Fábio da Silva

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VII Colóquio Internacional Marx Engels
GT 2 - Os Marxismos
Mesa Redonda: Teorias da ideologia: elementos para uma crítica
contemporânea
Coordenador: Prof. Dr. Stefan Fornos Klein
O conceito de “caráter social” na obra de Erich Fromm nos anos 30
Fábio Pimentel De Maria da Silva –
Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo
E-mail: [email protected]
Resumo
Sobressaem-se as perspectivas teóricas que resultaram do encontro entre o materialismo dialético
e a psicanálise freudiana por tomar a análise do processo histórico e da totalidade social como parte
fundamental de qualquer investigação que se pretenda crítica do capitalismo, ao mesmo tempo em que
concedem grande importância ao modo pelo qual o fenômeno da alienação repercute nas consciências
individuais. Ao longo da pesquisa da qual este texto é uma amostra, temos buscado acompanhar o
surgimento e o emprego do conceito de “caráter social” nas obras produzidas nos anos trinta do século
XX pelo Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt. Aqui, por razões de espaço, limitar-nos-emos a
algumas indicações acerca da obra de Erich Fromm.
Palavras-chave: marxismo; psicanálise; Erich Fromm.
I)
Introdução – o indivíduo como instância de investigação social
Embora a consideração da totalidade das relações sociais seja a nota distintiva
do marxismo, como apontou Lukács no famoso ensaio metodológico de História e
Consciência de Classe (“O Que é o Marxismo Ortodoxo?”), isso não exclui de maneira
alguma do horizonte da Teoria Crítica a compreensão das formas de subjetivação que
têm no indivíduo sua instância específica de realização.
Como demonstrou Adam Schaff (1967) em extenso comentário à obra de Marx,
o indivíduo ocupa aí lugar de relevo, não só em virtude da consideração do trabalho
como processo social através do qual o indivíduo transforma a História e a si mesmo,
mas também por estarem as relações sociais capitalistas em flagrante contradição com
as promessas de autonomia individual que marcaram os séculos XVIII e XIX. Essa
preocupação está explícita na tematização acerca do processo de alienação feita por
Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos e, além disso, e embora cada vez mais
despida da linguagem de origem hegeliana e feuerbachiana, tal problemática se faz
presente pelo empreendimento intelectual marxiano afora, com destaque para as
relações entre indivíduo e História, dissecadas em A Ideologia Alemã, e para a análise
do fetichismo da mercadoria, feita no volume I d´ O Capital. A permanência da questão
atesta a continuidade entre as diferentes fases da obra de Marx, tal qual argumentou
José Paulo Netto (1981).
No que diz respeito ao indivíduo como objeto de investigação, sua importância
reside no fato de que, por ser produto e agente transformador das condições sociais, sua
análise é capaz de nos revelar a sociedade:
“As premissas de que partimos não são bases arbitrárias,
dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na
imaginação. O primeiro pressuposto de toda história humana é,
naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos. São os
indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de
existência, tanto as que eles já encontraram prontas, quanto
aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são pois
verificáveis por via puramente empírica.
A primeira condição de toda a história humana é,
naturalmente, a existência de seres humanos vivos. A primeira
situação a constatar é, portanto, a constituição corporal desses
indivíduos e as relações que ela gera entre eles e o restante da
natureza” (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, 2001: 10) .
Isso não quer dizer, é claro, que a análise marxista deva trilhar os mesmos
caminhos do individualismo metodológico: o nível individual da análise deve ser
considerado em sua relação dialética com os âmbitos propriamente sociais e históricos
aos quais o indivíduo está vinculado. As premissas materialistas que a análise
sociológica marxista deve observar impõem que as representações individuais sejam
vistas como mediações entre práticas sociais particulares e conteúdos ideológicos
dotados de amplitude generalizada. Isso quer dizer que, para compreender a origem das
representações individuais, não basta filiá-las a este ou aquele contexto ideológico, mas
remontá-las às práticas sociais concretas e totais às quais os indivíduos tomados como
objeto de investigação estão vinculados. Foi mais ou menos dessa maneira que Max
Horkheimer, em sua conferência de posse da direção do Instituto de Pesquisas Sociais
de Frankfurt, proferida em 1931, formulou a tarefa principal de investigação de uma
teoria crítica da sociedade:
“quais conexões é possível apurar – num determinado grupo
social, num período determinado, em determinados países –
entre o papel desse grupo no processo econômico, a
transformação ocorrida na estrutura psíquica dos seus membros
singulares e os pensamentos e as instituições que agem sobre
esse mesmo grupo, como totalidade menor no todo da sociedade,
e que são por sua vez o seu produto?” (Horkheimer, 1999: 131)
II)
Marxismo e Freudismo
O fracasso dos levantes proletários empreendidos na Europa durante as décadas
de 10 e 20 constituiu o principal impulso para a aproximação entre marxismo e
psicanálise.
Como
um
proletariado
numeroso,
razoavelmente
organizado
e
crescentemente explorado podia assumir posições políticas que, tendendo notoriamente
para a direita, favoreciam a repressão dos interesses de sua classe em nome de
ideologias nacionalistas? A presença de um elemento à primeira vista irracional nessa
consciência de classe levou alguns intelectuais a buscar na psicanálise um referencial
teórico capaz de desvendar as relações entre ideologia e condições materiais de
existência. Ao mesmo tempo, o recurso à psicanálise constituía uma tomada de posição
teórica importante num momento em que o marxismo soviético pretendia excluir a
psicanálise do elenco das ciências materialistas, adotando como referencial para o
estudo do psiquismo a reflexologia de Pavlov, de escopo muito mais limitado.
As semelhanças entre o marxismo e o freudismo são bastante fortes. Em
primeiro lugar, tanto o materialismo dialético quanto a psicanálise, ao tomarem como
ponto de partida seja o modo de produção, sejam as pulsões psíquicas, possuem um viés
materialista que lhes é essencial. Em segundo lugar, ambos tratam a consciência
individual como algo subordinado a instâncias superiores, sejam elas o inconsciente,
sejam as ideologias, de caráter histórico e social. Em terceiro lugar, a crítica, seja das
contradições sociais, seja do estado de sofrimento psíquico, é remetida ao conhecimento
de suas origens mais profundas.
A tarefa que Erich Fromm atribui à sua “psicologia social analítica”, em artigo
programático intitulado “Sobre Método e Função de uma Psicologia Social Analítica”
[Über Methode und Aufgabe einer Analytischen Sozialpsychologie], é reveladora da
conjunção de ambas as correntes teóricas: “a psicologia social deve explicar as
disposições anímicas e as ideologias comuns (socialmente relevantes), e principalmente
suas raízes inconscientes, a partir do efeito das condições econômicas sobre os anseios
libidinais” (Fromm, 1999: 46).
Por outro lado, entre a psicanálise freudiana e o materialismo dialético há
diferenças essenciais, que foram tematizadas pelos “freudo-marxistas” em sua crítica a
Freud: o pai da psicanálise absolutizaria a cultura burguesa ao tratar como biológicos
fatos cuja verdadeira origem seria histórica. Disso resultaria o pessimismo cultural de
seus últimos textos (especialmente “O Mal-Estar na Civilização”), assim como a
ausência de elementos utópicos em sua obra (não obstante seu caráter revolucionário
enquanto teoria). Na verdade, argumentam os freudo-marxistas, as neuroses têm de ser
compreendidas em sua origens coletivas, e a repressão sexual não pode ser tematizada
sem recurso à questão da exploração de classe: o “aburguesamento” da classe operária,
através do acolhimento de uma moral sexual repressora, seria a condição para que essa
classe não entre em colisão com os interesses da classe dominante.
III)
O conceito de “caráter social”
É num artigo de 19321 que Erich Fromm detalha a proposta de uma
1 "Psychoanalytische Charakterologie und Sozialpsychologie” [Caracterologia Psicoanalítica e Psicologia
“caracteriologia psicoanalítica”, cuja tarefa seria “compreender certos traços de caráter
como sublimação ou formação reativa de determinados impulsos sexuais (no sentido
amplo empregado por Freud), ou então como continuação de certas relações objetais
subordinadas a esses impulsos e iniciadas na infância” (Fromm, 1999: 59). Tais
impulsos sexuais, segundo a teoria freudiana, seriam, em parte, do tipo genital, e, em
parte, dos tipos oral ou anal. Havendo o predomínio, durante a infância, sucessivamente
dos tipos oral e anal, tais direcionamentos da sexualidade cederiam lugar à sexualidade
genital, característica da fase adulta. Contudo, resquícios da sexualidade oral e anal
permaneceriam, convivendo com a sexualidade genital dominante. Quando tais
resquícios não se manifestam em sua forma original (associados à boca e ao ânus),
assumem a forma de “sublimações”, ou então, de “formações reativas” do ego, isto é, no
último caso, transformando-se em atitudes que têm por função negar o desejo original
por meio de um comportamento contrário.
Tais manifestações da sexualidade pré-genital (sublimações e formações
reativas) se distinguem por ocorrerem de uma forma adequada à normalidade social, ou
seja, correspondendo a comportamentos socialmente aceitáveis. Contudo, um
desenvolvimento psicossexual incompleto, ao favorecer a ligação com as fases da
sexualidade pré-genital, pode também ser acompanhado de “fixações” e “regressões”.
No primeiro caso, trata-se de investimentos libidinais que acompanham a biografia do
indivíduo e persistem mesmo na fase genital. No segundo caso, trata-se da recuperação
de formas de manifestação da libido que já haviam sido superadas, quando do ingresso
na fase genital.
O caráter anal serve como modelo para a compreensão do chamado “espírito do
capitalismo”. É sob essa perspectiva psicanalítica que Fromm pretende reconstruir as
Social]. Ver Fromm, 1999.
análises de Weber e Sombart sobre o tema (v. Fromm, 1999: 70-72). Segundo a tese
weberiana, a ética católica considerava o trabalho apenas um meio de manutenção das
condições de vida, enquanto a ética puritana o considerava como a concretização de um
dever. A partir da Reforma, adquirir e poupar teriam passado a ter um valor em si,
independentemente das vantagens e do prazer que as coisas obtidas pudessem trazer.
Esse seria um dos traços mais representativos do “espírito do capitalismo”. Ocorre que a
satisfação proporcionada diretamente pela posse (e, portanto, também pela economia,
seja de dinheiro, seja de tempo) constitui justamente um dos elementos mais
representativos do caráter anal. Outras fontes de prazer (especialmente o prazer sexual)
são reduzidas ao mínimo, pois o prazer não pode ser tomado como um fim em si
mesmo, mas sim servir à saúde, à higiene ou a manutenção da aptidão para o trabalho. O
valor máximo passa a ser o cumprimento do dever moral, e o prazer é deslocado das
relações eróticas para a propriedade e toda ação que a favoreça, como é o caso da
economia de dinheiro, tempo e força física.
Todos esses traços do “espírito” burguês correspondem ao caráter anal, e esse
tipo de estrutura libidinal pode ser considerado exemplar para se compreender a
personalidade típica exigida do indivíduo na sociedade capitalista do século XIX (isto é,
os indivíduos socialmente mais “premiados” seriam aqueles que desenvolvessem tais
traços de caráter). O empreendedor burguês dos séculos XVIII e XIX é o exemplo mais
acabado desse tipo de estrutura libidinal, embora ela também se encontre na pequena
burguesia e no proletariado do século XX, em virtude da permanência da ideologia, que
se mantém não obstante se alterem as condições sócio-econômicas.
O caráter social típico do capitalismo apresenta, portanto, a marca central do
processo de reificação – todas as relações sociais são contabilizadas racionalmente, por
meio de um cálculo abstrato. A compreensão, em termos de “caráter”, dos traços de
personalidade propiciados pelas relações sociais reificadas típicas da sociedade
moderna, proporcionaria, segundo Fromm, um tratamento cientificamente válido do
problema do “espírito” do capitalismo. É o mesmo problema que ocupou tantos
sociólogos, mas sempre considerado segundo um ponto de vista idealista, que não
procurava entender os traços de personalidade em termos da estrutura libidinal
correspondente, mas sim em termos de “valores” ou “máximas de ação” (Fromm, 1999:
77).
Estudando os trabalhadores qualificados das camadas médias de diversos países
europeus, Fromm constatou tratar-se de uma personalidade ao mesmo tempo sádica e
masoquista. O caráter sado-masoquista encontrar-se-ia, na verdade, espalhado pela
sociedade, predominando, em cada indivíduo, um ou outro aspecto de tal estrutura de
caráter, de acordo com a posição social ocupada pelo indivíduo em questão. Sua
realização libidinal depende de ambas as orientações de caráter, pertinentes, cada uma, a
uma relação masoquista com membros das classes superiores, ou então, a uma relação
sádica com membros das classes inferiores. Os símbolos de poder e força física ou
moral (encarnados no Estado e nas classes dominantes) inspirariam admiração,
enquanto as manifestações de impotência e dependência dos membros das classes
inferiores seriam capazes de inspirar um tipo sádico de agressividade.
O caráter sado-masoquista, que constitui a condição subjetiva de aceitação da
ideologia fascista, é formado sobre o solo ideal do capital monopolista. Na fase do
capitalismo liberal do século XIX, ainda havia no horizonte social alguma possibilidade
de ascensão por meio do trabalho e da incorporação dos valores burgueses. Essa
possibilidade servia de base a uma ideologia que, centrada nas idéias de liberdade e de
autodeterminação na ação econômica, contribuía para a constituição de um caráter
social marcado por traços como a tenacidade no trabalho, a parcimônia e o espírito
aquisitivo. Sob o capitalismo monopolista, por outro lado, as possibilidades de
identificação do proletariado com a burguesia se esvaem, e a concentração do poder
econômico em pequenos grupos, junto com a aparente impotência do homem perante as
crises econômicas, o desemprego em massa e a guerra, tornam-se solo fértil para a
formação de um caráter social sado-masoquista.
A relação do proletariado com a burguesia passa a ser de submissão e, não
podendo “matar o pai”, a classe trabalhadora passa a canalizar sua agressividade para
grupos sociais em situação desfavorável (os judeus, ou então o inimigo externo). Quanto
à ideologia que anunciava a possibilidade de ascensão social e inclusão nos padrões
sócio-econômicos dominantes, é substituída pelo fatalismo e pela crença num destino
histórico ao qual se deve submeter-se. É claro que essa ideologia fatalista esteve
presente em diversos momentos históricos anteriores – a diferença está em que, se o
capitalismo liberal tinha contribuído para reduzí-la, as amplas crises e o desemprego em
massa que caracterizaram o capitalismo monopolista da primeira metade do século XX
tornaram a transformação de tal ideologia em caráter social uma exigência funcional
para a manutenção do sistema. É porque a estrutura psíquica dos indivíduos é moldada
de modo a acolher tais valores, que sua ação pode se dar em conformidade a eles. Como
diz Fromm,
“quanto mais insolúveis se tornarem as contradições que
vicejam na sociedade, quanto mais cegas e incontroláveis
forem as forças sociais, quanto mais as catástrofes como a
guerra e o desemprego assombrarem a vida do indivíduo como
se fossem forças inexoráveis do destino, mais forte e
generalizada se torna a estrutura libidinal sado-masoquista, e
com ela a estrutura autoritária de caráter, e mais e mais a
entrega ao destino é elevada a virtude máxima e fonte de
prazer” (Fromm, 1999 : 177)
As contradições sociais aparecem ao indivíduo como insolúveis, e a construção
de uma sociedade fundada na decisão racional e coletiva é uma saída que fica fora de
questão. A única solução aparente parece ser entregar-se a um poder superior, cuja força
e capacidade de liderança atuem como unificadoras da vontade.
Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund. “O Mal-Estar da Civilização”. In: _____. Edição Standart
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de
Janeiro: Imago, 1976.
FROMM, Erich. Gesamtausgabe. Stuttgart: DVA, 1999.
HORKHEIMER, Max. “A Presente Situação da Filosofia Social e as Tarefas de um
Instituto de Pesquisas Sociais”. Revista praga, n. 7. São Paulo: Hucitec, 1999, pp. 121132.
LUKÁCS, G. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes: 2003.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Tradução: Luiz Claudio de
Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
NETTO, José Paulo. Capitalismo e Reificação. São Paulo: Livraria Editora Ciências
Humanas, 1981.
ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983.
SCHAFF, Adam. O Marxismo e o Indivíduo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1967.
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