A propósito da melancolia - Instituto de Psicologia da UERJ

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A propósito da melancolia
Wagner Hideki Laguna
Sabe-se amplamente que o estudo das conversões, mais precisamente no que é
pertinente ao campo da histeria, pode ser considerado a pedra angular na formulação de
todo o método psicanalítico. Contudo, é justo notar que a problemática inerente a um
modo muito particular de funcionamento psíquico de cunho mórbido, a melancolia,
nunca esteve alheia ao interesse de Freud e ainda hoje ela suscita indagações.
Percorrendo o desenvolvimento de sua obra percebemos que, inicialmente, foi
articulado um louvável esforço no sentido de evidenciar a correlação da melancolia com
a anestesia sexual e a perda da libido, ainda apontando o luto apenas como um afeto
pertinente ao estado melancólico (FREUD, 1895). Posteriormente, em uma de suas mais
importantes obras: Luto e Melancolia, foi assinalada uma distinção fundamental na qual
o luto é compreendido enquanto um afeto normal e próprio à perda de um objeto
libidinalmente investido. Em contrapartida, a melancolia passou a ser entendida como
um estado patológico, uma afecção narcísica na qual a autoestima é severamente
comprometida, o sujeito aí se identifica com o objeto inconscientemente perdido
(FREUD, 1917).
Nos desdobramentos de sua pesquisa clínica, Freud ainda relacionou outras
manifestações fenomenicamente equiparáveis, tal como a inibição. Que sumariamente
diz respeito a perda de libido que decorre de restrição, ou mesmo renúncia, de uma
função normal do eu. A inibição advém de maneira particular nas fobias e também, em
parte, no mecanismo de defesa típico da formação de compromisso no sintoma
neurótico. Em termos econômicos a inibição evidencia sua razão principalmente quando
o conflito do eu contra o isso, ou do eu contra o supereu torna-se uma operação
excessivamente dispendiosa (FREUD, 1926).
Anos adiante, quando Lacan atualiza a leitura da teoria psicanalítica, outros
significantes já estão em voga, principalmente no discurso médico, repercutindo efeitos
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Trabalho desenvolvido na Unidade Docente-Assistencial de Psiquiatria do HUPE, sob supervisão da
Profa. Dra. Ana Maria Medeiros da Costa e apresentado no XVII Fórum de Residência em Psicologia
Clínica Institucional, em setembro de 2013.
Residente do 1º ano de Psicologia Clínica Institucional do IP/HUPE/UERJ.
importantes tanto no senso comum como na produção científica, e assim é o caso da
“depressão”. A relação da depressão com a melancolia, esta última enquanto tipo clínico
próprio da estrutura psicótica, encontra sua sustentação na noção de dor psíquica, que é
oriunda do irrompimento de gozo ao ponto de ultrapassar os contornos do simbólico e
os limites do aparelho psíquico (QUINET, 2006).
Se o sujeito cede de seu desejo, a falta constituinte se transfigura em falta moral,
que Lacan define como covardia moral essencial à melancolia. Nesta há um fechamento
das trilhas da cadeia significante a fim de evitar a determinação inconsciente. O afeto
que marca este movimento é a tristeza, em função de um esvaziamento libidinal de tal
magnitude que a perda de prazer faz com que o sujeito se afaste do encontro com a
castração (QUINET, 2006; SIQUEIRA, 2007).
Os apontamentos que dirigem o presente trabalho procuram dissertar sobre como
é possível situar a problemática do diagnóstico estrutural numa atuação clínica no
contexto institucional, tomando a Psicanálise como aporte ético e teórico. Objetivamos
ilustrar a interlocução da práxis clínica, sempre em sua soberania, com a teoria a partir
da apresentação e discussão de recortes de desdobramentos de um caso clínico
pertinente à temática da melancolia em contraponto à fobia.
RELATO DO CASO E DISCUSSÃO:
Miguel* 19 anos, solteiro, natural da cidade do Rio de Janeiro, reside com a mãe e
a irmã em uma comunidade, o pai saíra de casa quando o paciente tinha em torno de 8
anos de idade. M. interrompeu os estudos no primeiro ano do ensino médio e não
trabalha.
Chegou para internação na enfermaria da Unidade Docente Assistencial em
Psiquiatria (UDAP) do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) num domingo, em
função de um grave surto. É importante salientar que Miguel já era acompanhado em
ambulatório nesta UDAP, que lhe servia de principal referência. A orientação de seu
tratamento era baseada no diagnóstico médico-psiquiátrico de “fobia social”, conforme
a Classificação Internacional de Doenças em sua décima edição (CID 10).
Na manhã do dia anterior à internação, Miguel teria ingerido de maneira
impulsiva uma grande quantidade de remédios com a intenção de se suicidar. Em
virtude deste fato foi necessário encaminhá-lo à emergência da Unidade de Pronto
Atendimento (UPA) de seu bairro, onde foi submetido a uma lavagem estomacal,
medicado e liberado. Depois, já em casa, mostrava-se excessivamente agitado,
desorientado e agressivo, chegando a destruir diversos objetos. Veio trazido ao HUPE
por sua mãe que também se via sob ameaças.
No momento de sua admissão na enfermaria psiquiátrica continuou a agir com
violência, chegando a arremessar um grande e pesado vaso de plantas na direção de
outra paciente que, mesmo não a atingindo, provocou um considerável dano no canteiro
de concreto do jardim da enfermaria. Esta foi a primeira vez que houve a necessidade de
internação e a cena agressiva na ocasião da admissão, em um primeiro momento,
acabou por mobilizar a equipe de saúde, deixando-a apreensiva ante a possibilidade de
outro rompante durante o período que Miguel permanecesse internado, ou mesmo que
ele evadisse das instalações do hospital.
Na enfermaria o paciente logo foi medicado submetido à observação, pareceu
responder “adequadamente” à terapêutica psicofarmacológica. Pois, ainda que relatasse
uma ideação auto e heteroagressiva, principalmente frente aos demais pacientes, não
passou novamente ao ato nas três semanas que permaneceu internado.
Além da abordagem medicamentosa, a enfermaria da UDAP-HUPE conta com
uma atuação multidisciplinar, envolvendo a atenção por profissionais de Serviço Social,
Terapia Ocupacional, Educação Física e Psicologia, que tomam como objetivo oferecer
ao paciente um tratamento diferenciado, que leve em consideração sua história e sua teia
de relações (POLITANO, 1999). Quando o analista promove a oferta de escuta ao
sujeito, acaba por abrir justamente aí a entrada o surgimento de uma queixa. Queixa esta
que pode se converter, pela via da transferência, em uma demanda de análise desde que
haja implicação do sujeito com o seu sofrer.
Esta foi justamente a direção que o caso de Miguel tomou. No primeiro
atendimento com o psicólogo, três dias após a admissão, no pátio da enfermaria, o
paciente não declinou a oferta de escuta e logo passou a falar sobre aquilo que lhe
afetava. Sua postura era muito diferente da descrita em seu prontuário, seu tom de voz
era baixo, num timbre fino, quase infantil. Dizia de forma tranquila e aparentemente
sem resistências sobre o que o levou à internação: “fiquei muito nervoso, com raiva e
quebrei tudo (…) olha o estrago que eu fiz ali! (sic)” e aponta para o canteiro do jardim
ainda danificado.
Miguel relata que sentiu a “raiva” pela primeira vez com 9 anos de idade: “na
escola era muito zoado pelos colegas (…) porque era quieto, gordinho (…) eu entendo
o Wellington Menezes** porque eu sinto o mesmo! Raiva, vontade de matar” (sic).
** Atirador responsável pela morte de 12 adolescentes no episódio de comoção nacional
conhecido como “Massacre de Realengo”, ocorrido em abril de 2011.
Dizia sentir-se bem no momento, mas não sabe precisar o que o deixa com raiva:
“qualquer coisa, até uma folha caindo” (sic).
Quinet (1991) salienta de forma precisa que a demanda que o sujeito encaminha
ao analista não deve ser aceita em estado bruto, mas sim questionada. Num atendimento
posterior, quando feito esse questionamento sobre o mal-estar que o sujeito menciona,
Miguel continuou: “queria ajudar minha mãe com as despesas em casa, mas não
consigo (…) tentei trabalhar como ajudante numa xérox de hospital, tinha muita gente
pra atender e sentia medo (…) larguei a escola”(sic). Ao pedir para que Miguel fale
mais desse medo ele nomeia: “é uma coisa ruim, uma depressão, um nervoso, vazio por
dentro (…) cheguei a pensar em me matar (…) é uma raiva que não consigo controlar”
(sic).
A partir dessa fala torna-se possível demarcar, em termos estruturais, que a
inibição sob a forma de medo de que o sujeito fala não é própria de um sintoma fóbico,
tal como o diagnóstico psiquiátrico a princípio sugeriu. Trata-se aqui de um afeto
notoriamente difuso, não há um objeto investido que se assuma como agente de
castração despertando a angústia (FREUD, 1926). Deste momento em diante
interrogamos se ainda é possível empreender a direção do tratamento pelo paradigma da
neurose.
Trabalhar com a fala e seus efeitos é um ato que procura não se limitar
unicamente ao período de rompimento e crise que caracteriza a internação, mas sim
objetiva estender-se para um tempo posterior, quando o sujeito terá alta e a
possibilidade de ser ouvido em ambulatório. Sendo assim, após a saída da internação
Miguel seguiu em acompanhamento pelo psicólogo, atendido semanalmente no
ambulatório. O paciente usufrui desse espaço para falar das músicas que escreve, do
quanto que gosta de compor quando fica triste, mas não de interpretar: “cantor tem que
se expor muito, não mostro as letras pra ninguém, nem minha mãe e nem minha irmã”
(sic) – consequentemente nem para o analista. Diz querer mandar suas músicas para
uma gravadora esperando “que paguem uns cinco mil reais pelos direitos autorais”
(sic).
Ainda afirma que teria voltado a estudar, matriculando-se em um supletivo, onde
em princípio coloca como vantagem não precisar ir todos os dias à escola. Ao mesmo
tempo, de maneira ambivalente diz sentir uma tristeza porque “sabe que não vai
** Atirador responsável pela morte de 12 adolescentes no episódio de comoção nacional
conhecido como “Massacre de Realengo”, ocorrido em abril de 2011.
conseguir”. A rotina escolar lhe remete à época em que ainda estudava regularmente e
que era constantemente “zoado” pelos colegas.
Aquilo que é tocante a sua estruturação subjetiva vai desvelando à medida que seu
discurso dificilmente perpassava pelo desejo, permanecendo a fala unicamente no limiar
de uma queixa fracassada inteiramente alienada ao Outro. Embora o manejo
transferencial permitisse ao analista questionar o gozo que seu discurso comportava, o
efeito não era próprio de uma implicação por parte do paciente, mas sim de uma
intensificação massiva da angústia.
“Não sei, não tenho nenhuma perspectiva de futuro, estou com 19 anos, deveria
ver uma faculdade, algo assim, mas não sei... sem completar os estudos não vou
arrumar trabalho (…) ajudaria minha mãe e minha irmã, mas não consigo (…) não
vejo nenhum futuro pra mim, não me vejo velho” (sic). Dizia sentir-se bem, que não
sentia mais o “nervoso” ou “aquela raiva”, mas que agora era sempre tomado por uma
“tristeza que vem do nada”, que mais frequentemente a nomeava de “uma angústia
(…) mas que tirando isso estava bem” (sic).
Sendo o “tirar isso” como efeito da medicação psicotrópica, que entendemos ter
operado em seu pleno objetivo de tirar a raiva, mas como “efeito colateral” lançou o
sujeito no real da angústia não ligada, afeto puro e livre de qualquer representação que
permita sua inscrição no Simbólico. Portanto, aquilo que “vinha do nada” para Miguel
era mortificante e quando perguntado sobre o que pode ser feito com o que “vem do
nada”, ou que sentido suas músicas tinham em sua história isso era tomado como algo
interpelativo, pois o que o paciente nos fala é de uma absoluta certeza quanto ao seu
fracasso. Ao conclamar o Nome-do-Pai, este está zerificado porque não há qualquer
inscrição da referência fálica, é um furo por onde se esvai toda a libido e sem tal
referência, arcar com a castração é da ordem do impossível.
O peso do Real de sua angústia se desvelou em forma de passagem ao ato com sua
segunda tentativa de suicídio, desta vez Miguel se atirou na frente de um ônibus em
movimento – saiu de casa sem dizer nada e sem que nenhum familiar o visse – de certo
por não ter nada a dizer, nenhuma demanda ao Outro. Apesar de ter sofrido apenas
escoriações leves, a partir desse dia sua mãe passa a acompanhá-lo a qualquer lugar que
fosse fora de casa, inclusive nos atendimentos com o psicólogo. Eis então que o sujeito
cala.
A relação do paciente com a mãe é notoriamente marcada pela ambivalência ódioamor, assim a autopunição é uma maneira de vingar-se e torturar o ente amado através
de sua doença, sem que para isso seja necessário expressar de forma aberta a hostilidade
contra ele (FREUD, 1917). É justo entender porque Miguel se repreende sem qualquer
censura ou vergonha, afinal quem na realidade ele condena é outra pessoa.
Em linhas gerais toda neurose conserva em determinado aspecto algum
componente regressivo como função de lidar com a angústia, a defesa infantil justificase nesses casos, mas Miguel retoma um mecanismo ainda mais primordial. Na
melancolia a angústia é sentida tal como a da primeira infância, quando o “eu não está
preparado para dominar psiquicamente as grandes somas de excitação que o alcançam
quer de fora, quer de dentro” (FREUD, 1926). Lacan sugere que o furo pelo qual se
esvai a libido equivale à própria foraclusão do Nome-do-Pai, defesa peculiar das
psicoses (QUINET, 2006).
A queda do corpo nas suas tentativas de suicídio vem no intento de suprir a
ausência de significante e o silêncio reduz o sujeito ao status de mero objeto de gozo.
Pensar a direção do tratamento nesse delicado contexto consiste na possibilidade em
sustentar e relativizar, inserir a dúvida frente um supereu excessivamente repressor e
neste sentido permitir que o sujeito, de acordo com suas possibilidades, entre em
contato com sua dor para aí questionar o delírio de ruína que fragmenta o eu.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que procuramos salientar nesta breve apresentação é que em termos estruturais,
Miguel diferentemente do neurótico, do fóbico, não teme a morte. Ele não só a procura
como também refere o suicídio como única solução para a sua dor. Abdicar de sua
existência consiste no singular e plausível caminho para se separar desse Outro absoluto
e não castrado que incessantemente paira condenando-o à falha. No mesmo sentido, se o
paciente abre mão do desejo é porque a falta não se instaura como causa de busca por
sua verdade, é visto que o excesso de gozo oriundo da ineficácia do recalque que faz por
dominar o seu psiquismo.
Seria um trabalho em vão procurar na fala do melancólico uma perda exterior, um
“luto mal-elaborado”, ou ainda tentar advogar no sentido contrário de sua recriminação,
valorizando o objeto que o sujeito se empenha em atacar: seu próprio eu. Se for possível
colher algum efeito proveitoso da Psicanálise nesse caso, isso depende muito mais de
como o analista se empenha ao sustentar o vazio que psicótico tratará de escancarar,
pois assim como pontua Antonio Quinet (2006), os melancólicos dão voz a dor de
existir que os neuróticos escamoteiam.
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
Freud S. Rascunho G – melancolia. Rio de Janeiro: Imago; 1996 [1895]. (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.I).
Freud S. Luto e melancolia. Rio de Janeiro: Imago; 1996 [1917]. (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XIV).
Freud S. Inibição, sintoma e angústia. Rio de Janeiro: Imago; 1996 [1926].
(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud,
v.XX).
Politano CF. O paciente, seus familiares e a instituição psiquiátrica. Práxis e
formação. 1999; 4: 45-54.
Quinet A. As 4+1 condições da análise. Rio de Janeiro: Zahar; 1991.
Quinet A. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de
Janeiro: Zahar; 2006.
Siqueira ESA. A depressão e o desejo na psicanálise. Estud. pesqui. psicol. 2007
abr.; 7(1): 71-80.
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