O textos aqui incluídos fazem parte de dois artigos escritos em Dili, em Maio de 2004, publicados em duas edições diferentes do Jornal Público, em Junho de 2004. São aqui apresentados de forma igual à que foi impressa (com os títulos atribuídos pelo público, o destaque e a separação de parte do primeiro texto numa caixa autónoma). Esta versão beneficiou da edição e revisão do texto por parte da jornalista Cristina Ferreira, a quem apresento mais uma vez os meus agradecimentos. ARTIGO 1 O Petróleo Não Problemas do País Vai Resolver Os Maiores Timor-leste Autor: Manuel Herédia Caldeira Cabral O rendimento da maioria dos timorenses não ultrapassa meio dólar diário. O único produto exportado é o café, em quantidades mínimas. O país continuará dependente da ajuda externa, porque nem as reservas de petróleo e gás parecem suficientes para pagar as importações - e Timor precisa ainda de grandes investimentos em infra-estruturas para uma população que cresce rapidamente. A maioria da população de Timor vive numa situação de pobreza extrema, com um rendimento "per capita" de menos de um dólar por dia. As estimativas apontam para que o PIB actual de Timor-leste seja entre 250 e 400 vezes inferior ao de Portugal. Isto é equivalente ao produto aproximado de uma autarquia média de Portugal. A dimensão do Orçamento de Estado de Timor-leste (60 milhões de euros) é também semelhante ao orçamento de uma autarquia portuguesa. O nível de rendimento "per capita" dos residentes em Timor situa-se entre os 450 dólares (nas estimativas mais optimistas) e os pouco mais de 200 dólares. Se se considerar apenas o rendimento dos timorenses, o valor mais baixo é bastante mais credível. Isto coloca o país abaixo da fasquia que define os países mais pobres do mundo (um dólar por dia por pessoa). A desigualdade existente implica que a maioria dos timorenses vive com menos de meio dólar por dia. Depois da forte quebra da produção em 1999-2000 e da recuperação em 2000-01 (com a entrada da ONU), a taxa de crescimento do PIB estimada foi sempre negativa. Esta situação deverá continuar, ou até acentuar-se, em 2004-05. Em Timor, a assistência internacional financia a mais importante fatia da actividade económica. A diminuição desta determina a previsível queda do produto. Esta actividade é a que movimenta maior despesa e paga maior volume de salários do que qualquer outra, sendo seguida apenas pela actividade do Governo central. Paralelamente a estas, existe um sector de serviços relativamente importante. Este está concentrado na capital e em grande medida vocacionado para servir a comunidade estrangeira residente. A estes serviços junta-se um sistema financeiro que se resume a três bancos com um total de seis agências em Dili e uma única agência fora de Dili (em Baucau). Existe também uma instituição de micro-finanças que tem desempenhado um papel importante no apoio a pequenos projectos. Não existem quaisquer outras instituições financeiras em Timor. Em particular, não existe nenhuma seguradora a operar no território. Economia sem exportações Em Timor, as actividades de exportação são praticamente inexistentes. Timor é um país sem indústria e com uma agricultura e pesca de subsistência. A excepção é o café. Este produto apresenta-se como a única actividade económica virada para a exportação. No entanto, o total das exportações de café ficou-se pelos 5,4 milhões de dólares (valor que corresponde a cerca de um por cento do PIB). Este valor paga muito pouco dos mais de 200 milhões de dólares de importações. O turismo também poderia ter um papel importante na captação de divisas. No entanto, não tem qualquer relevância. Fora de Dili existem apenas cinco hotéis, com um total de cerca de cem quartos, com taxas de ocupação muito baixas. O desenvolvimento de actividades de exportação está fortemente limitado pela falta de iniciativa privada local, pelas deficientes infra-estruturas que determinam custos de operação muito superiores aos dos países vizinhos e até pelo custo da mão-de-obra. A ONU instituiu um salário mínimo de três dólares por dia de trabalho, salário muito elevado para a produtividade local e claramente acima do praticado na Indonésia. Falta iniciativa privada A economia de Timor-leste há muito que se apresenta como uma economia dependente do Estado e do exterior. Foi assim no tempo dos indonésios, em que as despesas públicas representavam mais de 80 por cento do PIB, sendo financiadas na sua quase totalidade por transferências directas de Jacarta. Mesmo as poucas actividades privadas destinavam-se a prestar serviços ao Governo. A entrada da ONU não mudou esta situação. As despesas públicas (do Governo e dos programas de apoio directo) representam mais de dois terços do PIB. As actividades privadas podem ser dividas em três grupos: um de empresas que trabalham para o Governo ou para os projectos dos dadores; outro grupo de serviços direccionados para os estrangeiros residentes; e um terceiro conjunto de pequenos negócios virados para os timorenses. O primeiro funciona como uma extensão da actividade do Governo e dos dadores. O segundo está fortemente comprometido com a diminuição do número de estrangeiros residentes. O terceiro está para ficar, mas é, provavelmente, tão pequeno hoje como era no tempo dos indonésios. A importância do petróleo Importantes receitas estão previstas da exploração das reservas petrolíferas de Bayu-Undan. Estas podem gerar receitas para Timor-leste de cerca de três mil milhões de dólares ao longo dos 20 anos de vida prevista para o projecto. Existem outros importantes recursos no mar de Timor, nomeadamente as jazidas de gás designadas como Sunrise e Trobadour. No entanto, a parte que caberá a Timor nas receitas destas está ainda em discussão, processo que o governo australiano parece querer atrasar. Existe em alguns a ilusão de que as receitas do petróleo chegam para fazer de Timor-leste um país rico. É importante notar que as receitas previstas se limitam a aumentar o rendimento "per capita" em meio dólar por dia (ou menos, se compensarmos com o aumento da população e descontarmos a inflação) e não chegam para pagar sequer as importações actuais (financiadas pela ajuda internacional). As receitas do petróleo previstas para os próximos 20 anos correspondem anualmente (em média) a cerca de metade do montante de ajuda internacional que entrou em Timor em 2003. Timor recebe já hoje receitas de petróleo de alguns projectos de pequena escala e em fim de ciclo de exploração (cerca de 25 milhões de dólares em 2003). Estas deveriam crescer para 35 milhões em 2004 e atingir os 88 milhões em 2007. No entanto, atrasos na instalação da plataforma e problemas de perfuração em Bayu-Undan (que levaram ao abandono de dois poços) determinaram uma revisão em baixa das estimativas das receitas do mar de Timor para os próximos quatro anos, de uma média de 60 milhões de dólares por ano para uma média de pouco mais de 15 milhões de dólares. Esta situação aumenta muito a dependência de ajuda externa, numa altura em que a maioria dos dadores se prepara para reduzir as suas contribuições. As previsões continuam a apontar para que se possa ultrapassar a barreira dos 100 milhões de dólares de receitas em 2009. Mas os desvios verificados ilustram bem o grau de incerteza associado a esta actividade. Estes não contam também com a possibilidade de variações do preço do petróleo (actualmente muito valorizado). Diminuições do preço do petróleo podem implicar grandes reduções nas receitas ou mesmo inviabilizar a continuação da exploração. ----------------------------------------------------------------------------------P.S. - Dili, 17 de Maio de 2004. Para a realização deste artigo [primeira parte publicada na edição anterior] fiz dezenas de entrevistas com responsáveis do Ministério do Planeamento e das Finanças e assessores de diversos ministérios e organismos governamentais. Contei ainda com a colaboração de pessoas ligadas à agência de desenvolvimento australiana, responsáveis pela missão da União Europeia, assessores da administração fiscal e das fronteiras e do Banco Mundial. Todas deram um contributo muito importante na obtenção e ajuda à interpretação dos dados. O contacto com a ilha, que percorri de moto, e com os meus alunos, ajudaram-me também muito a entender a realidade timorense. Manuel de Herédia Caldeira Cabral* *Docente do Departamento de Economia da Universidade do Minho ----------------------------------------------------------------------------------- CAIXA: Necessidades imediatas Estradas, Educação e Saúde A rede de estradas de Timor Leste resume-se a uma estrada ao longo da costa sul e outra ao longo da costa norte, ligadas por cinco estradas nortesul. Ao longo da costa norte o estado das estradas é mau, mas é possível viajar em veículos normais. A velocidade média que se consegue praticar nestas estrada não ultrapassa os 30 km/hora. As ligações norte-sul só são possíveis em veículos todo-o-terreno. Na época de chuvas (de Dezembro a Abril) as ligações norte-sul e a estrada ao longo do sul da ilha estão muitas vezes interrompidas. O fornecimento de energia eléctrica existe apenas em algumas cidades. Em Dili existe electricidade entre as 8h e as 24h, noutras cidades é mais restrito. Em Baucau (segunda cidade do país), o fornecimento de electricidade foi interrompido há alguns meses por falta de pagamento por parte dos utilizadores. As zonas onde há fornecimento de energia eléctrica abrangem menos de 10 por cento da população. O facto de Timor ter um dos mais elevados preços da electricidade do mundo faz com que mesmo nestas zonas apenas uma minoria das pessoas desfrute de electricidade. População em crescimento Timor-leste tem uma população estimada em 800 mil habitantes. O país tem uma população extremamente jovem e em explosão demográfica. Estima-se que mais de 70 por cento da população tenha menos de 25 anos. Os timorenses casam e começam a ter filhos muito cedo (em geral antes dos 20 anos de idade). É normal encontrar famílias com mais de dez filhos. Este quadro implica que a população deverá crescer acentuadamente, podendo facilmente duplicar no espaço de 20 ou 30 anos. Este será o cenário mais previsível se houver (como se espera) melhorias na mortalidade infantil e na esperança de vida. O aumento da população não é um problema em si. Mas é um problema se o país continuar a depender de uma agricultura de subsistência e de um recurso não renovável como é o petróleo. Implica também um enorme esforço de investimento na educação - uma vez que quase metade da população está em idade escolar. Embora apenas o censo que está ser realizado possa fornecer números mais exactos sobre o nível de instrução da população, as agências não governamentais apontam para que possam existir quase 50 por cento de analfabetos. Estima-se que uma percentagem importante de crianças (mais de um terço) não está a frequentar a escola. Este problema é particularmente sentido fora de Dili, quer pela distância a que se situam as escolas, quer por dominar uma mentalidade em que os benefícios da educação não são entendidos pelos pais. Ao mesmo tempo, em Dili existem cerca de seis mil estudantes na Universidade Nacional de Timor Lorosae (pública) e outros tantos espalhados por diversas universidades privadas. A qualidade do ensino das universidades é muito baixa. Os alunos entram mal preparados. O corpo docente é escasso e pouco qualificado. O nível de exigência é extremamente baixo. Médicos e água potável Em Timor-leste, uma em cada dez crianças que nascem não ultrapassa o primeiro ano de vida. Este número é extremamente elevado, mesmo no contexto de países em vias de desenvolvimento. A falta de assistência médica, de vacinação, de condições sanitárias, nomeadamente de acesso a água potável, e a má alimentação explicam esta elevada taxa. Os relatórios sobre Timor referem que apenas 40 por cento da população tem acesso a água potável, valor muito baixo mesmo comparando com a média dos países de rendimento muito baixo (cerca de 70 por cento). A falta de alimentos não se traduz numa situação de fome generalizada (embora sejam descritas situações pontuais, em particular na época seca), mas antes em subnutrição resultante de uma dieta deficiente. Isto faz com que as crianças sejam muito vulneráveis às doenças. Por outro lado, o sistema de saúde em Timor é extremamente limitado. Existe um hospital em Dili e existem centros de saúde nas capitais de distrito. Os centros de saúde dispõem apenas de um enfermeiro, que em muitos casos não está em permanência. Fora de Dili estão apenas meia dúzia de médicos. ARTIGO 2 Timor-Leste - Comemorações do Terceiro Ano de Independência Sob o Signo da Recessão Autor: Manuel Herédia Caldeira Cabral A maior parte da comunidade internacional está a deixar Timor. Com os estrangeiros vão também os dólares que alimentam boa parte da iniciativa privada no país, especialmente em Dili. Os timorenses ficam cada vez mais dependentes do Estado e das futuras receitas do petróleo, recentemente revistas em baixa. Timor deixou de estar na moda. Timor-leste comemorou recentemente [20 de Maio] o segundo aniversário da sua independência. A ONU, os militares e o grosso da comunidade internacional estão de saída. Para trás deixam um país com um Estado, uma polícia e um exército. Deixam muitos edifícios recuperados, um grande número de veículos e um conjunto de leis ainda incompleto. Mas deixam também uma economia praticamente sem iniciativa privada, sem capacidade de exportação e muito dependente da ajuda externa. Deixam um país que desde a independência não conhece crescimento económico afundado numa recessão. Em Timor-leste vive-se um ambiente de fim de festa. O número de estrangeiros residentes em Timor, que chegou a ultrapassar os 10 mil, tinha já diminuído para cerca de seis mil no ano passado. Durante o presente ano deverá ser reduzido para menos de um milhar. Com esta redução de pessoal e a diminuição da assistência que a acompanha, pode estar a sair de Timor cerca de um terço do rendimento e despesa do novo país. Esta quebra da despesa está repercutir-se em quebras da actividade e rendimento. O PIB de Timor-leste não é medido desde 2000. Mas a diminuição de 25 por cento das importações em 2003 demonstra bem a dimensão da diminuição da despesa resultante da redução do número de estrangeiros. A saída de rendimento que acompanha os residentes estrangeiros e a diminuição prevista da despesa em projectos de assistência e ajuda ao desenvolvimento sugere que até ao final de 2004 se vai verificar uma redução da procura porventura ainda mais acentuada. O PIB de Timorleste, que sofreu já uma diminuição em 2003, deverá apresentar reduções ainda mais acentuadas em 2004 e 2005. As previsões do Governo para a evolução entre 2004 e 2005 apontavam para uma descida de 20 por cento das despesas dos projectos desenvolvidos em Timor financiados directamente pelos países dadores, que seria compensada por um aumento de 10 por cento dos gastos do Governo. Mesmo este cenário (demasiado optimista) previa uma queda moderada do produto (de três por cento). No entanto, a situação alterou-se. O orçamento para o período 2004-05 foi revisto em baixa, sendo agora cinco por cento inferior ao apresentado no ano anterior e o montante de financiamentos até agora garantidos implicam uma quebra de mais de 50 por cento das despesas directas em projectos. A última reunião de dadores deverá melhorar este cenário, mas dificilmente o poderá inverter. As notícias sobre as receitas do petróleo apenas contribuem para piorar esta situação. As receitas previstas até 2007 nessa área foram revistas para um quarto do montante inicial. Consequências da recessão Esta recessão poderá assim ter efeitos para além dos conjunturais. Propicia a agitação social, pode levar à falência uma parte da pouca iniciativa privada existente, acentuando a dependência do Estado e alimentando uma situação em que a falta de actividade retira incentivos a que arranquem novos projectos. Esta recessão vai ser particularmente sentida em Dili, onde se concentra a despesa que agora diminui. Dili é uma cidade onde, ao contrário do resto do país, uma proporção importante das pessoas não vive ligada à agricultura de subsistência, vivendo antes da prestação de serviços, biscates, empregos eventuais, etc. É também uma cidade com muitos jovens. A mistura entre abundância de jovens e falta de empregos cria um ambiente de frustração propício ao seu envolvimento em acções de agitação social. A recessão acentua estas condições. Os numerosos grupos de artes marciais poderão canalizar esta frustração para a violência. A saída da maioria dos militares portugueses não é uma boa notícia para a segurança de Timor. Marasmo da iniciativa privada Outro efeito que a presente quebra da actividade está a ter é o encerramento de muitos negócios. A presença de grande número de estrangeiros com elevado rendimento permitiram criar em Dili alguma iniciativa empresarial privada e alimentou um conjunto de serviços e o consumo de bens importados sofisticados. Será difícil, apenas com base na procura dos timorenses, manter rentáveis serviços como uma rede de telemóveis, a distribuição de electricidade e água, voos com regularidade diária para Denpasar e Darwin, ou um conjunto de restaurantes, bares e hotéis razoavelmente diversificado como o que ainda existe em Dili. Em Timor existe uma situação em que a inexistência de infra-estruturas e o mau funcionamento das actividades de suporte à actividade empresarial leva a que estas tenham grandes dificuldades em arrancar. Isto por sua vez impede que as actividades de suporte consigam atingir uma escala mais eficiente ou consigam mesmo existir. Cria-se assim um círculo vicioso, em que a falta de actividade limita o arranque de novas actividades. A saída dos estrangeiros e a recessão que deixam vai assim agravar a situação já existente, em que a iniciativa privada é extremamente limitada. Isto não augura nada de bom para a sociedade de Timor. A manter-se esta situação, Timor continuará a ser uma sociedade em que o Estado é o único agente com iniciativa, com toda a sociedade a trabalhar ou depender do Governo para a solução de todos os problemas. O que hoje é financiado pela ajuda internacional poderá em cinco anos ser financiado pelo petróleo, mantendo-se uma economia semelhante à dos anos indonésios. Uma economia em que os empregos são todos do Estado. Uma economia sem agentes autónomos, em que a pouca iniciativa privada presta serviços ou faz obras para o Estado. Uma economia fortemente centralizada em Dili, onde tem sido gasto o grosso da ajuda e onde acabará por ficar a maioria do dinheiro do petróleo. Manuel de Herédia Caldeira Cabral - Docente do Departamento de Economia da Universidade do Minho P.S. - Dili, 17 de Maio de 2004. Para a realização deste artigo fiz dezenas de entrevistas com responsáveis do Ministério do Planeamento e das Finanças e assessores de diversos ministérios e organismos governamentais. Contei ainda com a colaboração de pessoas ligadas à agência de desenvolvimento australiana, responsáveis pela missão da União Europeia, assessores da administração fiscal e das fronteiras e do Banco Mundial. Todas estas pessoas deram um contributo muito importante na obtenção e ajuda à interpretação dos dados de Timor. O contacto com a ilha, que percorri de moto, e com os meus alunos, ajudaram-me também muito a entender a realidade timorense.