~-~-----~ ( 1999). "Táticas do povo brasileiro: A revolta dos qucbra~quilos ainda continua". Anais do li/ Seminário de História de Matemática. Vitória: SBHMat. _____ (2005). História, etnomatemática e prática pedagógica. Rio Claro: SBHMat. 18 O LUGAR DE TODO MUNDO: PONTO DE PARTIDA PARA O ENSINO DE GEOGRAFIA Samira Peduti Kahil Em nossa época, deparamos cada vez mais com problemas que, em última instância, são de natureza filosófica. Hoje, mais do que nunca, todos somos forçados a ser uma espécie de filósofos. Vivemos uma época em que o que eram problemas filosóficos são agora problemas que dizem respeito a todos. No entanto, no atual período de globalização, vivemos em um mundo minado pelo contexto dos chavões e da banalidade ele uma cultura predominantemente pós-moderna, período em que a sociedade contemporânea parece ter mergulhado num esquizofrênico individualismo, exacerbado pela cultura da eficácia e do sucesso, do pânico e da concórdia, do consumo e do espetáculo; uma cultura que, por meio da falácia do "multiculturalismo de hoje, tende a ver qualquer cultura como uma diferença particular, exceto ela mesma, e a tolerar tudo, menos a crítica" (Zizek e Daly 2006, p. 8; grifas do autor). Diante deste mundo assim refeito, mais do que nunca é preciso estender o raio de nossas responsabilidades; nunca antes a reflexão constituiu tanto uma obrigação iniludível; diante deste mundo assim refeito, a problemática da 300 Papirus Editora Sala de aula: Ensino e aprendizagem 301 geografia pode ser abordada particularmente segundo três direções: os novos horizontes do mundo, os novos desafios à fmmação do saber geográfico e os temas possíveis - tudo buscando atualizar o conhecimento geográfico para que possamos tomar atuais as abordagens e os temas das aulas de geografia. Desvendando os horizontes do mundo Durante muito tempo consideramos nosso planeta o centro do universo. Que significado terá tido não mais nos considerarmos dotados desse privilégio e havermos reconhecido que todos dividimos um planeta esférico do sistema solar, que, por sua vez, é apenas uma pequena parte de sistemas maiores? Graças ao desenvolvimento vertiginoso da ciência e da técnica no século XV, ampliou-se, alargou-se o horizonte geográfico da humanidade, e, no século XVII, enquanto a Tena era mensurada por meio do cálculo da distância entre os astros e o contorno dos oceanos se fazia mais preciso, que significado não terão tido essas novas aproximações para nossa concepção de realidade? No século XX, pela primeira vez na história, tivemos acesso à visão do planeta inteiro. E quão imperiosa não foi a advertência sobre a dependência especial em que estão envolvidos todos os fenômenos físicos do ponto de vista do observador? Quão imperiosa não foi também a advertência que recebemos, em nossa época, sobre a relatividade de todos os juízos humanos? (Bohr 1995, p. 30). Hoje, diante das intervenções da biogenética, nos confrontamos com perguntas referentes ao livre-arbítrio, à idéia de natureza e do ser natural; o que é a dignidade humana e onde fica a responsabilidade moral? - todas essas questões historicamente são indagações filosóficas (Zizek e Daly 2006, p. 70). Como nunca antes, e cada vez mais, deparamos hoje com problemas filosóficos no cotidiano. Não que devamos nos retirar da vida cotidiana para um mundo de contemplação filosófica - ao contrário, não há como achar o caminho, na própria vida cotidiana, sem responder a certas perguntas filosóficas, porque, diante das descobertas e das possibilidades abertas pelos progressos científicos e técnicos, as estruturas do que existe se transfmmaram, a começar pelas novas formas de oposição entre essência e aparência. 302 Papirus Editora Essas são duas atitudes filosóficas fundamentais, tranqüilamente associadas num espírito científico moderno: o racionalismo e o realismo (empirismo). Os racionalistas do século XVII achavam que as respostas podiam ser encontradas por uma espécie de intuição metafísica, um a priori, uma aplicação especial da luz da razão de que todos os homens eram dotados. Os empiristas do século XVIII, impressionados com os vastos novos reinos do conhecimento - abertos pelas ciências naturais baseadas nas técnicas matemáticas que tinham eliminado tanto eno e tanta superstição -, perguntavam se os mesmos métodos não teriam sucesso em estabelecer semelhantes padrões de observação, formulação de hipóteses passíveis de serem testadas, leis irrefutáveis também no reino dos assuntos humanos. (Barnes 1974). Os pensadores do século XIX - Hegel e Marx - deram grandiosa contribuição, mostrando que não era tão simples assim não havia verdades eternas. Havia desenvolvimento histórico (Bohm 1992). Hoje, pela ótica do princípio da complementaridade de Bohr, fmmamos uma idéia de realidade na qual nem os fenômenos, nem as teorias são tratados como uma realidade objetiva e independente, pois "existe um elemento arbitrário implícito no conceito de observação ... " (Bohr 1995, p. 34 ). Daí decorre todo o propósito de incluir a participação do observador no processo de avaliação de um fenômeno, levando as ciências da natureza a se complementarem com as ciências da psique e, de agora em diante, o ato de observação ser sempre um ato de integração entre o objeto do mundo externo e a consciência do observador e a "realidade", uma "realidade psicofísica" ou "realidade plena", como nos dizia Wolfgan Pauli (Campos 2002, p. 200). É preciso conhecermos os novos paradigmas que hoje derrubam os modelos deterministas cartesianos, newtonianos, que nos descreviam um mundo sólido, bem estruturado, em que a maioria das coisas era previsível e a ação provocava uma reação igual e contrária; é preciso sairmos do comodismo que essas leis universais nos ofereciam e nos inteirarmos das idéias para um novo mundo que se afigura com as descobertas de Einstein, Heisenberg, Bohr, e abrirmos a possibilidade de uma nova visão de mundo. Sala de aula: Ensino e aprendizagem 303 Hoje, filósofos arriscam-se mesmo a dizer que "a questão não é que o Real seja impossível, mas que o impossível é Real - a questão é que podemos encontrar o Real" e isso nos é difícil aceitar; encontrar o próximo é um desafio e portanto elevemos nos encorajar e arriscar o impossível (Zizek e Daly 2006, p. 89). Em nossa ciência, para a geografia é Milton Santos quem nos oferece uma filosofia elo espaço geográfico, uma teoria ele tal natureza que permite, àqueles cientistas com coragem radical e rigorosa e que não se rendem às análises fáceis, abrir a perspectiva ele atingir a essência elo mundo, sem que às idéias gerais falte a solidez elos casos particulares. Sua proposição teórica é assim, ao mesmo tempo, um método e uma explicação. A preocupação fundamental e todo o seu empenho como pensador se concentram na elaboração ele uma reflexão metageográfica que esteja à altura elos problemas que a humanidade levanta hoje. Neste novo mapa elo mundo filosófico, as idéias-conceitos, os sistemas ele conceitos, estão crítica e criativamente fundamentados em outras premissas, outras racionalidades; um saber alternativo, um investimento reflexivo, ( ... ) tensamente posicionado na fronteira entre a certeza e a incerteza, já que é nesta fronteira que germinam as forças de transformação da realidade imediata. Este mapa nutre a instrução e a imaginação, abrigando tanto leituras apaziguadas, que se contentam com o conhecimento, como leituras disruptivas, que se movem pelo anseio da criação e da ampliação socialmente útil do conhecimento. (Ribeiro 2004, p. 40) Nossa época, cheia de paradoxos, ele difícil visibilidade e de definições complexas, desafia nossa capacidade de entendimento e conceituação. Durante séculos caminhamos do desconhecido ao conhecido; e agora fazemos a viagem em sentido inverso, do conhecido ao desconhecido: nada nos escapa e, no entanto, tudo nos escapa. A histórica oposição entre o conhecido e o desconhecido, entre a essência e a aparência, entre o ideológico e o real é hoje uma oposição entre o Mundo e suas imagens que podem ser fabricadas e impostas como se elas fossem o Mundo. (Santos 1995, p. 1.077) 304 Papirus Editora Os novos desqf'ios à formaçclo do saber geográfico Nas condições elo mundo contemporâneo, em que o extremo realismo das imagens veiculadas pela mídia substitui o real, procurando mostrar as coisas sem nenhuma mediação teórica, isto é, sem nenhum exercício de pensamento, como se o existente fosse despojado de sua essência e a realidade fosse destituída de sua idéia, o embaralhamento da visão e da compreensão se dá, exatamente, na impossibilidade de discernir o real e o virtual (Matos 2006, pp. 30-31 ). Assim, perdemos o sentido do nosso estar no mundo, o sentido de lugar. Encontramo-nos desorientados, porque desamparados racionalmente; urge estender o raio de nossas responsabilidades, e, mais do que nunca, a reflexão constitui uma obrigação iniludível. A recusa de um debate mais geral, a recusa do pensamento filosófico, do pensamento crítico produz uma conformidade na sociedade. Isso também se deve à distorção do processo de educação. Da aquiescência sem crítica à ciência que tudo faz sem se perguntar se tais práticas são justas e desejáveis - uma vez que todas as decisões econômicas e políticas passam por soluções técnicas-, resulta um processo em que a cultura, que queria significar reunião de um povo educado e humanus, abandona o ideal de reflexão, contemplação e autonomia do pensamento, para se estabelecer sob os auspícios da mídia, que proscreve o esforço intelectual em nome da "facilidade" e exalta o mercado como sucedâneo da busca de felicidade (Matos 2006, p. 21 ). No curso dessa "tragédia", a racionalidade científica acentuou ainda mais o seu caráter fragmentário e instrumental; a democracia como esforço conjunto ele ações e deliberações foi substituída por lobbies e pelo monopólio das informações disponíveis na mídia. Intimamente relacionadas essa tecnociência e a mídia, tudo corrobora para que o indivíduo, por elas e para elas "formado", não tenha pensamento próprio, o que o exime de responsabilidade (indiferença moral), o torna passivo e apático politicamente. Então, há um desdobramento ela finalidade do ensino, que é dado como se a técnica - e não a humanidade - fosse o centro do mundo. A dimensão central do ensino é ensinar a ser Homem. O ensino da técnica Sala de aula: Ensino e aprendizagem 305 apenas como uma forma de fazer é um convite à ausência de crítica ao que existe ao nosso entorno (Santos 1997). Mas, o mais das vezes, subsumidos que estamos à racionalidade técnica e instrumental, com ligeireza nos desfazemos da tarefa de pensar criticamente, isto é, recusamo-nos a nos colocar diante do que existe a partir de um nível mais alto de abrangência, o que nos garantiria uma visão totalizadora das coisas e permitiria que enxergássemos diferentes caminhos e não um só. É preciso aceitarmos a lição que nos deram as ciências e a filosofia do último século de que as questões de método das ciências são questões históricas. Ora, desde que o mundo muda, o método de interpretação do mundo - as idéias - deve também mudar. Não há, então, um método a priori, e a geografia, ou melhor, os geógrafos devem constantemente buscar métodos próprios, capazes de contribuir com a explicação do mundo. Daí estarmos propondo uma discussão sobre as noções e os conceitos de espaço geográfico, à luz dos movimentos e das características fundamentais que, hoje, cada vez mais ampliada e aceleradamente, transformam o mundo, o pensamento científico e o pensamento geográfico em particular. O que importa discutirmos é do que se constitui o espaço geográfico hoje e qual a pertinência neste momento do trabalho do geógrafo, do professor de geografia. Uma disciplina é uma parcela autônoma, mas não independente do saber geral. O mundo é um só e é o mesmo para todas as disciplinas ... para a biologia, a física ou a química, para a história ou para a economia ... O importante então é sabermos muito bem quais são as categorias analíticas e os instrumentos de análise que, como nas demais disciplinas, constituem a centralidade do método. Vamos partir da mais antiga definição de espaço geográfico: o espaço geográfico é um meio, dado pela forma de relação entre o homem e a natureza. Essa cisão entre homem e meio, sociedade e natureza, desde o princípio, quando a geografia ainda nem procurava explicitar suas questões 306 Papirus Editora de método, constituía um problema porque, preguiçosa epistemologicamente, a geografia tomava sempre emprestado o método ora das ciências naturais, ora das ciências exatas e mais recentemente ela própria sociologia; houve até um momento em que a geografia se considerava o chão da história. Entrar no debate epistemológico das ciências implica sabermos muito bem quais são as categorias analíticas e os instrumentos de análise que constituem a centralidade do método. Com uma perspectiva geométrica do mundo, produzimos uma geografia cujos instrumentos ele análise elo espaço eram a determinação, a classificação, a diferenciação das coisas. Desta perspectiva, preocupavamse os geógrafos muito mais com a forma, com· a localização das coisas já cristalizadas no espaço; mais com a forma que com a dinâmica social que cria e transforma as formas- daí uma imagem invertida que impedia aprender a realidade do espaço geográfico porque, exatamente na relação homemnatureza, não se fazia intervir a história (Santos 1977). Então, trabalhava-se de modo dual: de um lado, a sociedade, de outro, a natureza; de um lado, o tempo, e de outro lado, o espaço; uma geografia física de um lado e, de outro, uma geografia humana. As ciências particulares evoluem por desenvolverem seus próprios métodos -e evoluem também quando há avanços nas outras ciências. Mas a geografia despertou tardiamente para as questões epistemológicas, e os instrumentos de análise de que dispunham os geógrafos eram aqueles mesmos das ciências naturais e físicas principalmente; foi então preciso que as ciências em geral se desenvolvessem e que a geografia despertasse e entrasse no debate geral das ciências para encontrar sua vocação, seu estilo, sua linguagem, e poder se renovar (Dosse 1994, p. 352). É bom lembrarmos que a geografia, como tantas outras disciplinas, trabalha com palavras. Mas as palavras, tão maltratadas em nosso desvalido país, ficam as mesmas, enquanto o mundo muda. Daí o eterno trabalho de revisão elos conceitos, isto é, dos significados das palavras. O que consideramos hoje espaço geográfico, região, lugar, território não pode possuir o mesmo significado que tinha ao tempo de Vida! de La Blache (1911) ou de Maximilian Sorre (1948), entre outros grandes pensadores de nossa ciência. Sala de aula: Ensino e aprendizagem 307 E não são eles que perderam importância, absolutamente não! Foi o mundo que mudou e mudaram as variáveis, os elementos, as estruturas, as funções do espaço geográfico no mundo contemporâneo. geografia cuja perspectiva sustente nosso pensar em termos de tendência, possibilitando-nos apreender e atribuir significado aos eventos presentes e também às ausências - àquilo que não é dado no fluxo da vida diária. A dificuldade da participação da geografia nas interdisciplinaridades vem do fato de que raramente o geógrafo sabe o que está fazendo. Não vivemos nos perguntando do que trata a geografia? Para estabelecermos o alargamento do pensamento científico é preciso que reconheçamos o real como um caso particular elo possível. Se não somos capazes de oferecer às outras disciplinas uma visão clara da sua pertinência, se não somos capazes de oferecer os instrumentos analíticos e um sistema claro de referências pertinentes ao objeto de nossa ciência, todo debate se torna impossível e todo o ensino da geografia fica comprometido. Porque a única maneira de ser franco e ficar exposto à crítica é afirmarmos de maneira clara nossas premissas. Consideramos ser de extrema arrogância essa postura de aparente modéstia multidisciplinar que propõe combinar coisas, pegar um pouquinho de cada pensador e pensar hipoteticamente (Zizek e Daly 2006, p. 60). A possibilidade de transcendermos as dualidades viciosas na geografia foi sendo discutida e elaborada à medida que se fez intervir a história, isto é, o tempo histórico. Mas como tratar o tempo sem cair na armadilha da cisão tempo/espaço? Para respondermos, vamos partir de uma teoria geral; a teoria proposta por Milton Santos ( 1996), que considera o espaço geográfico um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações. Essa teoria é, para mim, uma referência, um sistema de conceitos muito vantajoso para uma análise crítica e rigorosa do mundo; sem ser um sistema fechado de preferências ou referências cristalizadas, penso tratarse de um ponto de partida para o entendimento de situações geográficas que hoje se nos colocam o mundo e o lugar. O espírito científico não pode se contentar em pensar o mundo nos seus traços salientes; é preciso que ele pense todas as possibilidades, o que reforça a concepção de "totalidade". Assim, o que buscamos é a elaboração de um pensamento que seja uma contribuição à sociedade e à ciência geográfica, de modo que possa derivar de fatos isolados a compreensão da estrutura maior de uma sociedade ou de um período- isto é, os aspectos principais que afetam toda a sociedade moderna e contemporânea. Insistimos ser nosso nosso ponto de partida o espaço geográfico e partimos, para ainda dar outra definição de espaço geográfico, do espaço banal, espaço de todas as pessoas, de todas as empresas, de todas as instituições, capaz de ser descrito como um sistema de objetos animado por um sistema de ações (Santos I 996). Com tal preocupação epistemológica totalizadora, "tempo e espaço são realidades históricas - são a sociedade humana em processo, isto é, realizando-se, e essa realização se dá sobre uma base material: o espaço e seu uso; o tempo e seu uso; a materialidade e suas diversas formas; as ações e suas diversas feições" (Santos 1996, p. 44). Assim considerando, evitamos nos deixar enredar pela oposição tão grosseira e tão mal definida entre espaço e tempo, sociedade e natureza, ou outras tantas dualidades que na geografia viciosamente se acostumou a adotar. Portanto, assim como não se pode reduzir a observação às percepções sensoriais, não obteremos respostas satisfatórias às nossas questões baseando-nos apenas em uma interpretação do aspecto racional da realidade. Nesse sentido, exorcizando toda tentação dualista, nossas propostas de análise do espaço geográfico têm procurado superar a distância entre espaço e tempo, definindo-os com base nos mesmos elementos e adotando os mesmos parâmetros, isto é, considerando espaço e tempo como uma realidade unitária. O que temos buscado em nossas pesquisas e em nossas aulas é o nexo formativo de particularidade local e alcance geral, isto é, o que buscamos é conduzir a análise e deixarmo-nos conduzir por ela, instituindo a possível liberdade de tudo solicitar, desde o mais minucioso evento ao mais universal pensamento. Assim é que persistimos na busca de uma Importa, portanto, considerarmos tempo, espaço e mundo como realidades históricas, mutuamente conversíveis; é "por intermédio das técnicas que o homem, no trabalho, realiza essa união entre tempo e espaço e portanto é por intermédio do fenômeno técnico que podemos trabalhar o espaço geográfico como tempo empírico" (Santos 1996, p. 44). 308 Papirus Editora Sala de aula: Ensino e aprendizagem 309 Entendendo por sistemas técnicos o conjunto das técnicas que a cada momento vêm constituir a base material da vida das sociedades, e considerando-os, além disso, representativos da forma como, em cada época, uma sociedade compartilha o espaço, podemos dizer que os sistemas técnicos sucessivos nos permitem o entendimento das diversas formas históricas de estruturação, funcionamento e articulação dos territórios. A evolução dos sistemas técnicos se processa na sucessão, nas consecuções e nas sobreposições de conjuntos. Esses conjuntos técnicos dão ao espaço a força de testemunho das realizações históricas, a um só tempo, passado, presente e futuro. Definido assim o tempo pelas coisas, pelo modo como fazemos, pelas possibilidades de fazer que nos são abertas, ele deixa de ser tratado de forma abstrata e somente assim o empiricizamos através da ação no mundo - e a ação envolve sempre uma extensão. Assim é que podemos tratar o tempo histórico a partir do espaço e dar conta do movimento, das dinâmicas e das permanências, da forma e do conteúdo do espaço geográfico, enfrentando a questão da totalidade do mundo e do lugar. Novos temas na sala de aula de geografia Mas como enfrentar a totalidade - o mundo -, todas as coisas e a ação de todo mundo? Como enfrentar essa árdua tarefa? Afinal, o que é o mundo, essa totalidade fugaz que está sempre se desfazendo e se refazendo, renovando-se, tornando-se um novo todo a cada momento, a cada evento? Vamos tomar como premissa o espaço geográfico como espaço banal, espaço de todas as ações indissociavelmente do conjunto dos sistemas de objetos todo o espaço. Mas como apreender e compreender esse todo e fazê-lo coincidir, transcender sem transgredir, atTiscar a aproximação do real concreto? Segundo Karel Kosik (1976, p. 30), "para que possa conhecer e compreender esse todo, para que possa torná-lo claro e explicá-lo, o homem tem que fazer um detour: o concreto se torna compreensível através da mediação do abstrato, o todo através da mediação da parte". 310 Papirus Editora Então, como nos diz Milton Santos (1996, pp. 95-96), ( ... ) a primeira noção a levar em conta é a de que o conhecimento pressupõe análise e a segunda noção essencial é a de que a análise pressupõe a divisão. (...) Essa é a história do mundo, do país, da cidade. ( ...) Pensar a totalidade, sem pensar sua cisão é como se a esvaziássemos de movimento, isto porque, segundo G. Gurvitch (Chaiers de Sociologie, 1971), não há para Sartre totalidades estáticas, mas totalidades em movimento, num incessante processo de totalização. Assim é que uma geografia renovada abre as possibilidades de pensarmos, munidos de um espírito crítico e criativo, temas de sala de aula de geografia, considerando o processo histórico atual, estabelecendo relações entre o lugar, a formação do socioespacial e o mundo, trabalhando o espaço geográfico como sinônimo de território usado, que é tanto o resultado do processo histórico quanto a base material e social das novas ações humanas (Bernardes et al. 2000, pp. 2-3). Nessa perspectiva, Santos ousa ainda dizer que ( ... ) o mundo não existe (... ) são os lugares que realizam e revelam o mundo, tornando-o historicizado e geograficizado, isto é, empiricizado. O lugar é, pmtanto, uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade. (1996, p. 258) Daí que os temas de sala de aula de geografia devam ser os nexos (lógicas, normas, ordens) que, adrede estabelecidos, orientam a instalação e o adensamento dos sistemas de objetos e ações nos territórios nacionais. Essas lógicas hegemônicas (das empresas, dos mercados e do sistema financeiro mundial) unificam o lugar ao mundo- unificação possibilitada hoje pelo desenvolvimento das forças produtivas (técnica, ciência e informação) e pelo modo de desenvolvimento do capitalismo, que hegemonicamente comanda e administra esses sistemas técnicos num processo cuja abrangência mundial nos autoriza a nomear o período atual como "técnico-científico informacional" (Santos 1996). Sala de aula: Ensino e aprendizagem 311 Com base na análise de temas mundiais como globalização, sistemas de ações hegemônicos, economia e políticas mundiais (empresas e instituições) que se realizam em territórios nacionais, podemos propor aulas sobre a ordem, as desordens, a integração e a fragmentação do território da nação. O que é federação? Diante das normas e ordens desses verdadeiros governos mundiais, como ficam a autonomia e a soberania nacional? Como as instituições e empresas mundiais se aliam às políticas nacionais para usar, segundo seus próprios interesses, o espaço da nação, território de todos, território da nação? No Brasil, tanto o território nacional, quanto os estados da federação, assim como as metrópoles ou mesmo as pequenas cidades são exemplos das situações geográficas que podemos tomar para análise do desigual uso que se faz do território nacional. Daí outros temas podem ser desencadeados, como a integração/fragmentação do território nacional ou a guerra fiscal, que deve ser trabalhada por nós, geógrafos, como guerra entre os lugares -de um lado, o Estado sendo transformado em demônio e responsabilizado pelos gastos, e, de outro, as corporações acumulando ganhos, com as isenções de impostos municipais, estaduais ou da esfera federal. É todo um sistema muito bem articulado de ações orientadas que se impõe pela criação de uma ideologia da competitividade e do crescimento econômico sem limites, e que pressupõe um forte entrosamento e uma robusta influência nas estruturas de poder político, tanto em escala nacional quanto em escala municipal. Entre as estratégias das corporações empresariais para uso eficaz do território como recurso, a promoção de políticas territoriais de desconeentração, especializações produtivas regionais, arranjos produtivos locais é muito representativa da parcialidade dos sistemas de ações globais. Toda essa orquestração (total administração) bem-sucedida entre corporações privadas e poder público resulta de um labor intelectual precedente da criação de uma tecnoesfera - novos sistemas de engenharia e de movimento (sistema rodoviário, aeroviário, pmtuário; sistemas de distribuição e transmissão de energia etc.) generosamente financiados pelo Estado e de uma psicoesfera, em que o novo, o moderno, a idéia de crescimento e desenvolvimento são pervertidamente realizados. O território da nação, território de todos, cujo cimento são a cultura e a política (como projeto de nação), esfrangalha-se diante da divisão 312 Papirus Editora desigual da riqueza c da exclusão cultural às quais está submetida a sociedade brasileira. E a questão das privatizações do território, via privatização das águas, das estradas, das nossas praias? Reservas de recursos, para quem? Quem usa o territó1io? Território de quem? Gigante pela própria natureza? Para quem? Para você refletir: O Brasil ainda hoje dispõe de um território fisiograficamente diferenciado, com uma grande variedade de sistemas naturais sobre os quais a história foi-se fazendo de um modo também diferenciado. Durante pelo menos três séculos, o povoamento do Brasil se dá mediante uma contribuição relativamente pequena de recursos da técnica atuando como resposta às solicitações da ação humana oferecida pela própria natureza (relevo, vegetação, hidrografia, solos etc.). Um novo período se inaugura com a expansão das técnicas das máquinas instaladas para o desenvolvimento da atividade canavieira e mais tarde (meados do século XIX) com a introdução das estradas de ferro, da navegação avapor, da mecanização dos portos, do telégrafo. O século XX confirma a tendência a uma vocação industrial que já se vinha revelando, e os sistemas industriais vão se instalando no território brasileiro combinando o tamanho das populações concentradas (Rio de Janeiro, São Paulo), os transportes para circulação das mercadorias (Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul), o crescimento e o dinamismo das cidades (São Paulo), elementos e variáveis que vão conferir primazia à região sudeste e assegurar a São Paulo um papel incontestável de metrópole econômica do país. É sobre esse território, com essa herança do passado (rugosidades), que os novos processos se realizam. A dinâmica do atual processo de globalização não apaga os restos do passado, mas modifica seu significado e acrescenta outros. Agravam-se as diferenças e disparidades, devidas, em parte, aos novos dinamismos e a outras formas de comando e de dominação. Se, num primeiro momento, o tempo das ações (atividades) e da dinâmica do território era regido pelo tempo da natureza e depois pelo tempo das máquinas, isto é, se o motor que impulsionava os sistemas de ações era a indústria, qual é hoje, em face da nova dinâmica da globalização, o motor que rege, dinamiza e diferencia o uso do território brasileiro? Considerando "território" como a dimensão política do espaço da nação, e o meio geográfico como um conjunto de sistemas de objetos artificiais e naturais - que só importam para o geógrafo na medida que os associa aos sistemas de ações (instituições, empresas, sociedades organizadas ou não) que usam de forma diferenciada o meio geográfico-, quais elementos, quais variáveis, quais eventos, deve o professor de geografia tratar hoje na sala de aula para ensinar as diferenças entre lugares ou regiões? Sala de aula: Ensino e aprendizagem 313 Referências bibliogrc(ficas BARNES, Barry (1974). Scient({ic knowledge an social theory. 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