Algumas reflexões sobre o estudo das migrações pendulares∗

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Algumas reflexões sobre o estudo das migrações pendulares∗
Antonio de Ponte Jardim∗∗
[email protected]
1 – Possibilidades e questões analíticas para o estudo das migrações
pendulares
As migrações pendulares estão relacionadas aos processos de deslocamento da
população no território, num determinado contexto e tempo socialmente constituídos;
ganham especidades e finalidades a partir da estrutura e das mudanças na organização da economia e da sociedade1. Assumem contornos que podem ser classificados a partir de determinado modelo de desenvolvimento da economia e da sociedade, como por exemplo, em relação à concentração da população e da economia
em áreas urbanas e metropolitanas. Para refletirmos sobre o seu estudo temos que
ter presente o seu nível de abrangência (escalar), no sentido
que quando
classificamos produzimos informações a partir de um determinado modelo teórico
analítico2, responsável pela reconstrução da realidade3.
Em relação à abordagem sociológica clássica podemos afirmar, num primeiro momento, que
“os sistemas de classificação são socialmente definidos e ordenam o mundo, conseTrabalho apresentado na "Mesa Redonda: Movimentos pendulares: velhos e novos significados". V
Encontro Nacional sobre Migrações de 15 a 17 de outubro de 2007, no Núcleo de Estudos
Populacionais - NEPO/UNICAMP.
∗∗
Pesquisador do IBGE, Coordenadoria de População e Indicadores Sociais.
1
O estudo das migrações pendulares não deve estar desvinculado dos de urbanização que, por sua
vez , não se separa “do estudo da mudança social e do desenvolvimento econômico” (Harvey, 2005,
p.166). Portanto, deve estar inserido no contexto e na mudança da economia e da sociedade.
2
A construção de modelos analíticos, com base nas relações numéricas, permite-nos criar diferentes
arranjos numéricos, pelo fato que o número rege toda manifestação (Cosmos significa “mundo
ordenado”); rege o espaço, o tempo, as leis e as relações, das quais tratam as “Ciências Exatas” (a
física ou a cosmologia dos gregos). Por sua vez, o ato de nomear (de classificar as coisas) exprime
as essências primeiras, incriadas, que só podem ser reencontradas através de um desenvolvimento
da consciência, pela introspeção e pelo retorno à origem, e como isso diz respeito ao foro interior,
não formal e não mensurável, está relacionado às “Ciências Humanas”, no sentido mais amplo do
termo (a ética ou escatologia dos gregos). Antes da ruptura entre essas duas ciências, que iniciou no
fim da Idade Média e foi sacramentada por Descartes, ambas dialogavam continuamente e
constituíam uma unidade (a Filosofia vera de Platão, Porfírio, Santo Agostinho, enquanto sabedoria
divina) no corpo da Tradição ocidental. Essa ruptura sempre foi um sinal da degenerescência
espiritual e intelectual de uma civilização. Cf. Patrick Paul. Os Diferentes Níveis da Realidade – O
paradoxo do Nada. São Paulo: Polar Editorial, 1998, p. 36.
3
A realidade social é fruto da construção coletiva de atores que, apesar da especificidade de suas
experiências pessoais, concordam tacitamente delas, de modo intersubjetivo (Berger e Luckmann,
2002), cujas lógicas, em comum, constituem o modo de agir. Trata-se, portanto, de análises das
maneiras habituais de proceder dos atores sociais em suas ações cotidianas (Coulon, 1995, p.15).
∗
1
quentemente o cosmos, no sentido que a sociedade não instaura a si mesma, mas o mundo
que é originário de uma ordem classificatória. Esta ordem é responsável pela criação do
cosmos (da ordem em detrimento do caos). Nesta lógica, o papel da sociedade é o de
sempre “ordenar o caos, a desordem e criar o cosmos, como princípio regulador da
sua existência” humana, cujas especificidades se imprimem e configuram o território, em
suas diferentes dimensões: cultural, social, demográfica, entre outras” (Jardim, 2007 ).
Num segundo momento, a partir de diversos sistemas classificatórios e analíticos,
podemos afirmar também que existem vários modelos de classificação no interior da
sociedade, responsáveis pelas explicações e concepções das diversas realidades
construídas, a partir de distintas lógicas-em-uso e de diferentes lógicas-reconstituídas4.
Os modelos analíticos nos permitem objetivar as lógicas-em-uso transformando-as
em lógicas-reconstituídas, como propriedade exclusiva de determinada área de conhecimento. Entretanto, um dos limites dos modelos analíticos é nos fazer acreditar
que o modelo é a própria realidade social, já que o acontecer social é muito mais
amplo do que determinadas visões particulares. Apesar da redução da realidade
social, por determinados enfoques analíticos, a crítica metodológica só pode ser feita
através da coerência entre o que se deseja investigar e a análise dos resultados, o
que redunda na consciência ou não de determinados conteúdos valóricos da pesquisa. Contudo, a lógica reconstituída, em qualquer campo de investigação, deve
revelar a eficácia de seus propósitos e estar de acordo como os valores paradigmáticos responsáveis pela delimitação da área específica de conhecimento, cuja
problematização dos paradigmas vigentes é responsável pelo avanço do próprio
conhecimento.
Os valores paradigmáticos são responsáveis, em grande parte, pela linguagem e a
cultura que afetam não só a lógica-em-uso, mas também o estado de conhecimento,
o nível de pesquisa (a abrangência) e as condições que cercam os problemas específicos5. Portanto, ao analisarmos os movimentos da população no interior das metrópoles, num contexto do processo de mudança da economia e da sociedade, requer que investigamos as interconexões entre o demográfico e o social, o demográ4
A lógica em uso está associada à forma como as pessoas orientam as suas vidas e as práticas (o
seu cotidiano) – Portanto, vincula-se com a cultura, economia e a própria política - o que implica
considerar a ação política no plano cultural, enquanto que a lógica reconstituída está relacionada com
a instrumentalização da ação política e partidária, via ação do Estado (Gramsci,1991, p.: 3-112).
5
KAPLAN, A . A conduta na Pesquisa. São Paulo: Herder, 1969 (cap. 1. Metodologia, pp.5-36).
2
fico e o geográfico, econômico e o político assim como outras dimensões da ação
humana.
Essas dimensões abrem possibilidades para novos modelos explicativos para o deslocamento da população e de seu cotidiano6, onde as condições de inserção na
estrutura econômica e social, que abrange aspectos gerais e, ao mesmo tempo, específicos do acontecer social estão relacionadas com o desenho do urbano, com a
forma de ocupação do território, cuja influência diferencia-se na ocupação social do
espaço (urbano e metropolitano). Portanto, há que se observar as múltiplas
possibilidades dadas pela configuração social e as modalidades em que ocorrem os
deslocamentos populacionais que, na maioria das vezes, se realizam para além dos
mercados de trabalho e educacional.
Para isso, é importante que se observe as múltiplas formações e conformações do
espaço e sua relação com a totalidade constituída7, uma vez que a noção de espaço, enquanto distância relativa, “é o que nos dá a ilusão de que estamos separados”
e unidos, ao mesmo tempo, por relações e possibilidades que normalmente não são
levadas em conta por sistemas classificatórios vigentes (pela lógica-reconstituída),
6
A noção de cotidiano, do ponto de vista dialético, refere-se à síntese da totalidade como o local da
reprodução da totalidade. Neste sentido, o cotidiano por ser o lugar da existência, da reprodução e da
revolta, tornando-se o espaço privilegiado de qualquer projeto revolucionário (Lefebvre,1991). Entretanto, a modernidade transformou o cotidiano administrável cujo propósito é manter o controle da
reprodução da sociedade, da indiferença. O cotidiano passa a ser particularizado e fragmentando
como forma de administrar o espaço/tempo e transformando-o em um espaço de atributos (passíveis
de serem controlados, administrados, previsíveis). A “previsibilidade” da sociedade capitalista transformou o cotidiano num dos espaços essenciais para o consumo. Neste sentido, o cotidiano perde o
seu poder revolucionário e passa a ser o lugar da produção e da reprodução, onde o tempo e o
espaço passam a serem administrados como forma de controle do tempo livre, inseridos numa nova
lógica de produção, reprodução e distribuição de bens e serviços.
O controle do tempo livre transforma sujeitos em objetos de gestão, via políticas específicas de atuação do Estado e/ou de interesses privados. As necessidades passam a serem administradas, no
sentido de que cada vez mais geram necessidades/carências, numa cadeia incessante de
insatisfações que alimentam o sistema. Deste modo, transforma-se o cotidiano no lugar onde os
embates entre produ-ção/reprodução e revolta revolucionam o próprio conhecimento, no sentido de
controlar a criação, a revolução. Transformam-se os processos revolucionários em modernização, em
atualização dos valores monetários.
7
A noção de totalidade constituída refere-se ao conjunto de todas as coisas, de todos os homens,
isto é, de suas ações e relações. O seu conhecimento pressupõe divisão, fragmentação em partes,
pelo fato de ser o real um processo passível de ser subdividido, mensurável e qualificado através de
diferentes escalas. A totalidade, enquanto processo, está sempre em movimento, num processo
incessante de totalização. Portanto, só pode ser apreendida em relação as suas partes, que podem
ser conhecidas em relação ao todo. Neste sentido, a totalidade é, ao mesmo tempo, o real-abstrato
e o real-concreto que só tem existência através de formas sociais e, por isso, cada indivíduo é
apenas um modo de ser da totalidade que se reproduz em relação ao todo e só tem existência real
3
principalmente nos estudos demográficos. Há que se ter presente que quando
classificamos,
por
exemplo,
os
deslocamentos
da
população
recriam-se,
previamente, diferentes espacialidades em função das diferentes práticas cotidianas
e de ações políticas no e sobre o espaço metropolitano.
Como forma de se apreender essas diferentes práticas, as reflexões sobre as escalas de conhecimento e a sua relação com as escalas métricas nos permitem “observar” as diferentes dimensões da realidade social8. Entretanto, não podemos reduzir
as escalas métricas às de conhecimento, embora ambas se complementem.
As escalas métricas nos possibilitam observar determinados aspectos classificatórios, a exemplo da questão da proporcionalidade, da equivalência e da similaridade,
que se confundem com os diferentes níveis da realidade e permitem que se estabeleça, de antemão, relações entre os aspectos específicos e a totalidade. Estas relações possibilitam que se estabeleçam hierarquias diferenciadas no interior de uma
determinada totalidade social. Entretanto, temos que estar atentos para o fato de
que as escalas métricas evidenciam somente determinados aspectos classificatórios
e não as suas causas. Os critérios classificatórios a partir das escalas métricas delimitam, de antemão, a realidade que se quer estudar.
A problematização sobre o nível de abrangência das escalas nos permitem refletir
sobre as diferentes práticas sociais, políticas e demográficas associadas a referências que condicionam e são condicionadas por diferentes ações sociais,
analíticas e políticas. Essas práticas estão relacionadas a intenções, que mudam significativamente a escala de observação, de concepção que delimitam o objeto e de
representação da realidade a ser observada. A problematização do nível de abrangência escalar permite observarmos criticamente as formas de interpretação e
de inserção na realidade social, traduzida nas diferentes “visões sociais da reaem relação a esse todo. (Santos, M. A natureza do espaço – técnica e tempo, razão e emoção. São
Paulo, Hucitec, 1996)
8
As escalas de conhecimento estão associadas à referência, concepção, percepção e representação
da realidade sociocultural em que os indivíduos estão inseridos; correspondem a um sistema de valores que orientam as ações em relação a determinados meios e fins. Os indivíduos podem ser avaliados, em relação às ações e atributos sociais, a partir das leis de proporcionalidade, da equivalência
e de similaridade que possibilitam estabelecer classificações entre os diferentes níveis (escalares) de
percepção e concepção da realidade circundante. Portanto, as escalas de conhecimento são
importantes para se conhecer as diferentes “visões sociais de Mundo” (Löwy, 1987).
4
lidade9”. Por exemplo, ao classificarmos as migrações pendulares como essencialmente vinculadas ao mercado de trabalho e educacional, cujas exigências estão
referidas à inserção e à qualificação e requalificação do trabalho, produzimos modelos explicativos macroeconômicos e/ou sociológicos que não dão conta da realidade, em sua totalidade, cujos enfoques principais estão direcionados à inserção
dos migrantes no mercado e a divisão social do trabalho. Ao mesmo tempo, reduzimos os deslocamentos do local de residência ao local de trabalho excluindo as
outras dimensões do cotidiano da população, que exigem outras formas de mobilidade espacial da população, por exemplo, as interações espaciais10.
Será que as relações e as correlações entre migrantes e não migrantes nos permitem entender o processo de mudança na economia e na sociedade?
Temos que não esquecer que ambos são parte constitutiva da organização social, econômica e política e estão constituídos por relações métricas (por escalas
métricas). Entretanto, estas relações permitem conhecer somente parte significativa
de aspectos da organização da economia e da sociedade, num determinado momento histórico, sem explicar as possíveis causas dos deslocamentos migratórios e
a sua relação com os movimentos da economia e da sociedade.
Ressalta-se, entretanto, que não há conhecimento analítico sem reflexão sobre a
abrangência escalar. As escalas são essenciais para elaboração de sistemas classificatórios, com vistas à formulação de modelos que permitam analisar a realidade
social constituída, como observaram Durkheim e Mauss11. As classificações, do pon-
9
Este conceito foi elaborado por Michel Löwy (1987); está relacionado à ideologia e à utopia. Está
associado à estrutura de classes, interesses, cultura e utopia. A cultura, para o autor, é o ingrediente
da ideologia, enquanto que a ideologia está vinculada a interesses. Em relação à ideologia há uma
racionalização do mundo. A cultura está relacionada à formação social. Neste sentido, as bases
culturais são construídas no confronto de interesses associados à ideologia e à utopia. Portanto, a
“visão social de mundo” corresponde a uma perspectiva global socialmente condicionada.
10
As interações espaciais envolvem tanto as migrações, em suas diversas formas definitivas, sazonais, pendulares e de retorno, quanto os deslocamentos de pessoas dentro da cidade (mobilidade
residencial), independente das idas e vindas da residência ao local de trabalho e estudar. As interações espaciais estão relacionadas à ida ao shopping, à praia, ao cinema, ao culto religioso, visitar
amigos e parentes, entre outros deslocamentos da população relacionados à organização social. As
interações espaciais envolvem, também, o fluir de informações destinadas ao consumo de massa
como também aos fluxos de informações entre empresas, com vistas à produção de bens de capital e
a distribuição de bens e serviços.
5
to de vista sociológico clássico, fazem parte de uma totalidade social constituída por
partes, uma vez instituída os sujeitos podem ser analisados como “coisas” passíveis
de serem comparados, relacionados, quantificados, qualificados, hierarquizados, etc,
pelo fato que passam a serem descritos matematicamente e reconstruídos em
modelos estatísticos ou econométricos. Portanto, as classificações Durkheiminiana
transformam os sujeitos de ação em objetos de gestão12. Esta visão sistêmica da
realidade procura estabelecer relações entre o todo e as partes constituintes da
configuração social, num determinado momento histórico, com o propósito de
estabelecer e demarcar diferenças significativas no interior da estrutura social.
Entretanto, evidencia-se que a totalidade é um processo onde a soma das partes
não constitui o todo. Há que se considerar a relação entre o todo e as partes e a
relação destas com o todo (Morin, 2004), ao mesmo tempo.
Ressalta-se, também, que não há conhecimento sem atos de nomeação, sem classificações e sem abrangência escalar (métrica ou não). O ato de nomear e de numerar permite que se estabeleça diferenças e ordenações entre a totalidade e as
partes, seja esta social ou demográfica. Entretanto é a historicidade desses atos nos
permite que se reflita sobre as diferentes formas e abordagens do acontecer social,
no sentido que o ato de nomear ganha historicidade a partir das diferentes práticas
sociais e analíticas, que se transformam em função de diferentes usos e ações
sociais e políticas relacionados a um sistema de valores, vigente num determinado
momento histórico.
A visão mecanicista dos fluxos migratórios como “atração” e “repulsão” correspondeu as necessidades dos primórdios da Revolução Industrial inglesa, onde os migrantes eram parte constituinte do desenvolvimento industrial. Eram vistos como parte integrante do processo produtivo. A análise do seu cotidiano se restringia ao tempo da administração da produção, ao tempo socialmente necessário para produção
de mercadorias. Portanto, não eram considerados os aspectos imateriais da
11
DURKHEIM, E.; MAUSS, M. - “Algumas formas primitivas de classificação: contribuição para o
estudo das representações coletivas”. In MAUSS, M - Ensaios de Sociologia, São Paulo, Ed.
Perspectiva, 1981, p.: 390-455.
12
O problema não é a gestão da ação humana, em seus diferentes níveis, mas o corte que faz do
homem em diferentes fatias. O que devemos “lamentar não é nem a matematização nem a
estatística, mas a atrofia do espírito de hipótese” (Morin, 2004, p.66).
6
produção e do cotidiano da população, já que o acontecer social urbano se referia à
fábrica.
As reflexões sobre o estudo das migrações internas (Jardim,2006)13, em função do
tempo cronológico, ditado pelo ritmo e pelo controle das atividades industriais, nos
possibilita analisá-las somente a partir das escalas métricas e dos princípios da
ordem (e) ou da desordem associadas a seqüências e conseqüências, em relação,
por exemplo, aos impactos no lugar de origem ou de destino. A partir das comdições
sociais, econômicas e políticas e da inserção na estrutura social e produtiva, estes
indicadores são fundamentais para as classificações hierarquizadas das migrações
e se prestam, na maioria das vezes, para mascarar as contradições sociais,
econômicas e políticas na origem do processo migratório. Encobrindo, assim, a
historicidade do movimento social e demográfico, inclusive os seus determinantes.
Assim, as conseqüências explicam as causas e não o contrário, já que as diferenças
se fazem presentes pelas condições existenciais modeladas por indicadores sociais
e demográficos que são instrumentos fundamentais para a ação política e para a
construção de modelos teóricos analíticos que, na maioria das vezes, não
denunciam as causas, mas as conseqüências e servem para a tomada de decisões
políticas equivocadas.
A análise dos deslocamentos populacionais em função da organização cotidiana da
sociedade nos permite analisar, por exemplo, os diferentes usos do tempo e das
diferentes temporalidades14, relacionados a diversas atividades e ações que
envolvem múltiplas dimensões da realidade social, por exemplo:
13
JARDIM, A., P. Algumas reflexões sobre o tempo e o espaço no estudo das migrações internas.
Texto elaborado para discussão no curso de Migrações – Mestrado em Estudos Sociais e
Populacionais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE, 2006.
14
As diferentes temporalidades podem ser analisadas a partir da duração e da distância, como categorias temporais e sócio-esapciais que servem de instrumentos de controle da ação político-administrativa, cuja racionalidade é exercida através das relações entre o político e o social, com vistas
estabelecer e legitimar diferenças identidárias (Bourdieu,1989) e regionais. Por sua vez, são as diferenças que justificam o processo de integração/exclusão no local de origem e/ou de destino, assim
como ressaltam as identidades que disputam espaços e territórios, que se consolidam na formação
regional (Jardim, 2006).
7
O espaço de vida15; o ciclo de vida e suas diferentes variáveis socio-demográficas; a
relação entre habitação e trabalho; as condições de habitalidade; as mudanças na
estrutura econômica e social e os novos processos societários, advindos de emprego de novas atividades sociais e tecnológicas; a questão da mobilidade e da
imobilidade residencial; as condições de deslocamento da população entre o local
de residência e o seu destino; a questão do lazer e das amenidades; o tempo de
duração de deslocamento; o tempo de permanência (no local de destino); a duração
das atividades; os processos de segregação sócio-espaciais no interior das
metrópoles, entre outros elementos constitutivos da organização e da configuração
social. Todos estes elementos demarcam diferenças significativas nos processos de
deslocamentos populacionais, assim como em sua interpretação analítica. Além do
mais, nos permitem estabelecer diferenças classificatórias entre as pessoas que se
deslocam ou não, entre a residência e o lugar de destino, a expansão do território, a
incorporação de novos territórios, a mobilidade residencial, as migrações
intrametropolitanas, a questão do espaço construído e a habitação, entre outros
aspectos que correspondem a necessidades sociais gerais e específicas, que se
traduzem em diferentes práticas sociais no interior da organização social. Estas
necessidades podem ser analisadas, por exemplo, a partir de um sistema de
carências16, associadas ao um sistema de valores vigentes, que condicionam a
aquisição de objetos e equipamentos sociais e coletivos, cujas práticas são
responsáveis por mudanças profundas na utilização do território, como também na
concepção da qualidade de vida. Por sua vez, estão associadas às condições
imateriais17, mas são essenciais para se analisar as condições e a qualidade de vida
da população no território, em um determinado momento histórico. Portanto, são in15
A noção de espaço de vida passa pela “porção de espaço onde o indivíduo efetua suas atividades.
Esta noção engloba além dos lugares de passagem ou de instância, todo o resto de lugares com os
que ele indivíduo se mantêm em contato” (Cabrerizo,1999:36, apud Courgeau,1988). Assim, o espaço da vida estaria formado pelos lugares afetados pela mobilidade cotidiana, pelo sistema de relações
do indivíduo, independentemente do local de trabalho e/ou de estudo.
16
A noção de carências urbanas e sociais está relacionada com a falta de algo determinado por
valores previamente definidos pela estrutura social, num determinado momento histórico. As carências são produzidas social e historicamente e referem-se às atividades dos sujeitos na elaboração de
seus sentimentos, vivências e expectativas de acesso ao consumo de bens e serviços, socialmente
diferenciadas (Jardim, 2001). Por sua vez, as carências relevam as condições de vida da população,
de seus custos vitais medidos pela análise das condições ambientais, de trabalho, de saúde e
educação, do uso do tempo social, entre outros aspectos relacionados à vida social, refletindo, assim,
as condições de ocupação territorial.
17
As condições imateriais se traduzem no lazer, nas atividades sociais, religiosas e educacionais.
Vide: Harvey, D. Class, structure and the theory of residential differentiation. In: The Urban Expirence.
Baltimore: The Hopkins University Press, 1985.
8
dicadores relacionados às condições de produção e reprodução da população no
território e de seus deslocamentos.
Como forma de analisarmos os motivos dos deslocamentos populacionais não podemos deixar observar outras variáveis constitutivas da configuração social, cujas implicações relacionam-se com a divisão social do trabalho e com diferentes ações voltadas para aquisição de bens e serviços, sejam estes materiais ou não18.
Há que se ter presente que a grande maioria no contexto metropolitano não se
desloca do local de residência para trabalhar e estudar, o que não significa
necessariamente que não o faça por outros motivos, cujas ações fazem parte de
cotidianos particulares. Ressalta-se ainda o fato de serem particulares não
significam que sejam acontecimentos isolados mas representam, na maioria das
vezes, práticas comuns a diferentes grupos sociais e que se constituem, também,
objeto determinante nos deslocamentos cotidianos da população. Há que se
considerar que os deslocamentos não voltados para o mercado de trabalho e de
estudo também expressam diferenças significativas nas condições de deslocamento
migratório, já que não são fatos isolados e nem tampouco individuais, como
observou Paul Singer (1973)19, no sentido de estarem associados às classes sociais
e não à características isoladas dos indivíduos. Por isso, a incorporação do estudo
das interações espaciais passa a ser essencial no entendimento daqueles que não
se deslocam para trabalhar e estudar. Há, portanto, que se investigar os outros
motivos relacionados aos respectivos cotidianos. Neste sentido, temos que
acrescentar aos estudos sobre as migrações pendulares outras dimensões do
cotidiano que normalmente não são consideradas nos Censos Demográficos.
18
Para avaliar a importância e as mudanças no mercado de trabalho e educacional, num a determinada região, se sugere analisar (HUALDE, 2005, p.47-48): 1) as instituições – a) quantidade e qualidade; b) as relações entre elas; c) a espessura das redes institucionais; d) o tipo de organização que
possuem; 2) o tipo de indústria – produção de produtos e processos de trabalho, setor de atividade,
tipos de empresas, tipos de organizações empresariais, níveis tecnológicos, formas de aquisição da
tecnologia: criação, imitação e de formação; 3) capital humano – infra-estrutura educativa e de
formação; 4) um conjunto de valores, regras, racionalidade compartida que pode definir como
“identidade regional”.
19
SINGER, Paul. Migrações internas: Considerações Teóricas sobre o seu estudo. In: Economia
Política da Urbanização. São Paulo: Brasiliense/CEBRAP, 1973, pp. 30-60.
9
2 – Inferências sobre as constatações dos deslocamentos pendulares, em
função do mercado de trabalho, com base nos Censos Demográficos
Ressalta-se que, do ponto de vista demográfico, o levantamento censitário sobre as
pessoas que trabalham e/ou estudam fora do município de residência, mostra somente um dos aspectos da migração pendular, pelo fato de não perguntar a periodicidade e a permanência com que as pessoas se deslocam para trabalhar ou estudar, assim como outras dimensões do cotidiano dos trabalhadores (Jardim; Ervatti,
2007) no mercado de trabalho e educacional.
A partir dos diferentes enfoques dos estudos sociais e demográficos da população, a
migração pendular é um fenômeno complexo que está relacionada com as
diferentes mobilidades espaciais da população, em seus diferentes aspectos, entre
eles, principalmente, com:
a) as migrações inter e intrarregionais;
b) a mobilidade cotidiana (migrações cotidianas), mobilidade residencial associada
à estrutura etária, ao ciclo de vida, a fecundidade, a nupcialidade – como elementos constitutivos do espaço vital;
c) a duração (permanência) no lugar de destino e o tempo socialmente necessário
gasto nas atividades realizadas no lugar de destino, entre outros fenômenos
constitutivos da organização social, política e econômica.
d) Os custos dos deslocamentos e os rendimentos auferidos no lugar de origem.
Portanto, analisá-las somente como um simples fenômeno quantitativo de deslocamentos de pessoas para trabalhar ou estudar, num determinado intervalo de tempo,
é reduzir a dinâmica da economia e da sociedade a arranjos institucionais burocráticos voltados para interesses políticos e econômicos, vigentes num determinado
momento histórico. Por exemplo, explicar os deslocamentos populacionais somente
em função do mercado de trabalho e da qualificação dos migrantes e do seu impacto
a estrutura econômica, política e social, em seus aspectos demográficos.
Numa situação específica e empírica, observou-se que, por exemplo na metrópole
do Rio de Janeiro, as desigualdades sócio-espaciais se reproduzem de forma
crescente e acentuadas no interior dos deslocamentos das migrações pendulares,
nos últimos 30 anos, fruto do aumento da concentração de renda em uma minoria da
população, inclusive entre aquela que se desloca para trabalhar e/ou estudar. Esta
10
situação se repete em todos os fluxos migratórios pendulares, independente da
distância percorrida, entre o local de residência e o de destino. Estas constatações
demonstram as condições sociais, econômicas e políticas da população que, numa
sociedade de classes, com forte concentração de renda, as condições de
deslocamento da população onde existe uma centralidade do mercado de trabalho.
Esta dinâmica tem que ser vista como movimento dialético que constrói e destrói,
que cria e recria as condições existentes (Lefebvre, 1999, p.110) no lugar de
residência, independente da localização geográfica, responsável pela produção
reprodução da segregação e exclusão sócio-espacial no interior da metrópole.
A expansão da metrópole, nos últimos trinta anos, contribuiu para o surgimento de
processos de segregação socio-espaciais na chamada periferia metropolitana, entre
as formas de ocupação do espaço metropolitano, cuja dinâmica se evidencia entre a
população de alta renda no chamado “centro” metropolitano, responsável por uma
migração diferenciada social e economicamente, cujos destinos podem ser os
mesmos municípios, mas a sua localização territorial é certamente diferenciada
(Jardim, 2001), inclusive na chamada “periferia” cujas distâncias entre a população
de alta renda tende a diminuir e a se igualar entre os pobres, independente da
localização geográfica. Esta nova configuração metropolitana mostra, em seu
interior, disputa entre a população de alta renda local e os migrantes, em iguais
condições da local, estão associadas ao surgimento de condomínios residenciais,
como indicador da segregação e de distância entre as classes sociais no espaço
metropolitano.
No contexto da região metropolitana do Rio de Janeiro constatou-se que
a maioria daqueles que prestavam serviços, de baixa qualificação profissional (empregados domésticos, vendedores ambulantes, entre outros “profissionais” do desemprego ou
do subemprego) fazia parte do grande contingente da população metropolitana, entorno
de 70% da Força de Trabalho ganhava até 5 SM, em 2000, que se desloca para trabalhar
e/ou estudar no município do Rio de Janeiro, devido à centralidade do mercado de
trabalho metropolitano (Jardim; Ervatti, 2007).
As desigualdades sociais e econômicas também podem ser descritas através do
nível de escolarização das pessoas que trabalham ou estudam em outro município
diferente de sua residência. Constatou-se que as pessoas com mais de 11 anos ou
mais de estudo variavam, em termos percentuais, de 20,4% em Duque de Caxias a
11
84,9% em Niterói, que trabalhavam ou estudavam no município do Rio de Janeiro,
cujos rendimentos médios eram inferiores as pessoas que não se deslocavam, em
iguais condições de educação (Jardim; Ervatti, 2005). Entretanto, no cômputo geral,
os migrantes pendulares possuíam um baixo nível de escolarização e estavam ocupados, em sua maioria (72,4%), na prestação de serviços, na administração, na produção e comércio de bens e serviços. O que nos mostra as condições de pobreza
da maioria dos migrantes pendulares no contexto da metrópole fluminense.
Esses indicadores nos sugerem também que os movimentos da migração pendular
são expressão de diferentes fenômenos do urbano metropolitano e que vão além da
expansão territorial da metrópole, assim como da simples ida e vinda ao local de
trabalho ou de estudo, num município diferente de sua residência. Além do mais,
revelam-nos que as mudanças migratórias intrametropolitanas estão associadas à
mudanças de residência, que em sua maioria, não mantêm o trabalho anterior, uma
vez que se constatou não haver diretamente correspondência, em quase sua totalidade, entre mobilidade residencial intrametropolitana e pendularidade. Além do
mais, estão associados aos movimentos da economia e da sociedade, como
desatacamos, ao longo destas reflexões, cuja importância e intensidade referem-se
à centralidade e as mudanças no mercado de trabalho metropolitano, assim como
da
qualificação
e
requalificação
profissional,
enquanto
principais
centros
educacionais e científicos, responsáveis pela formação de novos profissionais
relacionados à economia de serviços. Portanto, a intensidade da migração pendular
para trabalhar e/ou estudar vincula-se a áreas concentradas de informação técnica e
cientifica que requerem diferentes níveis de divisão social do trabalho, com as suas
diferentes ofertas e demandas no mercado de trabalho e educacional observadas,
indiretamente, pela diferenciação nas condições de renda e educacionais dos
migrantes pendulares no interior da metrópole do Rio de Janeiro. Além do mais, as
mudanças no mercado de trabalho, voltado para a economia dos serviços,
contribuem para criação e expansão de centros universitários, shopping centers,
serviços privados de saúde na chamada periferia, formadores de novos padrões de
vida e de moradia na chamada periferia metropolitana. Estes novos elementos são
essenciais para o entendimento da migração pendular na periferia metropolitana e
de sua diferenciação social e econômica, com reflexos diretos sobre as condições
demográficas e espaciais.
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Na nova configuração metropolitana, advinda das mudanças da economia e da
sociedade, as migrações pendulares não podem ser estudadas isoladamente, por
serem parte constituinte dos fenômenos da mobilidade espacial da população, em
seus diferentes aspectos (Jardim; Ervatti, 2006) e associarem-se: as migrações inter
e intra-regionais, com a mobilidade cotidiana (migrações cotidianas), a mobilidade
residencial, com as interações espaciais, com o espaço vital, com a periodicidade
dos deslocamentos; com a duração (a questão da temporalidade); a pertinência
entre outros fenômenos constitutivos da organização social, política e econômica.
Portanto, analisá-las como somente um simples fenômeno quantitativo de
deslocamentos de pessoas para trabalhar e estudar é reduzir a dinâmica da economia e da sociedade a arranjos institucionais burocráticos, cujos limites são a divisão territorial da população, ao nível municipal, vigentes num determinado momento
histórico.
3 – considerações finais
Ao ressaltarmos que o estudo sobre migrações pendulares passa pela sua inserção
nas mudanças da economia e da sociedade, com implicações na questão regional,
em especial no urbano-metropolitano, ganha novas centralidades. Há que se ter presente que a nova configuração territorial cria e recria novas espacialidades e identidades regionais, que se configuram em expressões traduzidas em novas modalidades de pendularidade migratória em relação às metrópoles e no interior. As mudanças na economia e na sociedade implicam busca de novos parâmetros analíticos e
escalares sobre a migração pendular, especialmente intrametropolitana.
Destaca-se também que as explicações da pendularidade centradas somente nas
condições econômicas e educacionais, levantadas pelos Censos Demográficos brasileiros, não dão conta da complexidade do fenômeno migratório, de sua pendularidade, haja vista que os novos processos societários, advindos das novas tecnologias informacionais e da economia de serviços, geram novas mobilidades da
população que não estão diretamente relacionadas ao mercado de trabalho e/ou
educacional, independente da localização geográfica (seja “centro” ou “periferia”
metropolitana). Entretanto, ressalta-se que a inserção da população no mercado de
trabalho e a sua qualificação e requalificação profissional são indicadores
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importantes para se qualificar o nível de inserção dos migrantes no mercado de
trabalho e o seu nível educacional, assim como as suas condições de
pendularidade. Portanto, à distância, o tempo, a duração, a periodicidade e as
condições de deslocamento (os transportes) são parâmetros importantes para se
medir os custos (sociais e econômicos) e as condições da pendularidade no interior
as metrópoles brasileiras, como também para se redefinir os modelos classificatórios
sobre os deslocamentos da população no interior das metrópoles.
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