O capitalismo financeiro e o caso da dívida argentina Hélio Rodrigues Quase todo mundo agora sabe que o mundo das finanças internacionais não tem lastro confiável e robusto, nem é particularmente justo ou razoável. Mas isso acaba de emergir de modo cabal, se isso já não fosse do conhecimento geral. A recente decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos, recusando-se a ouvir um apelo do governo da Argentina contra uma decisão de um tribunal local em um caso relativo a seu acordo de reestruturação da dívida com os credores mais de uma década atrás, não é apenas um golpe contra o Estado e as pessoas de Argentina. Ele tem o potencial de minar todo o sistema da dívida transfronteiriça que subjaz o capitalismo global de hoje. Vamos lembrar o caso. Este tem suas origens na década de 1990, quando o governo de Carlos Menem fixou o peso argentino, no valor de um dólar americano, através de um fundo de estabilização cambial que restringia base de oferta de dinheiro para a quantidade de reservas externas e procurou aumentar seus gastos através da acumulação de dívida externa. Isto foi obviamente uma estratégia insustentável, que explodiu em uma crise financeira em 2001, trazendo uma grande desvalorização da moeda argentina e um astronômico valor em torno de US$ 100 bilhões de dívida externa. Em 2005, o governo de Nestor Kirchner, que buscava reanimar a economia, em certa medida, ofereceu aos seus credores a conversão da dívida reestruturada de forma significativa em novas dívidas. Estes títulos argentinos foram de qualquer maneira negociados a uma fração de seu valor de face no mercado secundário. Tal acordo, que reduziu o valor da dívida em cerca de 75%, era aceitável para a maioria dos bancos multinacionais e outros credores. Todavia, considerem que os juros não pagos são adicionados ao valor principal e encargos, de maneira que o valor de face real da dívida em tais casos é muito mais do que o montante inicialmente emprestado ou tomado. De qualquer modo, fiquemos com o seguinte dado: os credores titulares de 93% dos títulos do governo participaram da “swaps” de dívida de 2005 e 2010 (1). Apesar disso, a pequena minoria de credores restantes se recusou a aceitar a solução negociada. Eles, então, venderam suas participações para fundos de hedge (neste caso, conhecido como “fundos abutres”, pois comercializam “ativos problemáticos”, na esperança de recuperar um valor mais alto a partir deles). Assim, um dos mais proeminentes desses fundos, no caso argentino, é a empresa NML Capital, uma subsidiária da Elliot Capital Management, que é dirigida pelo bilionário americano e um dos principais doadores do Partido Republicano, Paul Singer (2). Este fundo tem um histórico de táticas agressivas para forçar os devedores a pagarem o valor total das dívidas que, por sua vez, já foram muito rebaixados pelo mercado. No passado, ele processou com sucesso os governos do Peru e da República Democrática do Congo (3). Desde que comprou títulos argentinos, algo ao redor de 20% do valor de face em 2008, aquele fundo tem buscado recuperar, integralmente, o valor dos títulos, tanto “legalmente” como por violência. Em 2012, contratou mercenários para deter e tentar apreender um navio argentino, onde foi ancorado ao largo da costa de Gana; em outro momento ainda tentou pegar o avião presidencial Argentina. Ou seja, a empresa NML Capital e outro fundo abutre, Aurelius Capital Management LP, processaram a Argentina no tribunal distrital de Nova York, exigindo o pagamento integral de sua dívida, no valor de cerca de US $ 1,5 bilhão. Foi estimado pelo governo argentino que isso poderia elevar-se a um retorno de mais de 1600 por cento sobre o investimento inicial feito por esses fundos abutres. Em 2012, o Juiz Distrital dos Estados Unidos em Nova York decidiu em favor dos fundos de hedge, o que era extraordinário na lei e devastador em suas potenciais implicações não apenas para a Argentina, mas para as finanças em geral (ver nota 2. Vide comentários dos professores-economistas de várias universidades americanas). O governo argentino recorreu, mas este apelo já foi julgado improcedente pela Corte Suprema dos Estados Unidos. Considere apenas alguns elementos desta decisão judicial dos Estados Unidos. Primeiro, ele é baseado em uma interpretação peculiar e sem precedentes, inclusive porque a igualdade de tratamento é uma das cláusulas mestras do direito financeiro internacional (que afirma que todos os detentores de títulos iguais na preferência devem ser tratados da mesma forma). Os tribunais internacionais têm interpretado isto para dizer que um devedor soberano/estatal deve fazer o pagamento integral em uma reivindicação de cobrança, ou de execução, se faz todos os pagamentos dos títulos reestruturados. Então, se os detentores de títulos de igual preferência que concordaram em reestruturar 93% da dívida argentina estão sendo pagos de acordo com o novo pacto (da reestruturação), os outros detentores de títulos resistindo também devem ser pagos da mesma forma, tempo e lugar. O efeito imediato disso seria anular os pagamentos que a Argentina fez, algo ao redor de US$ 832 milhões da dívida, aos outros detentores de títulos (que já receberam cerca de 90%), a menos que também pagasse (novamente) os títulos na íntegra. É isso que significa “forçar o país a entrar em default técnico”. No próprio âmbito do bloco dominante financeiro internacional, tal demonstra uma ruptura entre a classe dominante rentista, uma vez que essa decisão judicial americana tem implicações sistêmicas no mercado financeiro internacional. Explica-se: ao anular em termos práticos todos os acordos de renegociação da dívida, não há incentivo para qualquer credor aceitar menos do que o valor total da dívida, se algum outro credor será pago na íntegra. E como dito anteriormente, diversos rentistas sabem que o lucro não é o pagamento do valor principal, mas o recebimento e a dependência dos encargos e juros da dívida. Há uma razão para isso. Nenhum sistema de crédito pode funcionar com risco zero. A possibilidade de “default” é incorporado em contratos de crédito através da taxa de juros, spreads, índices operando como a estimativa da “probabilidade de um default” (4). Portanto, aqueles que são vistos como menos provável de ser capaz de pagar são forçados a pagar taxas de juros mais elevadas, em operações de crédito, tanto formais como informais (5). Em resumo, os credores rentistas exigem receber o pagamento da dívida mediante uma taxa de juros e demais encargos que reflitam a “probabilidade de default”, daí a suposta “razão de ser das agências de riscos”. Eles não querem exigir o reembolso integral, mas “rolar a dívida” para aumentar o valor principal e receber os juros e encargos, uma vez que isso os torna rentistas como profissão. Assim, o caso da Argentina, na verdade, nega os princípios básicos sobre os quais todos os mercados de crédito funcionam, representanto uma disputa no bloco da classe dominante do mercado internacional. Esta é uma razão porque o colunista Martin Wolf, do Financial Times descreveu este caso como “extorsão apoiado pelo Judiciário dos Estados Unidos” (6). As decisões dos tribunais norte-americanos vão mais longe, posicionando-se ao lado desse bloco rentista que se divide, pois determina que quaisquer outros bancos que efetivassem as transações baseadas na reestrutura da dívida argentina teriam (para seus diretores) a prisão decretada por desacato à Justiça americana. E mais, decidiu que o pagamento pela Argentina aos titulares de um vínculo reestruturado denominados em euro também foi ilegal, mesmo que esse vínculo especial esteja sob lei europeia, e não sob a jurisdição dos Estados Unidos. Outra característica extraordinária da sentença judicial é a exigência de que os bancos envolvidos nos pagamentos feitos aos detentores de títulos argentinos devem entregar informações sob tais pagamentos, ainda que isso envolva outros países. Esta é uma grande violação de leis de sigilo bancário em toda parte, inclusive nos Estados Unidos. Ou seja, um tribunal nos Estados Unidos irá se tornar um “centro de informação” que dispensa os espiões tipo Snowden, a web e a agência NSA. Não é nenhuma surpresa que mesmo o FMI e o governo Obama tenham manifestado preocupação com as implicações sistêmicas do presente acórdão sobre o funcionamento dos mercados financeiros, em contraponto ao bloco rentista que se divide. A exigência óbvia da classe rentista será o reagrupamento, sem que isso signifique deixar de perder de alguns anéis e dedos. Provavelmente eles começaram a buscar algum sistema reconhecido internacionalmente de reestruturação da dívida. Ou seja, ao invés de se extirpar a troika, esta mudará para permanecer tudo igual. O bloco irá se recompor, mas as agruras atuais da Argentina e dos países que observam o padrão da austeridade serão secundários nesse processo. Notas: (1) EAVIS, Peter. Ruling on Argentina’s Debt May Give Creditors More Power. DealB%k. 16 Jun. 2014. Disponível em: < http://nyti.ms/1uXRMXu>. Acesso em 30.jul.2014. (2) LIPTAK, Adam. Argentina’s Debt Appeal Is Rejected by Supreme Court. DealB%k. 16y Jun. 2014. Disponível em: Disponível em: < http://nyti.ms/1t6YwBQ>. Acesso em 31.jul.2014. (3) MATHIS-LILLEY, Ben. Let’s Remember the Time a Hedge Fund Seized the Flagship of Argentina’s Navy. The Slatest, 16 Ju. 2014. Diponivel em: http://slate.me/1sJDTy0. Ou ainda em: KOKUTSE, Francis. Seized Argentine ship remains in Ghana. The Big History, 5 oct. 2012. Disponível em: <http://bit.ly/1m2je0O > e WEISENTHAL, Joe. A Hedge Fund Has Physically Taken Control Of A Ship Belonging To Argentina’s Navy. Business Insider, 4 Oct. 2012. Disponivel em: http://read.bi/1oOXgyf. (4) CHESNAIS, François. et al. Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Cemarx IFCH-UNICAMP, 2003. (5) BELUZZO, Luís Gonzaga. Modelo econômico impede melhorias das políticas públicas. Comciencia,[S.L.], 10 out. 2002. Disponível em: < http://bit.ly/1uBToso>. Acesso em:26 jul. 2007. E ainda: POCHMANN, Márcio. Dívida estrangula orçamento de 2007. Brasil de Fato. São Paulo, [2006?]. Disponível em: <http://bit.ly/1pRnB2r>. Acesso em: 3 mar. 2007. (6) WOLF, Martin. Defend Argentina from the uultures. Financial Times, 24 Jun. 2014. Disponível em: < http://on.ft.com/1l8Uvx0>. Acesso em 31.jul.2014.