi ótimo. (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 34). Figura 9 - Foto de Raul cantando (ao centro) 124 Fonte: Revista Contigo, 5. ed., 2004. Com os Beatles, Raul deixou de ver o rock como rebeldia pura, eles estavam dizendo o que pensavam, e ele resolveu fazer o mesmo, usar a música como veículo; isso deu um novo propósito à sua carreira. Eu completei com os Beatles a canalização das minhas ideias dentro da música. Utilizando todo o meu background musical e soltando, aprendendo, jogando minhas ideias. Influenciado por eles eu comecei a compor, mas no início as músicas eram um tanto esquisitas, eram uma mistura de Joan Baez com Peter, Paul & Mary, meio baião, meio Elvis, e as letras falavam geralmente “meu amor me deixou”. Até que um dia resolvi abordar uma experiência própria, como os Beatles faziam. Na época meu maior problema era deixar de fumar, porque eu tinha começado a fumar muito cedo, com 12 anos, e nego vivia dizendo que dava câncer. Então eu fiz uma música, usando um tema de Little Richard, chamado O Crivo. Crivo na época era gíria para cigarro. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 23) A música era: “Víiiicio miserável que acaba com o pulmão [...] Me dá dor de garganta e dor no coração o criiiiiiivo (cum-quem-quem-cum) eu vou parar de fumar (cum-quemquem-cum).” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 23). Raul fala de como cantava: “Eu cantava com uns óculos escuros. Estranhíssimo. Proibiram a música, pensaram que era maconha. Eu não sabia nem o que era maconha. A garotada na época era biriteira.” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 23). Para o primeiro LP da banda Raulzito e Os Panteras, Raul fez Você Ainda Pode Sonhar, sua versão para Lucy in the Sky with Diamonds, dos Beatles, também dotada de romantismo e fantasia. Você Ainda Pode Sonhar Pense num dia com gosto de infância/ Sem muita importância procure lembrar/ Você por certo vai sentir saudades/ Fechando os olhos verá/ Doces meninas dançando ao luar/ Outras canções de amor/ Mil violinos e um cheiro de flores no ar/ Você ainda pode sonhar/ Você ainda pode sonhar/ Você ainda pode sonhar/ Feche seus olhos bem profundamente/ Não queira acordar procure dormir/ Faça uma força você não está velho demais prá voltar a sorrir/ Passe voando por cima do mar/ Para a ilha rever/ Vá saltitando sorrindo a todos que vê/ Você ainda pode sonhar/ Você ainda pode sonhar/ Você ainda pode sonhar. Em 1975, fez Peixuxa, musicalmente similar a OB-La-Di, OB-La-Da, dos mesmos. Raul fala sobre o prestígio de tocar Beatles em 1964: 1964 foi a melhor época dos Panteras, a fase áurea. Porque a gente tocava música dos Beatles. A gente tinha aparelhagem, tinha nome, era o conjunto mais caro da Bahia. Tocamos seis meses numa boate, o Dendê Clube, a gente era roubado, mas tinha prestígio. E excursionávamos pelo interior tocando música dos Beatles; éramos respeitados pra burro. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 21). 125 Em 1965, Raul acabou por abandonar seus estudos para dedicar-se somente à música, passando a apresentar-se com Mariano Lanat, Carleba e Thildo Gama, em shows no cine Roma, onde brilhavam as estrelas da Jovem Guarda: Wanderléa, Roberto Carlos, Jerry Adriani e Wanderley Cardoso. Quando a banda participou do Festival da Juventude, no cine Roma, em 3 de maio de 1966, uma plateia de mais de dois mil jovens obrigou Raulzito e Os Panteras a voltarem ao palco por mais de cinco vezes. Nessa época, aparece em seu caderno: “Meta: Vencer no Rio” (ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 46). Em 1967, sua vida passou por importantes mudanças: casou-se pela primeira vez e conheceu o amigo que o levaria ao Rio de Janeiro. Em seu diário, aparece: “Casei em 67. Agora eu podia fazer o que sempre eu sonhara, ir para a Guanabara.” (ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 46). Raul conheceu Jerry Adriani em Salvador, onde o apresentador estava com Nara Leão e Chico Anysio, para apresentações em shows separados, e Jerry seria acompanhado por uma banda local, que não pôde comparecer. Então, Raulzito e os Panteras foram chamados para acompanhá-lo. Jerry narra o episódio: Foi quando alguém do clube teve a idéia de chamar um outro grupo. Os caras tocavam rock, eram conhecidos na cidade. Me garantiram que eles dariam conta do recado. Eu não tinha escolha. Paguei pra ver. Dali a pouco aparecem quatro caras que iriam garantir o meu show. O líder era magrelo, usava cabelinho curto e não parava de falar. Achei o sujeito engraçado. Foi assim que eu conheci Raul Seixas e sua banda, Raulzito e Seus Panteras: Raul na guitarra base e no vocal, Eládio na guitarra solo, Mariano no baixo e Carleba na bateria. Nossa amizade começou ali e durou 22 anos, até a morte de Raul em 1989. Naquela noite, apesar da correria e do improviso, o show funcionou. Quando acabamos de tocar, a Nara, que tinha assistido tudo, me deu o toque: – Os meninos tocam superbem, Jerry. Porque você não chama a turma pra tocar com você lá no Rio? –, ela sugeriu. (CONTIGO, 2004, p. 4). Jerry convidou-os a irem ao Rio de Janeiro, onde apresentava o programa televisivo A Grande Parada. Logo depois, Raul, que havia se casado com Edith para poder levá-la para o Rio, partiu para a Guanabara com sua banda, levando-a consigo. Eles chegaram, coincidentemente, quando Jerry estava à procura de uma banda que o acompanhasse em turnê pelo Nordeste. Raul fala sobre seu primeiro ano no Rio: Em 67 casei, vim para o Rio sem um tostão. Morava em Ipanema (meu pai é que pagava o aluguel) e eu ia a pé até o centro da cidade para catituar minhas músicas nas rádios. Passei fome mas isso me deu uma couraça. Eu não conhecia nada da vida. Foi nessa época que conheci o Jerry Adriani. Passei a tocar pandeiro pra ele. Esse trabalho me deu muita experiência para me comunicar, porque minhas músicas eram muito herméticas. Jerry me ajudou. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 13). 126 Ele registrou em seu diário: Shows por todos os lugares como “o conjunto de Jerry”. Como eu era o cantor do grupo, tocava pandeiro quando Jerry cantava. Jerry Adriani nos ajudou a não morrer de fome. Acompanhávamos Jerry Adriani em todas as suas apresentações. Passamos a ser seu conjunto efetivo. (ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 46). Raulzito e Os Panteras abriam os shows cantando Elvis e Beatles e, então, acompanhavam Jerry. Os Panteras tinham prestígio paca na Bahia. Tínhamos aparelhagem e sabíamos o repertório dos Beatles todinho. Éramos o conjunto mais caro de Salvador. Daí descemos para o Rio de Janeiro. Chegamos no final da safra. De um lado os baianos, Gil e Caetano com a tropicália, do outro pessoas como Jerry Adriani, Agnaldo Timóteo... Chegamos a gravar um disco pela Odeon. O repertório era complicado, minhas letras falavam de agnosticismo, essas coisas intelectuais. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 8, grifo da autora) Em 1968, a banda lançou seu primeiro LP, com o título de Raulzito e Os Panteras. Raul escreveu em suas anotações: “Gravamos nosso primeiro LP na Odeon. Tivemos que compor e complicamos demais. Não tínhamos ideia do que era ou não ‘comercial’ em matéria de música em português.” (ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 41). Pouco conhecidos no Rio de Janeiro, não conseguiram emplacar o LP, e, em nova anotação, escreveu: “O disco foi um fracasso apesar de nossos esforços.” (ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 45). Para sobreviverem, eles acompanharam Jerry Adriani como banda de apoio até 1969, quando o grupo separou-se, e todos os integrantes voltaram para a Bahia. Raul retornou a Salvador deprimido, atravessando um período difícil, em que passava os dias lendo e escrevendo no quarto, sob a luz de uma lâmpada fraca, o que lhe prejudicou a visão. Também frequentava sessões de psicoterapia, enquanto sua esposa Edith lecionava inglês para ajudá-lo no orçamento. De repente, vi que não tinha condições psicológicas nem financeiras para me aguentar no Rio e voltei para a Bahia onde ficaria por mais um ano. Fiquei meio louquinho; o desbunde total. Passava o dia inteiro trancado no quarto lendo filosofia, só com uma luz bem fraquinha, o que acabou me estragando a vista. Eu não queria saber de ninguém. A Edith, minha mulher na época, que é americana, trabalhava lecionando inglês para me dar dinheiro. Eu comprei uma motocicleta e fazia loucuras pela rua. Estava pirado e me tratando com um psiquiatra. Um dia, na Bahia, conheci um diretor da CBS Discos. Ficamos amigos sem nada a ver com música. Mais tarde ele me convidou para ser produtor da gravadora. Fizemos a mala, minha mulher e eu, e voltamos pro Rio. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 13, grifo da autora) 127 Foi em 1970 que Raul, morando na Bahia, conheceu Evandro Ribeiro, diretor da CBS, que o convidou para ser produtor de discos no Rio de Janeiro. “Voltei sozinho para o Rio, para o cargo de produtor na CBS. Os meninos ficaram em Salvador. Eu e Edith e fé pra começar tudo de novo.” (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 54). Em 1971, trabalhando como produtor da CBS, Raul conheceu o universo das gravadoras, produzindo mais de oitenta músicas para cantores famosos, como Jerry Adriani, Trio Ternura, Renato e seus Blue Caps, Tony & Frankie, Sergio Sampaio e Diana. Jerry pediu a Evandro que deixasse Raul produzir seus LPs, e foi o primeiro cantor a gravar uma composição sua, chamada Tudo O Que é Bom Dura Pouco. Como produtor musical, Raul adquiriu experiência nos processos de funcionamento da indústria fonográfica e aprendeu a fazer música comercial. “Depois, como produtor da CBS peguei os macetes todos, aprendi a fazer música fácil, que diz direitinho o que a gente quer dizer.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, p. 8). Associar seu talento artístico ao conhecimento do mercado musical possibilitou-lhe pensar o disco de maneira completa, desde as primeiras ideias à recepção do público final. 3.10 Luiz Gonzaga e o Baião Depois da fase jovem rebelde, emocional e artisticamente ligada aos ídolos do rock, aflora seu repertório de infância. Antes do rock norte-americano, Raul ouvia música latina, Emilinha Borba e baião. Quando criança, gostava da orquestra cubana Lecuona Cuban Boys. Em 1957, aos 12 anos, escreveu em seu diário: “O disco que eu mais gostei na vida mais de que rock’n’roll mais que sambas mais que mambo foi ‘Cubanacan’.” (SEIXAS, Raul, 1983, p.14). Música, até o rock me pegar, era uma coisa bem secundária. Não que eu não gostasse. Mas era uma coisa bem intuitiva e eu só cantava o que me entrava no ouvido, não me preocupava em saber, procurar a letra para aprender, nunca fui fã. Apenas cantava. Lá em casa se ouvia muito Luiz Gonzaga, Chofer de Praça, Que Mentira Que Lorota Boa, a fase áurea de Luiz Gonzaga. Tinha também um tio meu que ouvia todo tipo de música. Eu gostava muito de música cubana, mexicana, guarânias, boleros como Cubanacan com os Lecuona Cuban Boys, Espinita (Raul cantarola), divertido: “Sabes que me estás matando/ que estás acabando/ con mi corazón”, essas coisas. Eu cantarolava tudo o que ouvia no rádio. O que era sucesso eu cantava: Emilinha, carnaval, as músicas intuitivas que todo mundo cantava. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 13) Se o rock era a música que Raul ouvia nas ruas, no consulado, na loja de discos e com os amigos, o baião era a música que ele ouvia em casa desde pequeno, estava ligado ao lar 128 materno. Não por acaso, a composição que o projetou como artista foi a mestiça de rock e baião Let Me Sing, Let Me Sing. O baião é um ritmo musical tipicamente nordestino, cujo grande expoente foi Luiz Gonzaga. De acordo com Dreyfus: O termo “baião”, sinônimo de rojão, já existia, designando na linguagem dos repentistas nordestinos o pequeno trecho musical tocado pela viola, que permite ao violeiro testar a afinação do instrumento e esperar a inspiração, assim como introduz o verso do cantador ou pontua o final de cada estrofe. No repente ou no desafio, cuja forma de cantar é recitativa e monocórdia, o “baião” é a única seqüência rítmica e melódica. (DREYFUS, 1996, p. 110112). Nascido em 13 de dezembro de 1912, na pequena cidade de Exu, em Pernambuco, Luiz Gonzaga do Nascimento teve a música sempre presente em sua infância sofrida. Seu pai, Januário, trabalhava tocando fole à noite e consertando instrumentos musicais num quartinho da casa, durante o dia, enquanto Santana, sua mãe, trabalhava na roça, cuidava da casa e dos filhos e cantava na igreja. Dos nove filhos do casal, cinco se tornariam sanfoneiros profissionais quando adultos. Na região pobre, onde o trabalho se dava na roça sob o sol, a música era a fonte de alegria que embalava festas, batizados, casamentos e procissões, os forrós de fim de semana, os bumba meu boi, as festas dos santos, os músicos das praças e feiras, os repentistas e os vaqueiros cantando e tangendo a boiada. Gonzaga gostava de sanfona desde menino; nas brincadeiras com os irmãos e primos, ele era o tocador. Mais tarde, ajudava seu pai a consertar instrumentos e tocava com ele nos bailes; aos quatorze anos, ajudava a família com o ganho de seu fole. Ainda não contava dezoito anos quando saiu de casa para Fortaleza. Em 1930, ao completá-los, alistou-se no exército, viveu a revolução de 30 e perseguiu seu herói de infância Lampião, que posteriormente inspirou sua indumentária artística. Quase nove anos após alistar-se, deixou a farda, por conta da lei que não permitia a permanência de um soldado por dez anos no Exército. Em março de 1939, Luiz foi ao Rio de Janeiro esperar o navio que o levaria de volta a Exu. Durante os dias de espera, soube que poderia tocar no Mangue, na Cidade Nova (lugar mais agitado da cidade). Passou a tocar sanfona numa esquina e, caindo no apreço popular, acabou não voltando para sua terra. Tocava tanto sozinho como com seu amigo Xavier. O repertório incluía: Antenógenes 129 Silva, Carlos Gardel 77 e Augusto Calheiros. Começou a frequentar os programas de calouros de Ary Barroso e Renato Murse, apresentando valsas, tangos e blues. Quando estudantes da república 78 do Ceará pediram para ouvir algo bem nordestino, ele disse não se lembrar mais, exceto de algumas canções bem do pé de serra, e os meninos responderam que era isso o que queriam. A partir dessa dica, ele encontraria o seu rumo como artista de sucesso. Tocou Pé de Serra e Vira e Mexe, empolgando o público da Cidade Nova. Percebendo a aceitação pública da música nordestina, voltou ao programa de Ary Barroso e tocou Vira e Mexe, ganhando não só a nota máxima como o prêmio de cento e cinquenta mil réis. Logo, então, conheceu Zé do Norte, que o chamou para trabalhar no programa de rádio Hora Sertaneja. Em 1941, após dois anos no Rio, foi à gravadora Victor fazer seu primeiro disco. Gravando, em um dia, dois discos de 78 rotações e, logo em seguida, mais dois. Nessa época, deixou de tocar com Xavier e foi substituir Antenógenes Silva no programa A Alma do Sertão, da Rádio Clube, tendo trabalhado também na Rádio Tamoio. Ele refez a letra de Vira e Mexe, com Miguel Lima, e batizou-a de Xamego. Suas músicas eram cantadas por vários intérpretes, mas ele mesmo queria cantá-las. Com o incentivo de Lima, pressionou os executivos da gravadora, vencendo seus apontamentos sobre sua inadequação vocal, e, em 11 de abril de 1945, entrou na Victor para gravar seu 25° disco, o primeiro como cantor. Trabalhando com Miguel Lima, Luiz procurava um novo parceiro, com quem pudesse fazer algo bem típico; então, encontrou Humberto Teixeira. A segunda parceria deles, Baião, marcaria a entrada de Gonzaga na história da MPB. Inaugurando um novo ritmo, ele havia intencionalmente aprimorado o ritmo existente. A canção foi lançada em outubro de 1946 e interpretada pelo grupo Quatro Ases e um Coringa, com Gonzaga na sanfona, alcançando sucesso imediato. O baião surgiu num momento propício ao sucesso. A música nordestina, que havia contado com artistas como João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense no começo do século, estava sem representantes de peso na década de 1940, e o samba estava transformando-se em samba-canção. O sucesso de Asa Branca fez de Gonzaga um dos maiores astros da música brasileira. 77 78 Carlos Gardel (1890-1935), nascido em Tolouse, França, mudou-se para a Argentina com dois anos, onde foi o cantor mais famoso de tango, autor de sucessos como: El Día que Me Quieras, Mi Buenos Aires Querido, Milonga Sentimental e Yira Yira. Dedicou-se também à carreira de ator em filmes como Luces de Buenos Aires, Esperame, El Tango em Broadway e El día que Me Quieras. Moradia coletiva de estudantes vindos de outras cidades. 130 Ele trabalhava músicas do folclore nordestino e criava para elas outras letras, ou retrabalhava as originais, como fez com Asa Branca em parceria com Teixeira. Em 1947, ele decidiu adotar um visual nordestino, escolhendo a indumentária de Lampião. Pediu à sua mãe que encomendasse um chapéu de cangaceiro, e não mais se apresentou sem ele, apenas o substituiu por outros com mais apetrechos. Em 1949, o baião estava em moda e ganhava as manchetes dos jornais, e Luiz Gonzaga havia se tornado “o rei do baião”, com admiradores em todas as classes sociais. Com as secas do Nordeste, muitos nordestinos migraram para São Paulo, que passou a ser a capital do ritmo. Gonzaga travou parceria com Zé Dantas, depois que Teixeira entrou para a política em 1952, e também compôs com Hervê Cordovil, que fez A Vida do Viajante em homenagem às suas andanças. Viajante convicto, ele atravessava o Brasil em longas turnês, ficando longe de casa por períodos que chegavam a oito meses, até o fim da vida, tanto em turnês bem pagas, como de caminhão, ou de carro velho, sem contrato ou previsão de parada. Querido pelo povo, fazia propagandas, campanhas políticas e participações nas rádios. Quando sua carreira atravessou um período difícil, apresentava-se em circos, quartéis, coretos e praças públicas. O momento histórico brasileiro da década de 1950 e do início da seguinte representou o declínio de uma série de valores socioculturais estabelecidos e, com ele, o fim de sua carreira. Em 1956, com Juscelino Kubitscheck na presidência, houve uma renovação de valores culturais e econômicos, com o surgimento de novidades como: o Cinema Novo, a Bossa Nova, a Jovem Guarda, os aparelhos de televisão, o rock chegando ao país e o audacioso programa de governo de crescer cinquenta anos em cinco. Tais inovações atingiam as classes média e alta, mas não tinham impacto sobre o gosto popular; Gonzaga sofreu o esquecimento da mídia e das classes mais abastadas, mas não do povo. Passando a apresentar-se em cidades do interior e do Nordeste, onde contava com um público fiel, costumava sair em excursão e parar, aleatoriamente, em alguma cidade, onde anunciava o show em que se apresentaria à noite, lotando com cinco a dez mil pessoas as praças e os circos. Embora ganhasse pouco e por vezes trabalhasse de graça, contava com patrocínio dos comércios locais. Não tinha empresário, e os shows eram agendados por telefone com sua funcionária doméstica. Em 1963, lançou duas canções de protesto; a primeira, Pronde Tu Vai Baião, de João do Vale e Sebastião Rodrigues, expressa seu desgosto pelo esquecimento do baião; e a segunda, A Morte do Vaqueiro, em coautoria com Nelson Barbalho, protesta pela morte de seu primo Raimundo Jacó. No ano seguinte, lança A Triste Partida, em coautoria com o 131 repentista Patativa do Assaré 79, sobre a escravidão e privação em que vive o nortista, tanto em sua terra como no Sul — outra canção de protesto, assim como Vozes da Seca e Asa Branca. Em 1966, ditou sua autobiografia a Sinval Sá, intitulada: O Sanfoneiro do Riacho da Brígida, Vida e Andanças de Luiz Gonzaga (Edições Fortaleza), e vendeu-a com a ajuda de sua esposa e de seus músicos. A demanda exigiu quatro edições consecutivas. Em sua ação popular, trabalhou pela melhora das condições de vida de seus familiares e amigos, do povoado do Araripe, onde foi criado, do distrito de Miguel Pereira e de Exu, onde nasceu. Investiu em melhorias no Nordeste e, numa seca, fez açudes para o povo. Lutando pelas “causas perdidas”, foi um dos primeiros artistas brasileiros a abordarem temas como: ecologia, problemas raciais, sociais e econômicos em canções de protesto. Descobridor de novos talentos, Gonzaga apoiava e financiava artistas pobres que o imitavam, lançando-os em rádios e palcos, trazendo-os do Nordeste para o Rio e São Paulo. Nos anos 1960, contou com a admiração da juventude que surgiu no cenário musical após o apogeu da bossa nova. Em 1965, Geraldo Vandré gravou Asa Branca, em seu LP Hora de Lutar. Emocionado com a homenagem, em 1968, Gonzaga gravou Pra Não Dizer que Não Falei das Flores. Nessa época, chegava ao Brasil o LP de Caetano Veloso gravado em seu exílio em Londres, com todas as músicas em inglês, exceto Asa Branca. “O hino dos flagelados nordestinos se tornava o hino dos exilados brasileiros, vítimas da ditadura.” (DREYFUS, 1996, p. 249). Gonzaga chorou ao ouvi-lo: “Foi uma das maiores emoções que eu tive na vida.” (DREYFUS, 1996, p. 249). Ele se integrou à juventude que o admirava e, a convite da gravadora RCA 80, fez o LP O Canto Jovem de Luiz Gonzaga, no qual só interpretava a nova geração: Caetano, Gil, Antonio Carlos, Jocafi, Capinan, Edu Lobo, Dori Caymmi, Geraldo Vandré, e seu filho Gonzaguinha. “[...] E eu fiquei apoiado pelos jovens. Foram eles que me deram crédito. Eles tinham universidade. Juca Chaves falou muito de mim. Por causa deles me tornei respeitado.” (DREYFUS, 1996, p. 252). Na década de 1970, ele havia recobrado seu posto de sucesso, com direito a homenagens: em 1971, recebeu da TV Tupi o título de “Imortal da Música Brasileira”; em 1973, o governador de São Paulo entregou-lhe o título de “Cidadão Paulista”; em 1977, entrou para a versão brasileira da Enciclopédia Universal Britânica; e muitos artistas 79 80 Patativa do Assaré, nome artístico de Antônio Gonçalves da Silva (1909-2002), nascido no Ceará, foi um dos principais expoentes da música nordestina. Foi cantor, compositor, repentista, poeta popular e autor de diversos livros de poesias, como Inspiração Nordetina: Cantos do Patativa, Cante lá que Eu canto Cá, Espinho e Fulô, embora jamais tenha deixado de ser agricultor. Seu trabalho se caracterizou por expressiva oralidade e uso de sua memória ao recitar seus poemas. RCA Victor, gravadora que unia a Radio Corporation of America com Victor Talking Machine Company. 132 regravaram Asa Branca. Em 1972, apresentou o show Luiz Gonzaga Volta pra Curtir, produzido por Capinan, no teatro Tereza Raquel. Ele estava conquistando o público estudantil e deu entrevistas a duas mídias revolucionárias: o jornal O Pasquim e a revista O Bondinho. Ainda nos anos 1970, década das discotecas e dos bailes funks, surgiu o forró. O termo, que é uma abreviação de forrobodó, tinha no Nordeste o sentido de festa, arrasta-pé ou baile, e acabou nomeando o novo ritmo, no qual Dominguinhos e sua esposa Anastácia foram destaque. Para Gonzaga, foi Dominguinhos, seu discípulo e parceiro, quem urbanizou o forró e o levou a todas as classes sociais. Nos anos 1980, Gonzaga passou a tocar somente forró. Segundo Luiz Gonzaga, citado por Dreyfus: O forró partiu mesmo do sanfoneiro. Do baile de ponta de rua, baile de cachaça. Já na década de 50, com Zé Dantas, nós fizemos o primeiro forró que era o “Forró do Mane Vito”, explorando a valentia do cabra-macho. Depois o forró ficou aí marcando tempo, até que fiz o “Forró no Escuro” e outros forrozinhos. (DREYFUS, 1996, p. 275). Em 1982, Gonzaga apresentou-se no Bobino, lotado, em Paris, com Nazaré Pereira. Na primeira metade da década de 1980, recebeu o Prêmio Shell, o Nipper de Ouro (homenagem da gravadora RCA) e dois discos de ouro. Em 1986, apresentou-se novamente em Paris. No mesmo ano, seu LP Forró de Cabo a Rabo rendeu-lhe dois discos de ouro e um de platina. Em 1987, gravou um LP com Fagner e, no ano seguinte, a RCA lançou a compilação de sua obra, numa caixa com cinco LPs, intitulada 50 Anos de Chão. Em dois de agosto de 1989, Gonzaga faleceu no Recife, onde estava hospitalizado, apenas dezenove dias antes de Raul Seixas. 3.11 Rockabilly e Elvis Presley Em 26 de fevereiro de 1983, em seu show no ginásio do Palmeiras, em São Paulo, Raul Seixas diz à plateia, que chama seu nome em uníssono: “Que beleza. E todo mundo aqui é rocker? Long live rock’n’roll”. Então, explica o surgimento do ritmo: Praticamente o rock’n’roll começou em 41 com um cara chamado Arthur “Big Boy” Crudup, que fez a cabeça de uma criança chamada Elvis Presley. Esse rapaz pela primeira vez na história transformou o blues em rock’n’roll. E a coisa era mais ou menos assim... Com Miguel Cidras ao piano e Tony Osanah na guitarra, Raul canta So Glad You’re Mine, de Arthur Crudup. Esse trecho integra o disco Raul Ao Vivo, lançado pelo Estúdio Eldorado em 1983, e a última faixa do LP Raul Seixas, do mesmo ano. 133 Seu maior ídolo foi Elvis Presley. Ele o transportou para um universo em que rebeldia e liberdade eram sonhos possíveis. Sua música expressava formas de pensar e agir libertas das amarras impostas tanto pela educação quanto pelo stablishment. Livre dos pesos familiares e sociais, tal universo era aberto apenas aos sonhos da juventude, conforme explica Raul: Quando Elvis veio com aquele estilo sexual, agressivo, ele quebrou aquele clima denso de machismo. Eu vi nele uma liberdade incrível, de sexo, de se mover, sendo homem. E não importava, pô. Foi um negócio incrível, a porrada que ele me deu com aquela dança dele. Elvis era considerado um maníaco sexual, cabelo cheio de brilhantina. As músicas dele eram pornográficas, sabe. É o que se dizia na época. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 18, grifo nosso). O momento histórico favoreceu o sucesso de Elvis: ele apareceu quando os jovens brancos estavam apreciando o rhythm and blues das rádios regionais. A juventude branca, proibida de gostar de música negra, esperava por um intérprete com as qualidades musicais que os afrodescendentes tinham, e as gravadoras esperavam encontrar esse intérprete, que seria uma mina de dinheiro. Nascido em 8 de janeiro de 1935, numa casa simples em Tupelo, Mississipi, Elvis Aaron Presley foi o único filho do casal Vernon e Gladis Presley. Em 1948, a família mudouse para Memphis, Tennessee, onde o casal teve vários trabalhos, até que seu pai se empregasse como caminhoneiro. A participação familiar nas atividades da igreja levou-o à paixão pelo gospel. Embora não se destacasse nos esportes ou na escola, frequentou o último ano acompanhado de seu violão, e ganhou o concurso nacional de talentos promovido pelas escolas. No mesmo ano, passou a comprar roupas chamativas e multicoloridas numa loja na Beale Street, reduto da música negra underground de Memphis. Em 1953, gravou um disco de 45 rotações, por três dólares e noventa e oito centavos, na Sun Records de Memphis, com duas músicas do conjunto Ink Spots: My Happiness e When your Heartaches Begin, deixando-o na gravadora como teste. A assistente da gravadora havia sido instruída pelo proprietário, Sam Philips, no sentido de que, se encontrasse um músico com o som negro, porém que não o fosse, poderia ficar rica. Mas Sam não se impressionou com sua gravação, e o aconselhou a juntar-se ao guitarrista Scotty Moore e ao baixista Bill Black. Então, em 5 de fevereiro de 1954, reunidos no estúdio e começando a tocar, Elvis passou a brincar, cantando e pulando, e os dois colegas o acompanharam. Sam surpreendeu-se com a cena, o que rendeu a Elvis sua contratação. Porém, após gravar cinco canções pela Sun Records, Elvis assinou com a RCA. 134 Em meados da década de 1950, quando Elvis entrou na gravadora Sun Records para gravar o blues rural That’s All Right (Mama), do bluesman negro do Mississipi Arthur “Big Boy” Crudup, com violão, guitarra e baixo, ele criou um novo estilo musical. A música foi para o primeiro lugar na parada de sucesso country. Essa gravação marcou a síntese do blues e do country, que originou o rockabilly. Ele misturou o vocal emocionado e rouco com a ênfase rítmica do blues, banda de cordas e o modo country de dedilhar a guitarra. O rockabilly era um rock alegre e dançante, com temas de amor e juventude, que rapidamente conquistou o mundo, assegurando um futuro para o rock clássico. That’s All Right (Mama) foi seu primeiro sucesso comercial e o primeiro lugar da parada country de Memphis. Assim, o grupo saiu em turnê pelo sul dos EUA. De acordo com Friedlander (2002), comercialmente, o início da carreira de Elvis foi acertado quando o coronel Tom Parker, empresário de cantores country, assinou contrato com ele, e a grande gravadora RCA comprou-o da Philips por trinta e cinco mil dólares. Unir seu potencial a um bom empresário e à maior gravadora constituiu uma base sólida para sua carreira. Na RCA, o baterista DJ Fontana, o pianista Floyd Cramer e vocalistas de apoio foram adicionados à banda. Com tal infraestrutura, Elvis foi o artista mais popular e vendável da história da música, um fenômeno que ultrapassou todas as expectativas de carisma e retorno financeiro. Na estratégia de Parker para torná-lo conhecido em cadeia nacional, Elvis apareceu na televisão por doze vezes em 1956. “Muitos adolescentes vislumbraram pela primeira vez o poder visual do rock and roll.” (FRIEDLANDER, 2002, p. 72). Ele concretizou a explosão do rock no mundo. No final do mesmo ano, tinha cinco músicas em primeiro lugar nas paradas de sucesso, e sete entre as quarenta mais pedidas. Iniciou sua carreira no cinema como astro de filmes para a juventude, estrelando quatro deles até 1958. Então, afastou-se dos palcos para servir no exército por dois anos, na função de motorista de jipe na Alemanha Ocidental. Com o alistamento, deixou que cortassem seu vistoso cabelo, símbolo do rock, e sua imagem de bom patriota ganhou empatia entre os adultos. No final dos anos 1950, perdeu sua mãe e conheceu Priscilla Ann Beaulieu, com quem se casou sete anos mais tarde e teve a filha Lisa Marie. Também tinha uma turma de amigos que o acompanhava em suas apresentações, conhecida como “máfia de Memphis”. Nos anos 1960, ele passou a fazer baladas mais leves, como It’s Now or Never, e a acatar as sugestões de seu empresário e da gravadora, saindo do topo das paradas de sucesso. 135 Entre 1961 e 1967, não se apresentou em público, mas estrelava no mínimo dois filmes por ano com sua própria trilha sonora. Em 1° de fevereiro de 1968, voltou a apresentar-se, em um especial de TV em Las Vegas, e, em janeiro do ano seguinte, quando retornou à sua casa em Memphis para gravar From Elvis in Memphis, acabou produzindo uma série de músicas elogiadas pela crítica. Em 1970, Elvis alternava entre turnês, shows em Las Vegas e algum tempo livre, mas, ao longo da década, sua saúde ficou desgastada, seu peso oscilava drasticamente, ele fazia regime para se apresentar e tomava muitas pílulas. Faleceu em 16 de agosto de 1977 na sua casa em Graceland. Até o final de sua vida, havia atingido o número recorde de cento e sete músicas nas paradas de sucesso. Incondicional rei do rock no mundo, seu sucesso comercial tornou-o o maior ícone da música. Foi o rei branco de alma negra que a América estava esperando, o galã carismático que levou os elementos da maravilhosa música negra ao sucesso mundial. 3.12 Diálogos Culturais A ampla gama de elementos culturais que Raul abarcou em seu trabalho incluiu os heróis das histórias em quadrinhos de seu repertório, como Tarzan, Thor e Durango Kid. KrigHa, Bandolo!, seu primeiro álbum solo, considerado pela crítica seu melhor trabalho, é intitulado com o grito de guerra do Tarzan nos gibis, que significa: Cuidado, aí vem o inimigo! Homenageou Thor tanto em uma de suas maiores críticas musicais ao stablishment como em seu único livro, ambos intitulados As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor. Desde a infância, identificava-se com o herói da mitologia nórdica que, conforme aponta Mielietinski (1987), tinha sua ira despertada ao deparar-se com a falta de ética. Super Heróis é sua sátira ao mundo artístico e futebolístico noticiado pelos meios de comunicação. Cowboy Fora da Lei 81, seu alerta sobre a ameaça de martírio que se segue à pecha de herói, traz o personagem dos quadrinhos de cowboy: “Durango Kid só existe no gibi/ E quem quiser que fique aqui/ Entrar pra história é com vocês”. Apaixonado por cinema, criou Por quem os Sinos Dobram, LP cuja música tema aborda a temática da guerra de uma forma crítica, com título inspirado no filme homônimo estrelado por Ingrid Bergman em 1943; o longa-metragem, por sua vez, fora baseado no romance de Ernest Hemingway, publicado três anos antes. Escrito a partir de sua própria 81 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 291). 136 experiência de luta na guerra civil espanhola (1936-1939), narra a trajetória de um jovem norte-americano nas brigadas internacionais. A música Por Quem os Sinos Dobram 82 de Raul Seixas é um convite à coragem e à atitude de autossuperação, expresso pelo refrão: “Coragem, coragem, se o que você quer é aquilo que pensa e faz, coragem, eu sei que você pode mais!”. Também incentiva a autorreflexão: Nunca se vence uma guerra lutando sozinho/ Você sabe que a gente precisa entrar em contato/ Com toda essa força contida que vive guardada/ O eco de suas palavras/ Não repercute em nada/ É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro/ Evita o aperto de mão de um possível aliado/ Convence as paredes do quarto e dorme tranqüilo/ Sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo. Raul escreveu em seu diário, na pré-adolescência: “A coisa que eu mais gosto no mundo depois dos parentes é... Cinema é nêle que eu aprendo o meu inglês melhor.” (SEIXAS, Raul, 1983, p. 28). Em outra página da mesma época, diz: “O maior desejo meu!! Ser popular no mundo inteiro. Ou ser artista de cinema ou cantor.” (SEIXAS, Raul, 1983, p. 33). Palavras que emolduram o desenho de Elvis Presley feito por ele. Figura 10 - Raul lendo Orwell Fonte: Revista Contigo, 5. ed., 2004. 82 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 244-245). 137 Interessado pelas questões universais e filosóficas: Eu queria ser escritor, feito Jorge Amado, vivendo de meus livros, escrevendo o dia todo, com uma camisa branca aberta no peito e um cigarro caindo do lado. Ou então fazer um tratado de metafísica. Porque eram essas coisas que sempre me incomodaram, me preocuparam; o problema da vida, do homem no universo, de onde eu vim, pra onde vou, o que é que eu estou fazendo aqui. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 40). Como inspiração na criação de obras místicas, Raul contou com os seguintes autores e obras: Lao-Tsé, com Tao-Te-Ching, que resultou na música O Conto do Sábio Chinês; Aleister Crowley, com A Lei de Thelema, que serviu de base para Sociedade Alternativa, Novo Aeon, A Lei, Nuit, A Maçã, Medo da Chuva e Love is Magick; a Bíblia, que inspirou as canções Judas e Ave Maria da Rua; São João da Cruz, com o poema Eterna Fonte, a base para Água Viva, e Huberto Rohden, com sua Filosofia Univérsica. Também contribuíram para a constante formação intelectual de Raul: Nietzsche, George Orwell com 1984, Thomas More com Utopia, Castañeda, Aldous Huxley com O Admirável Mundo Novo, Timothy Leary, Richard Bach com Ilusões: As aventuras de um messias indeciso, que inspirou a canção Messias Indeciso; Proudhon com A Propriedade é um Roubo e Ser Governado, que serviu de base para O Carimbador Maluco; Max Stirner com o Anarcoindividualismo de O Único e a sua Propriedade, que foi a inspiração de Eu sou Egoísta, Sociedade Alternativa e uma série de outras músicas mostradas na abordagem sobre o anarquismo mais adiante. No repertório de músicos admirados por Raul, estavam John Lennon, o multimidiático Frank Zappa e os Rolling Stones. Em seu caderno, aparece: “Tomando uma atitude de Zappa começamos a tocar músicas horrorosas [...] Zappa era demais.” (ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 49). Outra anotação diz: “Gostava dos ‘Stones’.” (ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 47). A importância de Lennon para Raul vem de um processo de identificação desde o tempo dos Beatles, empatia que cresceu quando John passou a mostrar um conteúdo filosófico mais profundo, alertando para a importância da não violência e para a possibilidade de um mundo melhor. Raul encontrava-se sozinho no tipo de trabalho que vinha desenvolvendo, e perceber Lennon em um caminho semelhante era estimulante. Ambos traçaram trajetórias parecidas no sentido da conscientização social, servindo-se da música como veículo. Em 1974, durante seu exílio nos EUA, Raul e Paulo Coelho tentaram falar com Lennon, que tinha um projeto parecido com a Sociedade Alternativa, chamado New Utopian, mas não foram recebidos, embora Raul tenha disseminado fartamente a história do suposto 138 encontro. Quando John foi morto, Raul ficou temeroso de ser alvo de algum fanático, por estar desenvolvendo sua obra numa linha de conscientização similar. 139 4 TERCEIRO CAPÍTULO – MESTIÇAGEM MUSICAL Raul Seixas desenvolveu uma produção culturalmente mestiça e diversificada em ritmos e temas. Trabalhou, de modo investigativo e criativo, com a incessante busca por 140 elementos culturais, desde os mais estranhos aos mais comuns à nossa cultura, colocando-os em relação de forma mestiça e barroca. Em 1972, ao acompanhar Sérgio Sampaio na inscrição de Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua para o VII Festival Internacional da Canção promovido pela rede Globo, acabou inscrevendo duas canções suas: Eu Sou Eu, Nicuri é o Diabo e Let Me Sing, Let Me Sing. Raul fala da semelhança entre rock e baião: Na música Let me Sing eu tenho a influência de duas grandes correntes de minha vida: o rock e o baião. Eu sinto o rock primitivo que veio do country, exatamente como eu sinto o baião, que é o nosso “country”. Existe uma semelhança enorme nessas duas músicas, ou pelo menos somente eu que vejo. Ouvi muito country e baião quando era criança. Eu Sou Eu, Nicuri é o Diabo é uma cucaracha, eu vejo assim. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 79). Sampaio foi aprovado com a música Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua, e Raul teve suas duas músicas aprovadas pelo júri. Com essa participação, voltou a cantar, reiniciando sua carreira de sucesso, desta vez solo e fora da Bahia. Foi aí que conheci Sérgio Sampaio. Quando ele colocou a música Bloco na Rua no FIC decidi inscrever também Let Me Sing e Eu Sou Eu, Nicuri é o Diabo. Quando elas foram classificadas é que me deu o estalo e senti que aquilo era o trampolim para seguir carreira artística. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 13, grifo da autora) Raul produziu o LP Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua de Sérgio Sampaio, lançado em 1973 com grande sucesso, no qual o amigo dedicou-lhe a música Raulzito Seixas: “Meu nome é Raulzito/ Vim da Bahia modificar isso aqui/ Toco samba e rock, morena/ Balada e baioque”. Nessa época, Raul deixou seu cargo na gravadora e reassumiu sua carreira como cantor. Uma versão bastante conhecida dos fatos diz que, ao saber da gravação do álbum Sessão das 10, o diretor da CBS o teria despedido. Porém, na reportagem da revista Rolling Stone, essa versão é desdita: “Outra inverdade seria a de que, por causa da suposta traquinagem armada em Sessão das 10, Raulzito fora demitido. Na CBS, em 1972, ele ainda produziu o compacto Diabo no Corpo, de Mirian Batucada” (ROLLING STONE, n. 35, 2009, p. 68). Let Me Sing, Let Me Sing 83 marcou a síntese do rock com o baião, criando um rock nacional com raízes na música pop americana e no folclore brasileiro. “O som de Let me Sing é de 1956; apesar de parecer uma gozação, eu acho esta música seriíssima. É apenas o início 83 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 138-139). 141 de um trabalho muito grande que eu pretendo desenvolver degrau por degrau.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 14). A música, que inicia com o grito de guerra do rock criado por Little Richard: Uah-baplu-bap-lah-bein-bum!, segue com o ritmo de Elvis Presley: “Let me sing/ Let me swing/ Let me sing my rock’n roll/ Let me sing/ Let me sing/ Let me sing my blues and go”, intercalandoo com o baião de Luiz Gonzaga e letra de Raul: “Não vim aqui tratar dos seus problemas/ O seu messias ainda não chegou/ Eu vim rever a moça de Ipanema/ E vim dizer que o sonho/ O sonho terminou”, e segue com o refrão em rock e os trechos de baião: Tenho 48 quilo certo, 48 quilo de baião/ Num vou cantar como a cigarra canta/ Mas desse meu canto/ Eu não lhe abro mão [...] Num vim aqui querendo provar nada/ Num tenho nada pra dizer também/ Só vim curtir meu roquezinho antigo/ Que não tem perigo de assustar ninguém. “O rock é o melhor ritmo pra gente dizer uma porção de coisas. Daí eu juntei Luiz Gonzaga e Elvis. Eu não fiz um ritmo ‘Rock-baião’. Isso foi informação musical. Aconteceu.” (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 38). Quando Raul traz o rock norte-americano para junto do baião brasileiro, está relacionando dois ritmos distintos, cada qual fruto de um processo histórico-cultural específico. O rock, em que estão expressos os valores socioculturais dos anos 1950 nos EUA, é colocado em relação com o baião, que reflete os valores socioculturais do Brasil da década de 1940. Tais contextos são parcialmente transportados para um terceiro tempo no qual a música é lançada, o Brasil dos anos 1970; portanto, se esta chega ao público carregada de informações em parte descontextualizadas pelo fluxo natural da história, por outro lado, vem trazendo elementos dessas culturas. Por isso o mais importante a ser investigado nos processos de mestiçagem são essas intertraduções, uma sintaxe interna nas junturas das dobras encrespadas dos textos, que produz, por exemplo, um poema-som, um poema-tango (atraindo, imantando no poema todo o conjunto de situações de linguagem das intervizinhanças do bairro que deflagrou o ritmo ou canção. (PINHEIRO, 2009, p. 12, grifo do autor) Let Me Sing, Let Me Sing é um outro ritmo, distinto do rock norte-americano e do baião brasileiro com os quais ela foi confeccionada, é uma terceira coisa, cujo surgimento dáse a partir dos elementos que contribuem para a sua existência. Tais elementos são trabalhados de maneira não hierárquica e não ortogonal. Não se trata apenas de uma combinação ou junção rítmica, mas de algo mais intrincado: uma mestiçagem musical. De acordo com Amálio Pinheiro a respeito do conceito de mestiçagem: 142 Mestiçagem aqui não remete ao cruzamento de raças, ainda que obviamente o inclua, mas à interação entre objetos, formas e imagens da cultura. A mestiçagem não opera por fusão, que apaga as diferenças, nem por mero reconhecimento das diversidades, que as mantém isoladas: é sim um conhecimento a partir do bote canibalizante no alheio, em vaivém e ziguezague, montagem em mosaico móvel dessas multidões de outros, suas linguagens e civilizações. Está, portanto, aquém das lógicas binárias da identidade e das oposições: as dualidades dos centros e das periferias não lhe servem. A mestiçagem passa longe das totalizações epocais sucessivas: ser moderno, pós-moderno ou contemporâneo lhe é um alimento esporádico de superfície, já que pensa e trabalha por aglutinações fora-dentro e alto-baixo, de múltiplos pertencimentos e competências cognitivas. Não lhe é suficiente o hibridismo, pois que às mestiçagens não interessam apenas as proximidades e aglomerações quantitativas de fronteira, mas principalmente as inclusões e conexões sintáticas, através de todos os procedimentos, de toda e qualquer linguagem, que transformam o separado, seja distante ou contíguo, em retículas ou labirintos de alteridades em ação e reação. (PINHEIRO, 2009, orelha). Enquanto Elvis Presley era seu maior ídolo, grande expoente de uma cultura externa em outro idioma, Gonzaga representava a música de sua terra, a tradução da cultura popular do lugar onde ele cresceu. Enquanto a música de Elvis, do sul dos Estados Unidos, tem muito do gospel e do country, o baião de Gonzaga, do norte brasileiro, traz as entonações vocais do aboio do gado e a música sertaneja. Raul comenta a proximidade entre os ritmos: Luiz Gonzaga tocava o dia inteiro em Salvador, nas rádios, nas praças. Idem à loucura de Elvis Presley. Os dois, eu saquei, tinham o mesmo humor. Era idêntica a história de Cintura Fina com Blue Suede Shoes. Havia o mesmo tom safado, irônico. Acho que o humor de nosso nordestino é muito parecido com o humor do americano do sul, onde nasceu o rock’n’roll. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 44). Raul também regravou Asa Branca em inglês, sob o título de White Wings, em ritmo country, realizando um trabalho mestiço entre essa música típica brasileira e o ritmo tradicional norte-americano, colocando a letra no idioma inglês, seguindo sua observação da semelhança entre o country e o baião. Martín-Barbero fala a respeito das formas de cultura jovem que passaram a figurar na mídia da América Latina nas décadas de 1970 e 1980, que tinham por característica relacionar ingredientes de mundos culturais distintos: Un tercer tipo de dinámica, puesta en marcha por los medios masivos, es la aparición de culturas o “subculturas” no ligadas a la memoria territorial. […] Se trata no sólo de culturas nuevas sino de las culturas de que viven los jóvenes, y que por no tener un anclaje geográfico definido son con frecuencia tachadas de antinacionales, cuando lo que en verdad nos están planteando es la existencia de nuevos modos de operar y percibir la identidad. Identidades con temporalidades menos “largas”, más precarias, dotadas de una plasticidad que les permite amalgamar ingredientes que 143 provienen de mundos culturales bien diversos, y por lo tanto atravesadas por discontinuidades, por nocontemporaneidades, en las que intervienen gestos atávicos, residuos modernistas, innovaciones y rupturas radicales. (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 149). Let Me Sing, Let Me Sing (Raul Seixas) Uah-bap-lu-bap-lah-bein-bum!!! Let me sing, let me sing Let me sing my rock’n’roll Let me sing, let me swing Let me sing my blues and go, say Não vim aqui tratar dos seu problemas O seu Messias ainda não chegou Eu vim rever a moça de Ipanema E vim dizer que o sonho O sonho terminou Eu vim rever a moça de Ipanema Ei dizer que o sonho O sonho terminou Let me sing, let me sing Let me sing my rock’n’roll Let me sing, let me swing Let me sing my blues and go, say Tenho 48 quilo certo 48 quilo de baião Num vou cantar como a cigarra canta Mas desse meu canto eu não lhe abro mão Num vou cantar como a cigarra canta Mas desse meu canto eu não lhe abro mão Let me sing, let me sing Let me sing my rock’n’roll Let me sing, let me swing Let me sing my blues and go, say Não quero ser o dono da verdade Pois a verdade não tem dono, não Se o "V" de verde é o verde da verdade Dois e dois são cinco, n'é mais quatro, não Se o "V" de verde é o verde da verdade Dois e dois são cinco, n'é mais quatro, não Let me sing, let me sing Let me sing my rock’n’roll Let me sing, let me swing Let me sing my blues and go, say Num vim aqui querendo provar nada Num tenho nada pra dizer também Só vim curtir meu rockzinho antigo Que não tem perigo de assustar ninguém Só vim curtir meu rockzinho antigo Que não tem perigo de assustar ninguém Let me sing, Let me sing 144 Let me sing, my rock’n’roll Let me sing, let me swing Let me sing my blues and go, go! Let me sing, Let me sing Let me sing, my rock’n’roll Let me sing, let me swing Let me sing my blues and go Raul segue trabalhando na linha da mestiçagem entre rock e baião em Blue Moon of Kentucky 84, e até mesmo numa versão de sua música sobre o comportamento rocker, Rockixe e em Quero Ir, cantada com Sérgio Sampaio. Blue Moon of Kentucky de Raul é sua versão para a composição homônima de Bill Monroe interpretada por Elvis Presley, com o mesmo ritmo e letra semelhante. Porém, ao contrário do que ocorre na versão original, na brasileira foi ele que deixou sua garota triste: Blue moon, blue moon, blue moon keeps shinning bright/ Blue moon keeps on shinning bright/ She's gonna bring me back my baby tonight/ Blue moon, keeps shinning bright/ I say blue moon of kentucky/ Does on keep on shinning/ Shines on above this girl/ I let so blue […] (Lua azul/ Lua azul/ Lua azul/ Continue brilhando/ Ela vai me trazer de volta meu bebê essa noite/ Lua azul/ Continue brilhando/ Eu disse lua azul de Kentucky continue brilhando/ Brilhe sobre esta garota/ Que eu deixei tão triste). Na última parte, Raul interpreta o baião Asa Branca, de Luiz Gonzaga: “Quando olhei a terra ardendo/ Qual fogueira de São João/ Eu perguntei, meu Deus do Céu, ai/ Por que tamanha judiação?”, finalizando com a música de Elvis: “Blue moon, blue moon, blue moon [...]”. Aqui, como em Let Me Sing, Let Me Sing, há a mestiçagem rítmica e cultural e a coexistência idiomática do inglês com o português. Blue Moon of Kentucky (versão de Raul Seixas para a composição de Bill Monroe interpretada por Elvis Presley, com Asa Branca de Luiz Gonzaga) Blue moon, blue moon, blue moon keeps shinning bright/ Blue moon keeps on shinning bright/ She's gonna bring me back my baby tonight/ Blue moon, keeps shinning bright/ I say blue moon of Kentucky/ Does on keep on shinning/ Shines on above this girl/ I let so blue/ I say blue moon of Kentucky/ Does on keep on shinning/ Shines on above this girl/ I let so blue/ I was home with her last night/ Dying sunbright/ We'll have love/ Make it fine!/ Blue moon of Kentucky does it keep on shinning/ Shine on above this girl/ I let so blue/ Quando olhei a terra ardendo/ Qual fogueira de São João/ Eu perguntei, meu Deus do céu, ai/ Por que tamanha judiação?/ Blue moon, blue moon, blue moon... Raul marca o início do rock brasileiro e parte para novas experimentações. “Até então, eu estava por detrás do disco. Precisava projetar minha música. Combinar o rock de Elvis com 84 Letra disponível em: <http://letras.terra.com.br/raul-seixas>. Acesso em: 11 fev. 2012. 145 o baião foi a fórmula certa para chamar a atenção. Mas foi apenas o começo.” (SEIXAS, Raul apud PASSOS; BUDA, s.d., p. 81). Em entrevista à revista Pop em março de 1975, Raul fala da multiplicidade de ritmos com que trabalha e do direcionamento de público: “Eu faço boleros, tangos e canto para quem curte isso também. Minha música é para todo mundo. Não é hermética, porque não complico.” (PASSOS, 1993, p. 107). Na canção Tá Na Hora, ele vai unir novamente um ritmo latino-americano a um norteamericano, com um ritmo de mambo que muda para blues. A melodia mestiça de Mosca na Sopa 85, que inicia com capoeira conduzida pelo berimbau, apresenta a música afro-brasileira do ponto cantado de terreiro: “Eu sou a mosca que pousou em sua sopa/ Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar/ Eu sou a mosca que perturba o seu sono/ Eu sou a mosca do teu quarto a zumbizar” intercalada com o rock norteamericano: “E não adianta vim me dedetizar/ Pois nem o ddt pode assim me exterminar/ Porque cê mata uma e vem outra em meu lugar!”. Há a forte presença da guitarra intercalada com o coro formado por mães de santo, seguidos do zumbido da mosca. A melodia traz dois ritmos colocados à margem dos sistemas de legitimação (sobretudo em seu surgimento no Brasil). A questão de a mosca simbolizar um portador indesejado de uma mensagem incômoda aos sistemas de poder exigia, igualmente, a escolha de ritmos expressivos, porém marginalizados. A expressão “mosca na sopa” era uma estampa da fronha de seu travesseiro de infância, mas a construção do personagem foi também inspirada em A Metamorfose, de Franz Kafka, crítica à sociedade em que o personagem trasforma-se num grande inseto incômodo: a barata. Trabalhando a mestiçagem entre dois ritmos brasileiros, a composição de Ê Meu Pai 86 traz Raul fazendo uma oração musicada com um baião acompanhado de triângulo, interposto com ponto cantado de terreiro e coro de mães de santo. A segunda parte continua com sua voz rezando enquanto as mães de santo cantam: “Ê, meu pai/ Olha teu filho meu pai/ Ê, meu pai, olha teu filho meu pai/ Ê, meu pai, ajuda o filho meu pai/ Quando eu cair no chão/ Segura a minha mão/ Me ajuda a levantar para lutar...”. A música exalta a linguagem popular da reza das religiões afro-brasileiras e dos ritmos nacionais. 85 86 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 144). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 260). 146 Todo Mundo Explica traz ao final: O Que é que a Baiana Tem, de Carmem Miranda, com a paródia: “O que é que a ciência tem?/ Tem lápis de calcular?/ Que mais que a ciência tem?/ Borracha pra depois apagar”. Em suas anotações para a música É Fim de Mês, a utilização de ritmos combinados chega ao ápice com baião, rock, rumba, blues e candomblé, na formação melódica de uma canção quase narrada, crítica ao exaustivo pagamento de uma série de contas no mês. Segue, ao lado direito da letra, a transcrição das anotações de Raul para cada parte da música, conforme a imagem de seu manuscrito: É Fim de Mês (Raul Seixas) É fim do mês - É fim do mês Eu já paguei a conta do meu telefone, Eu já paguei por eu falar e já paguei por eu ouvir. Eu já paguei a luz, o gás e o apartamento Kitnete de um quarto que eu comprei à prestação Pela caixa federal, Au, Au, Au, Eu não sou cachorro Não, Não, Não Eu liquidei, eu liquidei A prestação do paletó, do meu sapato, da camisa Que eu comprei pra domingar com o meu amor No redentor, ela gostou (oh!) e mergulhou (oh!) E o “fim de mês” vem outra vez... Eu já paguei o pegue-pague, meu pecado, mais A conta do rosário que eu comprei pra mim rezar ave maria. Eu também sou filho de deus Se eu não rezar Eu não vou pro céu, Já fui pantera, já fui rípi, beatnick, Tinha o símbolo da paz dependurado no pescoço Porque nêgo disse a mim que era o caminho da salvação. Já fui católico, budista, protestante, Tenho livros na estante, todos têm a explicação. Mas não achei! Mas procurei! Pra você ver que procurei, Eu procurei fumar cigarro hollywood que a televisão Me diz que é o cigarro do sucesso. Eu sou sucesso! No posto esso eu encho o tanque do meu carro Bebo em troca um cafezinho cortesia da matriz. "There's a tiger no chassis"... Do fim do mês, já sou freguês! Eu já paguei os meus pecados na capela Sob a luz de sete velas que eu comprei Pro meu senhor Do bonfim - olhar por mim Rumba Fast Rumba Baião Lento Candomblé Falado (Blues) Falado (Blues) Rumba Fast 147 Tô terminando a prestação do meu buraco Meu lugar no cemitério pra não me preocupar De não mais ter onde morrer. Ainda bem, no mês que vem, Posso morrer, o meu tumbão Eu consultei e acreditei No velho papo do tal psiquiatra que te ensina Como é você vive alegremente, acomodado E conformado de pagar tudo calado, Ser bancário ou empregado sem jamais se aborrecer... Ele só que, só pensa em adaptar Na profissão seu dever é adaptar Eu já paguei a prestação da geladeira, Do açougue fedorento que me vende carne podre Que eu tenho que comer, que engolir sem vomitar, Quando às vezes desconfio se é gato, jegue ou mula Aquele talho de acém que eu comprei para a patroa Pra ela não me apoquentar (ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 98-99) Baião Rock Rock Baião Fala As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor dispõe diversos assuntos em mosaico, enquanto a sonoridade se apresenta de forma linear, da mesma forma que Conversa pra Boi Dormir. Já a música É Fim de Mês aborda um único tema como eixo central – o exaustivo pagamento de contas mensais, e sua melodia é composta por um mosaico de cinco ritmos musicais diferentes. Cada um destes ritmos foi formado como a expressão dos sentimentos e atividades cotidianos de um determinado povo numa determinada época. Se o candomblé se constitui da mestiçagem entre os ritmos brasileiros, africanos e ameríndios, com argumentação místicoreligiosa e ritualística, o blues expressa, originalmente, a dor da pobreza, da solidão e da distância da terra natal sofrida pelo povo afro-americano migrante para os centros urbanos após a queda da Bolsa de Nova York, em 1929. O rock, por sua vez, é o grito libertário afronorte-americano da juventude estado-unidense, cansada dos discursos de legitimação que regiam a sociedade. E, por fim, a rumba, ritmo cubano cujas raízes foram também levadas à ilha pelo povo africano escravizado pelos espanhóis no século XVI. Partindo de sua formação original, esses ritmos contaram com inumeráveis variações e montagens mestiças, sobretudo na América Latina; logo, o mosaico sonoro de É Fim de Mês abriga notável complexidade, mesmo entre as músicas de Raul. Abordando a principal preocupação coletiva do povo, utiliza a linguagem popular expressa, por exemplo, em: “Quantas vezes desconfio se é gato, jegue ou mula aquele talho de acém que eu comprei pra minha patroa pra ela não me apoquentar”. 148 Raul também expressa sua crítica aos discursos conformistas e à adaptação profissional: “Eu consultei, e acreditei/ No velho papo do tal psiquiatra que te ensina/ Como é você vive alegremente, acomodado/ E conformado de pagar tudo calado/ Ser bancário ou empregado sem jamais se aborrecer...” Seguido do coro debochado: “Ele só quer, só pensa em adaptar/ Na profissão seu dever é adaptar [...] Ainda bem que, no mês que vem/ Posso morrer, já tenho o meu tumbão, o meu tumbão”. Insere na música a sátira ao dicurso publicitário da mídia: “Eu procurei fumar cigarro hollywood que a televisão/ Me diz que é o cigarro do sucesso/ Eu sou sucesso!/ No posto esso eu encho o tanque do meu carro/ Bebo em troca um cafezinho cortesia da matriz/ ‘There's a tiger no chassis’...” É Fim de Mês é uma de suas críticas mais claras à engrenagem econômica cotidiana que atormenta a vida do homem comum. Coros de vozes desordenadas eclodem, ao final da música, repetindo: “É fim de mês/ É fim de mês/ É fim de mês”, remetendo o ouvinte a um estado de perturbação. Martín-Barbero aponta a música como sendo talvez a experiência mais expressiva entre as montagens de elementos culturais diversos realizadas pela cultura popular na América Latina: Quizá la experiencia más pujante y expresiva de las apropiaciones, reelaboraciones y montajes con que los sectores populares urbanos producen su identidad sea la música. Desde la “chicha” o cumbia peruana hasta el “rock nacional” en Argentina en ambos casos la apropiación y reelaboración musical responde a movimientos de constitución de nuevas identidades sociales: la del emigrante andino en la ciudad capital o la de una generación que busca su expresión. Y en ambos también la música se produce no por abandono sino por mestizaje, esto es por deformación profanatoria de lo “auténtico”. Mezclarle rock al tango o cumbia al huaino y guitarra eléctrica a la quena es sin duda una profanación. (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 142). Raul desenvolveu mestiçagens musicais, calcadas na filosofia e na cultura popular, repletas de experimentações sonoras. Se algumas de suas músicas trazem diversos ritmos em sequência ou em uma espécie de fusão, outras são ritmos progressivos, havendo ainda as que apresentam um único estilo musical. Canto Para Minha Morte 87 é um tango argentino onde a figura feminina está representada pela morte, uma mulher vestida de cetim, com a força poética concentrada no poema-tango da última parte: Ó morte, tu que és tão forte/ Que matas o gato, o rato e o homem/ Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar/ Que meu corpo seja cremado/ E que minhas 87 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 200-201). 149 cinzas alimentem a erva/ E que a erva alimente outro homem como eu/ Porque eu continuarei neste homem/ Nos meus filhos/ Na palavra rude que eu disse para alguém/ Que não gostava/ E até no uísque que eu não terminei de beber/ Aquela noite... Assim como em Canto para Minha Morte, a ideia da continuação simbólica em outras formas viventes após a morte é inerente à cultura brasileira, e aparece também na literatura de Jorge Amado, em A Morte e A Morte de Quincas Berro D’Água, quando, ao ser levado pelos amigos, já defunto, para a última farra, o personagem tem seu corpo varrido para o mar, servindo de alimento para os peixes. Outro tango mestiço é Cambalache, de Enrique Santos Discépolo 88, cantado em português, que traz a mescla sonora de Raul de colocar o baixo em blues e a guitarra em rock: Que o mundo foi e será uma porcaria eu já sei/ Em 506 e em 2000 também/ Que sempre houve ladrões, maquiavélicos e safados/ Contentes e frustrados, valores, confusão/ Mas que o século XX é uma praga de maldade e lixo/ Já não há quem negue/ Vivemos atolados na lameira/ E no mesmo lodo todos manuseados/ Hoje em dia dá no mesmo ser direito que traidor/ Ignorante, sábio, besta, pretensioso, afanador/ Tudo é igual, nada é melhor/ É o mesmo um burro que um bom professor/ Sem diferir, é sim senhor/ Tanto no norte ou como no sul/ Se um vive na impostura e outro afana em sua ambição/ Dá no mesmo que seja padre, coveiro, rei de paus/ Cara dura ou senador/ Que falta de respeito, que afronta pra razão/ Qualquer um é senhor, qualquer um é ladrão... Sessão das Dez 89 é um bolero composto em 1971 para o disco Sociedade da GrãOrdem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, que satiriza a desilusão amorosa como elemento principal: Ao chegar do interior/ Inocente, puro e besta/ Fui morar em Ipanema/ Ver teatro e ver cinema/ Era a minha distração/ Foi numa sessão das dez/ Que você me apareceu/ Me ofereceu pipoca/ Eu aceitei e logo em troca/ Eu contigo me casei/ Curtiu com meu corpo por mais de dez anos/ E depois de tal engano/ Foi você quem me deixou [...] Foi tamanho o desengano que o cinema incendiou/ One more time! foi tamanho o desengano que o cinema incendiou. Em 1971, Raul faz Aos Trancos e Barrancos 90. Neste samba tipicamente brasileiro, ele interpreta a figura do “bom malandro”; melodicamente, as nuances desse comportamento traduzem-se no ritmo, na ginga e na entonação vocal do cantor. A ideia é reforçada pela fala do personagem: “Taí, eu sou um cara que subiu na vida/ Morava no morro e agora moro no Leblon”. O sujeito bem humorado: “Eu vou pendurado na janela/ Vou mais pensando nela/ 88 Enrique Santos Discépolo (1901-1951), nascido em Buenos Aires, Argentina, foi compositor de tangos, poeta e autor de peças de teatro. No Brasil, sua obra mais conhecida foi o tango Cambalache, de 1935, regravada por Caetano Veloso em 1969, por Raul Seixas em 1987, e por Gilberto Gil em 2004. 89 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 131). 90 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 133-134). 150 Que esse sujo pelo chão”; que está sossegado com o que tem: “Pra que pensar/ Se eu tenho o que quero/ Tenho a nega, o meu bolero, a TV e o futebol”. Para “temperar” a malandragem, há a referência à caipirinha, bebida típica de pinga com limão: “Eu vou descascando a minha vida/ Sujando a avenida com meu sangue de limão”. Essa música consegue trazer ao ouvinte tanto o “sabor” do limão quanto a sensação de dia ensolarado. A entonação vocal debochada, tranquila e risonha confere veracidade a este retrato de um tipo estereotipado de brasileiro. A respeito da oralidade e da voz na cultura brasileira, Laplantine e Nouss afirmam: Este arte de hablar explorando modalidades inéditas, no solo de la lengua sino también de la voz, recorre todo el campo de la cultura brasileña, en la cual la expresión de los sentimientos raramente es frontal, sino que está constituida de formas sinuosas, indirectas, oblicuas, que sin embargo están codificadas por una extremada complejidad de ritos. (LAPLANTINE; NOUSS, 2007, p. 147). Com a ginga corpórea, vocal e melódica, vem a ideia da aposta no acaso, e, como não poderia deixar de ser, este malandro tenta a sorte jogando na loteria. O samba traduz a ginga e a malícia presentes nas curvas sinuosas da cultura brasileira, o vaivém constante do comportamento, que acompanha os jogos de humor da linguagem corrente, o movimento corporal e o rebolado. Em nuestra opinión, nada puede comprenderse en el Brasil sin este arte de deslizarse, de driblear, de swinguear, de avanzar en la conversación oscilando entre el sí y el no. El Brasil dibuja una rítmica de la curvatura que desconfia en el más alto grado de la línea recta de todo cuanto es ortogonal. (LAPLANTINE; NOUSS, 2007, p. 147) O livro Mestizajes traz uma análise, a partir de um olhar de fora, a respeito do jogo de cintura brasileiro, relacionando-o à ginga e à malícia da capoeira em seu modo de dançar e enganar o adversário. Ressalta, ainda, que tal malícia é, a um só tempo, um movimento corporal e uma capacidade de adaptação que está presente também no samba, no futebol e nos comportamentos malandros, ou seja, não só nas expressões artísticas e esportivas, mas indissociável do comportamento do povo. El movimiento en el que evoluciona el arte de la capoeira (que a la vez es un juego, una danza y una arte de combate) se llama ginga. Es una manera de desplazarse contoneándose y balanceando el cuerpo cuyo objetivo es sorprender y engañar al adversario. Lo que en Rio de Janeiro se llama o jogo de cintura consiste en evitar los obstáculos deslizándose y escurriéndose. Es un movimiento del cuerpo que, al mismo tiempo, es una capacidad de adaptación particularmente astuta (maliciosa) que se encuentra tanto en el samba, el futbol y en esos comportamientos malandros que están en el 151 límite de la legalidad y que actualmente, observémoslo, no son unánimes. (LAPLANTINE; NOUSS, 2007, p. 147, grifo nosso) No trecho seguinte, Raul explica as mestiçagens rítmicas e a função de seu disco UahBap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! em entrevista concedida a Sônia Maia, da Revista Bizz, em 1987: [...] “Esta chama Quando Acabar, o Maluco sou Eu”. E ele justifica o título: “porque eu fiz esse disco para os roqueiros ouvirem, para eles não deixarem o rock’n’roll morrer... Ela tem uma guitarra bem Chuck Berry e um violão de 12 cordas mais para os Byrds. É uma verdadeira mistura raulseixista.” Raul se detém numa frase e ri. “Veja: ‘O papa tem de se tocar e sair pelado pela Itália’”, repete junto com a música. “A próxima é Paranóia 2. É um rock surreal, mistura meio jazzística, mais ou menos linha Não Me Pergunte Por Quê (do LP Mata Virgem, de 78) e, também, Eu Sou Egoísta (do LP Novo Aeon 75) e”, diz ele, “Gente, entra pelos ouvidos e a emoção aumenta. [...] Como o Diabo Gosta (a seguinte) é um rock/country, mais ou menos no estilo/ humor dos anos 50. É baseada na minha história com a Lena” (atual mulher de Raul). Cowboy Fora da Lei começa a rolar e ele solta: “É a que mais se aproxima da música-mensagem. Falo de Tancredo e de figuras como Luther King e Gandhi. [...] Cantar é uma balada mais ou menos no estilo Cliff Richard – um indiano que aconteceu na Inglaterra antes dos Beatles. Essa outra está censurada – chama-se Check Up. Eu não entendo. Cada fase eles (a censura) querem alguma coisa. Falo dos meus comprimidinhos, nada mais além disso. Essa também está censurada: Não Quero Mais Andar na Contramão. Eu não entendo”, lamenta. “É uma música em que eu falo que parei com tudo, não quero mais...” Canceriano Sem Lar Raul fez quando estava na clínica Tobias, para tratamento contra o alcoolismo. “Não é traditional blues”, ele emenda. “É uma coletânea de retalhos de rock’n’roll, rhythm’n ‘blues e gospel. Loba já traz temas característicos dos anos 50 – letra maliciosa versus música ingênua.” Cambalache – o famoso tango de Enrique Santos Discépolo, gravado por, entre outros, Caetano Veloso (em seu álbum branco de 69) – tem uma das misturas mais hilariantes do disco. “Um arranjo louco, superintuitivo, em três ritmos: A bateria fica no tango, o baixo em blues e a guitarra em rock. Todo quebrado”, explica Raul. “E finalmente a versão em inglês de Gita que ficou I Am (falar I am e não I’m como no coloquial) é uma coisa muito forte, uma afirmação mesmo. Canto num inglês shakespeariano e este é um novo arranjo, sem orquestra. Preferi manter a coisa crua mesmo. Então esse disco vai, assim, como um presente meu, para não deixarem o rock morrer. É um disco só de rock’n’roll. É isso!” (PASSOS, 1993, p. 142-144). 4.1 Algumas Sociedades Alternativas e o Rock A década de 1960 foi um período de ruptura de valores morais, políticos e institucionais que acarretou grande efervescência sociocultural. 152 Enquanto, no início da década, a Alemanha comunista erguia o muro de Berlim, nos EUA, Europa, Japão e Brasil, os estudantes manifestavam-se contra as ordens vigentes em seus países. Em março de 1968, houve manifestações estudantis em Roma, Londres, Milão, Madri, Varsóvia e Nanterre, nos arredores de Paris. Na França, o cansaço dos discursos de legitimação levou os estudantes à atitude contestatória de ocupar a Sorbone, como se pode observar no seguinte manifesto, afixado em sua entrada principal em maio de 1968: A revolução que está começando questionará não só a sociedade capitalista como também a sociedade industrial. A sociedade de consumo tem de morrer de morte violenta. A sociedade da alienação tem de desaparecer da História. Estamos inventando um mundo novo e original. A imaginação está tomando o poder. (ROSZAK, 1972, p. 33). Os confrontos em Paris deixaram 365 feridos. Nos EUA, a geração beatnik e sua continuação, o movimento hippie, congregaram jovens cansados dos padrões sociais estabelecidos. A década contou com a revolução comportamental ligada à música e à ocorrência de mudanças significativas no panorama social. Enquanto o ano de 1963 foi marcado pelo abalo popular causado pelo atentado fatal ao presidente, o ano seguinte deu passos em direção à contracultura: o pastor Martin Luther King ganhou o Prêmio Nobel da Paz; o psicólogo Timothy Leary lançou o livro A Experiência Psicodélica, baseado em sua experiência com alucinógenos; e os Beatles chegam ao país. Em junho de 1967, foi criado o primeiro festival de rock na Califórnia, e a cidade de São Francisco sediou intensa migração hippie. No ano seguinte, o atentado fatal a Martin Luther King chocou a nação, a peça de enredo hippie Hair estreou na Broadway e, de acordo com Gaspari (2004), o escritor Theodore Roszak criou o termo “contracultura”. Termo que foi fartamente disseminado para se referir aos movimentos artísticos e comportamentais que se desenvolveram na contramão do sistema vigente nos EUA nos anos 1960. O último ano da década contou com os aparelhos de televisão mostrando Neil Armstrong na Lua, e o festival musical Woodstock levando meio milhão de jovens a vivenciarem três dias de convivência hippie equanto protestavam contra a guerra do Vietnã. No Brasil, jovens estudantes, artistas e militantes políticos lutaram contra o governo estabelecido, clamando por liberdade e direito de expressão tanto no campo eleitoral quanto no meio artístico e social. O rock e a contracultura repercutiram no país, fomentando os movimentos comportamentais, sob o impacto do regime político. Entre os fatos que marcaram a história no campo artístico cultural, temos: a exibição de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha em março 1964; e, em dezembro, a 153 estreia de um dos grandes expoentes da arte de protesto, o show Opinião, no Rio de Janeiro. O show trazia Nara Leão, o sambista Zé Keti e João do Vale, com músicas de forte cunho de protesto frente à época da recente entrada do regime militar, como Opinião, de Zé Keti, e Carcará, de João do Vale e João Cândido, que ganhou expressividade na voz da jovem Maria Bethania. No ano seguinte, o grupo Opinião realizou a estreia da peça Liberdade Liberdade, de Millor Fernandes e direção de Flávio Rangel, com o ator Paulo Autran. Em 1967, é lançado Terra em Transe, filme de Glauber Rocha. No mesmo ano, o espetáculo O Rei da Vela, escrito em 1933 por Oswald de Andrade, entrou em cartaz em São Paulo, no Teatro Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, com música de Caetano Veloso. O texto de Oswald era, então, um convite à reflexão sobre o momento que estavam vivendo, deixando a mensagem de que a história não se faz senão pela revolução. O ano de 1967 contou, ainda, com o lançamento do curto, mas impactante movimento tropicalista, com Gilberto Gil e Caetano Veloso como principais expoentes, contando ainda com Gal Costa, Tom Zé, Nara Leão, os Mutantes, Rogério Duprat e Capinan, Rogério Duarte e Torquato Neto. Eles trouxeram elementos dessa contracultura norte-americana, como a guitarra elétrica e o rock, para o cenário brasileiro. Seu movimento constituiu uma inovação ao misturar diversos estilos, como a bossa nova, o baião e o samba brasileiros, o rock, a rumba e o bolero, para expressar o sentimento de uma época politicamente fechada no país. E, em 1968, no III Festival Internacional da Canção, Vandré cantou Caminhando, no Maracanãzinho, levando o segundo lugar, apesar da torcida do público. 4.1.1 Beatnik Em 1949, após a Segunda Guerra Mundial, surgem em São Francisco as primeiras manifestações da geração beat: jovens universitários norte-americanos deram os primeiros passos em direção ao desprendimento que ecoaria até o final dos anos 1960, com a geração hippie. Conforme nos explica Claudio Willer, em Geração Beat (2009), foi de um diálogo entre Jack Kerouac e John Clellon Holmes, em 1948, que surgiu o termo beat generation. Falando sobre a natureza das gerações, Kerouac disse: “Ah, isso não passa de uma geração beat.”, para desnomeá-la. O termo apareceu em Go, de Holmes, publicado em 1952, e em leitura de poesias na Six Gallery de San Francisco, em 1955. Na mesma época, Herbert Huncke, que era do mesmo 154 grupo, declamava: “Man, I’m beat” (Cara, eu estou ferrado). Beat é, ainda, a batida rítmica de jazz, e pode também ser associado à beatitude — Kerouac interpretou assim em 1959. O termo beatnik foi inventado pelo jornalista Herb Cohen, do San Francisco Chronicle, que uniu a palavra beat com o satélite russo Sputnik colocado em órbita em outubro de 1957. O símbolo da liberdade beat é a estrada. O movimento beat foi sobretudo um movimento literário de um grupo de amigos, que floresceu entre 1944 e 1959 aproximadamente, inspirado em diversos escritores, como Walt Withman, Dostoiévski, William Blake, Federico García Lorca, Thomas Wolfe, Ezra Pound, Louis-Ferdinand Céline e Gertrude Stein. Também teve inspiração no modo de vida dos goliardos, jovens egressos das universidades, ligados ao clero, que viveram nos séculos XII e XIII na Inglaterra, Alemanha e França. Contrários às leis eclesiásticas, levavam uma vida desregrada e contestavam a Igreja, compunham e recitavam poemas satíricos, eróticos e boêmios, e viam no papa o grande expoente da hierarquia e do poder da Igreja. Por suas críticas e comportamento mundano, sofreram perseguições e condenações. O mais conhecido exemplo de seu legado é a obra Carmina Burana, composta no século XIII, com mais de mil poemas e canções, que inspirou a ópera homônima, do alemão Carl Orff, em 1937. O primeiro grupo da beat generation foi formado por Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs, Neal Cassady, Herbert Huncke e John Clellon Holmes, que, em 1948, conheceram Carl Solomon e Philip Lamantia; dois anos depois, Gregory Corso e, em 1954, Lawrence Ferlinghetti e Peter Orlovsky. Em meados da década, conheceram poetas de São Francisco, como Michael McClure, Gary Snyder, Philip Whalen e, aproximadamente em 1958, Bob Kaufman, Jack Micheline, Ray Bremser e LeRoi Jones. Viajavam muito, com o propósito encontrar inspirações literárias e soluções alternativas para a realidade que conheciam. Na tentativa de expandir as fronteiras da experiência, aventuravam-se a lugares distantes, como Índia, Nepal e México, onde experimentavam meditações e alucinógenos, que, posteriormente, foram popularizados com o movimento hippie. Foram juntos ao México, Europa e Ásia, além dos EUA. Levavam a vida mudando-se, morando um pouco em cada cidade e trabalhando em diversos empregos. Suas amizades estendiam-se às experiências sexuais, e, de acordo com O Livro dos Sonhos de Kerouac, eles também se encontravam em sonhos. Também se relacionavam com outros poetas e artistas. Há, ainda, amigos seus que não deixaram obras, como Lucien Carr, Hal Chase e Bill Cannastra, e suas amigas Joan Vollmer, 155 Eddie Parker e Carolyn Cassady, Mary Fabili, Elise Cowen, Joyce Johnson, Hettie Jones, Joanna McClure e Janine Pommy. Os principais expoentes da literatura beat foram: Jack Kerouac, com On the Road, de 1957, Cidade Pequena, Cidade Grande e O Livro dos Sonhos; Neal Cassady, herói de On The Road; William Burroughs, com Naked Lunch, de 1959; John Clellon Holmes, com Go, The Horn; Ferlinghetti, que foi editor dos beats pela City Lights Books. Além de Allen Ginsberg, com Howl, de 1956, apontado por Roszak (1972) como a obra com a qual a contracultura começou. Seus livros e poemas eram relatos de suas aventuras, nas quais eles próprios eram os personagens. Entre amigos, desenvolveram trabalhos de criações coletivas, como: os textos de colagem de Burroughs, Bryon Gisin e Gregory Corso, que tiveram como resultado Minuts to GO; e And the Hippos Were Boiled in Their Tanks, feito por Kerouac e Burroughs; ou o poema Pull my Daisy, de Kerouac, Ginsberg e Cassady. Uns faziam leituras públicas das páginas dos outros. O processo criativo beat estava ligado à experimentação literária — levar ao papel seus sentimentos e experiências da forma mais sincera possível, escrevendo apressadamente tudo o que lhes vinha à mente. A poesia de Ginsberg revela o mesmo sentido da pressa e total autoaniquilamento, o mesmo anelo de projetar o impulso aniquilativo original [...] A intenção de sua poesia em meados da década de cinqüenta era, diz Ginsberg, “apenas escrever... soltar a imaginação, descerrar o segredo, anotar as linhas mágicas saídas da minha mente real”. [...] a longa parte inicial de Howl foi batida à maquina em uma tarde; Sunflower Sutra foi completado em vinte minutos, “eu na mesa escrevendo, Kerouac na porta da cabana esperando que eu acabasse”. [...] Dentro do mesmo espírito de improvisação, Jack Kerouac chegaria ao ponto de datilografar suas novelas sem interrupção em enormes rolos de papel – 1,80 por dia – sem nunca fazer uma revisão”. (ROSZAK, 1972, p. 134) Também são relatos interessantes as cartas trocadas entre eles, como The Yage Letters, entre Burroughs e Ginsberg, e As Ever, entre Ginsberg e Cassady. Sofrendo censura literária, Naked Lunch, de Burroughs, foi liberado para publicação em 1966, apesar das obscenidades, tornando difícil censurar quaisquer obras literárias posteriores, e Kerouac demorou seis anos para publicar On The Road. No prefácio de The Beat Book, Ginsberg fala da diversidade do grupo beat, conforme aponta Willer no livro Geração Beat: Burroughs, protestante branco; Kerouac, índio norte-americano e bretão; Corso, católico italiano; eu, radical judeu; Orlovsky, russo branco; Gary Snyder, escocês-alemão; Lawrence Ferlinghetti, italiano, continental, 156 educado na Sorbonne; Philip Lamantia, autêntico surrealista italiano; Michael McClure, escocês do meio-oeste norte-americano; Bob Kaufman, afro-americano surrealista; LeRoi Jones, poderoso negro, entre outros (WILLER, 2009, p. 21). Interessante notar que essa diversidade, que seria comum na maior parte da América Latina, chama a atenção do revolucionário Ginsberg, mostrando os beats como um grupo excepcionalmente miscigenado para os padrões norte-americanos da época, não só na descendência mas também nos padrões sociais. [...] Mas reunir desde o filho de um morador de rua, Neal Cassady, até o descendente de uma elite econômica, Willian Burroughs, e o autodidata Gregory Corso, que conheceu a literatura na cadeia, até Lawrence Ferlinghetti, doutorado na Sorbonne, a diferencia de movimentos europeus. (WILLER, 2009, p. 21). Essa multiplicidade cultural foi a inspiração da multiculturalidade como bandeira no movimento hippie, e abriu espaço para uma nova visão de mundo nos EUA do pós-guerra. A geração beat representou a quebra de valores hierárquicos, morais e institucionais. Posteriormente, teve sua produção reconhecida: Ginsberg recebeu honrosos prêmios literários e foi professor do Brooklin College, e Corso recebeu o National Book Award. O jazz foi a música que embalou a geração beat. Ray Charles fez Hit The Road Jack em homenagem a Kerouac; Janis Joplin teve, em Mercedes Benz, a letra de Michael McClure; Neal Cassady recebeu homenagem da banda The Grateful Dead; o grupo The Clash teve Ginsberg em shows; Laurie Anderson contracenou com Burroughs; Philip Glass fez uma ópera com temas de Ginsberg; e The Band fez apresentação com Ferlinghetti. Essa não foi uma geração que se fechou em seu movimento literário, mas dialogou com outras formas de arte. 4.1.2 Hippie “Já fui pantera, já fui hippie, beatnik, tinha o símbolo da paz dependurado no pescoço, porque nêgo disse a mim que era o caminho da salvação” (É Fim de Mês/ Raul Seixas). No embalo da geração beatnik, surge, nos EUA dos anos 1960, uma nova movimentação juvenil denominada geração hippie. Seu nome deriva do termo hipster, usado para os fãs que adotavam o estilo de vida boêmio dos músicos de jazz nos anos 1940. O termo, que começou a ser usado para os beatniks, acabou por designar a geração posterior. Alice Echols fala sobre a eclosão do movimento: “A prosperidade dos Estados Unidos, o ácido, a Invasão Britânica e o fato de Dylan ter abandonado o acústico foram os elementos 157 catalisadores da revolução hippie, e São Francisco estava unicamente prestes a responder à mudança (ECHOLS, 2000, p. 119). As tentativas de expansão dos níveis mentais de percepção foram sua grande “brincadeira”. Na busca por realidades alternativas, procuraram, em diferentes civilizações, elementos que alimentassem seus ideais libertários, extraindo-os de seus contextos culturais intrínsecos e os ressignificando. Recorreram aos valores tribais africanos e indígenas, às filosofias orientais, como a hindu e a budista, experimentaram as drogas alucinógenas e técnicas meditativas, como a Yoga. Em seu crescente exercício de vazão à criatividade, materializavam nas artes suas visões extraordinárias, potencializadas pelas meditações e alucinógenos — nos cartazes desenhados com letras distorcidas e formas sinuosas, no multicolorido abstrato do tingimento de roupas tie-dye, nas pinturas psicodélicas das latarias dos ônibus. E, ainda, nos sons experimentais e oníricos das músicas, que chegaram ao ápice com o uso das paredes de som e os longos solos de guitarra. Na tentativa de criar algo novo, abandonaram o uso das mercadorias industriais e envolveram-se no trabalho criativo de produções artesanais que pudessem traduzir, para o campo material, o ideário mental do modo de vida alternativo. O objeto industrial tende a desaparecer como forma e a confundir-se com sua função. Seu ser é significado, e seu significado é ser útil. Está no outro extremo da obra de arte. O artesanato é uma mediação: suas formas não se regem pela economia da função, mas pelo prazer, que é sempre um gasto e não tem regras. O objeto industrial não tolera o supérfluo: o artesanato se compraz nos enfeites. Sua preferência pela decoração é uma transgressão da utilidade. A persistência e a proliferação do enfeite no artesanato revelam uma zona intermediária entre a utilidade e a contemplação estética. No artesanato há um contínuo vaivém entre utilidade e beleza; esse vaivém tem um nome: prazer. [...] O prazer que nos é dado pelo artesanato brota de uma dupla transgressão: ao culto da utilidade e à religião da arte. (PAZ, 1991, p. 51) Com o intento de melhorar a qualidade de vida, entregaram-se à experimentação das realidades alternativas ligadas às ideias de paz, amor, liberdade sexual, ecologia, economias informais e produção artesanal. Os hippies utilizaram o artesanato como forma de expressão compartilhada em seus grupos sociais. A respeito do artesanato: Feito com as mãos, o objeto artesanal conserva, real ou metaforicamente, as impressões digitais de quem o fez. Essas impressões são a assinatura do artista, não um nome; nem uma marca. São antes um sinal: a cicatriz quase apagada que comemora a fraternidade original dos homens. [...] O artesanato é um signo que expressa a sociedade não como trabalho (técnica) nem como 158 símbolo (arte, religião), mas como vida física compartilhada. [...] A sensibilidade pessoal e a fantasia desviam o objeto de sua função e interrompem seu significado [...] Desvio e interrupção que ligam o objeto a outra região da sensibilidade: a imaginação. Essa imaginação é social: o cravo na jarra é também um sol metafórico compartilhado por todos. Em sua perpétua oscilação entre beleza e utilidade, prazer e serviço, o objeto artesanal nos dá lições de sociabilidade. (PAZ, 1991, p. 51-52). O rock era a música desse movimento libertário, e expandiu-se melódica e filosoficamente inspirado na contracultura e nas viagens do inconsciente. Para traduzir a psicodelia do momento histórico, elementos exóticos, oníricos e alucinógenos foram incorporados a ele, ao mesmo tempo em que surgia a guitarra elétrica, considerada sua grande revolução, com seus solos transcendentais tão alucinógenos quanto as drogas que os inspiravam. Jimmy Hendrix e Eric Clapton foram os pioneiros do sucesso das guitarras; o primeiro, aclamado por Experience, sua coleção de solos e delírios na guitarra. Entre os ídolos que inspiraram a geração hippie estão: Bob Dylan, admirado pelos próprios colegas; Janis Joplin, com seu blues visceral; Jim Morrison, com The Doors e seu rock subversivo; Pink Floyd, com suas experiências sonoras psicodélicas e shows de luzes alucinantes, usados até hoje nas discotecas. Bandas com proposta de vida alternativa ligadas à região conhecida como bay area surgiram em São Francisco, e a música atraía o público, formando núcleos do movimento alternativo que se estabeleciam por longos períodos. Entre os principais expoentes estavam Jefferson Airplane, Grateful Dead e Big Brother and the Holding Company, cuja cantora era a grande beatnik do blues Janis Joplin. Nessa época, ela, a banda e as mulheres e filhos dos rapazes viviam juntos em uma casa, formando uma grande família hippie. Alice Echols nos traz a descrição de Dave Getz, integrante do Big Brother and the Holding Company, sobre o teor criativo e vanguardista das apresentações musicais e multimidiáticas dessa época no circuito hippie de São Francisco: A agitação artística de São Francisco era um acontecimento multimídia, que envolvia não apenas políticos, Pranksters e músicos mas também artistas, bailarinos, poetas e atores. Embora fosse o “Som de São Francisco” que interessava aos jornalistas, nos primeiros bailes de rock’n’roll apresentavamse poetas, bailarinos, trupes de teatro e iluminadores. Um dos primeiros trabalhos do Big Brother foi em The Blast, um evento multimídia que, segundo Dave Getz, estava “à frente de seu tempo. Havia uma banda de rock’n’roll em um lado do palco, um conjunto free jazz no outro lado do palco, bailarinos no meio, projeções de luz e uma cantora lírica negra, Crystal Mazur. Era projetada em tela uma história em quadrinhos e ela cantava as palavras que estavam nos balões. Às vezes as duas bandas tocavam juntas. Era totalmente espontâneo, era tão vanguardista que ninguém havia ouvido falar disso”. (ECHOLS, 2000, p. 121). 159 O vídeo Festival Express documenta a turnê realizada por Janis e o Grateful Dead e uma série de outros músicos do circuito alternativo, em sua inusitada viagem pelo Canadá, apresentando-se em diversas cidades, como a country Calgari, onde o estilo dos músicos não foi bem compreendido. Ao atravessarem o país no trem de alta velocidade, ficaram confinados, na presença uns dos outros, durante muitos dias, estreitando as relações de amizade entre as bandas, de forma marcante. Embalando a trilha sonora do documentário, temos a famosa Casey Jones do Grateful Dead, deveras aprazível em sua harmonia sonora, embora aborde dois assuntos desagradáveis, como o consumo da cocaína e um famoso acidente de trem do Mississipi. Os festivais eram, de fato, o maior impulso para alçar a contracultura ao grande público, atraindo cada vez mais jovens para seu meio. Desde Newport a Woodstock, passando por uma série de outros, foram os grandes responsáveis pelo rápido alastramento do ideário hippie. Entre as bandas de projeção, havia na Inglaterra: The Who, com seu rock melódico e Tommy, uma ópera rock de grande projeção; Rolling Stones, com seu rock sensual, agressivo e dançante; e The Beatles, com baladas dançantes, românticas e experimentos sonoros. Nos EUA, a região de Haight Ashbury, em São Francisco, passou a sediar o fluxo hippie migrante de todo o país. De acordo com Friedlander, a história do lugar propiciou o acolhimento da contracultura: Desde a corrida do ouro em 1849, a “Cidade” ganhara a reputação de ser um lugar onde tudo é permitido. No final do século XIX, a vizinhança de Barbary Coast era notória. A prostituição, a jogatina e a máfia floresciam [...] San Francisco permitiria, mais tarde, que os bares de top less de North Beach e a culturalmente radical Hight-Ashbury existissem. San Francisco tornou-se a última fronteira para os excêntricos. (FRIEDLANDER, 2002, p. 269). Em 1967, as estações de rádio espalharam para todo o país a máxima da cidade: Be sure to wear flowers in your hair (Certifique-se de usar flores nos seus cabelos), de autoria de John Philips do conjunto Mamas and The Papas, atraindo os adeptos da contracultura para a região. No mesmo ano, primeiro festival de rock nacional dos EUA, o Monterey Pop, que ocorreu durante três dias num local entre Los Angeles e São Francisco, atraiu quase duzentas mil pessoas. Ainda em 1967, a cidade sediou o “verão do amor”, movimento espontâneo dos jovens de todo o território nacional em direção à bay area, localidade onde, desde 1965, estava ocorrendo a efervescência cultural do movimento hippie. Pegando caronas sem o conhecimento dos pais, os adolescentes os tranquilizavam com os famosos telefonemas e 160 cartas dizendo: “Não se preocupem, eu estou bem, eu conheci uma gente bonita”. De acordo com Echols: Por todos os Estados Unidos, os pais estavam recebendo o que Tom Wolfe batizou de “carta da gente bonita”. Tal carta começava tipicamente com desculpas por ter desaparecido e continuava: “Eu não quero chateá-los com a coisa toda [...] e então cheguei aqui e realmente o cenário é lindo. Não quero que vocês se preocupem comigo. Eu conheci uma GENTE BONITA. (ECHOLS, 2000, p. 113). O movimento atingiu seu ápice em número de adeptos e de experiências. A estação terminou com o saldo da proliferação de doenças venéreas, e os visitantes retornaram às suas cidades de origem. Esse movimento jovem tomou proporções notáveis, que refletiram na moda, na arte enquanto estética e intencionalidade, na música, no comportamento, no teatro e no mercado de consumo em muitos países. O Brasil acolheu essas tendências com benevolência, tendo aqui também suas sociedades hippies de músicos, artesãos e jovens em geral, que, embora vivendo um quadro sócio-político diferente, adotaram os hábitos da contracultura no mesmo contexto de protesto e criatividade, criando o mundo que sonhavam em meio à realidade do regime militar. Se, na formação estadunidense, eles não podiam conviver com a guerra do Vietnã, aqui também os anos foram ficando marcados pelas ações militares que afetavam diretamente os jovens. 4.1.3 Metamorfose Ambulante Em diálogo com a contracultura, Raul fez a entrada musical de Metamorfose Ambulante semelhante ao arranjo que Joe Coquer & Grease Band apresentaram no festival Woodstock para a música With a Little Help From my Friends, dos Beatles. Entre suas inspirações sobre o fascinante ato da transformação, estavam Metamorfoses, de Ovídio, que ele leu diversas vezes, e a obra-prima de Franz Kafka, A Metamorfose. Raul já havia escrito, na parede do seu quarto, a frase: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante”, que inspirou sua criação musical em 1973. “Metamorfose Ambulante, por exemplo, eu fiz com 12, 13 anos de idade. Tá escrita na parede da minha casa na Bahia” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 133). Em seu diário, aparece sua poesia sobre o tema metamorfose ambulante: Olha outro papo, minha gente! [...] Constante metamorfose ambulante 161 Cerebrônico sensível indivíduo Corpo sujo mente pura Para o corpo não há cura Para a mente há sem-mente Pura-mente minha-só Sem-pura Mente só Minha-pura Mente minha É necessário ter em mim essa meta Uma constante metamorfose ambulante Nunca ter uma opinião formada. (SEIXAS, Raul, 1983, p. 42). Metamorfose Ambulante é a música libertária da constante transformação. Implica o desprendimento da mudança de opinião e o rompimento com a rigidez do compromisso (desdizer o que se disse antes), é a proclamação da desobrigatoriedade de qualquer permanência. A proposta da música é o oposto do processo de estagnação que o compromisso social exige, seguindo o traço anárquico ideológico também presente em suas críticas sociais. Ele também gravou esta canção em castelhano. Metamorfose Ambulante 91 (Raul Seixas) Prefiro ser essa metamorfose ambulante/ Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo/ Quero dizer agora o oposto do que eu disse antes/ Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo/ Sobre o que é o amor/ Sobre que eu nem sei quem sou/ Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou/ Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor/ Lhe tenho amor/ Lhe tenho horror/ Lhe faço amor/ Eu sou um ator.../ É chato chegar a um objetivo num instante/ Eu quero viver nessa metamorfose ambulante/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo/ Sobre o que é o amor.../ Vou desdizer aquilo tudo que eu lhe disse antes/ Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo/ Do que ter aquela velha opinião formada.../ Do que ter aquela velha... 4.1.4 Maluco Beleza O personagem que marcou a imagem de Raul Seixas foi uma criação de seu próprio punho. Em 1977, ele lançaria sua música Maluco Beleza 92 no álbum O Dia Em Que a Terra Parou. O trabalho trouxe uma abordagem poética e lírica em outras quatro canções: Sim, Você, Sapato 36 e na música-tema, mas a simplicidade narrativa de Maluco Beleza prontamente cativou o público e tornou-a a estrela do disco. 91 92 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 144-145). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 218-219). 162 A mensagem de desobrigatoriedade e o uso do pronome “eu” também facilitaram a empatia do ouvinte com o personagem, um sujeito fora do sistema, retratado ao som de uma melodia melancólica, que ganhou vida na entonação vocal despretensiosa de Raul. A somatória de argumento, voz e sonoridade conferem um ar de docilidade ao personagem. A narrativa se desenvolve estabelecendo uma comparação entre o tranquilo outsider 93 e uma segunda pessoa a quem ele se dirige: Enquanto você se esforça pra ser/ Um sujeito normal/ E fazer tudo igual/ Eu do meu lado aprendendo a ser louco/ Um maluco total/ Na loucura real/ Controlando a minha maluquez/ Misturada com minha lucidez/ Vou ficar/ Ficar com certeza/ Maluco beleza/ E esse caminho que eu mesmo escolhi/ É tão fácil seguir/ Por não ter aonde ir/ Controlando a minha maluquez/ Misturada com minha lucidez/ Vou ficar/ Ficar com certeza maluco beleza/ Ficar com certeza maluco beleza/ Eu vou ficar... Raul a compôs como uma homenagem para os grandes líderes espirituais da humanidade, como Jesus Cristo e Mahatma Gandhi, mas a canção acabou por afetuosamente rotulá-lo. Impulsionada pela mídia, a expressão tomou força, passando a designar não apenas a seu criador e aos seus seguidores como a quaisquer outsiders de aparência tranquila em todo o país, até o presente momento. Em atitude consonante com a ideia da música, em 1977, Raul saiu passando o chapéu pelas pessoas da Rua Sete em Vitória, no Espírito Santo, fazendo-se de imitador de si mesmo, dizendo: “Por favor, eu estou imitando Raul Seixas aqui, eu sou o maior fã”. Após a coleta, sentou-se no canteiro e começou a tocar seu violão cantando Maluco Beleza. Já dispondo de prestígio nacional, ele se colocou entre o povo, como havia feito quatro anos antes, ao cantar Ouro de Tolo nas ruas do Rio de Janeiro 94. Seu apreço por estar entre o movimento das ruas do centro da cidade criou uma proximidade com seu público, que se estende até os dias de hoje. Sendo estes os locais em que sua música se faz mais presente, ele também frequentava os bares populares de centros urbanos. Maluco Beleza traz a ideia da quebra do pacto do cumprimento dos papéis sociais. O personagem rompe o compromisso com o que se entende por normalidade num dado momento numa dada sociedade. O mesmo tom de descompromissado com a ordem ou a normalidade estabelecidas pelo sistema social está presente em Metamorfose Ambulante — tanto “Eu vou ficar com certeza/ Maluco beleza” como “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante/ Do que ter aquela 93 94 Indivíduo que tem um modo de vida não convencional diante do sistema social estabelecido como regular em determinada época, local e sociedade, de acordo com seu gênero, idade e condição social. O episódio está documentado em vídeo do acervo do fã-clube oficial Raul Rock Club. 163 velha opinião formada sobre tudo” rompem o compromisso social. “Eu quero dizer/ Agora o oposto do que eu disse antes” traz a liberdade do agir conforme sua própria vontade, na mesma linha de “Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal/ E fazer tudo igual/ Eu do meu lado aprendendo a ser louco/ Um maluco total”. Ambas são compostas na linha da libertação individual das amarras psicossociais proposta pela obra de Raul, cuja simplicidade e linguagem popular permitem grande abrangência de público. O personagem “maluco beleza” fala sobre a escolha de seu caminho individual. Tal escolha e, sobretudo, a questão do direito a ela estão ligadas, na obra de Raul, ao Anarcoindividualismo de Max Stirner e ao misticismo de Crowley, sintetizados em seu jargão: “Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei”. O viés político recorrente em canções como Metamorfose Ambulante e Sociedade Alternativa é a proposta do caminho individual, sintetizada nesta última, onde cada qual age conforme a própria vontade. O “maluco beleza” apresenta um modo de vida de um habitante ou adepto da Sociedade Alternativa. Tal qual o personagem de Mosca na Sopa, que anuncia a sua presença, também este afirma sua permanência, como que esclarecendo seu direito de ficar, ainda que agindo de forma diferenciada com relação à ordem comum: “Eu vou ficar/ Ficar com certeza/ Maluco Beleza”. O entrecruzamento de anarquismo e misticismo, pensados de modo indissociável um do outro, na obra de Raul, é um traço mestiço característico desta. Ele relacionou a anarquia do alemão Max Stirner, explanada em sua obra principal O Único e a sua Propriedade, publicada em 1844, e o misticismo do inglês Crowley, explicado no livro da Lei em 1904. Tal relação dá-se ao colocá-los lado a lado, num nível não hierárquico, não ortogonal, incorporando elementos da cultura, como o “maluco beleza”, o sujeito que prefere ser a “metamorfose ambulante”, ou o personagem fora de qualquer ordem da Sociedade Alternativa. 4.1.5 Woodstock Em 1969, o maior festival musical da história mostraria ao mundo que o convívio em uma sociedade alternativa era um sonho possível. Dormindo ao relento e “alimentando-se” de música, paz, amor, drogas e rock and roll, meio milhão de jovens cumpriram, em um único festival, todos os preceitos de uma geração. Woodstock foi realizado nos dias 15, 16 e 17 de agosto de 1969, numa fazenda nos arredores de Nova Iorque. Por três dias, quinhentos mil jovens (coincidentemente o mesmo número de soldados que os EUA tinham no Vietnã em 1967), vindos de várias cidades norteamericanas, reuniram-se para assistir ao festival e pedir paz para o Vietnã, formando uma 164 imensa comunidade, com shows realizados por músicos ídolos das gerações beatnik e hippie, que compartilhavam seus ideais. No local do festival, o governo decretou área de calamidade, pelas precárias condições: excesso de pessoas e de lixo e escassos banheiros, comida e água. Apesar do grande número de jovens acampados em condições desfavoráveis, não houve registros de violência, fechando com “chave de ouro” a década da liberdade. Quando a década acabou, Hendrix, Janis e Morrison estavam mortos, como tantos jovens, prematuramente. Com o findar do movimento hippie, o rock, que havia se apresentado como a tradução musical de múltiplas experimentações sensoriais, passou a contar com um crescente processo de padronização e comercialização. Seus ídolos adaptaram-se às exigências do mercado, as roupas tie-dye passaram a ser industrializadas, e todo o esforço contra-hegemônico em relação ao stablishment passou a ser capitalizado — mas o sonho de liberdade havia entrado para a história. A sociedade alternativa era possível, de alguma forma, por algum tempo, até que jovens idealistas e românticos amadurecessem e se enquadrassem na sociedade existente, rendendo-se ao sistema, para constituir família e trabalhar em empregos estáveis, como seus pais. 4.2 Sociedade Alternativa “Se você não está dentro da Sociedade Alternativa, a Sociedade Alternativa sempre esteve dentro de você.” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 63). Em 1971, Raul Seixas interessou-se por um artigo sobre discos voadores que havia lido na revista underground “A Pomba”. Ao procurar pelo autor na redação, encontrou Paulo Coelho, que o havia assinado com um pseudônimo. Raul convidou-o para conversar, e esse primeiro encontro resultou em sua posterior amizade e parceria musical. Envolvido em várias sociedades esotéricas, Paulo apresentou-as ao amigo e, em setembro de 1973, eles fundaram a Sociedade Alternativa. Em 17 de fevereiro de 1974, eles participaram, com suas esposas, de um congresso que reuniu as principais sociedades alternativas do mundo. Ali, apresentaram a declaração de direitos da Sociedade Alternativa que haviam idealizado, baseada nas escrituras de Aleister Crowley. Em setembro de 1974, em seu primeiro show em São Paulo, no Teatro das Nações, Raul distribuiu os gibis A Fundação de Krig-Ha, de sua autoria com Paulo e ilustrados por Adalgisa Rios, falando da Sociedade Alternativa. 165 A Sociedade Alternativa é a idealização de uma opção de vida fora do stablishment, livre dos sistemas de poder; portanto, ácrata, sem hierarquias nem guerras ou domínios, onde cada indivíduo é livre para agir tomando sua própria vontade como lei. É uma filosofia de vida segundo a qual cada indivíduo deve agir conforme sua própria vontade, sem jamais a impor a outrem; somente subjugar é proibido. É uma sociedade onde o direito de liberdade de expressão de cada um está assegurado. Seu principal preceito é: “Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei”. Frase de Aleister Crowley, que Raul incorporou. O conceito está sintetizado na música Novo Aeon 95: Sociedade Alternativa, sociedade Novo Aeon/ É um sapato em cada pé/ Direito de ser ateu ou de ter fé/ Ter prato entupido de comida que cê mais gosta/ Ser carregado ou carregar gente nas costas/ Direito de ter riso e de prazer [...] E, o novo aeon, por sua vez, também é citado na música Sociedade Alternativa 96: “Viva a Sociedade Alternativa! Viva o Novo Aeon!” Transcendendo a necessidade de um local físico, a Sociedade Alternativa pode existir enquanto filosofia de vida: é uma ideia. Raul ganhou um terreno de uma sociedade esotérica, em Minas Gerais, para sediá-la. O local se chamaria Cidade das Estrelas, mas sua instalação física jamais aconteceu. “A Sociedade Alternativa não é algo que depende de pessoas, reuniões. É só uma maneira de ver o mundo.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 35). Raul e Paulo criaram a música Sociedade Alternativa como a declaração melódica de seu projeto, e ela se tornou o hino do sonho libertário, com frases tiradas do Livro da Lei, criado por Aleister Crowley, como: “Faz o que tu queres, há de ser tudo da Lei”, “Todo homem e toda mulher é uma estrela”, “Esta é a nossa lei e alegria do mundo”. Raul também deu musicalidade à página introdutória do mencionado livro, em sua música A Lei. Sociedade Alternativa 97 (Raul Seixas/ Paulo Coelho) Viva! Viva!/ Viva A Sociedade Alternativa!/ Viva! Viva!/ Viva A Sociedade Alternativa!/ Viva o Novo Aeon!/ Viva [...] Se eu quero e você quer/ Tomar banho de chapéu/ Ou esperar Papai Noel/ Ou discutir Carlos Gardel/ Então vá!/ Faze o que tu queres/ Pois é tudo da lei/ Da Lei/ Viva! Viva!/ Viva A Sociedade Alternativa/ Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei/ Viva! Viva!/ Viva A Sociedade Alternativa!/ Todo homem, toda mulher é uma estrela/ Viva [...] Mas se eu quero e você quer/ Tomar banho de chapéu/ Ou discutir Carlos Gardel/ Ou esperar Papai Noel/ Então vá!/ Faze o que tu queres, pois é tudo da lei, da lei/ Viva! Viva!/ Viva a Sociedade Alternativa/ O número 666 chama-se Aleister Crowley/ Viva! Viva!/ Viva a Sociedade Alternativa/ Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei/ Viva [...] A Lei de Thelema/ 95 96 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 196-197). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 166-167). 166 Viva! Viva!/ Viva A Sociedade Alternativa!/ A Lei do forte/ Esta é a nossa lei e a alegria do mundo/ Viva! Viva! Viva!/ Viva o Novo Aeon! O refrão: “Se eu quero e você quer tomar banho de chapéu [...]” é uma referência à cena em que John Lennon figura tomando banho de chapéu na banheira do hotel, na comédia A Hard Days Night, em que os Beatles interpretam a si mesmos, à qual Raul contou ter assistido onze vezes. A Sociedade Alternativa foi sua obra máxima e seu trabalho de mestiçagem mais abrangente, uma mescla peculiar de anarquia, misticismo e astrologia, com bases filosóficas em: A Utopia de Thomas More, o anarquismo de Proudhon, o anarcoindividualismo de Max Stirner, a obra de Aleister Crowley, os estudos astrológicos sobre a nova era e certo diálogo com os movimentos alternativos e contraculturais. Raul esclarece sobre seu projeto como uma revolução cultural: Mas agora vou lutar com minhas próprias armas e uma delas é a Sociedade Alternativa, da qual nunca abri mão. Sou palhaço, ótimo. É bom que me vejam assim pois terei condições de articular minhas coisas. Me confesso seriamente engajado numa cruzada pela implantação da Sociedade Alternativa, uma revolução cultural em andamento. Tenho um compromisso e não posso voltar atrás. Recebo cartas e mais cartas toda semana, gente querendo aderir ao projeto. Mas quero avisar que a Sociedade Alternativa não é um clube ou um partido, é uma ideia. A carteirinha do clube é você mesmo. É a sua cabeça. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 30). As relações que constituem a Sociedade Alternativa são móveis e dão-se em constante comunicação com o vaivém da cultura. Ao executar no palco a leitura da Lei, quando a cantava em shows, Raul estava reforçando a ideia de uma sociedade livre, ao mesmo tempo em que sentia a imediata reação do público. Ele recebia centenas de cartas com perguntas e opiniões sobre a Sociedade Alternativa, cujas leituras indicavam-lhe as possibilidades de aceitação de seu movimento. Em entrevista à revista Pop, Raul ressalta o fato de o Brasil ter uma cultura diferente do restante do mundo, ao falar da diferença entre sua Sociedade Alternativa e as demais existentes: Pop - Dá para comparar a sua Sociedade Alternativa com as outras que estão espalhadas pelo mundo? Raul Seixas - Não há comparação, porque o Brasil é uma outra cultura, todo um processo civilizatório diferente. Então temos aqui uma “Sociedade Alternativa” brasileira, dentro do campo e do limite em que ela pode se estender. (SEIXAS, Raul, apud PASSOS, 1993, p. 106-107). 97 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 166-167). 167 O movimento da Sociedade Alternativa cresceu, estendendo-se para uma série de outras músicas, como Novo Aeon, O Trem das Sete e Nuit, que para Raul representa essa nova era. Ao viver de acordo apenas com sua própria vontade, seu personagem Maluco Beleza torna-se automaticamente um membro dessa sociedade alternativa, assim como o sujeito inconstante de Metamorfose Ambulante. No campo místico, há as canções A Lei, Gita, Medo da Chuva e A Maçã, cujas temáticas estão entre o misticismo e o anarquismo. E, em diálogo com o anarquismo, há O Carimbador Maluco e o pensamento registrado em seu diário intitulado Anarkland. O conceito da Sociedade Alternativa estende-se a todas as suas músicas de contestação política, permeando sua obra do início ao fim. Se tal sociedade não pôde existir fisicamente — seja por não se fazer necessária dado seu apelo filosófico, ou pelas objeções políticas à sua existência concreta —, foi justamente essa ausência de materialidade que a manteve ativa como um ideal para os que acreditam. A Sociedade Alternativa apresenta seu viés barroco na medida em que se constitui daquilo que a sociedade convencional não quer: da desmesura; do desperdício; do que está marginal ao sistema, como a soberania da vontade própria e sua abertura ao exagero, possibilitada pelo “Faze o que tu queres”; da não exploração do outro sob quaisquer circunstâncias; e do descompromisso sociomercadológico e, nesse sentido, do desligamento do sistema. Tal rompimento com o stablishment, no qual as estruturas mercadológicas englobam todos os aspectos da vida, torna-a marginal desde sua idealização em 1973 até o presente momento. Seu caráter mestiço está impresso já na sua constituição de elementos diversos combinados de modo intrínseco e se estende às demais características, como o descrédito na lógica binária, nas ordens hierárquicas e nas centralizações de poder; na sua aceitação de quaisquer elementos sociais e culturais e em sua abertura indiscriminada a quaisquer membros. Raul proclamou esta música como um hino nacional de caráter anarcoindividualista, no primeiro show da dupla Raul Seixas e Marcelo Nova em Salvador, em outubro de 1988, registrado em arquivo de vídeo do Raul Rock Club: Sociedade Alternativa é o hino nacional, onde o homem é o embaixador do próprio país. É o que a gente é, cada um é diferente um do outro, então, a gente tem direito de ser o que é, a gente tem direito de fazer o que quer, de pensar o que quiser, da maneira, como e quando a gente quiser. É aquela coisa de mal criação, de bater o pé no chão. 168 O LP Se o Rádio não Toca é fruto de gravação, para controle próprio, de um show realizado em Brasília em 1974, lançado apenas vinte anos mais tarde, por iniciativa de Sylvio Passos, em 1994. Na introdução do disco, Raul fala ao público: “Tem uma música que nós vamos lançar em junho que dá uma idéia geral do nosso trabalho da Sociedade Alternativa. Que não é somente um trabalho musical, porque de cantores o Brasil está cheio e precisa também... só girar o batão, vamos lá!” Neste disco, Raul fala à plateia antes de cantar Sociedade Alternativa: Ok, agora eu vou cantar uma música chamada Sociedade Alternativa, que é a música, né? Que é a música de estrutura básica do nosso trabalho, quem quiser cantar comigo, cante. Por que quem vai cantar é que vai sentir realmente alguma coisa, que nós estamos entrando em um outro tipo de coisa. Agora, eu confio muito nas crianças, entende? Muito nas crianças, criança, quando eu falo eu me incluo também, porque as crianças não significa idade, significa aquela coisa, crianças são os iniciados, os escolhidos, entendeu? E nós todos somos, entendeu? E a gente ri, a gente ta vendo uma coisa de uma maneira completamente diferente, certo? Então vamos lá, é o nosso hino, de onde nós somos embaixadores do país, ou seja, nós mesmos, onde você tem a alternativa de escolher. Acho que eu nunca expliquei tão bem quanto eu estou explicando para vocês agora. É assim facílimo. Seguindo esta fala, ele começa a entoar a música Sociedade Alternativa com todo o vigor. Figura 11 - Chave da Sociedade Alternativa Fonte: <http://www.memorialraulseixas.com/2010/02/sociedade-alternativa.html>. Acesso em: 3 fev. 2012. Seu símbolo gráfico, apresentado na Figura 11, abriga a mestiçagem entre elementos provenientes de culturas distintas, que são colocados juntos originando algo novo: uma chave, cujo desenho é formado pela cruz egípcia da eternidade denominada Cruz Ansata, com grande 169 força em sua cultura de partida, e, abaixo, a representação dos dois degraus da magia, tendo ao redor as letras em estilo gótico referentes ao poder eclesiástico medieval representado pelo selo imprimatur (imprima-se). Embora a Sociedade Alternativa seja formada por uma gama conceitos, o símbolo escolhido para representá-la constitui-se de outros elementos, que se combinam formando a bandeira de um sonho: a chave, que simbolicamente abre todas as portas. Em sua análise sobre as relações culturais do símbolo, Lotman (1996) diz que nele sempre há algo de arcaico. Os símbolos representam um dos elementos mais estáveis do continuum cultural. O símbolo atuará como algo que não guarda homogeneidade com o espaço textual que o rodeia, como um mensageiro de outras épocas culturais; por outro lado, relaciona-se com o contexto cultural, transforma-se sob sua influência e, por sua vez, o transforma. De acordo com Lotman (1996), o símbolo atua como um claro mecanismo de memória coletiva. Qualquer que seja o evento sobre Raul Seixas que queiramos frequentar, encontraremos um sem número de fãs ostentando a chave pendurada, estampada ou mesmo tatuada em seus corpos. Ela os identifica como adeptos dos mesmos ideais. Figura 12 - Raul desenhando a chave da Sociedade Alternativa no abdômen, no Festival Phono - 1973 Fonte: <www.ibahia.com/imprensa/noticia>. Acesso em: 2 jan. 2012. Entre 11 e 13 de maio de 1973, a gravadora Phonogram realizou o festival Phono, no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo, com grandes nomes da música popular brasileira, como Elis Regina, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gal Costa e Maria Bethânia. 170 Raul Seixas começou cantando Let Me Sing, Let Me Sing e passou a gritar: “I feel all right, all right, that’s the way I want (Sinto-me bem, sinto-me bem, é assim que eu quero), é necessário gritar! Gritar”. Então, pegou um batom e desenhou a chave da Sociedade Alternativa no abdômen, dizendo energicamente ao microfone: “Está lançada aqui a semente, a semente de uma nova idade. Uma nova idade, que vocês todos são testemunhas”. Projetando sua voz sobre o coro frenético dos back vocals, que repetiam: “Feel all right” (Sentindo-se bem), e emendou: “1, 2, 3, 4: Tudo que tinha que ser chorado, já foi chorado [...]”, cantando também Loteria Babilônica. O vídeo do festival Phono integra o acervo do Raul Rock Club. A semente da nova idade a que se referia enquanto desenhava era a própria Sociedade Alternativa, sua proposta da vivência da nova era. A imagem do desenho corporal conservou seu brilho poético através dos anos, sendo exibida atualmente como cartaz promocional do filme Raul: O Início, o Fim e o Meio, trinta e nove anos mais tarde. O documentário traz o depoimento do experiente produtor musical André Midani relembrando a força daquele gesto. Num momento em que a sociedade brasileira atravessava um período repressivo à liberdade de expressão, figurava assaz ousado seu gesto de marcar o tronco nu, publicamente, com o símbolo de seu sonho libertário. 4.2.1 Misticismo Raul fala da nova lei que virá com a nova era astral e que havia sido mencionada por Crowley, e que encontra também seus valores no livro sagrado hindu. Neste trecho, estão interligados os três elementos místicos presentes na Sociedade Alternativa: a nova era, o Bhagavad Gita e o Livro da Lei. Dentro da nova lei que é mencionada por Krishna no Bhagavad-Gita e por Crowley no Book of the Law, “Faze o que tu queres...”, o único objetivo do homem passa a ser a sua própria e real felicidade. É preciso tornar a ser indivíduo outra vez. E, mesmo que até hoje nossas esperanças tenham sido frustradas, nesta Nova Era que se inicia o indivíduo compreenderá o valor de si próprio e se unirá a outros para o grande trabalho da autolibertação. (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 90). Raul havia iniciado seus estudos místicos em 1971, com Paulo Coelho, quando criou a Sociedade Alternativa. Ele estudava a obra de Aleister Crowley (1875-1947) O Livro da Lei, em que a introdução, intitulada Liber OZ, defende o direito do homem de agir conforme a sua vontade. Liber LXXVII OZ (Aleister Crowley) “A lei do forte: esta é a nossa lei e alegria do mundo” “Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei” 171 “Tu não tens direito a não ser fazer a tua vontade. Faze aquilo, e nenhum outro dirá não”. “Todo homem e toda mulher é uma estrela” Não existe Deus senão o homem. 1- O homem tem o direito de viver pela sua própria Lei: De viver da maneira que ele quer viver; De trabalhar como quiser; De brincar como quiser; De descansar como quiser; De morrer quando e como ele quiser. 2- O homem tem o direito de comer o que ele quiser: De beber o que ele quiser; De viver onde ele quiser; De mover-se como ele quiser sobre a face da terra. 3- O homem tem o direito de pensar o que quiser: De dizer o que quiser; De escrever o que ele quiser; De desenhar, pintar, esculpir, esboçar, moldar, construir como ele quiser. 4- O homem tem o direito de amar como ele quiser: “Tomai vossa fartura e vontade de amor como quiserdes, onde, quando e com quem quiserdes”. 5- O homem tem o direito de matar esses que queiram contrariar estes direitos. “Os escravos servirão” “Amor é a Lei, amor sob vontade”. (PASSOS, 1992, p. 66) Raul toma A Lei como parte de sua filosofia libertária, vendo-a como preceito que favorece a liberdade e o bem-estar do homem. Uma vez que ele assume uma postura pessoal e artística contra a violência, a frase sobre matar aqueles que contrariarem os direitos só pode ser lida em sua obra de maneira simbólica, e não literal. Ele esclarece sobre a aplicação destas frases com bom senso: A Lei é bem clara: Faz o que queres. Isso não quer dizer que o cara deva sair por aí quebrando os vidros das casas alheias. É preciso adotar a Lei com plena consciência do seu significado. Esta é a única solução para a Nova Era. (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 34). Admirador da obra deste místico, Raul absorveu conhecimento e desenvolveu suas próprias criações: “Pensar que Crowley tinha a verdade toda... não... eu tirei coisas dele, toques dele, fiz uma coisa minha, em cima do que eu descobri.” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 30). Em seus shows, Raul desenrolava um pergaminho onde estava impresso o “Liber Oz” e o recitava em voz alta para o público — era o momento mais importante do show, um elo entre o artista, o público e sua filosofia. “Mais do que qualquer outra forma de contato, a palavra torna clara, nos indivíduos que ela confronta, a sua condição de sujeitos: seu ‘lugar’.” (ZUMTHOR, 1997, p. 33). 172 O “Liber Oz” serviu como base para Raul criar a música A Lei e a Sociedade Alternativa. Falando de sua filosofia nas músicas, ele estava fundando sua Sociedade Alternativa ideológica. O fundamento da sociedade não é o pacto social, mas, como o próprio Russeau adivinhou, o pacto verbal. A sociedade humana começa quando os homens começam a falar entre si, quaisquer que tenham sido a índole e a complexidade dessa conversa [...] o pacto verbal é o fundamento da nossa sociedade. (PAZ, 1991, p. 126-127) A partir de 1973, o misticismo vai estar presente em sua obra, como na música Love is Magick 98. 98 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 214-215). 173 Figura 13 - Love is Magick - manuscrito Fonte: Raul Rock Club. Disponível em: <http://www.raulrockclub.com.br/>. Acesso em: 22 nov. 2011. Além da música gospel norte-americana presente no rock, o mosaico místico-sonoro de Raul compreendia o catolicismo, o hinduísmo, a magia, a umbanda e o candomblé. A forte presença da religiosidade afro-brasileira na cultura de Salvador foi levada para sua música em Mosca na Sopa; É Fim de Mês; Ê Meu Pai e Ave Maria da Rua 99. Esta última inicia: “Teu nome é Iemanjá, e é Virgem Maria”, trazendo o sincretismo, próprio da umbanda, entre a santa e o orixá africano, que é a rainha das águas; embora ambas tenham transcendido 99 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 203-204). 174 suas ligações com sincretismos religiosos, fazendo-se presentes na cultura brasileira como entidades femininas de força extraordinária. Entre suas composições de inspirações místicas, podemos citar: Judas, que discorre sobre o ingrato papel do apóstolo, tendo de ser o traidor num plano já traçado pelo Pai; O Messias Indeciso, inspirada em Ilusões: As aventuras de um messias indeciso, de Richard Bach, que narra a história de um messias que jamais quis ser adorado. Além da lírica Ave Maria da Rua, que fala da Virgem que está em todas as mulheres. Raul fez Água Viva, uma de suas músicas de maior lirismo, sobre o poema Eterna Fonte, de São João da Cruz, ou de Yepes, o espanhol fundador da Ordem dos Carmelitas Descalços, nascido em 1542. Por sua música, essa obra sacra medieval chegou ao conhecimento do público rocker. Em show realizado em Brasília em 1974, que integra o disco Se o Rádio não Toca, Raul correlaciona Água Viva com o conceito de individualidade presente em Crowley, ao citar sua frase: “Todo homem e toda mulher é uma estrela”. Palavras de Raul nesse evento: Essa chama-se Água Viva e fala do homem, como nós estamos numa fase do novo ressurgimento do homem, ela fala sobre esse potencial que nós temos, que é o homem, a vida, essa energia que a gente tem dentro. Cada homem e cada mulher é uma estrela que gira em torno de si, uma espécie de um individualismo, mas um individualismo no bom sentido, um individualismo cósmico. Eu não gosto dessa palavra cósmico, porque não define nada, mas... uma música muito bonita, escrita por mim e por Paulo Coelho baseada em San Juan de la Cruz que foi um grande espiritualista. E como San Juan de la Cruz já morreu há muito tempo, a gente cita o nome dele porque ele já não pode receber os direitos autorais. Água Viva 100 (Raul Seixas / Paulo Coelho) Eu conheço bem a fonte Que desce daquele monte Ainda que seja de noite Nessa fonte está escondida O segredo dessa vida Ainda que seja de noite Êta fonte mais estranha, que desce pela montanha Ainda que seja de noite Sei que não podia ser mais bela Que os céus e a terra bebem dela Ainda que seja de noite Sei que são caudalosas as correntes Que regam céus, infernos Regam gentes 100 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 164-165). 175 Ainda que seja de noite Aqui se está chamando as criaturas Que desta água se fartam mesmo às escuras Ainda que seja de noite Ainda que seja de noite... Eu conheço bem a fonte Que desce daquele monte Ainda que seja de noite Porque ainda é de noite! No dia claro dessa noite! Porque ainda é de noite No dia claro desta noite Eterna Fonte (Poema de autoria de São João da Cruz) Aquela eterna fonte está escondida, Mas bem sei onde tem sua guarida, Mesmo de noite Sua origem não a sei, pois não a tem, Mas sei que toda a origem dela vem, Mesmo de noite. Sei que não pode haver coisa tão bela, E que os céus e a terra bebem dela, Mesmo de noite. Eu sei que nela o fundo não se pode achar, E que ninguém pode nela a vau passar, Mesmo de noite. Sua claridade nunca é obscurecida, E sei que toda luz dela é nascida, Mesmo de noite. Sei que tão caudalosas são suas correntes, Que céus e infernos regam, e as gentes, Mesmo de noite. A corrente que dessa fonte vem É forte e poderosa, eu o sei bem, mesmo de noite. A corrente que destas duas procede, Sei que nenhuma delas a precede, Mesmo de noite. Aquela eterna fonte está escondida, Neste pão vivo para dar-nos vida, Mesmo de noite De lá está chamando as criaturas, Que nela se saciam às escuras, Mesmo de noite. Aquela viva fonte que desejo, Neste pão de vida já a vejo, Mesmo de noite. (SÃO JOÃO DA CRUZ apud SCIADINI, 2004, p. 53-54) Ele também buscou inspiração nos textos sagrados do Oriente. A sublime canção Conto do Sábio Chinês, que conta a história de um sábio que sonhou ser uma borboleta, 176 símbolo da libertação, foi baseada no livro sagrado chinês Tao Te Ching, de Lao Tse. Gita, sua música mística de maior sucesso, foi inspirada no livro sagrado hindu Bhagavad Gita. 4.2.1.1 Bhagavad Gita “Que Gita ecoe no coração dos homens e os faça levantar novamente a cabeça.” (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 91). Aqui, Raul atribui à sua música Gita o potencial de dignificar o homem; ele fala das vezes que leu o livro sagrado Bhagavad Gita, e de sua opinião sobre seu significado na atualidade: Eu li Bhagavad-Gita três vezes em minha vida. O Bhagavad Gita é um livro antigo, hindu, uma espécie assim de Os Lusíadas do oriente. A primeira vez foi aos 14 anos de idade, mas ainda não conseguia compreender a importância do livro. A segunda, aos 23 anos, por sugestão do meu professor de filosofia. Mas somente agora, quando li pela terceira vez, numa época em que todos os valores do mundo se modificam, é que pude compreender verdadeiramente o seu significado. Bhagavad-Gita quer dizer, em portugês, Canto do Senhor. “Gita”, apenas, significa “canto”. Pra mim é um canto diferente, longe do convencionalismo das músicas e próximo ao soar de uma trombeta que acorda o indivíduo para o que ele tem dentro de si sem que saiba. Quando esse canto é entoado, desperta magicamente dentro de cada ser humano, abrindo as portas para uma verdadeira mutação de princípios e valores. Gita fala do homem, do seu duelo entre o que tentaram fazer com que ele fosse e o que ele realmente é ou sempre desejou ser. Hoje em dia, cada vez mais homens estão fazendo o que querem, e isso é a única grande atitude que se pode esperar de uma civilização que chegou ao ponto máximo de todas as esperanças. (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 88). Neste trecho, Raul ressalta o potencial da canção Gita de despertar o indivíduo para aquilo que tem dentro de si, e novamente registra sua intenção de conduzir o homem a um novo estágio de consciência. O livro sagrado que inspirou a canção Gita integra uma obra ainda maior: Os Vedas, que são as escrituras sagradas do Oriente, das quais faz parte o grande poema épico Mahabharata, no qual está incluído o Bhagavad Gita. Estas obras datam de aproximadamente seis mil anos antes de Cristo. Traduzidos da língua original, o sânscrito, Vedas significa visão, conhecimento, e Bhagavad Gita traduz-se como Sublime Canção. A obra foi passada para o inglês por Sua Divina graça A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada. No Brasil, tem-se acesso à tradução comentada de Huberto Rohden. Neste livro, o príncipe Arjuna, que teve seu reino e posses usurpados por seus queridos parentes, enfrenta o profundo conflito entre matá-los e voltar a seu posto, ou apiedar-se e ficar 177 sem nada. No auge de sua aflição, aparece-lhe Krishna, o Deus supremo, disfarçado, que em dado momento revela-se de todo, em sua infinita glória, mostrando-se a Arjuna por uma visão transcendental, como jamais havia feito a alguém; ao que, o príncipe cai prostrado e maravilhado. Estudiosos relacionam o ego humano aos amados e traidores parentes de Arjuna, e o príncipe, a cada ser humano, que só chegaria à plenitude após a dolorosa eliminação do ego, embora isso custasse extremo esforço, tal seria o motivo do conflito interior. De acordo com Rohden: Outros, porém ‒ entre eles Rabindranath Tagore, Mahatma Gandhi e outros iniciados ‒ , interpretam as palavras de Krishna em sentido simbólico, como aliás toda a luta de Arjuna contra os usurpadores, entendendo que Arjuna é o Eu humano cujo reino foi usurpado pelo ego, e Krishna é o Eu plenamente realizado, que convida Arjuna a fazer a sua auto-realização, derrotando seus parentes ‒ os sentidos, a mente e as emoções ‒ , que, no homem profano, usurpam injustamente o domínio do divino Eu. (ROHDEN, 2003, p. 15) Em 1974, Raul lançou o álbum Gita, com a música homônima composta por ele e Paulo Coelho, inspirada no Bhagavad Gita. Eles resumiram a estrutura dos poemas criando frases coerentes com o livro, como: “Eu sou a luz das estrelas, eu sou a cor do luar, eu sou as coisas da vida”. De acordo com os preceitos, não há a distinção dualista entre o bem e o mal, porque tudo é parte do todo, como nos versos e na frase da música: “Eu sou os olhos do cego e a cegueira da visão”. Na época, Raul estava profundamente envolvido em estudos místicos. 74 foi um ano terrível pra mim [...] Eu fiquei perdido, confuso, apavorado. Eu queria respostas, eu queria descobrir... tudo... descobrir tudo. Eu estava envolvido profundamente com Paulo Coelho e nós mergulhamos mesmo no esoterismo. Eu via uma saída por aí, queria descobrir. Conheci uma pessoa, chamada Marcelo, uma pessoa muito importante, e foi na mão dele que Aleister Crowley (mago inglês) deixou o Livro da Lei; ele é o continuador da obra de Crowley. Ele nos iniciou numa sociedade esotérica [...] eu estava envolvidíssimo. E de repente eu descobri que a luz, o conhecimento tem de vir de você mesmo. É claro que eu precisava passar por tudo isso pra descobrir. Agora eu estou bem comigo. Estou bem comigo, do mesmo modo como todos deviam estar bem consigo mesmos. É disso que eu falo naquela música “Eu sou Egoísta” (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 28-30, grifo nosso) A partir desta constatação pessoal de que a luz do conhecimento deve vir do próprio indivíduo, Raul passou a trabalhar incessantemente para alertar o público a esse respeito em suas músicas. Ao buscar no milenar livro sagrado da Índia a inspiração para sua música, Raul o traz para a cultura popular brasileira e o dissemina por meios midiáticos de largo alcance, 178 inevitavelmente retirando-o de seu contexto histórico e religioso carregado de valor simbólico, lançando-o em outro tempo e país, para outro público. De modo que esta mensagem passa a ser outra coisa que não sagrada e simbólica, mas da ordem da informação e do entretenimento, podendo ser assimilada apenas parcialmente, mas, ainda assim, informando uma outra cultura de seu valor e de sua existência, sendo então, absorvida e recontextualizada por esta última. O álbum rendeu a Raul seu primeiro disco de ouro e consolidou sua fama como artista nacional de prestígio. Segue aqui cópia do manuscrito original das ideias para o disco Gita. A folha documenta as anotações de seu processo criativo para seu LP de maior sucesso. Na primeira parte, ele anotou: Contra-capa Ideias Gita 1-Liber OZ 2-Foto em fotos de retalhos de jornais 3-O nome em cima “Sociedade Alternativa” A chave da felicidade [slide] (Tudo feito de cabeçários de jornais) Manchetes 4-Lembrete – Roube esse disco se possível 5-Escrever para a SALT, ... etc... 6-Acabe com o que lhe acaba 7-Quero Nero para vereador. O segundo trecho é dedicado ao direcionamento popular do disco, destacando ainda seu caráter educativo. Ele atribui uma finalidade a esse trabalho, no sentido de alertar o povo de seu potencial, fornecer um conteúdo capaz de proporcionar determinado grau de conscientização que possibilite a autolibertação: Esse disco é para o povo do Brasil. Não foi gravado para intelectuais nem para os radicais da velha esquerda festiva. Eles não precisam desse disco. Foi feito para o povo que não sabe das suas possibilidades e alternativas, foi gravado como um disco educativo. Esse é o único propósito desse disco. Se o povo, a maioria silenciosa não se proteger do fascista, do capitalista e do comunista ele está fadado a sucumbir muito breve. E, por fim, ele fala sobre a conquista do poder: Poder não é um objeto material que possa ser dado a você. Poder é uma habilidade de agir. Poder tem que ser tomado e não dado a você. (Geisel não tem nenhum poder consequentemente). – Liberdade cura. 179 Figura 14 - Ideias: Gita - manuscrito Fonte: Raul Rock Club. Disponível em: <http://www.raulrockclub.com.br/>. Acesso em: 22 nov. 2011. A música Gita contou com um arranjo musical notável feito pelo maestro Miguel Cidras e teve a participação orquestral de sessenta e quatro músicos. De acordo com Raul, ela teria vários níveis de entendimento. Gita 101 (Raul Seixas / Paulo Coelho) Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando Foi justamente num sonho que ele me falou: Ele 101 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 170-171). 180 Às vezes você me pergunta Por que é que eu sou tão calado Não falo de amor quase nada Nem fico sorrindo ao teu lado Você pensa em mim toda hora Me come me cospe me deixa Talvez você não entenda Mas hoje eu vou lhe mostrar Eu sou a luz das estrelas/ Eu sou a cor do luar Eu sou as coisas da vida/ Eu sou o medo de amar Eu sou o medo do fraco/ A força da imaginação O blefe do jogador/ Eu sou, eu fui, eu vou (Gita, Gita, Gita, Gita, Gita) Eu sou o seu sacrifício/ A placa de contramão O sangue no olhar do vampiro/ E as juras de maldição Eu sou a vela que acende/ Eu sou a luz que se apaga Eu sou a beira do abismo/ Eu sou o tudo e o nada Por que você me pergunta? Perguntas não vão lhe mostrar Que eu sou feito da terra Do fogo, da água e do ar Você me tem todo dia Mas não sabe se é bom ou ruim Mas saiba que eu estou em você Mas você não está em mim Das telhas eu sou o telhado A pesca do pescador A letra A tem meu nome Dos sonhos eu sou o amor Eu sou a dona de casa Nos pegue-pagues do mundo Eu sou a mão do carrasco Sou raso; largo; profundo (Gita, Gita, Gita, Gita, Gita) Eu sou a mosca na sopa E o dente do tubarão Eu sou os olhos do cego E a cegueira da visão Mas eu sou o amargo da língua A mãe, o pai e o avô O filho que ainda não veio O início, o fim e o meio Eu sou o início, o fim e o meio 181 Figura 15 - Cópia do manuscrito original da música Gita – Parte 1 Fonte: <http://mnocelli.zip.net>. Acesso em: 1 jan. 2012. 182 Figura 16 - Cópia do manuscrito original da música Gita – Parte 2 Fonte: <http://mnocelli.zip.net>. Acesso em: 1 jan. 2012. Raul ingressou no processo investigativo de religiões e seitas de magia, atendo-se aos conteúdos filosóficos, não ao sectarismo religioso. Não via lógica na concepção da existência sem um criador: “O Universo me espanta e não posso imaginar que este relógio exista e não tenha um relojoeiro.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika, 1996, p. 64). Em 1988, Raul gravou uma versão de Gita em inglês, chamada I am Gita, acrescentando preceitos da Lei de Thelema, com frases como: “Eu sou a lei de Thelema” e “Eu sou o poder da vontade”, misturando os conceitos milenares do hinduísmo com a magia crowleana, numa obra sua de caráter tão sacroprofano quanto mestiço. 183 Inspirado na obra de Crowley, Raul compôs Nuit, uma homenagem à deusa egípcia exaltada por este. Feita em parceria com Kika Seixas no início dos anos 1980, a música só foi lançada em seu último LP, no final da década. A narrativa aborda a deusa da noite como escura, misteriosa e destemida, aquela que ama a guerra e adora o fogo, contrastando com o sol, que, por sua vez, é claro e revelador dos mistérios que ela oculta; contudo, ambos se completam em perfeita harmonia. Novamente a obra de Raul traz os opostos se completando, como na era de Aquarius: “Nuit é a mulher total, o prenúncio de uma nova era, de um novo tempo mulher. É o que eu chamo de Novo Aeon.” (PASSOS, 1993, p. 126). Nuit 102 (Raul Seixas / Kika Seixas) Eu, eu ando de passo leve pra não acordar o dia/ Sou da noite a companheira mais fiel que ela queria!/ Amo a guerra, adoro o fogo/ Elemento natural do jogo, senhores:/ Jamais me revelarei/ Jamais me revelarei!/ E quão longa é a noite/ A noite eterna do tempo/ Se comparada ao curto sonho da vida/ Chega enfeitando de azul/ A grande amante dos homens/ Guardando do sol seu beijo em comum/ Seja bom ou o que não presta/ Acendo as luzes para nossa festa, senhores:/ Eu sou o mistério do sol!/ Eu sou o mistério do sol!/ Mas é com o sol que eu divido toda a minha energia/ Eu sou a noite do tempo/ Ele é o dia da vida/ Ele é a luz que não morre/ Quando chego e anoiteço/ O sol dos dois horizontes/ A mais perfeita harmonia. Esse “novo tempo mulher” figura na música Novo Aeon: “E até as mulheres ditas escravas/ Já não querem servir mais/ Ao som da flauta da mãe serpente”, ou seja, da sabedoria”. 4.2.2. Novo Aeon A força motriz da sensação de libertação que embalou a contracultura na década de 1960 foi a crença na entrada de uma nova era astral, a Era de Aquarius, que, diferentemente de sua antecessora, a Era de Peixes, não apresentaria mais distinções dualistas entre bem e mal, pobre e rico, certo e errado, e que os dualismos oposicionistas dariam lugar a um equilíbrio pacífico de forças. Essa era marcará sua entrada quando o sol nascer em frente à constelação de aquarius no equinócio da primavera. De acordo com os estudos da União Astrológica Internacional divulgados em 1929, a nova era teria sua transição prevista para 2600 d.C.; portanto, ainda demoraria aproximadamente seiscentos anos para entrarmos na Era Aquário-Leão, diametralmente oposta à passada Era Leão-Aquário, na qual prevaleceu o egoísmo e os dualismos. Agora, porém, a meio caminho, estaríamos vivendo na Era de Peixes, em que o desrespeito e os dualismos ainda se fazem presentes. Outras correntes, 102 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 324). 184 porém, afirmam que a entrada na nova era ocorreu no equinócio de primavera de 2001, não havendo uma concordância entre os grupos de estudiosos do assunto. Raul esclarece a importância da transformação política libertária do Novo Aeon: Depois de milênios esgotaram-se as tentativas de resoluções ideológicas/ políticas para o perfeito equilíbrio do homem na sociedade. Não há mais dogmas, leis, verdades, todas são iguais; em todas elas existe um ponto em comum: o controle de uma ideia por um grupo sobre mil cabeças que pensam diferente. Cada um é o que sente ser e isso é imutável no homem. O Novo Aeon é um desses momentos em que a natureza e a ordem dos tempos determinam uma nova e fantástica mutação dos valores antigos. Fim da política careta. Cada qual é seu próprio dono e juiz, livre pra fazer e dizer o que nasceu pra ser. É o NOVO. (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 100). Ele explica como o Novo Aeon oferece um ponto de vista inédito, que exige preparo para ser percebido, e como essa nova era integra a Sociedede Alternativa. O Novo Aeon está ligado à figura da mulher, conforme ele compôs em Nuit. Um ponto de vista que destrói todos os conceitos e valores mantidos até hoje sem nenhum sucesso visível. Outra concepção de viver da arte, da ética, religião, política inexistente, Deus, amor... um mundo novo onde só os que hoje já têm o olho-novo podem perceber; os que ainda usam olhos-velhos estarão sempre olhando o novo e aplicando seus mesmos velhos valores, pois o velho vê o novo com olhos velhos. Essa é a visão nova da Sociedade Alternativa e seus membros brasileiros e estrangeiros. O amor do homem pela mulher é o ódio pelo fato de ela ser a caverna de entrada e também de saída. A entidade feminina é a fonte astuta, sorvedouro de amor do qual é o homem roubado. (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 100). Esperança de um novo mundo, a Era de Aquarius, também chamada de Aquário-Leão, ou apenas Nova Era, é o que Raul denomina Novo Aeon. A explicação do termo “Aion”, ao qual Raul chamou Aeon, pertence ao autor Huberto Rohden, em sua tradução comentada do livro Bhagavad Gita: A nossa moderna astronomia admite que o universo é um revezamento de implosão e explosão, um processo de contração atômica e expansão cósmica. Esse processo é chamado pela filosofia oriental inalação e exalação de Brahman, e cada ciclo inalativo-exalativo é chamado Yuga ou Mahayuga, correspondendo ao termo grego aion (eon) ou à palavra latina aeternitas (eternidade). Yuga, aion, aeternitas não representam duração sem fim, mas uma duração de inconcebível extensão e cujo fim ninguém pode prever (2003, p. 62). A obra de Crowley, estudada por Raul, também anunciava o surgimento da nova era; portanto, esse conceito astrológico também se relaciona ao misticismo em sua música. 185 Inspirado na nova era, Raul criou as músicas Novo Aeon, Trem das Sete e Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás. “Há uma Nova Era no ar e não posso deixar de mostrá-la em meus trabalhos.” (SEIXAS, Kika, 1996, p. 33). O título Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás faz referência ao fato de, há dez mil anos, termos vivenciado a Era Leão-Aquário, com os egoísmos e os valores opositivos bastante evidentes. A letra da música de Raul Seixas e Paulo Coelho foi inspirada em I Was Born About Ten Thousand Years Ago, interpretada por Elvis Presley, de autoria desconhecida, embora as melodias sejam diferentes. A canção Novo Aeon narra a ocorrência de uma mudança de valores não noticiada pela mídia, e termina por explicar a Sociedade Alternativa. Inspiração romântica de artistas e jovens sonhadores, a Era de Aquário foi o colorir das artes libertárias. O musical Hair, em cartaz na Broadway de abril de 1968 a julho de 1972, com posteriores apresentações até os dias atuais, chamou a atenção do público pela forma aberta como retratou as temáticas que estigmatizaram a década de 1960 como: as drogas, a vida em comunidades, o compartilhamento dos namorados, a nudez, a psicodelia, os cabelos compridos e a rebeldia. Com seu sucesso, muitos grupos teatrais a encenaram em outros países, incluindo o Brasil. Em 1979, o diretor Milos Forman realizou seu desejo de dirigir o filme Hair, um musical que traz como música de abertura Age of Aquarius (Era de Aquarius), de composição de Galt MacDermot e arranjo vocal de Tom Pierson, que fala sobre a atmosfera de paz e entendimento que chegará com esse novo tempo. A projeção da música levou o assunto a conhecimento do grande público. Estudioso de magia e astrologia, Raul apostou na dissolução da concepção dualista de valores do mundo ocidental. Em Novo Aeon, diz: “Já não há mais culpado nem inocente/ Cada pessoa ou coisa é diferente/ Já que é assim/ Baseado em que/ Você pune/ Quem não é você?”. Enquanto sólidas distinções sociais garantem crédito aos poderes estabelecidos, assegurando que cada indivíduo ocupe seu lugar, mantendo as ordens hierárquicas, a dissolução dualista tiraria o propósito das hierarquias e desestabilizaria os jogos de poder, cessando as dissensões entre os homens; portanto, o Novo Aeon, tal qual a anarquia, representaria uma ameaça ao stablishment. Em outubro de 1975, Raul lançou o álbum Novo Aeon, pela Philips, com a músicatema de mesmo título. 186 Novo Aeon (Raul Seixas / Cláudio Roberto / Marcelo Motta) O sol da noite agora está nascendo/ Alguma coisa está acontecendo/ Não dá no rádio nem está/ Nas bancas de jornais/ Em cada dia ou qualquer lugar/ Um larga a fábrica, outro sai do lar/ E até as mulheres, ditas escravas/ Já não querem servir mais/ Ao som da flauta/ Da mãe serpente/ No para-inferno/ De Adão na gente/ Dança o bebê/ Uma dança bem diferente/ O vento voa e varre as velhas ruas/ Capim silvestre racha as pedras nuas/ Encobre asfaltos que guardavam/ Histórias terríveis/ Já não há mais culpado nem inocente/ Cada pessoa ou coisa é diferente/ Já que é assim, baseado em que você pune/ Quem não é você?/ Ao som da flauta/ Da mãe serpente.../ Querer o meu/ Não é roubar o seu/ Pois o que eu quero é só função de eu/ Sociedade Alternativa/ Sociedade Novo Aeon/ É um sapato em cada pé/ É direito de ser ateu ou de ter fé/ Ter prato entupido de comida que você mais gosta/ É ser carregado, ou carregar gente nas costas/ Direito de ter riso e de prazer/ E até direito de deixar Jesus Sofrer. Raul vai ainda abordar o tema da nova era, de modo bastante sutil, em Que Luz é Essa? Um animado baião tematizado pela aparição de uma luz misteriosa vinda do céu, que é questionada durante toda a música, até que ele atribui um significado a ela. Este significado, por sua vez, remete à nova era, tanto ao apresentar a ausência de distinção dualista como fazendo menção à chave da Sociedade Alternativa (que simbolicamente abre todas as portas), e que é um elemento indissociável desta era do porvir: Ou talvez alguma coisa que não é nem sim nem não [...] É a chave que abre a porta lá do quarto do segredo/ Vem mostrar que nunca é tarde/ Vem mostrar que é sempre cedo/ Num tem certo nem errado/ Todo mundo tem razão/ E que o ponto de vista é que é o ponto da questão. A suspeita em torno de seu significado fornece pistas de que é uma grande ocorrência astral, quando ele pergunta: “Vem trazendo a esperança/ Pra esta terra tão escura?/ Ou quem sabe a profecia/ Das divinas escrituras?”. Segue a música inteira: Que luz é essa? (Raul Seixas) Que luz é essa que vem vindo lá do céu?/ Que luz é essa que vem vindo lá do céu?/ Que luz é essa?/ Que vem chegando lá do céu?/ Que luz é essa que vem vindo lá do céu?/ Brilha mais que a luz do sol/ Vem trazendo a esperança/ Prá essa terra tão escura/ Ou quem sabe a profecia das divinas escrituras/ Quem é que sabe o que é que vem trazendo esse clarão/ Se é chuva ou ventania, tempestade ou furacão/ Ou talvez alguma coisa que não é nem sim nem não/ Que luz é essa, gente/ Que vem chegando lá do céu/ É a chave que abre a porta/ Lá do quarto dos segredos/ Vem mostrar que nunca é tarde/ Vem provar que é sempre cedo/ E que prá todo pecado sempre existe um perdão/ Não tem certo nem errado/ Todo mundo tem razão/ E que o ponto de vista/ É que é o ponto da questão/ Que luz é essa que vem chegando lá do céu? Um de seus maiores sucessos, gravado nos idiomas inglês, português e espanhol, Trem das Sete é o veículo que faz a ponte simbólica entre o velho e o Novo Aeon, que vem buscar 187 os que estão preparados para entrar na nova era. Neste trecho, ele explica o disco Novo Aeon sobre a nova era, que tem bases tanto no trabalho de Crowley quanto no seu próprio, e fala do que representa o “trem das sete”: Novo Aeon... é o novo, não é? Uma nova era, um novo modo de ver, de pensar, uma civilização nova. Esse disco é sobre isso, só sobre isso, sobre a novidade. Quem é capaz de ver o novo gosta, entende. Ele está todo em cima do Livro da Lei, de Crowley, mas está muito a partir de mim, também. Veja aqui esta versão pro inglês que eu fiz de Trem das Sete (do álbum Gita). Está numa linguagem bem bíblica, bem mágica, mas bem solta também. Fala nos “escolhidos” que o trem vem buscar. [...] é todo mundo que quer ficar bem consigo mesmo. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 30-31). A música traz a figura temática popular do trem, assim como a linguagem e a sequência de fatos corriqueira de se esperar o trem e vê-lo surgir. Não apenas a paisagem sugerida das montanhas azuis é bela, como a sonoridade elaborada com som instrumental ajuda a constituir o quadro melancólico; a melodia que se inicia simples e sertaneja vai ganhando complexidade, acompanhando o contexto da narrativa, e o ponto alto se dá com o aspecto inusitado formado no céu, que anuncia a chegada do novo aeon. A música conquistou imediato apreço popular, embora a metáfora não tenha sido associada à nova era. O trem foi interpretado por muitos como o veículo que transportaria para a morte: “Quem vai chorar/ Quem vai sorrir/ Quem vai ficar/ Quem vai partir/ Pois o trem está chegando/ Tá chegando na estação/ É o trem das sete horas/ É o último do sertão”. O Trem das Sete 103 (Raul Seixas) Ói, ói o trem/ Vem surgindo detrás das montanhas azuis/ Olhe o trem/ Ói, ói o trem/ Vem trazendo de longe as cinzas do Velho Aeon/ Ói já é vem/ Fumegando, apitando e chamando os que sabem do trem/ Ói, é o trem/ Não precisa passagem, nem mesmo bagagem no trem/ Quem vai chorar, quem vai sorrir?/ Quem vai ficar, quem vai partir?/ Pois o trem está chegando/ Tá chegando na estação/ É o trem das 7 horas/ É o último do sertão/ Ói, olhe o céu/ Já não é o mesmo céu que você conheceu não é mais/ Vê, ói que céu/ É um céu carregado e rajado, suspenso no ar/ Vê, é o sinal/ O sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões/ Ói, lá vem Deus/ Deslizando no céu entre nuvens de mil megatões/ Ói, ói o Mal/ Vem de braços e abraços com o Bem/ Num romance astral/ Amém. O trem constitui uma figura positiva em seu imaginário desde a infância, tempo em que acompanhava o trabalho do pai, visitando estações ferroviárias na Bahia. Raul o escolheu como tema das músicas: Trem 103 104, A Hora do Trem Passar e Trem das Sete, na qual faz a ponte simbólica entre o velho e o Novo Aeon e transporta os preparados para o novo estágio 103 104 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 168). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 127). 188 de consciência. No videoclipe desta última, ele figura como o personagem que espera o trem na estação. Escreveu em seu diário, em 1987: Anos 50: nossa família com meu pai saímos viajando por todo o interior da Bahia inspecionando estações de trem. Ouvia muito Luiz Gonzaga e os repentistas da estrada de ferro. Meu irmão e eu tomávamos cachaça escondido junto com os matutos do norte. (SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 18). Em entrevista concedida ao jornalista Pedro Bial, para a rede Globo de televisão em 1983, Raul disse ter fascínio pela figura do trem (a gravação integra o material do fã-clube Raul rock club): Meu pai é engenheiro da estrada de ferro, né? Eu conheço o sertão inteiro da Bahia, eu conheço o sertão mesmo. Trem é meu fascínio. Trem, aquela máquina fantástica, aquela coisa de fantasma, aquele cara com uma lanterna, sabe aquelas histórias, né? Figura 17 - Raul em entrevista a Pedro Bial - 1983 Disponível em: <http://memorialraulseixas.com>. Acesso em: 4 fev. 2012. Em entrevista à revista Caros Amigos, concedida a Renato Rovai e Luciana Ackerman, dona Maria Eugênia, mãe de Raul, fala da presença do trem na vida da família: – A senhora se lembra de alguma música que tenha referências da infância e adolescência do Raul? Parece que o trem das sete realmente fez parte da vida do Raul. – É verdade. Tínhamos uma casa de veraneio em Dias D’Ávila, a uns 60 quilômetros de Salvador. Naquele tempo, a estrada de rodagem era péssima, de barro. Meu marido era engenheiro da estrada de ferro da Rede Ferroviária Federal e costumávamos ir de Salvador para aquele lugarejo de trem, e era o 189 trem das 7, que se chamava “pirulito”. É a saudade do trem das 7. (CAROS AMIGOS, 1999, p. 8). 4.2.3 Anarquia Escritos de Raul em seu diário, datados de 1984: A desobediência é uma virtude necessária à CRIATIVIDADE. Sou anarquista diferente das correntes políticas; posso prever, eventualmente, um substituto para a qualidade espiritual que desapareceu da vida da maioria dos homens [...] Existe o “entraram numa” de que o governo é uma necessidade na organização da vida social. O patrão, o padre, o professor nos “ensinam” que o governo é necessário. Se acrescentarmos o juiz e o policial para pressionar aqueles que pensam de outra forma, vamos entender como o preceito de utilidade e de necessidade do patrão e do governo foi estabelecido [...] Como poderia viver sem o Estado? Sem o governo sobre o cidadão? – Tudo tem o seu lugar marcado na “cadeia da vida”, e se seguíssemos a própria natureza tudo acabaria bem. Mas se qualquer espécie rompesse a cadeia, afastando-se da natureza, sobreviria o desastre. O homem nasceu livre, mas em toda parte eu o vejo acorrentado. (SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 84, grifo nosso). Raul inseriu a anarquia em sua obra como uma das bases filosóficas de ampla utilização em seu trabalho de conscientização individual de seu público, independente da empatia política de cada um. O terceiro elemento que constitui a Sociedade Alternativa, a anarquia, tem bases tanto no anarcoindividualismo de Max Stirner quanto no anarquismo de Joseph Proudhon105. O anarquismo é uma das vertentes do Socialismo. Em linhas gerais, pretende: a substituição da propriedade individual hereditária pela coletiva, e do direito jurídico do Estado pela organização e federação livre das associações produtivas; que os filhos dos proletários recebam o mesmo grau de instrução que os dos burgueses; a abolição das classes sociais; e que o homem se guie pela ciência, em vez da fé. A anarquia é a descentralização do poder. Antes chamado de Socialismo Libertário, o anarquismo teve como pai um dos maiores escritores franceses, Pierre Joseph Proudhon. Ele viveu no século XIX e foi fundador do socialismo científico, da economia política socialista, da sociologia moderna, do mutualismo, do sindicalismo revolucionário e do federalismo. De acordo com Caio Túlio Costa, sobre o pensamento de Proudhon: Proudhon também foi um individualista, mas seus comentadores taxam-no de individualista social. [...] Para Proudhon o indivíduo seria justamente o 105 Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), francês de origem simples, foi tipógrafo. Autor de Filosofia da Miséria, publicou, em 1840, O que é a Propriedade e, em 1848, lançou o primeiro jornal anarquista, Le Representant du Peuple, publicando mais dois jornais posteriormente. O grande anarquista foi considerado por muitos o pioneiro do movimento. 190 ponto de partida e a meta última dos esforços humanos. A sociedade representaria a matriz na qual a personalidade de cada homem deveria encontrar a sua função e realização. (COSTA, 2004, p. 35). Outro anarquista de grande importância foi o russo Mikhail Bakunin, a partir do qual o movimento começou a configurar-se, diferenciando-se das outras vertentes do Socialismo. Tendo viajado incansavelmente pela Europa, converteu-se do Socialismo para o anarquismo, em 1864, após ter conversado longamente com Proudhon, em Paris. De acordo com Costa, a respeito das divergências de métodos entre as correntes do anarquismo: Os anarquistas sempre estiveram de acordo em relação ao fim último de seus propósitos, divergindo apenas quanto à tática mais convincente para consegui-lo. Os partidários de Tolstoi, próximos ao que se pode chamar de anarquismo cristão, não admitiam a violência em nenhuma circunstância. O inglês Willian Godwin esperava determinar mudanças mediante discussões. Proudhon e seus partidários propugnavam a mudança social através da proliferação das organizações cooperativas. Kropotkin aceitava a violência, mas a contragosto e somente porque a considerava inevitável na revolução e esta por sua vez inevitável na etapa do progresso humano. Bakunin em vários momentos teve dúvidas, mas combateu em barricadas e exaltou o caráter sanguinário da insurreição camponesa. (COSTA, 2004, p. 15). Mesmo divergindo, os grupos anarquistas tinham pontos comuns: como a não apreciação da violência, o objetivo de descentralizar o poder político, a crítica à democracia burguesa que garante a existência de uma aristocracia governamental, e a defesa da liberdade individual. O anarquismo inspirou de forma direta: Sociedade Alternativa, Novo Aeon, O Carimbador Maluco, Anarkland, Para Nóia e De Cabeça pra Baixo. Max Stirner 106 desenvolveu a corrente de pensamento que ficou conhecida como anarquismo individualista, cuja explicação encontra-se em sua obra de maior projeção, O Único e a sua Propriedade. Ele acreditava não existir realidade social objetiva independente do indivíduo, sendo que as classes sociais, o Estado e a humanidade não passariam de abstrações. Via no ego empírico (autoconsciente e “egoísta”) o móvel para qualquer ação humana. (STIRNER, 2004, apud João Barrento, orelha). De acordo com Caio Túlio Costa, sobre o pensamento de Max Stirner: Para ele o indivíduo humano era a única coisa de que se podia ter um conhecimento seguro e cada indivíduo era único. Aconselhou a cada pessoa que cultivasse essa singularidade, sua unicidade. O eu seria a única lei. [...] 106 Pseudônimo de Johan Caspar Schmidt, filósofo e professor alemão (1806-1856), que inspirou diversos anarquistas dos séculos XIX e XX. 191 A única regra para o indivíduo realizar-se a si mesmo seria sua necessidade, seus desejos. [...] O indivíduo não deveria em hipótese alguma exercitar seu poder sobre o outro. (COSTA, 2004, p. 33). Stirner questiona a imposição do processo de educação dos pais e mestres, que nos condiciona a acreditar em conceitos prontos. Quem é que, de forma mais ou menos consciente, nunca reparou que toda essa nossa educação está orientada no sentido de produzir em nós sentimentos, ou seja, de os impor, em vez de nos deixar a iniciativa de os produzir, sejam eles quais forem? Se ouvimos o nome de Deus, queremos sentir temor a Deus, [...]. (STIRNER, 2009, p. 86) A música Para Nóia traz um personagem amedrontado com a onipresença do divino. Tanto os questionamentos de Stirner quanto os de Raul não contestam a figura divina em si, mas a imposição do modo como devemos temê-la, feita pela educação de pais e mestres, imposição que toma o lugar da espontaneidade do sentimento natural. Segundo Stirner: É este o sentido da pastoral das almas: minha alma ou meu espírito tem que afinar-se pelo que outros acham correto, e não pelo que eu mesmo desejo [...] O que nos é imposto nos é estranho, não nos é próprio, e é por isso que é “sagrado” e nos é difícil superar o “sagrado temor” que nos incute. (STIRNER, 2009, p. 87). Para Nóia 107 (Raul Seixas) Quando esqueço a hora de dormir/ E de repente chega o amanhecer/ Sinto a culpa que eu não sei de que/ Pergunto o que que eu fiz?/ Meu coração não diz e eu/ Eu sinto medo/ Se eu vejo um papel qualquer no chão/ Tremo, corro e apanho pra esconder/ Medo de ter sido uma anotação que eu fiz/ Que não se possa ler/ E eu gosto de escrever/ Mas, mas eu sinto medo!/ Eu sinto medo!/ Tinha tanto medo de sair da cama à noite pro banheiro/ Medo de saber que não estava ali sozinho porque sempre/ Sempre, sempre/ Eu estava com Deus/ Eu estava com Deus.../ Eu estava com Deus!/ Minha mãe me disse há tempo atrás/ Onde você for Deus vai atrás/ Deus vê sempre tudo que cê faz/ Mas eu não via Deus/ Achava assombração, Mas, mas eu tinha medo/ Vacilava sempre a ficar nu lá no chuveiro, com vergonha/ Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo/ Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro/ Dedico esta canção/ Para Nóia/ Com amor e com medo (com amor e com medo). A composição de Para Nóia partiu de uma experiência pessoal de medo, segundo depoimento de Raul: Para Nóia é como se fosse uma garota, porque é assim que eu vejo o medo. Foi um dia em que eu fiquei encucando toda a noite, e tive muito medo quando eu vi o dia nascendo. Terror mesmo. Aí eu decidi: ou eu luto com o medo ou ele me vence. Chamei os fantasmas todos pra brigar e daí saiu essa música. (SEIXAS, Raul apud PASSOS, 1993, p. 31). 107 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 190-191). 192 A música Eu sou Egoísta, também está relacionada com o Anarcoindividualismo de Stirner e sua ridicularização do temor imposto às crianças quanto à figura divina, que é usado como facilitador da manipulação dos adultos sobre os pequenos: “Onde eu tô não há bichopapão”. Neste trecho a seguir, o anarquista dirige-se aos adultos, por sua crença no pecado original e seu discurso manipulador sobre castigos divinos direcionado às crianças: As pestinhas e os refilões não vão se deixar enrolar por vossa conversa e vossas lamúrias, e não terão nenhuma simpatia pelas ideias absurdas que vos empolgam e vos fazem delirar há tanto tempo: eles vão acabar com as leis hereditárias, ou seja, não vão querer herdar vossa estupidez como vós a herdastes de vossos pais; vão eliminar de vez o pecado que herdaram, o pecado original. [...] E quando os ameaçardes com Sua ira e Seu castigo, eles vão reagir como se os ameaçásseis com o papão. (STIRNER, 2009, p. 107-108). Em Aquela Coisa 108, Raul, humoradamente, questiona as imposições do processo educacional que permanecem no indivíduo, mesmo de modo inconsciente: “Meu sofrimento é fruto do que me ensinaram a ser/ Sendo obrigado a fazer tudo mesmo sem querer [...] Minha cabeça só pensa aquilo que ela aprendeu/ Por isso mesmo/ Eu não confio nela, eu sou mais eu”. São os mesmos questionamentos descritos por Stirner, que discorre longamente sobre a imposição em O único e a sua Propriedade: Quando se contrapõe aquilo que nos é próprio àquilo que nos impõem, de nada vale a objeção de que não podemos ter nada isolado, mas que recebemos tudo num contexto universal, por meio da impressão daquilo que nos rodeia, portanto como qualquer coisa “imposta”; porque há uma grande distância entre os sentimentos e as ideias que são despertados em mim por ação de algo de exterior e aqueles que me são dados. Deus, a imortalidade, a liberdade, o humanitarismo, etc. nos são insuflados desde a infância como ideias e sentimentos que, de modo mais forte ou mais fraco, atingem nossa interioridade e/ou nos dominam inconscientemente [...]. (STIRNER, 2009, p. 85). Em Eros e a Civilização, em seu estudo sobre o pensamento de Freud, Marcuse fala sobre a absorção das restrições sociais impostas como se fossem naturalmente nossas, e aponta a relação entre o cumprimento dessas ordens sociais com a felicidade e com o trabalho. O trecho a seguir é bem próximo das análises de Max Stirner sobre o cumprimento dos papéis sociais e sobre como absorvemos tais exigências, em seu livro O único e a sua Propriedade. Esse assunto é bastante trabalhado na obra de Raul, que, por sua vez, havia lido a ambos os escritores. 108 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 272). 193 As restrições impostas à libido parecem tanto mais racionais quanto mais universais se tornam, quanto mais impregnam a sociedade como um todo. Atuam sobre o indivíduo como leis objetivas externas e como uma força internalizada: a autoridade social é absorvida na “consciência” e no inconsciente do indivíduo, operando como seu próprio desejo, sua moralidade e satisfação. No desenvolvimento “normal”, o indivíduo vive a sua repressão “livremente” como sua própria vida: deseja o que se supõe que ele deve desejar; suas gratificações são lucrativas para ele e para os outros; é razoavelmente e muitas vezes exuberantemente feliz. Essa felicidade, que ocorre fracionadamente, durante as poucas horas de lazer entre os dias e noites de trabalho, mas algumas vezes também durante o próprio trabalho, habilita-o a prosseguir em seu desempenho, que por sua vez perpetua o seu trabalho e o dos outros. (MARCUSE, 2009, p. 59) A contraposição de Raul entre a autorrealização e o sistema social de trabalho também não fica distante de Marx, quando este afirma que o trabalho do proletariado impede a autorrealização. Com boa dose de humor, a canção Tá Na Hora 109 questiona a independência e a experiência que nos é negada por nos entregarem tudo pronto. Satiriza inclusive o comprometimento do desempenho amoroso, pelo fato de estar na hora do trabalho: Guardei lugar no motel pra lua de mel que eu sempre esperei/ Porém na hora H eu não levantei/ Tá na hora do trabalho/ Tá na hora de ir pra casa/ Tá na hora da esposa e enquanto/ Eu vou pra frente toda a minha vida atrasa/ Eu tenho muita paciência/ Mas e a minha independência, onde é que tá? O esforço do personagem em trabalhar tomou seu tempo de vida e a independência: Durante a vida inteira/ Eu trabalhei pra me aposentar/ Paguei seguro de vida/ Para morrer sem me aporrinhar/ Depois de tanto esforço/ O patrão me deu caneta de ouro/ Dizendo enfia no bolso e vai se virar/ Tá na hora da velhice/ Tá na hora de deitar/ Tá na hora da cadeira de balanço/ Do pijama, do remédio pra tomar/ Oh! Divina Providência/ E a minha independência?/ E minha vida/ Onde é que está? Em Dr. Paxeco e em Meu Amigo Pedro, Raul trabalha na linha contestatória das imposições do agir, travando novamente diálogo com Stirner. “Em sua primeira e mais incompreensível forma, a moralidade se apresenta como hábito. Agir de acordo com os usos e costumes do país – é a isso que se chama agir moralmente.” (STIRNER, 2009, p. 89). Dr. Paxeco 110 (Raul Seixas) Lá vai nosso herói Dr. Paxeco/ Com sua careca inconfundível/ A gravata e o paletó/ Misturando-se às pessoas da vida/ Lá vai Dr. Paxeco/ O herói dos dias úteis/ Misturando-se às pessoas que o fizeram/ Formado, reformado, engomado/ Num sorriso fabricado/ Pela escola da ilusão/ Tem jeito de perfeito/ No defeito/ Sem ter feito com proveito/ Aproveita a ocasião/ Dr. Paxeco, vai doutorar/ Dr. Paxeco, foi 109 110 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 232-233). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 134). 194 almoçar/ Do Do Do Do Do Doutor/ Do Do Do Do Do Doutor/ Paxeco/ Perdido, dividido, dirigido/ Carcomido e iludido/ Tem nos olhos o cifrão/ Disfarça na fumaça e acha graça/ Sem saber que a rua passa/ Entre a massa e o caminhão/ Dr. Paxeco não vai voltar/ Dr. Paxeco foi almoçar. Dr. Paxeco contesta as imposições sociais, numa sátira bem humorada ao personagem que serve ao stablishment, excessivamente moldado pela ordem social, sem qualquer traço de espontaneidade: “O herói dos dias úteis/ Misturando-se às pessoas que o fizeram/ Formado/ Reformado/ Num sorriso fabricado/ Pela escola da ilusão”, com um caráter duvidoso: “Sem ter feito com proveito/ Aproveita a ocasião... Perdido, dividido, dirigido/ Carcomido e iludido/ Tem nos olhos o cifrão”. Quando a compôs, Raul estava trabalhando como produtor musical por um ano, vivenciando as faces do stablishment como nunca. Raul apelidou o stablishment ou “sistema”, conjunto das ordens estabelecidas que favorecem as hierarquias e esquemas de poder, de Monstro Sist, e com ele travou uma duradoura batalha verbal. Em As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, diz: “O Monstro Sist é retado/ E tá doido pra transar comigo/ Enquanto você dorme de touca ele fatura em cima do inimigo”. A respeito do trabalho que as pessoas desempenham para viver, mesmo sem terem controle sobre seu funcionamento ou sobre a função social que desempenham, Marcuse afirma: Para a esmagadora maioria da população, a extensão e o modo de satisfação são determinados pelo seu próprio trabalho; mas é um trabalho para uma engrenagem que ela não controla, que funciona como um poder independente a que os indivíduos têm que submeter-se se querem viver. E torna-se tanto mais estranho quanto mais especializada se torna a divisão do trabalho. Os homens não vivem sua própria vida, mas desempenham tão só funções preestabelecidas. Enquanto trabalham, não satisfazem suas próprias necessidades e faculdades, mas trabalham em alienação. O trabalho tornouse agora geral, assim como as restrições impostas à libido: O tempo de trabalho, que ocupa a maior parte do tempo de vida do indivíduo, é um tempo penoso, visto que o trabalho alienado significa ausência de gratificação, negação do princípio do prazer. A libido é desviada para desempenhos socialmente úteis, o indivíduo trabalha para si mesmo somente na medida em que trabalha para o sistema, empenhado em atividades que, na grande maioria dos casos, não coincidem com suas próprias faculdades e desejos. (MARCUSE, 2009, p. 58, grifo do autor). Dr. Paxeco tem um perfil diferente de Pedro, personagem da música Meu Amigo Pedro, que é um sujeito de bom caráter; o sistema conta com o seu bom comportamento, mas não há sinais de corrompimento. 195 Meu Amigo Pedro 111 (Raul Seixas / Paulo Coelho) Muitas vezes, Pedro, você fala/ Sempre a se queixar da solidão/ Quem te fez com ferro, fez com fogo, Pedro/ É pena que você não sabe não/ Vai pro seu trabalho todo dia/ Sem saber se é bom ou se é ruim/ Quando quer chorar vai ao banheiro/ Pedro as coisas não são bem assim/ Toda vez que eu sinto o paraíso/ Ou me queimo torto no inferno/ Eu penso em você meu pobre amigo/ Que só usa sempre o mesmo terno/ Pedro, onde você vai eu também vou/ Mas tudo acaba onde começou/ Tente me ensinar das tuas coisas/ Que a vida é séria, e a guerra é dura/ Mas se não puder, cale essa boca, Pedro/ E deixa eu viver minha loucura/ Lembro, Pedro, aqueles velhos dias/ Quando os dois pensavam sobre o mundo/ Hoje eu te chamo de careta, Pedro/ E você me chama vagabundo/ Pedro, onde você vai eu também vou/ Mas tudo acaba onde começou/ Todos os caminhos são iguais/ O que leva à glória ou à perdição/ Há tantos caminhos tantas portas/ Mas somente um tem coração/ E eu não tenho nada a te dizer/ Mas não me critique como eu sou/ Cada um de nós é um universo, Pedro/ Onde você vai eu também vou/ Pedro, onde você vai eu também vou/ Mas tudo acaba onde começou/ É que tudo acaba onde começou/ Meu amigo Pedro. Vida à Prestação 112, feita em parceria com Paulo Coelho e que integra a trilha sonora musical da novela O Rebu, transmitida pela rede Globo de televisão em 1974, traz o mesmo questionamento do comportamento condicionado: Acorda cedo/ Café na mesa/ Toma seu carro e seu violão/ E vai pagando durante o dia/ O preço da civilização/ Com dinheiro compra alegria/ E se vende à prestação/ Não interessa a linda princesa/ Que vem em sonhos lhe perturbar/ Os sonhos morrem ao nascer do dia/ Acorda é hora de trabalhar/A vida exige dois pés no chão/ Se vendendo à prestação. Expressa a contraposição entre os sonhos: “A linda princesa que vem em sonhos lhe perturbar” e a necessidade de adequação à realidade: “Acorda é hora de trabalhar/ A vida exige dois pés no chão/ Se vendendo à prestação”. Na canção Você 113, Raul questiona a autoimposição do cumprimento dos papéis sociais, mesmo a despeito da satisfação pessoal: Você alguma vez se perguntou por que/ Faz sempre aquelas mesmas coisa sem gostar/ Mas você faz, sem saber por que você faz/ E a vida é curta, por que deixar que o mundo lhe acorrente os pés/ Finge que é normal estar insatisfeito/ Será direito o que você faz com você?/ Por que você faz isso por quê?/ Detesta o patrão no emprego/ Sem ver que o patrão sempre esteve em você/ E dorme com a esposa por quem já não sente amor/ Será que é medo?/ Por quê?/ Você faz isso com você?/ Por que você não pára um pouco de fingir/ E rasga esse uniforme que você não quer [...]/ Mas você não quer prefere dormir e não ver/ Por que você faz isso por quê? 111 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 202-203). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 178). 113 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 224). 112 196 Uma vez que seus questionamentos se estendem a diversas situações da vida cotidiana, não apenas o trabalho como os relacionamentos tomaram lugar em sua música. Com base nas contestações do comportamento socialmente condicionado analisado por Stirner em O Único e a sua Propriedade, Medo da Chuva fala de um amor de renúncia pelo comprometimento com uma só pessoa: É pena que você pense que eu sou seu escravo/ Dizendo que eu sou seu marido e não posso partir/ Como as pedras imóveis na praia eu fico ao seu lado/ Sem saber/ Dos amores que a vida me trouxe e eu não pude viver. A Maçã 114 questiona a fidelidade conjugal: “Se eu te amo e tu me amas/ E outro vem quando tu chamas/ Como poderei te condenar/ Infinita tua beleza/ Como podes ficar presa/ Que nem santa num altar”. Por que será que as oposições não se impõem? Pela simples razão de que não querem abdicar dessa via da moralidade ou da legalidade. Daí a enorme massa da hipocrisia da dedicação do amor, etc., que repugna e diariamente nos enoja com sua atitude corrupta e hipócrita de “oposição legal”. Nessa atitude moral do amor e da fidelidade não pode haver lugar para uma vontade dividida e oposta: a atitude harmoniosa fica perturbada se um quer isto e o outro aquilo. Na prática atual, e seguindo o velho preconceito da oposição, o que importa preservar acima de tudo é a atitude moral. E que resta então à oposição? Querer uma liberdade que o ser amado acha por bem lhe negar? De modo nenhum! Ela não pode querer a liberdade, só pode desejá-la, ou seja, solicitá-la, balbuciar um “por favor, por favor!”. O que seria se a oposição realmente quisesse, se quisesse com toda a energia de sua vontade? Não, o que ela tem de fazer é renunciar à vontade para viver pelo amor, renunciar à liberdade... por amor à moralidade. Nunca pode “reclamar como um direito seu” aquilo que só lhe é “permitido pedir como favor”. O amor, a dedicação, etc. exigem com determinação inflexível que só exista uma vontade a que os outros se submetam, que sirvam, que sigam, que amem. (STIRNER, 2009, p. 69-70) De Cabeça pra Baixo 115, feita em parceria com Cláudio Roberto, não é uma contestação como as anteriores, traz a inversão da ordem estabelecida, não só no mundo físico como no funcionamento da sociedade: “Dinheiro é fruta que apodrece no cacho, ninguém precisa correr/ Nem tem idéia do que é calendário/ Num tem problema de horário”, como na Sociedade Alternativa: “Ninguém precisa fazer nenhuma coisa que não tenha vontade”. Traz, ainda, a subversão do ideário religioso comum, da existência do paraíso no alto, acima de nós, que só conheceremos após a morte: “Ninguém precisa morrer/ Pra conseguir o paraíso no alto/ O céu já está no asfalto”. Assim como o país Anarkland imaginado por Raul, essa música fala de uma cidade com valores utópicos. 114 115 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 184). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 227). 197 É na cidade de cabeça pra baixo/ A gente usa o teto como capacho/ Ninguém precisa morrer/ Pra conseguir o paraíso no alto/ O céu já está no asfalto/ Na cidade de cabeça pra baixo/ Dinheiro é fruta que apodrece no cacho/ Ninguém precisa correr/ Nem tem idéia do que é calendário/ Num tem problema de horário/ Na cidade de cabeça pra baixo/ É tão bonito ver o sorriso do povo/ Que habita o lugar/ Olhar pra cima e ver a espuma das ondas/ Se quebrando no ar/ Na cidade de cabeça pra baixo/ A gente usa o teto como capacho/ Ninguém precisa fazer nenhuma coisa que não tenha vontade/ Vou me mudar pra cidade/ Para a cidade de cabeça pra baixo/ Olha pra cima meu filho/ O chão é lugar de cuspir. Se, em De Cabeça pra Baixo, a subversão da ordem se dá no plano físico, em O Dia em que a Terra Parou, do álbum de mesmo nome lançado em 1977, há a interrupção da ordem do transcorrer do dia na cidade, embalada por uma melodia melancólica e representada pela inércia de nada acontecer. O Dia em que a Terra Parou 116 (Raul Seixas / Cláudio Roberto) Essa noite eu tive um sonho de sonhador/ Maluco que sou, eu sonhei.../ Com o dia em que a terra parou/ Foi assim num dia que todas as pessoas/ Do planeta inteiro resolveram que ninguém/ Ia sair de casa, como que se fosse combinado/ E em todo o planeta naquele dia/ Ninguém saiu de casa, ninguém/ O empregado não saiu pro seu trabalho/ Pois sabia que o patrão também não tava lá/ Dona de casa não saiu pra comprar pão/ Pois sabia que o padeiro também não tava lá/ E o guarda não saiu para prender/ Pois sabia que o ladrão também não tava lá/ E o ladrão não saiu para roubar/ Pois sabia que não ia ter onde gastar/ No dia em que a terra parou.../ E nas igrejas nenhum sino a badalar/ Pois sabiam que os fiéis também não tavam lá/ E os fiéis não saíam pra rezar/ Pois sabiam que o padre também não tava lá/ E o aluno não saiu pra estudar/ Pois sabia que o professor também não tava lá/ E o professor não saiu pra lecionar/ Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar/ No dia em que a terra parou.../ O comandante não saiu para o quartel/ Pois sabia que o soldado também não tava lá/ E o soldado não saiu pra ir pra guerra/ Pois sabia que o inimigo também não tava lá/ E o paciente não saiu pra se tratar/ Pois sabia que o doutor também não tava lá/ E o doutor não saiu pra medicar/ Pois sabia que não tinha mais doença pra curar/ No dia em que a terra parou/ Essa noite eu tive um sonho de sonhador/ Maluco que sou acordei!!!/ No dia em que a terra parou/ No dia em que a terra parou/ No dia em que a terra parou/ Eu acordei no dia em que a terra parou. Raul esteve num ciclo entre sua insatisfação com o sistema e o saborear de suas contestações humorísticas, durante toda a carreira. Com a entonação vocal de peraltice, Só pra Variar 117 denota inconformismo com a não ação, e busca subverter a ordem: “Tem que acontecer alguma coisa meu bem, parado é que eu não posso ficar/ Quero tocar fogo onde o bombeiro não vem/ Vou rasgar dinheiro/ Tocar fogo nele, só pra variar!”. Em reportagem de Luciana Arckemann, Zé Geraldo lembra-se de uma atitude de Raul insatisfeito com o sistema: 116 117 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 219-221). Letra em Passos e Buda (s.d., p. 257-258). 198 No final dos anos 70, início dos 80, Zé Geraldo e Raul gravaram na CBS e os dois geralmente saíam juntos para divulgar seus discos. Numa dessas vezes, foram a uma rádio no ABC. “De quadra em quadra Raul tirava uma garrafinha do bolso e bebia. Naquele dia, ele estava revoltado com alguma coisa e, quando chegamos à rádio, fez o maior discurso político. Depois disso, o divulgador suspendeu a agenda e o levou de volta ao hotel. Mas, quando cheguei à CBS, a secretária disse que Raul estava na Jovem Pan metendo o pau no sistema, fazendo o mesmo discurso de antes. (CAROS AMIGOS, 1999, n. 4, p. 11). Em 1983, vivenciando a infância de sua terceira filha, Raul fez sua música de maior sucesso infantil, O Carimbador Maluco, que prontamente cativou o público. Sua participação no programa da rede Globo de televisão, especial para crianças, Plunct-Plact-Zumm — onde ele interpreta o personagem do carimbador maluco, com capacete de hélice e capa carimbada, que aparece diante de uma nave espacial pilotada por crianças e as aborrece com um processo burocrático e, depois, alegremente, as deixa seguirem sua viagem pelo universo — impulsionou o direcionamento dessa música para o público infantil. Embora esse direcionamento já estivesse dado tanto na linguagem e no enredo da letra quanto na alegria melódica. 199 Figura 18 - Raul Seixas interpretando o personagem do carimbador maluco Fonte: <http://memorialraulseixas.com>. Acesso em: 17 nov. 2011. O Carimbador Maluco tem como base filosófica o texto Ser Governado, de Proudhon: Ser governado é... Ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude (...). Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, reenviado, corrigido. É, sob o pretexto da utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; e depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, vilipendiado, vexado, acossado, maltratado, espancado, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, no máximo grau, jogado, ridicularizado, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eis a justiça, eis a sua moral! (PROUDHON, apud COSTA, 2004, p. 17, grifo nosso). 200 O conteúdo anárquico da canção, no contexto do Plunct-Plact-Zumm, se expressa tanto pelo contraste emocional — a decepção das crianças ao serem barradas por uma autoridade burocrática aparentemente irredutível e a satisfação de serem liberadas — quanto pela referência ao texto Ser Governado, expressa no refrão: “Tem que ser selado, registrado, carimbado/ Avaliado, rotulado se quiser voar!/ Se quiser voar” e na burocracia dos requisistos necessários para a liberação da nave: “Pra lua a taxa é alta/ Pro sol identidade/ Mas já pro seu foguete viajar pelo universo/ É preciso meu carimbo dando sim, sim, sim, sim”. Esse videoclipe tem semelhança com o filme O Pequeno Príncipe, de 1974, adaptação do livro de Antoine de Saint-Exupéry, do diretor Stanley Donen de Lerner e Loewer’s. No filme, há a cena em que o dono de um planeta no qual o príncipe havia pousado exige seu passaporte, e, não o possuindo, o pequeno parte, deixando-o furioso. O Carimbador Maluco 118 (Raul Seixas) Cinco... Quatro... Três... Dois.../ – Parem! Esperem aí!/ Onde é que vocês pensam que vão Hum, Hum.../ Plunct Plact Zummm/ Não vai a lugar nenhum/ Plunct Plact Zummm/ Não vai a lugar nenhum/ Tem que ser selado, registrado, carimbado/ Avaliado, rotulado se quiser voar!/ Se quiser voar/ Pra Lua: a taxa é alta/ Pro Sol: identidade/ Mas já pro seu foguete viajar pelo universo/ É preciso meu carimbo dando o sim,/ Sim, sim, sim./ O seu Plunct Plact Zummm/ Não vai a lugar nenhum/ Plunct Plact Zummm/ Não vai a lugar nenhum/ Mas ora, vejam só, já estou gostando de vocês/ Aventura como essa eu nunca experimentei!/ O que eu queria mesmo era ir com vocês/ Mas já que eu não posso:/ Boa viagem, até outra vez!!!/ Agora o Plunct Plact Zummm/ Pode partir sem problema algum/ O Plunct Plact Zummm/ Pode partir sem problema algum/ Boa viagem, meninos./ Boa viagem. O Carimbador Maluco rendeu a Raul seu segundo disco de ouro. Embora a maior parte do público não tenha identificado a referência ao texto de Proudhon, foi cativado pelo tom anárquico. Historicamente, essa música foi lançada em meio aos apelos públicos dos brasileiros por eleições diretas: “Diretas já!”, em 1983. Mais uma vez, Raul havia conseguido captar a indignação popular de um momento histórico e trazê-la para uma música em que a opressão aborrece, mas a liberdade triunfa, do mesmo modo que havia traduzido o momento histórico opressor de dez anos antes, em Ouro de Tolo. Levando essa corrente do anarquismo ao grande público, em primeiro de dezembro de 1985, Raul recitou energicamente o texto Ser Governado, de Proudhon, no palco do estádio Lauro Gomes, em São Caetano do Sul. Em seu diário, há um texto anárquico seu datado de 1981, na mesma linha do texto de Proudhon: 118 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 270-271). 201 [...] E lá vou eu, examinado Espionado Vou taxado Sou pesado-empacotado Rotulado Lacrado e despachado Numerado e condenado Censurado e ultrajado Meu povo! Como nos deixamos cair em tamanha abjeção?? (SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 64). O trecho a seguir nos permite compreender a relação entre a arte de Raul Seixas e a ótica do movimento anarquista sobre a arte. De Proudhon e Kropotkin, mas também de Tolstoi, a estética anarquista retira seu projeto de reconciliar a arte com a sociedade, com o melhor da sociedade, que é a sede de justiça que lateja no povo. Romântica, essa estética proclama uma arte antiautoritária, baseada na espontaneidade e na imaginação. Mas, anti-romântica, essa mesma estética não crê numa arte que se limite a expressar a subjetividade individual: o que faz autêntica uma arte é sua capacidade de expressar a voz coletiva. (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 47) Os quatro elementos da estética anarquista expressos no texto de Martín-Barbero são também traços característicos do trabalho de Raul Seixas. O primeiro, a reconciliação entre arte e sociedade com sede de justiça, está em sua obra como a conscientização social do potencial do indivíduo, que é trabalhada em suas músicas, a exemplo de Sociedade Alternativa em que proclama a vontade própria como único requisito para a ação. Portanto, sem interferência da educação (mediada tanto pela família quanto pela escola), da religião (mediada pela igreja), ou da lei (mediada pelo Estado): “Viva, viva, viva a Sociedade Alternativa/ Se eu quero e você quer/ Tomar banho de chapéu/ Ou esperar papai Noel/ Ou discutir Carlos Gardel/ Então vá!”. Em meio ao sistema de ordem do regime político brasileiro de 1974, proclama a existência de uma “nova lei”: “Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei”, a lei da vontade, ou “de Thelema”. O segundo elemento, a espontaneidade, está presente tanto em suas atitudes de improviso, do repente, ao reinventar suas letras no palco, dos gestos corporais livres, não ensaiados, ao se apresentar em programas televisivos, quanto em sua característica verbalização de respostas que rompem o compromisso com o decoro ou mesmo com a realidade, em entrevistas, a exemplo da história fantasiosa de que conheceu Paulo Coelho quando estava observando um disco voador. 202 O terceiro item abordado é o antiautoritarismo, que ele trabalha ao trazer quaisquer temas para um mesmo plano, de forma não hierárquica, em linguagem popular, seja um tema sagrado, profano, político ou cotidiano, como em Conversa pra Boi Dormir 119: Jota batista batizou Jesus/ de água e sal e o sinal da cruz [...] Faz muito tempo que o Brasil não ganha/ Isso é conversa para boi dormir/ Confio em Deus porque ele é brasileiro pra trazer o progresso que eu não vejo aqui [...] Não tenho saco para ouvir artista/ Comendo alpiste na mesma estação [...]. E, por fim, sobre a afirmação de que a capacidade de expressão da voz coletiva confere autenticidade à arte, observamos que uma das características marcantes na obra de Raul é a capacidade de expressar a voz coletiva. Os dissabores e alegrias do povo são traduzidos em suas músicas desde o lançamento de Ouro de Tolo, em 1973, até seu último disco, em 1989. Esta primeira traduziu os sentimentos de inércia e soterramento da realização pessoal: Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego, sou o dito cidadão respeitável e ganho 4 mil cruzeiros por mês [...] Eu devia estar feliz pelo Senhor ter me concedido o domingo/ Pra ir com a família no jardim zoológico dar pipoca aos macacos/ Ah! Mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado/ Macaco, praia, carro, jornal, tobogã eu acho tudo isso um saco. Já a música Século XXI, lançada uma semana antes de sua morte, em parceria com Marcelo Nova, é um retrato da sociedade brasileira prestes a adentrar a década de 1990. Fala da pressa empreendida na realização de algo significativo na vida, que, ironicamente, faz perder de vista os desejos que a motivaram: Há muitos anos você anda em círculos/ Já não lembra de onde foi que partiu/ Tantos desejos soprados pelo vento/ Se espatifaram quando o vento sumiu [...] Se você correu, correu, correu tanto, não chegou a lugar nenhum/ Baby, Oh baby, bem vinda ao século XXI. 4.2.3.1 Um País Chamado Anarkland Raul escreve, em anotação particular, sua idealização de uma terra imaginária e utópica: Vem, me dê a mão que eu vou te mostrar um lugar chamado Anarkland. Situa-se nas proximidades da ilha de Marajó e conta dez mil habitantes. É um país onde não há governo central, seus cidadãos são seus próprios governos. É muito engraçado, porque todo habitante de lá me diz que cada homem de Anark é seu próprio país. São dez mil pessoas e lá não tem polícia porque lá não tem ladrão, e o fato de não ter ladrão é que o dinheiro não existe. Individualistas, ultra-anarquismo desenvolvido ao mais alto grau, 119 Letra em Passos e Buda (s.d., p. 253-254). 203 Anarkland existe com audácia, servindo de exemplo para os demais países da Terra de antiquadas concepções e ideologias políticas. Os demais países não têm absolutamente nenhum interesse econômico por Anark (considerado “riscado do mapa” dos governos como “país pobre”). Não processam riquezas minerais, pois cada indivíduo tem seu próprio jardim onde as trocas se promovem entre si. Mantêm felizes os seus homens e os seus valores, que são completamente diferentes dos valores econômicos dos países totalitários, pois não há indústria, dinheiro, exploração, escravidão, loucura, empregados, somente GENTE. E gente não come ouro, petróleo. Gente come o que gente planta. A ilhota é tão pequena que o único veículo utilizado para locomoção são animais de montaria: cavalos, burros, bois, vacas e curiosas avestruzes gigantes que chegam a fazer 30 quilômetros por hora!! (SEIXAS, Raul apud ESSINGER; SEIXAS, Kika, 2005, p. 96). Com nome no idioma inglês significando terra anárquica, Anarkland é uma ideia mestiça cuja construção conta com A Utopia, de Thomas More, e com o anarcoindividualismo de Max Stirner: “É um país onde não há governo central, seus cidadãos são seus próprios governos”. “Individualistas, ultra-anarquismo desenvolvido em seu mais alto grau”. Aparece, ainda, a ideia que Raul propõe em Sociedade Alternativa, quando ele fala, baseado na Lei de Crowley, que todo homem e toda mulher é uma estrela e que todo homem tem direito de viver pela sua própria lei: “[...] todo habitante de lá me diz que cada homem de Anark é seu próprio país”. Raul também dizia de si: “Eu sou o meu país” (PASSOS, 1993, p. 105). O lugar é também uma crítica à ganância da sociedade em ter aquilo que não serve diretamente à sua subsistência, mas apenas como valor de troca, como o dinheiro: “o fato de não ter ladrão é que o dinheiro não existe”; o ouro e petróleo: “E gente não come ouro, não come petróleo. Gente come o que planta.”. Desse modo, aproxima-se bastante de A Utopia de Thomas More, onde os habitantes garantem sua subsistência de forma a não explorar os demais e promovem a troca: “pois cada indivíduo tem seu próprio jardim onde as trocas se promovem entre si”. Em Anarkland, o sistema econômico é baseado apenas na subsistência, não há acúmulo de capital nem exploração humana, nem seus componentes, indústria e empregado: “Mantêm felizes os seus homens e os seus valores, que são completamente diferentes dos valores econômicos dos países totalitários, pois não há indústria, dinheiro, exploração, escravidão, loucura, empregados, somente GENTE. A observação deste lugar imaginário é relevante para a compreensão dos valores políticos, econômicos e sociais que permeiam a obra de Raul. Em seu diário, há um diálogo imaginário com um habitante de Anarkland, citado por Essinger e Kika Seixas: 204 Vamos neste momento entrevistar um anarkman, Sr. Lemmiuns. – Sr. Lemmiuns, o senhor não sente falta de ir ao cinema? Eu soube que não há nada assim por aqui. Diversões públicas... – Ah, ah, ah. Já fui muito fã de cinema quando eu morava na cidade... mas isso já faz muito tempo. Era quando eu era infeliz, e o cinema foi feito para uma breve descarga da tristeza em troca de algumas risadas ou entretenimento. Como eu já não sofro, não preciso de paliativos tipo cinema, vê? O sistema autoritário é mais monstruoso do que se imaginava; a busca de desejos, vitrinas, se formar, ser rico, tudo isso não passa de uma tola fuga da infelicidade. – O sr. acha possível uma tomada de consciência em massa nesse aspecto? O sistema ruiria em algumas horas se, por exemplo, ninguém saísse de casa? Só por uma hora, que acha? – Não acho provável, mas eu nunca me preocupei com essa loucura e problemas de escravos desde que me mudei pra cá. Desde que me tornei um anarkman; se eles são escravos é porque ainda não estão fortes pra sair da escravidão. Que apodreçam em recepções e reuniões políticas. Azar. – Lá essa sua atitude seria tachada de burguês-acomodado-porco-egoísta. – É possível que você tenha razão. Mas eu não moro lá, aqui eu SOU. – Pessoalmente eu não posso sair da cidade. Gosto muito de dinheiro, sr. Lemmiuns. O senhor não se sente nem um pouco confinado? Fora do mundo? – Que mundo? Aquele desvario antagônico de valores absolutos? Eu sou livre para partir de onde eu quiser, mas não tenho razão para ir me afogar na lama do seu escravagismo!!! (Ih, ih, ih! risada nervosa do entrevistador.) – Desculpe se às vezes eu rio, é que eu acho uma loucura. Eu... – Aqui nós já sabemos que loucura não é a que está escrita nos dicionários. – Existe algo semelhante ou que se possa comparar com uma Constituição política? Uma carta, uma orientação geral? – Não, não há uma regra geral e sim dez mil constituições sob o conceito: “Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei” ou “Não existe Deus senão o homem”. (2005, p. 97, grifo nosso). O habitante de Anarkland é crítico ao se referir ao aparato do sistema: “O sistema autoritário é mais monstruoso do que se imaginava; a busca de desejos, vitrinas, se formar, ser rico, tudo isso não passa de uma tola fuga da infelicidade”. Para o personagem, os que servem ao sistema são escravos; logo, ele não quer deixar Anarkland para ir a qualquer outro lugar: “Eu sou livre para partir pra onde quiser, mas não tenho razão para ir me afogar na lama do seu escravagismo”. Em contrapartida, o entrevistador é parte desse sistema: “Gosto muito de dinheiro, sr. Lemmiuns”. Anarkland traz o conceito da individualidade presente no anarquismo individualista de Stirner, e também no livro da Lei, expresso quando o personagem fala: – Não, não há uma regra geral e sim dez mil constituições sob o conceito: “Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei” ou “Não existe Deus senão o homem”. E também quando menciona a condição de escravos dos que ainda não estão prontos para deixá-la: “Se eles são escravos é por que ainda não estão fortes para sair da escravidão”. Suas bases anárquicas também vêm à tona quando ele cogita sabotar o 205 funcionamento do sistema: “O sistema ruiria em algumas horas se, por exemplo, ninguém saísse de casa? Só por uma hora, que acha?” Essa é a ideia de sua música O Dia Em Que A Terra Parou: “Foi assim num dia que todas as pessoas/ Do planeta inteiro resolveram que ninguém ia sair de casa […]”. 4.3 Carnaval e Riso “Ri melhor quem ri mais alto.” (SEIXAS, Raul apud SEIXAS, Kika; SOUZA, 1993, p. 145). Primando pelo empenho na libertação individual, Raul utilizou o riso debochado como elemento desestruturador de uma pretensa ordem, aquilo que triunfa sobre a imposição e o poder, o riso anárquico como elemento libertador. O riso não como gesto expressivo do divertido, da diversão, mas como oposição e repto, desafio à seriedade do mundo oficial, ao seu asceticismo diante do pecado e sua identificação do valioso com o superior. O riso popular é, segundo Bakhtin, “uma vitória sobre o medo”, porque surge justamente por tornar risível, ridículo, tudo o que causa medo, especialmente o sagrado – o poder, a moral, etc. que é de onde procede a censura mais forte: a interior. Enquanto a seriedade equivale ao medo, o prolonga e o projeta, o riso relaciona-se com a liberdade. (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 107) Também Stirner disse que as crianças riam do bicho-papão inventado pelos adultos. A ideia de rir do que causa medo aproxima-se, aqui, do anarcoindividualismo. Na obra de Raul, o riso dirigia-se contra quaisquer sistemas de poder; a ordem sobre a qual este deveria triunfar era constituída tanto pelo stablishment de forma geral como pelo regime político. Embora ele só tenha passado a veicular suas críticas sociais em sua carreira solo, a partir de 1972, sua atuação com a banda havia começado em 1962. Portanto, boa parte de seu trabalho foi desenvolvida durante o regime político militar, sob governo que estabelecia a manutenção da ordem e, para tanto, a valorização de instituições como o trabalho, o Estado e a família, e o respeito às ordens hierárquicas que asseguram a autoridade. Do ponto de vista deste regime, então, seu trabalho não estava de acordo com a ordem proposta, sendo frequentemente revisado, necessitando de substituições de conteúdo para ser liberado. De acordo com Pires Ferreira (2003, p. 403): “Os poderes totalitários tentam, em seus princípios, expulsar o riso, sobretudo o descomedido e inoportuno, pois traz a troça e a subversão”. 206 Com o findar do regime, o indivíduo estava livre da obediência centralizada; porém, continuava dependente de um sistema regido por interesses comerciais, que cada vez mais apresentava múltiplos centros de poder, não autoritários, mas econômicos, não se livrando, portanto, de cumprir seu papel subserviente a esse sistema. Direcionando sua voz na contramão de quaisquer sistemas de poder, Raul satiriza: o trabalho em ambiente corporativo e seus níveis hierárquicos, em Dr. Paxeco e Meu Amigo Pedro; o governo, em Abre-te Sésamo e Sapato 36; a situação social, em Não Fosse o Cabral; a dívida externa, em Aluga-se; e até mesmo a apatia social, em Ouro de Tolo e Aos Trancos e Barrancos. As formas pretensamente sérias de manutenção da ordem rejeitam o riso. Do ponto de vista social, o riso é estratificado, hierarquizado, recebe estímulos ou sanções que o confinam ou gradatizam e, em dimensão cosmológica, se liga aos ritos e à celebração, à alegria orgiástica e incontida que pode explodir em gargalhada, à renovação do universo e da natureza. Enfim, o riso, que em sua diversidade é muito mais complexo do que possa parecer, refugia-se nas classes populares, como queria Bakhtin, apesar de situações que, mesmo aí, o fazem retroceder, como também em situações de transgressão dos muitos grupos sociais, apesar das limitações constantes dos mais diversos aparelhos de censura ideológica, religiosa, interpessoal etc. (FERREIRA, 2003, p. 402) O riso presente na obra de Raul está destinado sobretudo às classes populares; mesmo atingindo as demais, a linguagem popular utilizada por ele abre toda a compreensão da sua obra ao povo, nada está fora de seu alcance por qualquer uso de vocabulário rebuscado, nem se pretende reservado a determinado grupo ou elite. Segundo Amálio Pinheiro (em comunicação verbal) 120, uma sociedade que ri muito inclui o outro, o riso é um modo de aproximação, o riso é polifônico e bitextual. Em entrevista à Revista Gostonomia 121, em março de 2010, concedida a Silvia Regina, Amálio Pinheiro fala sobre a bitextualidade do riso. Porém, se há humor não há oposição, porque o humor é sempre inclusivo e relacional, bi-textual. O riso não é moralista, não é politicamente correto. Todas as sociedades politonais, que compõem vozes diversas, são sociedades do humor. Riso, ritmo, jogo e erotismo caminham juntos. Sociedades totalitárias não riem, como já mostrou Bahktin. De acordo com Bakhtin em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, na Idade Média o carnaval era o triunfo de uma espécie de libertação temporária da verdade 120 121 PINHEIRO, Amálio, em comunicação pessoal em: 5 maio 2010. Disponível em: <www.gostonomia.com.br/rev/2010/03/30/entrevista-amalio-pinheiro>. Acesso em: 13 fev. 2012. 207 dominante e do regime vigente, a abolição das posições hierárquicas, privilégios, regras e tabus, em sua condição temporal. Era a autêntica festa do tempo, do futuro, das alternâncias e renovações, na qual reinava uma espécie de contato livre e familiar entre os indivíduos, normalmente separados, na vida cotidiana, pelas barreiras de suas condições sociais e familiares. Esse contato era vivido intensamente como parte essencial da visão carnavalesca; o indivíduo, por conseguinte, parecia dotado de uma segunda vida, que lhe permitia estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas com seus semelhantes. O autêntico humanismo que caracterizava essas interações experimentava-se concretamente nesse contato vivo, material e sensível. Esse conduzir das atitudes humanas pela vontade individual está presente em toda a obra de Raul Seixas, como modo de vida proposto para a autorrealização, em oposição ao comportamento socialmente condicionado, pautado pelas relações políticas, econômicas e hierárquicas. As interações pessoais da sociedade alternativa não se dariam de outra forma, que não a da libertação das convencionalidades sociais e econômicas e de suas barreiras e preconceitos. Sua obra carnavalizada propõe a subversão da ordem, o desenvolvimento de autorrealização com base nos valores humanos, e o desmantelamento da autoridade pelo riso. Para Bakhtin, a segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se, de certa forma, como paródia da vida ordinária, como um mundo ao revés. Ele explica que a paródia carnavalesca está distante da moderna, puramente negativa e formal, porque, mesmo negando, a carnavalesca suscita e renova ao mesmo tempo. Raul vai utilizar essa paródia carnavalesca como forma de expressão de um decontentamento pessoal ante a ordem social imposta. Sua paródia não é a negação pura e simples, senão ligada à brincadeira e à sátira, convidativas à reflexão do público, tanto pela música quanto pela criação de personagens heróicos, ou ridículos quando subservientes ao sistema criticado. Longe de combater o objeto de sua análise com negação abnegada que o afasta e destrói, Raul o deglute e o incorpora com humor e perspicácia, não se colocando como totalmente isento da contaminação daquilo que critica, senão, por vezes, mostrando a si e a seus personagens como inevitáveis participantes da engrenagem do sistema que satiriza. Um exemplo é o fato de ele se servir do aparato tecnológico e financeiro do sistema, como as gravadoras, a indústria fonográfica e o mercado para veicular suas músicas que satirizam este mesmo sistema. Este trecho de As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor ilustra essa interação “Pra entrar em buraco de rato/ De rato você tem que transar”. 208 Bakhtin menciona, ainda, que a negação pura e simples é quase sempre alheia à cultura popular. Por não negar, mas interagir com seu objeto de crítica, o trabalho de Raul consegue grande aceitação nos meios populares, sendo assimilado pela cultura popular e alimentando-se desta a um só tempo. Segundo Bakhtin, o riso carnavalesco é, antes de mais nada, o riso festivo, sendo em primeiro lugar patrimônio do povo: todos riem, é universal, atinge todas as coisas e pessoas; o riso é ambivalente, alegre e cheio de alvoroço e, ao mesmo tempo, burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e suscita simultaneamente, escarnece dos próprios burladores. O povo não se exclui do mundo em evolução, também ele se sente incompleto, também ele renasce e se renova com a morte; essa é uma das diferenças que separam o riso festivo popular do puramente satírico. A principal diferença é que o autor satírico apenas emprega o humor negativo, colocando-se fora do objeto aludido, opondo-se a ele, e, desse modo, destrói a integridade do aspecto cômico do mundo, de modo que o risível torna-se um ponto particular, enquanto o riso popular ambivalente expressa uma opinião sobre o mundo em evolução, onde estão incluídos os que riem. O riso festivo é, segundo Bakhtin, dirigido contra toda superioridade, e esse é o ponto em que o caráter do riso presente na obra de Raul Seixas mais se aproxima da análise desse autor, pois o riso contra toda superioridade é o riso anárquico que permeia a obra do cantor. Bakhtin realiza seus estudos sobre a obra de Rabelais, que é o grande porta-voz do riso carnavalesco, popular na literatura mundial. De acordo com ele, a literatura da Idade Média teria chegado ao ápice com Elogio à Loucura, de Erasmo de Roterdã, com uma das citações mais eminentes sobre o riso carnavalesco. Ele menciona, ainda, como segunda fonte do riso na época de Rabelais, a fórmula aristotélica que diz que o homem é o único ser vivente que ri, afirmação que ganhou popularidade por alertar sobre o riso como um privilégio do homem sobre todas as criaturas. Bakhtin aponta, como terceira fonte sobre o tema na época de Rabelais, Luciano, cujo personagem Menipo ri no reino do além-túmulo. Ele destaca, ainda, o elo do riso do personagem com os infernos, a morte, a liberdade de espírito e da palavra, e mostra essa obra como de grande influência sobre Rabelais. Portanto, enquanto a seriedade funciona como instrumento da manutenção da ordem, o riso debochado ameaça desmantelar o sistema que se mantém pelo temor. O regime político teria tomado Raul como ameaça maior, se seu personagem fantástico, a um só tempo cômico e perspicaz, não tivesse camuflado o letrista anarquista. A 209 figura artística profética e amalucada que incorporava serviu como estratégia, o que provavelmente o salvou de fortes reprimendas. 4.4 As Homenagens Atualmente, a permanência viva da obra de Raul Seixas excede as expectativas no panorama cultural brasileiro. Apesar das inúmeras mudanças ocorridas no cenário políticoeconômico e social mundial, sua música conta com grande acolhida, sobretudo nas classes populares, apresentando considerável adição de adeptos, mesmo após os vinte e dois anos de sua morte. Sua obra é dotada de um conteúdo atemporal; embora as críticas sociais estivessem em diálogo com os acontecimentos da época, tanto o uso de linguagem metafórica quanto o constante repetir da história tornaram-nas cabíveis também em períodos posteriores. A cidade de São Paulo sedia uma passeata anual em sua homenagem, que ocorre na data de seu falecimento, 21 de agosto. Mais de duas mil pessoas comparecem ao evento, independentemente das condições climáticas, reunindo-se a partir das 12 horas em frente ao Teatro Municipal, onde permanecem cantando em animada confraternização. Figura 19 - Tradicional concentração da passeata em frente ao Teatro Municipal - 2005 Fonte: Foto da autora. Por volta das 18 horas, saem em passeata cantando, enquanto se dirigem para a Catedral da Sé, onde lotam as escadarias e toda a extensão da praça à sua frente, permanecendo ali até as 21 horas. Tradicionalmente, penduram a bandeira da Sociedade Alternativa sobre a porta da igreja, enroscando-a nas estátuas dos santos que compõem a fachada, conferindo um aspecto visual sacroprofano à cena, talvez sem o perceber. A 210 multidão segue cantando, em coros formados ao acaso por diversos agrupamentos, e a entonação vocal vai subindo ao ritmo do consumo de bebidas alcoólicas. Figura 20 - Passeata sobre o Viaduto do Chá, no centro de São Paulo Fonte: Foto da autora. Figura 21 - Tradicional concentração em frente à Catedral da Sé, destino final da passeata 2011 Fonte: Foto da autora. Martín-Barbero discorre a respeito da voz do povo na praça pública, no ambiente carnavalizado da Idade Média analisado por Bakhtin. Guardadas as proporções das diferenças 211 temporais e culturais, o trecho a seguir descreve perfeitamente o que ocorre atualmente em eventos populares de caráter carnavalizado, como as homenagens a Raul Seixas: O que Mikhail Bakhtin investiga é aquilo que na cultura popular, ao opor-se à oficial, a une, aquilo que, ao constituí-la, a segrega. Por isso seu estudo centra-se na investigação do espaço próprio, que é a praça pública – “o lugar no qual o povo assume a voz que canta” – e o tempo forte que é o carnaval. A praça é o espaço não segmentado, aberto à cotidianidade e ao teatro, mas um teatro sem distinção de atores e espectadores. (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 105-106). Os fãs de Raul misturam-se aos cantores cover que sobem no carro para imitá-lo, e, estando todos com alguma caracterização do artista, passa a não haver distinção entre artista e público, além de a multidão cantar com tanta ênfase músicas diversas, ao mesmo tempo, que praticamante não se pode escutar o carro de som que abriga seu imitador. O acaso e a espontaneidade são traços marcantes deste evento, aberto a quaisquer transeuntes. O comportamento dos fãs não apresenta rejeição ao passante mais desavisado, e todos são acolhidos ao grande movimento raulseixista. A cantoria chama a atenção em meio ao vaivém do centro da cidade, e, tomados de curiosidade, muitos perguntam o que está havendo. A passeata transcende seu caráter de tributo e passa a ser a vivência concreta da Sociedade Alternativa, em que cada indivíduo é livre para agir como quiser, sob a única ressalva de não subjugar o outro. Ela não se dá apenas como um dia anual de imersão neste movimento, mas como seu tradicional dia festivo. Outro traço marcante desse encontro é a ausência de respaldo comercial e midiático, ao contrário dos grandes shows; é um evento sem fins lucrativos, não apenas aberto ao público, como uma movimentação espontânea deste público. Notadamente pouco divulgado pelos meios de comunicação e esquecido pelo aparato mercadológico, o tributo, realizado por uma movimentação outsider, tem uma atmosfera hippie, se dá como ato do povo, que toma as praças e ali permanece cantando e dançando em memória do artista. Um ritual mítico realizado em ciclos anuais. Alguns objetos tradicionais figuram no evento anualmente, como a chave da Sociedade Alternativa, o caldeirão de vinho, as bandeiras com sua figura, e algum boneco, que muda de um ano para o outro. Um caldeirão, levado por uma família, figura com presença cativa em todos os eventos, e as muitas garrafas de vinho que o proveem não cessam de enchê-lo, porque ele passa a todos os interessados. Algumas chaves são confeccionadas artesanalmente em madeira e levantadas por mãos apaixonadas durante as canções; chamoume a atenção um jovem que a transformou num violão imaginário enquanto dançava. 212 Os presentes desfilam suas roupas customizadas com estampas do artista, levam a chave da Sociedade Alternativa pendurada no pescoço e amarram faixas com seu nome na fronte; muitos ostentam tatuagens de Raul e outros exibem uma aparência idêntica à do artista, mantendo cabelos e barba no mesmo feitio, atendendo por seu apelido “Raulzito”. Seus fãs o têm como o grande amigo do povo, empatia que transcende qualquer direcionamento político, religioso ou futebolístico. Entre eles, muitos estudam sua história de maneira informal, viajam aos lugares que ele frequentou, ou colecionam imagens raras a ele relacionadas. Alguns, ainda, escrevem sobre ele, desenham-no, ou são cantores cover; outros são camelôs que confeccionam bijuterias e camisetas. Longe das interpretações da mídia, eles se dispõem a esclarecer a longa série de lendas que correm a seu respeito. Em 2009, os moradores de rua do centro da cidade juntaram-se à massa cantando Raul, em número maior do que o habitual, por conta do fato de estarem sendo vítimas de violência. Se, desde o início de sua carreira, Raul havia se tornado um porta-voz do povo ao relatar seu cotidiano e as opressões sociais, em sua ausência, sua voz foi dotada de uma força mítica, sendo utilizada pelos fãs como grito de protesto, em passeatas e greves, pelos mais diversos motivos. Todos os anos, há pessoas que estão indo pela primeira vez; observa-se grande afluxo de novos adeptos: jovens que não o conheceram juntam-se à massa tão apaixonados quanto os velhos fãs de frequência cativa. Ali, encontram-se fãs de todas as partes do Brasil, e o encontro se dá a despeito de uma série de intempéries. Em 2005, um show foi oferecido durante a tarde, por um carro de som localizado atrás da Galeria do Rock; em outro ano, não havia carro algum, e, nos três últimos, um carro-motocicleta, com um de seus cantores cover, sai em passeata e permanece em frente à igreja. Houve um ano em que o teatro estava em obras, mas sua fachada ficou igualmente lotada de gente. Em alguns anos, choveu, mas lá estávamos todos cantando em coro, crianças e adultos, velhos e jovens, inclusive pessoas com necessidades especiais, que fazem o trajeto em meio à massa. Alguns fãs lançam livros em sua homenagem e postam paródias de suas músicas na internet. Sua obra possibilitou a configuração de um universo imagético-sonoro compartilhado por seus admiradores. Este difere do imaginário do ouvinte comum, que, ao lembrá-lo, não atenta para os diversos elementos que se interligam. Homenagens em bares são realizadas por todo o Brasil, por ocasião de seu aniversário de vida ou de morte. Peças de teatro contam sua trajetória, como Raul fora da Lei, de Deto Montenegro, que entra em cartaz anualmente no teatro Oficina dos Menestréis, em São Paulo. A peça O Baú do Raul Revirado esteve em cartaz em setembro de 2011 em Jundiaí. 213 O show O Baú do Raul organizado por sua ex-esposa Kika em 2004, realizado em São Paulo e no Rio de Janeiro, contou com a apresentação de diversos nomes da música, como Nasi, da banda Ira; Tico Santa Cruz; Pitty; seu último parceiro, Marcelo Nova; e sua filha Vivian Seixas. Outro evento de grande impacto foi o palco Toca Raul, montado na Virada Cultural paulista em 2009, na Estação da Luz, no qual diversos amigos e cantores prestaram-lhe uma extensa homenagem de 24 horas de duração, interpretando todos os seus álbuns. O presidente de seu fã-clube oficial, Sylvio Passos; sua primeira banda, Os Panteras; seu ex-parceiro musical Edy Star e Tico Santa Cruz estavam entre os participantes. A homenagem, que relembrava as duas décadas de sua partida, foi batizada com a conhecida frase, gritada por fãs em qualquer show brasileiro: “Toca Raul!”. Nesse mesmo ano, ele recebeu em memória o prêmio da Grã-Cruz, por sua significativa participação na cultura brasileira. Documentários, como Por Toda a Minha Vida: Especial Raul Seixas, exibido pela rede Globo em 2009, e o filme Raul: O Início, o Fim e o Meio, sobre sua vida e obra, lançado no final de 2011, reavivam sua obra na cultura brasileira. Em 2010 e 2011, seu ex-parceiro Edy Star realizou apresentações em sua homenagem, como o show da Virada Cultural 2010, em maio, no Vale do Anhangabaú, e o show de abertura do projeto Prata da Casa, realizado com o Caverna Guitar Band, no SESC Pompeia, em São Paulo, em setembro de 2010. Sua primeira banda, Os Panteras, formada por seus amigos Carleba, Eládio e Mariano, também realizou shows na Bahia e Belo Horizonte em sua homenagem, em agosto de 2011. No Rock in Rio de 2011, a banda Detonautas cantou Metamorfose Ambulante. E, em janeiro de 2012, foi realizado o ensaio da escola de samba paulista União de São Lucas, que o homenageará como tema do Carnaval 2012. Ao longo dos anos, diversos artistas brasileiros regravaram suas músicas, como Rita Lee, Caetano Veloso, RPM, Erasmo Carlos, Barão Vermelho, Alceu Valença, Deborah Blando, Titãs, Cidade Negra, Ultraje a Rigor, Nenhum de Nós, Ney Matogrosso e Zé Ramalho, que dedicou um disco inteiro a interpretá-lo. Entre seus admiradores, encontram-se aqueles que o têm como um visionário, enquanto os mais místicos conferem a ele um tom profético. Na cidade mineira de São Thomé das Letras, reduto de visitantes da cultura alternativa, ele goza de status de artista predileto, dividindo, em certa medida, o posto com seu amigo Zé Ramalho, que regravou muitas de suas canções, e com o cantor hippie Ventania. Servindo-se do aparato tecnológico midiático de seu tempo, Raul desenvolveu uma obra culturalmente rica em bases místicas e filosóficas, cujo poder de comunicação, em 214 linguagem simples, foi uma característica marcante. Hoje, em tempos de apelo comercial e avançada tecnologia eletrônica, uma parcela jovem volta-se para ele em busca de traços culturais substanciais, redes sociais se formam para discuti-lo, e a internet abriga muitas de suas produções, disponibilizadas por amigos e fãs empenhados em socializar sua obra. Comparado aos fenômenos de mídia observados na atualidade, o fato de o movimento raulseixista estar vivo, e ganhando força anualmente, é algo surpreendente diante da esparsa divulgação na imprensa formal e das duas décadas de sua partida. Tal efervescência se deve aos esforços de amigos e fãs. Seu caráter extraoficial e alternativo é o que o faz explodir como um grito de liberdade em meio ao fluxo urbano da cidade. Sua aura libertária possibilita que todos se sintam à vontade para participar livremente. Levar a voz de Raulzito entre praças e prédios da cidade, cortando a rotina do sistema social, tem não só o ar de transgressão da ordem, tão arraigado em seu trabalho, como é uma tarefa de honra para os que, apaixonados, o trazem à tona. Na cidade de São Thomé, cuja altitude chega a 1.440 metros, a sensação é mais tranquila, por conta da forte presença da natureza, e também impregnada pela aura mística e energética do local. Durante a noite, pode-se ouvir sua música ecoando por entre as ruas rochosas iluminadas pelo luar, e deixar-se levar até um grupo que a está entoando, sob a estrelada abóbada celeste. Seus versos ganham vida, diariamente, ao som das cordas de violão de qualquer jovem sentado no Cruzeiro, enquanto moradores e turistas reúnem-se para aplaudir o pôr do sol. Diferente do que ocorre com o eco urbano da metrópole, no reduto mineiro, sua voz traz um tom menos próximo da rebeldia rocker, tomando a direção do que ficou popularmente entendido com a expressão “maluco beleza”. A Sociedade Alternativa ideológica vivenciada ali é indissociável da estonteante beleza da paisagem. Em bares e peças de teatro, o ajuntamento raulseixista toma o aspecto característico do rock’n’roll, mais próximo do underground. 215 5 CONCLUS ÃO Raul Seixas contribuiu para a cultura brasileira de modo significativo, ao trabalhar como cantor e compositor, realizando notável produção musical e midiática. Sua arte transcendeu o fazer artístico, ao ser intencionalmente direcionada para um desdobramento social. Ao tomar a vida sociocultural do país como uma linha de abordagem em seu trabalho, dialogou com o entorno social, realizando produções voltadas para esse âmbito. Suas composições partiam de sua observação do comportamento humano e de seus estudos literários sobre filosofia, misticismo, anarquia e astrologia, como as pesquisas das correntes anárquicas de Joseph Proudhon, de Max Stirner, que desenvolveu o anarquismo individualista, e do misticismo do Livro da Lei, numa linha de pensamento voltada para a ação individual independente, movida pela vontade própria. Impulsionado por questionamentos de ordem pessoal, passou a desenvolver uma obra libertária, empreendendo esforços para proporcionar ao público a percepção de seu potencial de mudança. O objetivo de seu trabalho foi libertar o indivíduo das amarras psíquicas e 216 sociais que o levam a colaborar para o satisfatório funcionamento do sistema econômico e social, em lugar de conduzi-lo à autorrealização. Com uma obra norteada por seu senso de missão, serviu-se da música como veículo de transmissão de mensagens. Priorizou a mensagem sobre quaisquer outros aspectos em suas produções. Para tanto, concebeu o disco como uma obra conceitual na qual todas as músicas tinham uma conexão temática. Buscou inspiração para suas criações na cultura popular brasileira, tanto nos fatos cotidianos quanto nas suas manifestações, assim como trouxe elementos culturais de outras civilizações, trabalhando tal diversidade de forma mestiça e barroca. Aproximou itens de culturas “distantes”, colocando-os em relações combinatórias de mestiçagem que, por sua vez, originavam algo novo, a exemplo da mescla rítmica entre rock e música afro-brasileira de terreiro de Mosca na Sopa, e da combinação entre rock e baião de Let Me Sing, Let Me Sing e de Blue Moon of Kentuky. Em sua busca cultural, trouxe para o cenário brasileiro o milenar livro sagrado hindu Baghavad Gita, em seu grande sucesso Gita; o Tao Te Ching chinês, em O Conto do Sábio Chinês; e o poema espanhol medieval de São João da Cruz, em Água Viva. Em sua música, personagens de tempos longínquos eram postos em contato com as cenas do cotidiano brasileiro, a exemplo de Conversa para Boi Dormir, em que São João Batista convive com fatos corriqueiros, e de Como Vovó Já Dizia, que traz Isaac Newton para junto do jargão popular: “Quem não tem colírio usa óculos escuro”. Estas teias relacionais eram tecidas de modo não hierárquico, sendo que os componentes temáticos eram trazidos para um mesmo plano. Sua formação musical deu-se de modo autodidata: ao apaixonar-se por rock, ainda garoto, aos onze anos de idade tentou falar inglês, cantar e tocar as músicas dos pioneiros do ritmo. Tendo formado uma banda com seus amigos, conseguiu atingir seus objetivos de aprendizado sem contar com uma formação oficial. Levou para sua carreira profissional o método experimental, apoiado no impulso criativo que o havia acompanhado desde a juventude, somando o domínio de seu fazer a novas experiências sonoras e temáticas. Manteve seu processo criativo em constante atividade, tanto no campo intelectual quanto no musical, contando, ainda, com diversas parcerias musicais. A mestiçagem de ritmos e temas em seu trabalho dá-se de modo a entrelaçar as bases teóricas. A Sociedade Alternativa é constituída da relação intrínseca entre o misticismo do Livro da Lei, os conceitos do Bhagavad Gita, os estudos astrológicos e o anarquismo, estando ligada, ainda, à Utopia de Thomas More e aos movimentos da contracultura. O movimento, 217 que foi idealizado em 1973, tomou força, funcionando até o presente momento como filosofia de vida para seus fãs. Músicas como o Trem das Sete, Novo Aeon e Sociedade Alternativa têm uma mesma base conceitual. O fato de a música Novo Aeon abordar a Sociedade Alternativa, no trecho final, exemplifica a relação intrínseca entre esses conceitos presente em seu trabalho: “Sociedade Alternativa/ Sociedade Novo Aeon/ É um sapato em cada pé/ Direito de ser ateu ou de ter fé/ Direito de ter prato entupido de comida que cê mais gosta/ De ser carregado ou carregar gente nas costas/ Direito de ter riso e de prazer”. A Sociedade Alternativa foi, portanto, concebida sob a luz do Novo Aeon. Também em Anarkland, a anarquia, a utopia e o misticismo formam uma teia inseparável. Seu proceder na linha da mestiçagem estendeu-se às formações melódicas, ao trabalhar ritmos musicais como o rock, o jazz, o blues e o rhythm and blues, o country e o folk norte-americanos, assim como o rock inglês, em relações de completude e troca com os ritmos latino-americanos, como o tango, o bolero, os ritmos cubanos, e com os brasileiros, como o samba, o maxixe, o baião, o xote, as marchinhas de carnaval, as canções do sertão e as músicas afro-brasileiras de terreiros de umbanda e candomblé. Seu trabalho tem características barrocas, ao se servir do exagero e do residual, daquilo que está à margem do sistema, sendo também ele um artista barroco, um pesquisador insone, que transitou entre a filosofia e o mercado fonográfico, numa inconstante interação com a mídia, dado ao exagero e à complexidade de longos estudos, e se indispondo com o sistema, ao provocá-lo enquanto exercitava sua genialidade. Vivenciou uma relação instável com a mídia, na qual tanto figurava no horário nobre dos programas de rádio, televisão e contava com as melhores gravadoras quanto caía no esquecimento destes meios, em ciclos de alternância que se repetiram durante toda a sua carreira. Apoiado por seus estudos sobre a iminência astral de uma nova era, misticismo e anarquismo, apostou numa base filosófica na qual a lógica binária caía por terra, sendo essa uma característica da mestiçagem em seu trabalho. A ausência dessa lógica expressa-se tanto na constituição da Sociedade Alternativa como em Novo Aeon, Gita e Trem das Sete. O cessar da lógica binária é uma linha ideológica que atravessa toda a sua obra, a exemplo de: Que Luz é Essa?, em que diz: “Num tem certo nem errado/ Todo mundo tem razão/ E o ponto de vista é que é o ponto da questão”; de Novo Aeon, em que aparece uma afirmação semelhante: “Já não há mais culpado/ Nem inocente/ Cada pessoa ou coisa é 218 diferente/ Já que é assim/ Baseado em que você pune/ Quem não é você?”; e de Trem das Sete, onde o mal “vem de braços e abraços com o bem num romance astral”. Outra base da Sociedade Alternativa, o milenar livro hindu Bhagavad Gita, também se constitui com uma base não dualista. Concebeu a Sociedade Alternativa como o sonho de uma sociedade livre, como sua obra máxima, a idealização de uma filosofia de vida transcendente às imposições dos sistemas de poder e às ordens hierárquicas que os sustentam moralmente e economicamente. É baseada na ação individual mediada apenas pela vontade própria, em que somente subjugar é proibido, não admitindo, portanto, violência ou exploração. Ele apostou nessa ideia como um movimento revolucionário, e fez a música de mesmo nome, proclamando-a como seu hino. Tentou modificar o funcionamento do sistema, promovendo a conscientização individual de seus cidadãos para que o modo de vida fosse outro, baseado na lei da vontade, deitando por terra qualquer ordem hierárquica ou direito de poder. Trabalhando neste sentido, produziu músicas em que há o apelo à não desistência ante a adversidade, como Tente Outra Vez; à não acomodação, como Não Pare na Pista; e de incentivo à ação individual, como Loteria Babilônica. O papel de contestador que assumiu foi uma das prioridades de sua obra, com o caráter de informação e protesto, como num ato de empréstimo de sua voz ao povo. Mosca na Sopa é uma tradução deste processo, quando a personagem diz ter vindo para incomodar e anuncia ser inútil dedetizá-la, pois viria outra em seu lugar. Reforçando a unicidade conceitual de seus trabalhos, criou personagens que figuravam de maneira popular e bem humorada em suas aparições televisivas. Assumiu o papel social de tradutor de uma cultura tradicional para a linguagem popular, trabalhando como socializador da cultura livresca a que teve acesso. Disseminou conhecimentos complexos, simplificando-os, para o entendimento comum. Sua música ganhou apreço popular com o uso da linguagem simples. Usando a metáfora como recurso de linguagem ante o crivo dos censores, contou com a assimilação intuitiva de sua arte nos meios populares. De acordo com seu depoimento, suas músicas eram intuitivas e possibilitavam vários níveis de entendimento, de modo que a abrangência de seu trabalho estendeu-se a todas as classes sociais. Mas o amplo uso da linguagem popular levou-o com mais força ao povo. O direcionamento popular também foi traçado por sua conduta pública, tanto ao se apresentar em programas televisivos fantasiado de seus personagens, de forma humorística, 219 como ao se portar com uma gestualidade espontânea, consolidando sua imagem como uma figura performática de grande poder comunicativo. Sua postura anárquica e humorística ajudou a torná-lo uma figura lendária. Experimentou um processo de mitificação de sua imagem, causado por sua conduta não usual e pelo direcionamento dos meios de comunicação, que reduziram a percepção de sua figura. Enquanto a mídia privilegiou sua ousadia performática, o intelectual, em incessante labor criativo, ligado à família e enfrentando problemas de saúde, permaneceu na obscuridade aos olhos do público. Sua obra tem valor histórico e documental, por ter sido desenvolvida em diálogo com o quadro social, político e cultural da época. Dialogando com o entorno social, teceu uma série de críticas sociais, com característica abordagem humorística, que se dá, por vezes, em forma de sátira. Ela surge de seu inconformismo com determinada situação, e desenvolve-se embalada por sua aposta na possibilidade de mudança. Esse viés crítico está embasado nas correntes do anarquismo que estudou. Em 1973, ao lançar sua crítica social de maior projeção, dá início a uma carreira duradoura de prestígio nacional, na qual o humor e a crítica são características marcantes. Partindo de um questionamento de ordem pessoal, Ouro de Tolo vai transcender sua categoria autobiográfica, ao traduzir o sentimento de milhares de brasileiros acomodados numa situação econômica estável, com latente desejo de autorrealização, num período em que a liberdade de expressão se dava de modo limitado. Músicas como Abre-te Sésamo, Aluga-se e Não Fosse o Cabral satirizam os acontecimentos do quadro sociopolítico — enquanto a primeira se refere à anistia política concedida pelo governo em 1979, a segunda propõe alugar o Brasil aos estrangeiros para sanar a dívida externa, e a terceira satiriza o descaso do governo para com a miséria, a ignorância e os impostos altos, questionando, por fim, a culpa do descobridor do país pela desordem em que este se transformou. Sua obra, dotada de profundidade conceitual, apresenta-se também como bastante extensa, contando com mais de duzentas músicas, distribuídas em dezesseis discos lançados durante sua carreira, e alguns álbuns de lançamento póstumo, além da publicação de suas anotações pessoais. Raul transitou entre a cultura e os ambientes midiáticos, realizou seu trabalho estando ora absorto em seus estudos de filosofia e no desenvolvimento de suas composições, ora exercendo sua função de músico na indústria fonográfica, nas rádios e nos programas televisivos. Sua participação midiática permitia a inserção de seus conceitos filosóficos na 220 trama da cultura, e esse trânsito foi de suma importância para o trabalho de conscientização social que desenvolveu. Veiculou seu conteúdo filosófico por meios audiovisuais, servindo-se do aparato midiático, num país de tradição oral, e facilitou a fixação do conteúdo pelo uso do pronome “eu” e de frases na primeira pessoa do singular. Usou o riso da sátira como elemento desestruturador de uma pretensa ordem, ante os esquemas de poder e de legitimação que constituem o sistema. Esse riso popular e debochado, aliado de sua filosofia anárquica, presentifica-se em suas sátiras políticas e personagens. Em sua trajetória de intelectual que fez música para o povo e que se portou de maneira popular tanto em sua conduta pessoal quanto artística, ele foi mais bem compreendido pela massa do que por seus pares. Neste sentido, sua trajetória não se assemelhava à dos artistas do âmbito intelectual ou estudantil, com obras direcionadas a esses mesmos públicos, nem mesmo à dos cantores populares, com obras feitas para a massa. Porém, tendo desenvolvido seu trabalho no entrecruzamento destes dois tipos de relação entre artista e público, partia de uma condição de intelectual para a de tradutor com a finalidade de dialogar com o povo. Sua obra continua ganhando adeptos, entre eles muitos jovens, e uma série de homenagens surgem como movimento popular espontâneo todos os anos, em muitas cidades brasileiras, como Belo Horizonte, São Paulo, São Thomé das Letras, Jundiaí e Salvador. Raul é tido como um ídolo pelos fãs, e suas músicas têm participação no cotidiano deles, fazendo valer seus direitos quando necessário. São tocadas em greves e manifestações sociais, onde expressam a intenção popular por meio de seu viés anárquico. A passeata realizada em São Paulo em tributo à sua morte reúne quase três mil pessoas, todos os anos desde seu falecimento, contando com muitos participantes tatuados com seu rosto e nome, ou mesmo com a figura da chave da Sociedade Alternativa. Os integrantes usam roupas customizadas com suas fotos, e há uma grande quantidade de homens vestidos de modo idêntico a ele, que respondem pelo codinome de Raulzito. Todos os anos ocorrem eventos em bares, que contam com a participação de bandas e artistas cover, e lançamento de livros, cuja iniciativa parte de pesquisadores e fãs. Desde seu falecimento, em 1989, ele vem sendo um dos artistas mais regravados do país, tanto por amadores como por artistas renomados da música brasileira. 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