UNIVERSIDADE GAMA FILHO CENTRO DE CIÊNCI AS HUMANAS DE P ART AME NT O DE FI LO S O FI A Aquiles Côrtes Guimarães A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO BRASILEIRO Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade Gama Filho como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Antônio Paim Rio de Janeiro, dezembro de 1981 1 RESUMO A formação do pensamento filosófico brasileiro está marcada pela preocupação com o homem. Daí a questão da consciência assumir relevo no itinerário da meditação, podendo-se mesmo afirmar que é ela o centro para onde convergem os esforços mais significativos dos filósofos brasileiros. No seu curso histórico, os pensadores pátrios assumiram uma postura crítica frente à filosofia em geral, o que constitui outra característica marcante da nossa formação. O ecletismo, o positivismo e o naturalismo são exemplos de correntes que sofreram, no Brasil, ataques semelhantes àqueles de que foram alvos nos espaços onde floresceram. Não foi nossa pretensão analisar os diversos modos com os quais conduziram o pensamento a totalidade daqueles que se dedicaram à filosofia entre nós. A intenção foi surpreender em determinados pensadores a motivação nuclear das suas investigações. E concluímos que a filosofia no Brasil surge e se afirma preocupada com o homem enquanto consciência e, consequentemente, enquanto liberdade. 2 ABSTRACT The formation of Brazilian philosophical thinking shows a constant preocupation with man. Therefore, it is not surprising that the theme of consciousness appears along the course of inquiries with so strong an emphasis. One may assert that consciousness is a real center of convergence – the goal of the most relevant efforts made by Brazilian thinkers. In their histprical setting, theu have adopted a critical attitude before Philosophy in general. This critical disposition is another significant mark of our formation. Eclecticism, positivism and naturalism may be cited as examples of some trends which suffered critical remarks in the context of our thinking – remarks that ressemble those ones which had appeared in the European context where they had flourished. We had not the intention to make a detailed analysis of all important Brazilian thinkers. Our intention was to pick up some philosophers and try to show the nuclear motivation of their investigation. Having done it so, we came to the conclusion that the philosophical thinking in Brazil comes upp and make its roots always turned to man viewed as a conscious being and, therefore, approached as a being determined to male choices in order to manifest his freedom. 3 SUMÁRIO CAPÍTULO I A ILUSTRAÇÃO BRASILEIRA EM FACE DA HERANÇA PORTUGUESA ............................................... 00 1. O Significado da Herança Jesuítica ........................................ 00 2. As Reformas Pombalinas ....................................................... 00 3. Os Inícios da Ilustração Brasileira .......................................... 00 4. Os Indicadores da Ilustração Brasileira ................................... 00 CAPÍTULO II O PAPEL DO ECLETISMO NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO 1. Idéia do ecletismo .................................................................. 00 2. O Ecletismo no Pensamento Francês do Século XIX .............. 00 3. A Contextualização do Ecletismo no Brasil ............................ 00 CAPÍTULO III A MATURAÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO BRASILEIRO .................................................... 00 1. O Positivismo como Instrumento de Combate ........................ 00 2. O Anglo-germanismo como Tentativa de Reconstrução .......... 00 CAPÍTULO IV A MATURIDADE DA MEDITAÇÃO BRASILEIRA ............... 000 1. O Momento de Farias Brito .................................................... 000 2. O Momento de Miguel Reale ................................................. 000 CONCLUSÃO .......................................................................... 000 BIBLIOGRAFIA ....................................................................... 000 4 CAPÍTULO I A ILUSTRAÇÃO BRASILEIRA EM FACE DA HERANÇA PORTUGUESA 1. O Significado da Herança Jesuítica A descoberta do Brasil coincidiu com a expansão da Companhia de Jesus, fundada para servir de instrumento de combate à reforma protestante. Uma das suas missões básicas era a de disseminar a doutrina católica, à luz dos princípios aristotélico -tomistas. Mas é preciso deixar claro, desde logo, que as preocupações dos jesuítas não estavam voltadas para questões doutrinárias e, sim, para os problemas catequéticos. Era preciso levar avante a tarefa de conquistar os povos para a cristandade. Com este intuito, a Companhia de Jesus se instalou em Portugal. Ali não encontrou maiores dificuldades para desenvolver os seus misteres, uma vez que Portugal foi um dos países em que a reforma protestante não penetrou. A Companhia de Jesus, a partir dos inícios do século XVI espalha suas missões por vários países da Europa, como Itália, França, Portugal e outros. Suas aspirações eram universais e para levar a cabo o seu desideratum começou por estabelecer uma rígida organização configurada nas suas Constituições que eram as diretivas formais a serem obedecidas por tantos quantos nela ingressassem. Não se pode negar os êxitos 5 da Companhia no plano da evangelização. Obstáculos de ordem institucional foram sendo superados e as nações católicas recebiam sempre de bom grado a presença dos inacianos que, certamente, contribuíram com um importante ingrediente da própria estabilidade política. Não seria gratuitamente que os governos emprestavam todo apoio à Companhia, os vários países em que ela penetrava. Estamos vivendo o momento de lutas religiosas cristalizadas na contra-reforma que, de certa maneira, causavam preocupações de ordem político-institucional nos espaços nacionais de tradição católica. A impossibilidade de converter os reformados ou de extirpá -los pela força obrigada a tolerá -las e a assinar pactos de paz em religião. .................................................... Os príncipes escolhiam livremente sua religião, mas os súditos eram forçados a dotar a religião do seu príncipe (cujus regio, ejos religio), pois não se acreditava que um Estado pudesse subsistir contendo em seu seio religiões diferentes. MOUSIER, Roland. Os Séculos XVI e XVII. In História Geral das Civilizações. Trad. de Vitor Ramos e outros, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973, v. 9, T. IV, p. 91. 6 Ora, a força espiritual e moral que a Companhia representava não poderia ser olvidada pelos príncipes de confissão católica, até porque se tratava de uma instituição devidamente legitimada pelo poder papal. O vasto plano catequético e educativo dos inacianos funcionava como uma espécie de instrumento ideológico que, acreditava-se, poderia conter os ímpetos de reformismo protestante. Para cumprir plenamente a sua missão, sentiram, desde logo, os adeptos de Santo Inácio de Loyola, juntamente com seu líder, que a educação era o caminho mais seguro para o empreendimento da regeneração da humanidade. E é nesta tarefa que a Companhia vai dispensar todos os esforços, em estreita articulação com a missão maior que é a de inocular nos espíritos a doutrina expressa nas Sagradas Escrituras, segundo a interpretação dos Doutores da Igreja. Com isto, durante cera de dois séculos, a presença dos jesuítas no ensino se constitui num dos fenômenos mais notáveis da história da educação da humanidade. Proliferavam os colégios por todas as partes do mundo onde chegavam os mensageiros de cristianismo. Uma disciplina de tra balho inspirada nos princípios da hierarquia eclesiástica era seguida com todos os rigores e isto contribuía para que a empresa fosse sempre se agigantando sem as ameaças da vulnerabilidade. A Universidade de Coimbra foi um dos centros mais importantes de ensino dominado pelos jesuítas. Ali se pretendeu articular uma sistemática de formação humanística, com um acentuado privilégio às línguas latina, grega e hebraica, através d e autores devidamente 7 selecionados pelo critério da coerência com os princípios da doutrina católica. Aos poucos, a educação portuguesa vai sendo dominada pelos jesuítas em todos os níveis, acabando por assumir uma preponderância absoluta. Parece que a Universidade de Coimbra foi o padrão de ensino da Companhia ao longo de todo o seu magistério em Portugal. Pelo menos em relação ao Brasil, a tradicional Universidade ditava as regras no plano dos estudos superiores. Aliás, para ser mais preciso, os mestres de Coimbra transmitiam ao Brasil as normas estabelecidas no Ratio Studiorum de que falaremos mais tarde. Tudo isto provém da necessidade de estabelecer um elo de permanência do aristotelismo tomista, contra a vaga de inovações que assolava a Europa. Aristóteles e Santo Tomás de Aquino deveriam ser preservados, a despeito de todas as novas descobertas científicas e dos novos caminhos abertos pela indagação filosófica. A Companhia de Jesus representa o esforço de permanência frente a quaisquer tentativas de transformações da mundividência do homem alarmado com tantas descobertas e previsões. A cosmovisão do homem medieval se orienta pelos princípios da sabedoria recebida dos gregos antigos, adaptada aos parâmetros do cristianismo. Os elementos de Euclides, o Timeu de Platão e as obras de Aristóteles eram as autoridades indiscutíveis do ensino medieval. Quando da instituição da Universidade de Paris, no século XIII, todas as obras de Aristóteles se achavam traduzidas. E Santo Tomás considerou-as como o exemplarismo da razão natural. Toda ciência estava 8 em Aristóteles, o que significa dizer: toda razão natural está em Aristóteles. Il en fut ainsi jusqu’à diffusion de l’oeuvre complète d’Aristote en Occident, au XIII e siècle. Albert de Grand et Thomas d’Aquin voient dans l’oeuvre synthétique du Stagirite la somme définitive de toutes les verités naturelles que l’esprit humain peut acquérir par ses propres forces: la science n’est plus à faire, elle est déjà faite, elle est purement livresque, et, pour la parfaire, il n’est que de déduire des principes de philosophie naturelle formulés par Aristote lasérie ordonné de leurs conséquences particulières. Le contenu de la raison s’identifie avec Péripatétisme: pour concilier la raison et la révelation, il suffit d’accorder le fondateur du Lycés avec Möise et le Christ. ROUGIER, Louis. La Scolastique et le Thomisme. Paris, Gauthier-Villars, 1955, p. 19. A questão das influências do pensamento grego antigo na formação do saber medieval comporta, ao longo da história, várias discussões. Pacífica é, todavia, essa influência. Werner Jaeger, por exemplo, chega a afirmar que, não fora a existência do pensamento grego 9 e não teríamos os alicerces da cultura medieval, tendo em vista a originariedade de uma meditação que se enraizou definitivamente no âmbito da ocidentalidade. (Cf. Werner Jaeger. Cristianismo Primitivo y Paideia Griega. Trad. de Elsa Frost, México, F.C.E., 1965). No caso específico da chamada cultura universitária formada no século XIII, a despeito da respeitável opinião de Louis Rougier, há que ter em vista o que ensina M.D. Chenu, O.P., dentre outros. Ce prestige d’Augustin ne nous parait donc pas seulement l’effet d’une permanente et quelque peu antique vénération; il s’alimente, croyonsneus, d’une nouvele ferveur par le mouvement évangelique qui, pendant ce siècle, comme nous l’avons vu, transforme la Chrétianité. Toutes les réformes de l’Église, a -t-on dit, trouvèrent éveil et appui dans Augustin. Ainsi en fut’íl au XIII e siècle: ce fut pas par une option institucionnelle improvisée que plu sieurs formes religiouses du renou veau de la “vie apostolique” – entre autres les Frères Prêcheurs – recoururent à la règle de saint Augustin, mais bien en communion avec une résurgence de l’esprit même du grand docteur dans les aspiration et les mentalités contemporaines. 10 M.D. Chenu, O.P. Introduction a L’Étude de Saint Thomas D’Aquin. Paris, J. Vrin, 1950, p. 46. Significativas são ainda as afirmações do mesmo autor na obra acima indicada, no sentido da predominância – ou de equilíbrio – da influência do platonismo agostiniano no espaço do ensino medieval: Il n’est point surprenant alors que, passant au domaine technique et pedagogique, nous observions que pour tous Augustin est, non point um maitre, mais le maitre de la culture chrétienne. Il en fournit les cadres et les méthodes, le matérial et les ambitions; il en marque d’avance les lacunes. Op. cit., p. 50. Afirma, ainda, adiante, com a mesma convicç ão: Ainsi les uns fabriquaient une escolastique vidés d’Augustin, tandis que les autre, dans leur archéologisme, incriminaient la scolastique au non d’Augustin. Saint Thomas, lui, est proprement um ecelastique authentiquament nourri d’Augustin. Op. cit., p. 51. 11 De qualquer forma, estas considerações são oportunas para salientar as controvérsias vigentes entre os historiadores acerca da progressiva assimilação do pensamento grego no contexto da formação da cultura medieval que culmina, em última análise, com a instituição da Universidade de Paris, tornando -se esta uma espécie de modelo para as outras que vão surgir. A crise que a afeta é que nos conduz a acreditar na predominância do aristotelismo, pois foi este um dos motivos de combate por parte daqueles que desejavam fugir de um tipo de ensino intelectualista. As divergências em torno da questão ficam por conta daqueles que se dedicam ou se dedicaram a ela. A Universidade de Paris exerceu um papel de alta importância na formação das gerações européias durante alguns séculos. Mas, voltada para um ensino distanciado da realidade, acaba por enfraquecer sua própria estrutura, provocando a primeira greve estudantil da história, incitada pelos chamamentos operacionais da Universidade de Oxford, em cujo espaço predominava o espírito do empirismo. Houve uma considerável retira da dos estudantes parisienses para a Universidade de Oxford. Aristóteles ali era relegado a segundo plano. O que importava era preparar o homem para o domínio da natureza. A física medieval estava centrada no sentimento e na descrição dos seres da natureza, segundo as lições de Aristóteles. Ao contrário, a física moderna deixa de ser uma física das qualidades para ser uma física das quantidades. O Universo da modernidade é caótico, cabendo à razão ordená-lo e construí-lo. O cosmos está aberto ao infinito. O homem constrói o 12 mundo. O mistério do Universo é um desafio à razão. O cosmos passa a ser a matéria-prima da razão construtora. Não há mais lugar para a simples observação passiva. O homem assume o seu posto na perspectiva ativista, fabricadora. Tudo isto assusta aos jesuítas que lembram sempre a necessidade de manter a tradição aristotélico -tomista, tomando como inimigas quaisquer orientações sustentadas em desacordo com a tradição católica vigente. Dentro deste quadro é que se desenvolve a educação portuguesa, a partir do século XVI. A Companhia de Jesus foi fundada em 1539 e legitimada em Portugal em 27 de setembro de 1540, através da bula Regimini Militantis Eclesias, do Papa Paulo III, em estreita consonância política com D. João III. Em Portugal, no Brasil e nas demais colônias, escolas são fundadas em todos os lugarejos mais importantes e aos poucos a Companhia domina inteiramente o ensino português. Empreende-se, desde logo, a elaboração de um estatuto que contivesse o conjunto de normas rígidas a serem obedecidas por toda a comunidade docente, discente e administrativa. Após exaustivas discussões chega-se à redação final e aprovação deste instrumento que tomou o nome de Ratio Studiorum. Nele, as normas do ensino são minuciosamente estabelecidas. A disciplina merece especiais cuidados, de forma que a conduta moral dos inacianos fosse considerada irreprovável em quaisquer circunstâncias, valendo tais normas para os “de fora”, no que coubessem. Os “de 13 fora” eram os alunos leigos, não membros da Companhia. Santo Tomás era a autoridade em matéria de saber: Lembre-se de modo muito especial que às cadeiras de teologia não devem ser promovidos senão os que são bem afeiçoados a Santo Tomás; os que lhe são adversos ou menos zelosos da doutrina, deverão ser afastados do magistério. Ratio Studiorum. Regra do Provincial. Trad. de Leonel Franca. Rio de Janeiro, Agir, 1952, p. 121. Ainda nas mesmas Regras do Provincial encontramos o seguinte preceito: Os professores de Filosofia (exceto caso de gravíssima necessidade) não só deverão ter concluído o curso de teologia senão ainda consagrado dois anos à sua revisão, a fim de que a doutrina lhes seja mais segura e mais útil à teologia. Os que forem inclinados a novidades ou demasiado livres nas suas opiniões deverão, sem hesitações, ser afastados do magis tério. 14 Trad. cit., p. 122-123. Mas o primor das restrições à liberdade de pensar vem nas Regras do Professor de Teologia. ... em teologia escolástica sigam os nossos religiosos a doutrina de Santo Tomás; considerem-no como seu Doutor próprio, e concentrem todos os esforços para que os alunos lhe cobrem a maior estima. Entendam, porém, que se não devem adstringir de tal modo a Santo Tomás, que lhes não seja permitido em cousa alguma apar tar-se dele, uma vez que os que de modo especial se professam tomistas por vezes dele se afastam e não seja justo se liguem os nossos religiosos a Santo Tomas mais estreitamente do que os próprios tomistas. Trad. cit., 152. A regra era seguir Santo Tomás, abandonando quaisquer doutrinas que viessem contrariá-lo. Em matéria de interpretação da sua doutrina, entretanto, era permitido aproximar-se daqueles tomistas que num ponto ou noutro dele discordassem. Entretanto, nas mesmas Regras do Professor de Teologia lê -se: “Não basta referir as opiniões dos doutores e calar a própria; defenda, como se disse, a opinião de Santo Tomás ou omita a questão”. Trad. cit., p. 156. 15 No ensino da Filosofia a situação não era diferente. Rigorosos mandamentos são prescritos ao pro fessor de Filosofia, no sentido de situá-lo nos estritos limites do pensamento aristotélico -tomista. Não se filie nem a si nem a seus alunos em seita alguma filosófica como a dos Averroístas, dos Alexandristas e semelhantes; nem dissimule os erros de Averrois, de Alexandr e e outros, antes daí tire ensejo para com maior rigor diminuir -lhes a autoridade. De Santo Tomás, pelo contrário, fale sempre com respeito; seguindo-o de boa vontade todas as vezes que possível, dele divergindo, com pesar e reverência, quando não for plausível a sua opinião. Trad. cit., p. 159. Dentro deste clima, pode-se inferir que não era possível despertar vocações filosóficas que viessem lançar ressonância sobre as futuras gerações em Portugal e no Brasil. O espírito da educação jesuítica provo cou uma espécie de sustação do processo cultural em Portugal e nas colônias, marcadamente no Brasil, por cerca de dois séculos. Não vamos cair na ingenuidade de omitir os seus méritos. O ensino ministrado pelos jesuítas através da Companhia de Jesus ensejo u uma rigorosa formação humanística em várias gerações. Mas, tendo sido ela um 16 verdadeiro exército a serviço da salvação das almas, olvidou o papel da liberdade no fluxo da criação cultural, deixando de considerar o homem como consciência para vê-lo na simples perspectiva do dever de obediência. 2. As Reformas Pombalinas Com a ascensão do Marquês de Pombal ao cargo de Ministro de D. José I, Portugal passaria por uma fase de modernização tão marcante que poderíamos afirmar ter sido esse fator o ensaio decisivo de inserção daquele país na modernidade. No plano da educação, como medida saneadora, em 1759 a Companhia de Jesus é radicalmente despojada dos seus privilégios e os jesuítas são expulsos de Portugal e das colônias sem a menor contemplação. Imediatamente foram criadas as aulas régias de latim, hebraico, grego e retórica, para preencherem, provisoriamente, o espaço educativo deixado pelos inacianos. Começam desde logo os estudos para a reforma da Universidade de Coimbra, aprovada em 1772. Toda a sistemática de ensino deveria passar por uma transformação, de molde a erradicar da cultura portuguesa os malefícios deixados pelos jesuítas. Não se trata, obviamente, de combater o cristianismo. Pelo contrário, busca-se fortalecê-lo através de uma nova orientação. O problema da expulsão dos jesuítas suscitou um debate histórico que se prolonga até aos nossos dias. Pena é que tal debate traga subjacente a marca da paixão 17 a viciar a sua importância científica. As diatribes se desenrolam entre os historiadores ocup ando os espaços em termos de defesa e acusação. Para uns, a atitude de Pombal frente aos jesuítas foi a mais acertada que se poderia tomar, uma vez que os inacianos foram os grandes responsáveis pelo estado de estagnação da cultura lusitana. Para outros, entretanto, Pombal teria agido atrabiliariamente e até mesmo contra a fé cristã. No calor dos acontecimentos, os ataques mútuos ganhavam o público de parte a parte. Nas publicações antijesuíticas da administração do Marquês de Pombal, transparece claramente a preocupação de atribuir aos inacianos a principal responsabilidade pela decadência em que se encontrava os estudos em Portugal. O Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuítas e dos estragos feitos nas ciências, nos professor3es e diretores que a regiam pelas maquinações e publicações de novos estatutos por eles fabricados, aparecido em 1772, constitui, em suas linhas essenciais, apesar das parcialidades notórias, um programa de alta significação pedagógico-cultural, pois nele se encontra, ainda hoje, o melhor documento que do ponto de 18 vista crítico, se fez em Portugal sobre a situação em que se encontrava a Universidade de Coimbra até a promulgação dos estatutos pombalinos. A erudição histórica posterior retificou muitos dos erros contidos nesta pu blicação, mas estas emendas de ma neira alguma alteram a própria substância do programa educacional traçado pela Junta de Providência Literária. É preciso lembrar que o Compêndio foi redigido num momento em que a questão dos jesuítas, transformada num problema político dos governos da Espanha, França e Portugal ainda não se resolvera. Devido ao prestígio que gozava a Companhia de Jesus, junto à Cúria Romana, os delegados dos governos que se empenhavam na luta contra os jesuítas não tinham vencido até aquela data as últimas resistências de Ganganelli e alcançado, desta forma, o objetivo comum: a extinção da ordem. Compreende-se, portanto, que a refor ma da Universidade se transformasse em mais um documento da política antijesuítica que há dezesseis anos se tornara uma das principais preocu pações da administração pombalina. 19 No Compêndio Histórico, todos os elementos úteis à justificação doutrinária do pombalismo foram aproveitados: desde a entrega do Colégio das Artes à Companhia de Jesus, com os episódios que se lhe seguiram, até à análise minuciosa dos acontecimentos políticos em que os inacianos tiveram uma parcela, mínima que fosse, de responsabilidade. Todos os fatos referentes à ação dos jesuítas foram invocados para demonstrar, num quadro de tintas sombrias, que, até mesmo no setor do ensino, a decadência da nação era sobretudo obra dos padres da Companhia de Jesus. O Compêndio Histórico constitui, desta forma, a conseqüência natural da doutrina da Dedução Cronológica e Analítica, de 1765, como esta representa também o corolário generalizado e minucioso da Relação abreviada da República que os religiosos jesuítas das províncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias e das guerras que neles tem movido e sustentada contra os exércitos espanhóis e portugueses, de 1756. 20 RAMOS DE CARVALHO, Laerte. As Reformas Pombalinas da Instrução Pública. São Paulo, EDUSP-SARAIVA, 1978, pp. 39-40. O que importa em tudo isto é verificar os motivos inspiradores da nova política pombalina no plano da educação. Antes da efetivação das reformas educacionais, um grupo de estudiosos já se insurgira contra a ação dos jesuítas e seus métodos, em cujo seio é relevante a figura de Luiz Antônio Verney. Exilado na Itália, de Roma escreve uma série de dezesseis cartas, sob pseudônimo, reunidas mais tarde no volume O Verdadeiro Método de Estudar. Nestas cartas, Verney propõe uma nova pedagogia para o ensino português, de molde a livrar o País da decadência cultural em que se encontrava. Por trás dessas discussões está a tentativa de assimilar e espírito da modernidade, abandonando o apego à Escolástica e voltando os olhos para a grande revolução científica que estava sendo operada nos outros países europeus, principalmente no espaço do saber físico-matemático. Em matéria de Filosofia, as fontes dos ins piradores de Pombal eram Descartes e o empirismo inglês, de Bacon a Hume. A pedagogia de Hume é lembrada por vários estudiosos anti-jesuítas. No Verdadeiro Método de Estudar, são copiosos os recursos a Descartes, a Hume, a Bacon e aos demais destacados pensadores que davam o suporte de autoridade às proposições de Verney. Instaura-se uma verdadeira 21 batalha anti-escolástica com categorias epistemológicas hauridas do espírito de “Iluminismo” em geral. No afã de afastar da mentalidade portuguesa a atitude especulativa disseminada através de um aristotelismo ultrapassado, Verney chega a confundir ciência com filosofia, cometendo vários equívocos nas suas digressões sobre os filósofos que combatia. Seu Verdadeiro Método de Estudar é mais um instrumento de combate do que mesmo um esforço de reflexão em torno dos grandes problemas da filosofia e das ciências que estavam merecendo a atenção da crítica dos seus contemporâneos. É nesse ambiente intelectual já formado que Pombal vai iniciar suas reformas. Os jesuítas procuravam o autor das Cartas por toda parte e exigiam para ele a mais pesada condenação. Como não conseguiram identificá-lo, e até que isto fosse possível, não faltaram as réplicas e tréplicas em torno das Cartas, todas elas fruto de uma paixão que obscurece qualquer atitude científica e deslustra a tradição intelectual de qualquer País. Pombal entra em cena e, a fortiori apóia Verney, adotando as linhas gerais do seu pensamento pedagógico. Mas Verney, per via dubitationis, continua exilado e se nega a assumir a autoria das Cartas. (Cf. O Nascimento da Moderna Pedagogia. Verney, Rio de Janeiro, PUC-Rio, 1979. Obra Coletiva). De qualquer forma, Pombal não se valeu simplesmente do Verdadeiro Método de Estudar, mas socorreu-se também de outras fontes que pudessem servir de orientação aos seus impulsos reformistas. É 22 inegável que houve um considerável avanço no ensino da Filosofia, com a introdução de novos compêndios ou tratados nas escolas em substituição aos inúmeros Cursus philosophicus e outros textos que eram impostos aos alunos pelos jesuítas. Em Lógica, por exemplo, adotou-se As Instituições da Lógica, de Genovese. Esta obra foi elaborada dentro de uma visão que poderíamos chamar de eclética, pois procura salientar as categorias mais relevantes do pensamento moderno, principalmente do empirismo, sem aquele desprezo a Aristóteles e outros, tão em voga ao seu tempo. É preciso incorporar ao ensino as descobertas da modernidade, sem contudo cair no equívoco de ignorar a herança do passado. Mas o Marquês de Pombal não perdeu a oportunidade para fazer os seus reparos: Sobre a orientação filosófica, é opor tuno lembrar aqui o oficio enviado pelo Marquês de Pombal ao Reitor da Universidade de Coimbra, em 23 de setembro de 1773, sobre as emendas a serem feitas na edição de Antonio Genovese. Sinal característico da exa gerada preocupação de combater Aris tóteles são os termos do referido documento: “Logo no Parágrafo Terceiro, escreve o Marquês de Pombal referindo-se às Instituições da Lógica e da Metafísica de Genovese, dos Prolegômenos se contem as palavras que vão canceladas por Mim; e que 23 creio se podem, e devem omitir na impressão, que novamente se fizer. Porque ainda que vejo que neste Compêndio se trata somente da Lógica, e não da Metafísica, em que o Estatuto da Universidade impugnou Aristóteles; sempre o nome de um filósofo tão abominável se deve procurar que antes esqueça nas Lições de Coimbra do que se presente aos olhos dos Acadêmicos como um atendível Corifeu da Filosofia. Além de que não é tão certo, como Genovese o diz, que Aristóteles desse as mais Completas Regras desta Arte. Nem isto se pode dizer no tempo de hoje, no qual as regras mais seguras são as que mais se apartaram do mesmo Aristóteles.” RAMOS DE CARVALHO, Laerte. As Reformas Pombalinas de Instrução Pública. São Paulo, EDUSP-GRIJALBO, 1978. Reconheçamos, desde logo, que as reformas pombalinas, no que diz respeito ao ensino da Fi losofia, representam apenas uma tentativa de contextuar este universo do saber aos novos tempos. A rigor, Pombal não estava interessado no ensino da Filosofia e muito menos na produção do pensamento filosófico. Mas, necessariamente, tinha que conviver com todas as instâncias do saber por força do próprio espírito das 24 reformas e pela necessidade que assumiu de combater por todos os meios a educação jesuítica. Seu interesse maior está voltado para o ensino operatório que deveria redundar no soerguimento econô mico de Portugal. Não era um filósofo, um metafísico, Sebastião José de Carvalho. Era um homem prático. Em matéria ideológica não possuía uma orientação segura. Andou sempre ao sabor de cor rentes vindas da França, da Inglaterra e de Portugal antigo. Ao contrário, quanto à parte executiva da administração, nunca utilizou nem planos nem práticas que não fossem os que ele próprio concebia. Visconde de Carnaxide. O Brasil na Administração Pombalina. São Paulo, Companhia Editora Nacional-Instituto Nacional do Livro, 1979, 2ª ed., p. 4. Em posição de inferioridade econômica, lutou Pombal em primeiro plano para restabelecer sua independência em relação à Inglaterra com cujo país mantinha antigos compromissos que implicavam, na prática, uma verdadeira submissão da própria soberania lusitana. Nas tentativas gerais de reforma e moder nização da administração portuguesa, uma das metas fundamentais do Marquês é livrar-se do jugo inglês. Felizmente, o ouro do Brasil em muito ajudava no equilíbrio da balança comercial... 25 Como se vê, a reforma pombalina também não dá ensejo à emergência de uma consciência filosófica em Portugal, pois seria quase impossível conciliar o estímulo à produção do pensamento com o espírito pragmatista infundido no ensino e na administração. Consequentemente, o Brasil em nada se beneficiou do processo cultural, se é que assim podemos nos expressar, vigente em Portugal no século XVIII. Não obstante os esforços de Alcides Bezerra no sentido de mostrar que houve entre nós uma “Filosofia na Fase Colonial”, parece inconteste a fragilidade dos seus argumentos no que diz respeito à produção do pensamento. Falar de Filosofia não é o mesmo que ser filósofo. E é nesse equívoco que incorre Alcides Bezerra ao arrolar alguns nomes de intelectuais do período colonial como filósofos pelo simples fato de terem abordado alguns temas de ordem filosófica, sempre à margem das suas eventuais ocupações. (Cf. BEZERRA, Alcides. A Philosofia na Phase Colonial. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1955). 3. Os Inícios da Ilustração Brasileira Ficou claro, em linhas gerais, que o Brasil sob o “domínio” da cultura portuguesa, desde a longa pregação jesuítica até às reformas pombalinas, em nada prosperou em termos de uma instauração da cultura nacional. Figuras esparsas apareceram no cenário intelectual compondo apenas o quadro da pobreza cultural em que vivíamos, nada representando para a Filosofia. 26 O retoricismo que encontrou campo fértil na cultura portuguesa lançou seus reflexos diretamente sobre os nossos raríssimos intelectuais do século XVIII. Era o beletrismo na sua mais cabal representação. O exemplo do barroquismo do Padre Antonio Vieira foi largamente imitado, não se limitando apenas ao século XVIII mas difundindo o espírito retoricista ao longo de todas as posteriores tentativas de afirmação do espírito nacional. E até homens que granjearam fama no presente século como intelectuais se deixaram levar pelo verbalismo, como é o caso de Rui Barbosa. Destas questões trataremos mais tarde. O que imp orta agora é verificar como se formou aquilo a que chamamos de ilustração brasileira, tomando este termo para significar as primeiras tentativas no sentido de instaurar uma cultura nacional, isto é, a brasilidade do nosso pensar. É do consenso dos historiadores que a nossa emancipação cultural começa a ensaiar seus primeiros passos com a chegada da Corte de D. João VI ao Brasil, em 1808, transposta por circunstâncias por demais conhecidas. Aí teria início, concomitantemente, a aceleração do processo de independência polít ica a qu e D. Pedro I se viu mais tarde obrigado a se submeter. Com a fundação de algumas escolas superiores, tais como a de medicina, a naval, a militar, etc., D. João VI tem a oportunidade de iniciar uma verdadeira campanha no sentido de modernizar a nossa vida cultural. Combatido por muitos por ter-se preocupado apenas com o ensino das elites, não se pode negar o valor do seu trabalho, assessorado por homens de larga visão que se colocaram a seu serviço durante os anos em 27 que aqui permaneceu. Livre da interferênc ia dos jesuítas, o monarca tinha o espaço aberto às suas aspirações e parece que soube conciliar bem as necessidades de um ensino técnico, de que tanto carecia o Brasil, com aquelas de um ensino humanístico que levasse à formação integral do homem. A idéia da criação de uma universidade foi relegada a segundo plano, optando -se pelos estabelecimentos isolados de ensino superior. Aliás, esse espírito de desprezo pela Universidade vai ser fermentado com o advento da mentalidade positivista, francamente hostil a tal forma de organização do ensino. No caso de D. João VI, o que houve foi uma espécie de bloqueio por parte dos seus auxiliares diretos, quase todos comprometidos com a preservação do prestígio da Universidade de Coimbra, da qual eram egressos. É elucidativo o que escreve Oliveira Lima: Somente gorou o projeto de uma universidade – projeto acariciado pelo Rei, que chegou a convidar José Bonifácio para diretor dela, mas não igualmente favorecido por todos os seus ministros – pela tenaz oposição do ainda preponderante elemento por tuguês, o qual assim receava ver desa parecer uma das principais bases sobre que a metrópole assentava a sua superioridade. Na colônia existiam capacidades, bem se sabia no velho Reino, tanto melhor quanto o século 28 XVIII português fora intelectualmente de metade brasileiro. O que faltava em absoluto era universalidade de educação, justamente o que aquele desígnio aspirava a introduzir no nosso meio espiritual. Em compensação D. João VI e o Conde da Barca, inimigo político de L inhares e seu digno êmulo na inteligência e na cultura, deram princípio a uma Academia de Belas Artes... LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1945. 1º volume, p. 262. É plenamente admissível que a ilustração brasileira encontre suas origens nos inícios do século XIX, motivada pelo trabalho realizado pela Corte de D. João VI, interessada em se desvencilhar da vasta tradição legada pelos jesuítas que, apesar de afastados do campo educativo, ainda contavam com as ressonâncias do seu legado cultural. Hypólito da Costa, Evaristo da Veiga e outros acompanharam esses fatos. Hypólito, o primeiro grande jornalista a influenciar decisivamente os destinos nacionais através do seu Correio Brasiliense, não era um intelectual no sentido vigente do termo. Homem be m informado e estudioso dos problemas nacionais e internacionais, mantinha o Brasil a par dos temas mais palpitantes em debate, escudado no seu exílio na Inglaterra. Diga -se, aliás, de passagem, que apesar das perseguições sofridas em 29 Portugal, entre nós o primeiro assíduo leitor do seu jornal era o próprio D. João VI. De resto, suas publicações tinham curso livre em todas as partes do Brasil. Tolerado a princípio, proibido depois, o Correio Brasiliense se difundiu não obstante no Brasil, penetrando a fundo na opinião dos homens instruídos. Cada número trazia comentários políticos e econômicos, informações sobre o progresso técnico e científico, noti ciário amplo de política internacional, análise dos acontecimentos do Brasil. No conjunto, é o maior documento da nossa Ilustração e o mais agudo comentário à política joanina, equiva lendo como valor informativo, no pla no do pensamento, ao que são, no plano de puro registro dos fatos, às caras de Luiz José dos Santos Marrocos. Do refúgio de Londres, encas telado na cidadania inglesa, Hypólito educou as elites brasileiras segundo os princípios do liberalismo ilustrado, moderado, mas firme. CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1964, v. 1, 2ª ed., p. 259. 30 Não obstante a respeitável opinião de Antônio Cândido, não cremos que o interesse de Hypólito estivesse voltado para a formação da cultura nacional e muito menos para as questões filosóficas propriamente ditas. 4. Os Indicadores da Ilustração Brasileira É necessário retomar os temas esboçados anteriormente para fixar melhor alguns aspectos do processo cultural luso-brasileiro no sentido de verificar em que consiste a “instauração” da brasilidade dos nossos ilustrados. Já verificamos que o “iluminismo” pombalino está voltado para a assimilação e incorporação das ciências ao contexto do espírito de renovação, com a nítida intenção operatória. Formou toda uma geração dentro desse espírito de pragmatismo cientificista. Com isto, é intuitivo que a especulação metafísica só poderia ser considerada como “divagação cerebrina”, como diria mais tarde Augusto Comte. No caso concreto da “ilustração” portuguesa, as questões fundamentais da filosofia eram inscritas no universo daquilo que se chamou de saber ornamental. O entendimento de filosofia era outro. Talvez o inverso daquilo que se coloca nos horizontes de trabalho milenar dos filósofos. As ciências naturais é que vão compor o quadro das disciplinas filosóficas, dentro da nova orientação imposta por Pombal, a partir da reforma da Universidade de Coimbra. A Faculdade de Filosofia, juntamente com a de Matemática, estava incumbida de 31 formar naturalistas, metalurgistas, botânicos e outros especialistas ligados aos estritos domínios da natureza. (Cf. PAIM, Antônio. O Estudo do Pensamento Filosófico Brasileiro. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1979). É interessante notar que essa diretriz traçada pelo pombalismo destoa inteiramente de todas as orientações universitárias européias da época, já que estamos vivendo um período de intensa produção filosófica, no verdadeiro sentido do termo, nas instituições de ensino superior que marcaram de maneira grandiosa o espírito da ocidentalidade. Possivelmente, os pensadores ale mães e ingleses, para ficarmos apenas com dois exemplos, não tomaram conhecimento da inusitada atitude de Pombal frente à Filosofia. Um Kant, certamente, ficaria estarrecido diante da coragem do Marquês de Pombal... Entretanto, o confronto é dispensável, pois o poderoso Ministro tinha suas razões. Queria um Portugal modernizado e não um Portugal pensante. E, para tanto, bastaria uma espécie de ecletismo que conduzisse à realização do seu desideratum. Sob a educação pombalina é que se forma grande parte da elite que vai assumir a r esponsabilidade pela emancipação do Brasil. Dizemos grande parte porque uma pequena, mas poderosa elite, embora respirando o clima pombalino, não se deixará influenciar pela me trópole, buscando em outros países uma formação mais sólida. Embora seja impossível dissociar totalmente o processo político das tentativas de se estabelecer a 32 autonomia do pensamento brasileiro, cremos que a criação do Estado Nacional pode ser considerada como fato secundário em relação às questões filosóficas que vão ganhar espaço entre nós. Entretanto, essa questão não pode ser ignorada inteiramente, uma vez que os ilustrados brasileiros estão engajados no processo da independência política e, de certa forma, comprometidos com o mais amplo plano de emancipação cultural. Embora ligados aos laços de uma educação importada, os integrantes da chamada elite brasileira se voltam muito mais para os problemas políticos de premente solução do que para os temas intelectuais. Aí vemos a passagem, ou a transição para a instauração de um pensamento nacional independente. Não por obra daqueles que ainda estão comprometidos com a tradição portuguesa, como é o caso de José Bonifácio de Andrada e Silva, mas graças ao esforço de um grupo paralelo constituído de autênticos nacionalistas, decididamente voltados para a afirmação do pensamento brasileiro e, até certo ponto, alheios às querelas que se desenvolviam na ordem da afirmação do Estado Nacional. De tal forma eram esp acializadas as discussões em torno da independência política entre as elites formadas pelas mais diversas correntes, num misto de lusitanismo e brasileirismo, que os verdadeiros intelectuais iam-se afastando do palco para se dedicarem à criação do espírito. Haja vista aos exemplos de Torres Homem, Araújo Porto Alegre, Gonçalves de Maga lhães e outros. Eis porque poderíamos afirmar que a bra silidade dos nossos ilustrados se afirmou independente do processo de debates em torno na emancipação 33 política, sem excluir a importância global dos acontecimentos que foram levados na devida conside ração pelos arautos da nossa cultura. Para entender esta questão, basta verificar que o profissionalismo político é incompatível com a vida intelectual. Não é excludente, obviamente. Todo indivíduo age, de uma forma ou de outra, polit icamente, mas no sentido mais puro do termo, diferentemente daquele que faz da política uma profissão, conforme aconteceu com muitos patrícios no calor da criação do Estado Nacional. No sentido estrito da Filosofia, os “fundadores do Império brasileiro” não trouxeram nenhuma co ntribuição. Mas nem por isso mesmo poderíamos afirmar estarem eles distanciados da ilustração brasileira. Eram ilustrados políticos, apegados, quase todos, aos pre ceitos de uma educação adquirida em Portugal, não só sob a égide das reformas pombalinas m as também arraigadas na tradição jesuítica que não deixou de continuar exercendo sua influência sobre os espíritos esclarecidos. O movimento intelectual que assinala uma tomada de posição em face da necessidade de se instaurar a autonomia da vida intelectu al brasileira é de inspiração romântica e o seu momento se inscreve no mesmo instante dos debates em torno da questão política. Movida pelo ideal romântico, a vida intelectual brasileira começa, basicamente, pelo apego à literatura. O mais forte indicador dos inícios da nossa ilustração é a intensificação da produção literária nesse período. Refletindo a universalidade da concretização dos ideais 34 românticos nas artes em geral, os brasileiros caminham no sentido de produzir uma literatura que espelhasse o espírito nacional nas suas mais variadas manifestações, como de resto ocorria em outros países. A Filosofia é tratada como se fosse também uma das direções da literatura, isto é, o literato e o filósofo se confundiam. Exemplo importante dessa atitude encontramos em Gonçalves de Magalhães, do qual ainda falaremos. Para os historiadores da literatura ele é o introdutor do romantismo no Brasil, com os seus Suspiros Poéticos e Saudades (1836); para os historiadores da filosofia, uma das mais destacadas figuras da corrente eclética entre nós. (Cf. PAIM, Antonio. História das Idéias Filosóficas no Brasil. São Paulo, EDUSP-GRIJALBO, 1974, 2ª ed.). Muito se tem discutido em torno do surgimento da nossa literatura. Em que momento se instaura a literatura brasileira? Sabe-se, desde logo, que ao longo do período colonial as escassas manifestações literárias dos brasileiros refletiam, basicamente, as diferentes tendências estéticas vigentes em Portugal. Muitos histo riadores negam a existência de uma literatura brasileira nesse período. Os primeiros a defenderem tal posição são os historiadores portugueses, com seu velho espírito de paternalismo colonizador. Encontramos várias his tórias da literatura colocando autores portugueses e brasileiros na mesma ordem de análise como se todos pertencessem à literatura portuguesa. Tomam, geralmente, como referência a língua e não a nacionalidade. O que caracterizaria uma literatura seria a língua na 35 qual ela é corporificada e não o território em que é produzida. A outra corrente de historiadores e críticos é formada pelos nacionalistas brasileiros que defendem a existência de uma literatura autenticamente nacional. Toda essa discussão se trava com a emergência do romantismo. E é natural que assim seja, uma vez que as chamadas ciências históricas começam a ganhar corpo no momento em que o espírito romântico se traduz no sentimento de afirmação da nacionalidade. La moderna ciencia histórica es una planta joven. Surgió, como sabemos, por los estudios de Ernst Troeltsch y Friedrich Meinecke, a finales del siglo XVIII, de la oposición al concepto de historia propio de la Ilustración. Si hasta entonces habia dominado un tratamiento generalizador y pragmá tico del pasado, constituyendo al objeto essencial de la historia el progreso de la humanidade hasta el alto nivel alcanzado, ahora surgió del movimiento alemán, sobre todo del pensamiento de Herder, en el terreno del imperio recién fenecido, un nuevo sentido histórico. VOGT, Joseph. El Concepto de la Historia de Ranke a Toynben. Trad. de Justo Pérez Coral. Madrid, Ediciones Guadarrama, 1974, p. 19. 36 A historiografia agora está voltada para a descoberta e interpretação de sentido e da destinação da nacionalidade, reduzindo o seu âmbito de interesses à problemática interna de cada país. Era preciso intensificar o esforço no sentido de penetrar a fundo nas origens e na evolução de cada povo, emergindo daí os grandes monumentos de históricas nacionais, os tratados que se erigiam em verdadeiras empresas que ocupavam a vida inteira de diversos estudiosos. Nesse contexto, era natural o interesse pela discussão em torno da existência ou não de uma literatura brasileira. Do problema trataram principalmente autores estrangeiros. O primeiro historiador a se referir à literatura brasileira foi Friedrich Bouterwek (1765-1828) na sua História da Poesia e da Eloqüência Portuguesa. Assim mesmo só fala de Antonio José e Claudio Manoel da Costa. A este último faz referências altamente positivas ao apreciar os seus Sonetos. Mas, em conjunto, nenhum português, nos últimos cem anos, conseguira escrever sonetos como os de Costa, os quais se assemelham, de maneira mais encantadora, aos de Petrarca. Nos demais poemas desse brasileiro, as qualidades positivas mais agradáveis sobrepujam também amplamente os seus defeitos. Os sonetos recolhidos às suas Obras Completas são em 37 número de cem, entre os quais se encontram alguns em língua italiana, mas nenhum na espanhola. O estilo de seus sonetos, que quase todos celebram o amor, não é exatamente o de Petrarca. O autor tem algo de picante, em correspondência com o gosto da época. Mas os sonetos de Costa possuem rara expressividade e naturalidade poética sem quaisquer exageros e enf eites extravagantes; casam-se com a profundidade de sentimentos de Petrarca, e isso de modo tão feliz, em linguagem tão elegante e sincera, que tais sonetos podem ser considerados os mais perfeitos da literatura portuguesa. BOUTERWEK, F. História da Poesia e da Eloqüência Portuguesa. Trad. de Walter Koch. Citado por Guilhermino César in Historiadores e Críticos do Romantismo. São Paulo, EDUSP, 1978, p. 23. Aparecem outros autores tratando da literatura brasileira, tais como Ferdinand Denis com o seu Resumo da História Literária de Portugal, seguido do Resumo da História Literária do Brasil (1826), Ferdinand Wolf com o seu O Brasil Literário – História da Literatura 38 Brasileira (1863) e outros, como Almeida Garrett e Alexandre Herculano. Toda essa incipiente historiografia buscava, em ultima análise, estabelecer os quadros de referência de uma literatura consignada numa única língua e pertencente a dois países. O tema já foi exaustivamente tratado por Afrânio Coutinho no seu livro A Tradição Afortunada. Para o versado crítico e historiador da literatura brasileira, tudo aquilo que foi produzido por autores brasileiros pertence à literatura brasileira, não importando a fase histórica do seu aparecimento, contrariando, assim, a historio grafia literária portuguesa. ... Para ela, a literatura brasileira, é a literatura da era nacional, relegando a que surgiu durante a fase colonial para a literatura portuguesa, ou então, considerando-a, não como constituindo uma literatura, mas apenas manifestações literárias isoladas. Essa corrente é a da historiografia literária portuguesa, falando, compreensi velmente, em nome do interesse e segundo a perspectiva do povo colonizador, e de um grupo de brasileiros lusófilos que, influenciados pelo pensamento português, não tiveram a audácia de romper com essa tradição. 39 COUTINHO, Afrânio. A Tradição Afortunada. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1968, p. 9. De qualquer forma, a originalidade da nossa produção literária não está subordinada aos critérios valorativos da historiografia. Ela se afirma por si mesma, na medida em que os quadros da nacionalidade são definidos dentro de um espaço territorial. Não se pode confundir vida literária com os mecanismos do processo político. Uma apreciação serena das discussões nos levaria a encontrar subjacentes aos problemas suscitados as seqüelas deixadas pelo processo da independência. É o conjunto da alma nacional que rompe com a longa tradição colonial em todos os planos e se lança à tarefa de auto-afirmação. É claro que a literatura entra nesse processo como um dos fatores – senão o principal – da afirmação da nacionalidade. Mas isto não é razão para se afirmar que ela só aparece com a independência. O que ocorre é a intensificação do instinto de nacionalidade. Com a emergência da historiografia literária preocupada com a expressão da língua portuguesa, vamos encontrar um progressivo interesse da intelectualidade brasileira pela valorização do processo cultural como uma tarefa merecedora de toda a atenção. Quando o historiador realça a importância da atividade do espírito, certamente está prestando um serviço de incentivo a um país que se encontra ainda na sua infância cultural, caminhando os primeiros passos 40 no sentido de contextuar-se no universo da atividade criadora. Gonçalves de Magalhães, Francisco Adolfo Varnhagen e outros trouxeram, à época, contribuições importantes à nossa historiografia literária. Gonçalves de Magalhães funda em Paris a revista Niterói, ao lado de outros brasileiros, em cujas páginas aparecem os primeiros documentos mais importantes relacionados com a nossa historiografia literária, a partir do seu Discurso sobre a História da Literatura do Brasil, publicado em 1836, no qual encontramos uma franca inclinação pela autonomia da literatura brasileira. Antes de Magalhães aparece o Florilégio da Poesia Brasileira, em 1850, de Varnhagen, tido por muit os como o verdadeiro fundador da historiografia brasileira. Suas posições são também voltadas para o sentido de autonomia da nossa literatura. Em meio a todos esses movimentos de caráter literário e historiográfico, a filosofia vai lançando também suas sementes, embora possamos adiantar, desde logo, que se a emancipação literária alcançou pleno êxito, como se sabe, a filosofia terá que passar por vários momentos até chegar a um corpus refletidor do pensamento nacional, como veremos adiante. 41 CAPÍTULO II O PAPEL DO ECLETISMO NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO 1. Idéia do Ecletismo O ecletismo, ou atit ude eclética, se caracteriza pela intenção selecionadora das várias opiniões ou categorias de pensar surgidas ao longo da história da Filosofia. Não se trata de posições assumidas na modernidade ocidental, mas de um fenômeno que lança suas raízes na antiguidade grega, mais precisamente, no período helenístico-romano. Cícero, os neo-platônicos e tantos outros foram chamados de ecléticos, na medida em que buscavam assimilar parte das doutrinas dos filósofos, incorporando-as ao seu próprio discurso, legitimando, assim, aquilo que julgavam não poder ser abandonado simplesmente, ou relegado a segundo plano. Discordam-se das orientações dos filósofos, mas sempre encontram uma ou outra idéia que pode ser integrada ao modo de pensar, sem desfigurá-lo. Esta atitude percorre toda a história da filosofia, trazendo sempre a crença de que em cada sistema filosófico existem posturas importantes a serem aproveitadas. Aliás, é apenas uma questão de realce do termo que, muitas vezes, é substituído pelo de sincretismo. 42 Ao iniciar um itinerário filosófico, nenhum pensador pode desconhecer o passado daquilo que pretende fazer. Interrogando sobre uma questão, é necessária uma vigilância em torno do conjunto de problemas e circunstâncias que a envolvem. Assim, quase sempre nessa perquirição encontramos vestígios acentuados do pensamento já produzido. Daí a constante afirmação de que há uma corrente de influências em todo o movimento da história da filosofia, determinando a sinuosidade dos caminhos traçados no desenvolvimento da doutrina dos filósofos. Considerando o ecletismo de maneira radical, poderíamos afirmar que todos os filósofos são ecléticos, na medida em que, de uma forma ou de outra, estão sempre comprometidos com a herança da meditação. En toda la vida del espiritu, y especialmente en la cultura y la inves tigación cientifica, no se conservan las adquisiciones realizadas sino manteniendo su vida activa, vale decir, desarrollándolas continuamente. MONDOLFO, Rodolfo. Problemas y Metodos de Investigación en la Histo ria de la Filosofia. Buenos Aires, EUDEBA, 1963, p. 15. Não pode existir filosofia sem história da filosofia, assim como não haveria história da filosofia sem filosofia. Ambas as atividades – do historiador e do filósofo – são indissociáveis. O discurso do historiador 43 das idéias é elaborado sobre a teia de problemas que inquietam os pensadores no jogo constante das categorias elaboradas com vistas à ampliação do campo operatório do saber. Desta forma, não há como negar que o historiador da filosofia é também filósofo. Esta é uma tese que, parece, já ganhou o consenso de tantos quantos trabalham com a filosofia e, por isso mesmo, sentimo-nos dispensados de aprofundar a questão. Bastaria citar mais uma referência para que fique bem documentado o que pretendemos desenvolver, em rápidas palavras. Y aqui precisamente nos encontramos con el principio estabelecido por G.B. Vico, al afirmar que “la naturaleza de las cosas es su nacimiento”, o sea que la constitución y essencia de qualquier realidad se encuentra y se revela sobre todo en el proceso de sua formación. Aplicado a la filosofia y a sus problemas, este principio nos orienta en el reconocimiento de la vinculación constante de la filosofia com su propria historia, que cons tituye el proceso de su formación y desarrollo. Toda investigación teórica, por lo tanto, que quiera encontrar con mayor seguridad su camino, supone y exige como condición previa una investigación historica referente al problema, a su desarrollo, a las solu 44 ciones que se han intentado del mismo. MONDOLFO, Rodolfo. Op. cit., p. 28. De uma leitura mais aprofundada destas observações podemos inferir que os movimentos ecléticos se delineiam no desenrolar do contexto global da filosofia, embora se aflorem salientemente apenas em de terminados momentos históricos. A rigor, toda filosofia é eclética, distinguindo -se apenas pela direção assumida com maior intensidade. Quem pode negar a influência da física newtoniana exercida sobre Kant? Ou das ciências da natureza em geral sobre Augusto Comte? Ou da fenomenologia sobre os existencialismos? Seria infindável a rede de exemplos, desde a Grécia antiga até aos nossos dias. É interessante salientar que não se pode confundir a subjacência do espírito eclético ao longo da história da filosofia com as chamadas “seitas ecléticas” com configurações definidas e assumidas. As seitas ou escolas ecléticas têm uma caracterização própria que se resume na adesão ou assimilação de todas as formas de pensar que traduzam um consenso no plano da busca da verdade. Para ficarmos apenas com um exemplo que nos parece importante, seriam oportunos os indicadores do pensamento escolástico, no qual as disputas são férteis em matéria de recurso às mais variadas “autoridades” do saber, culminando com a agregação de inúmeras orientações filosóficas quando da instituição da 45 Universidade de Paris, no século XIII. As doutrinas de São Tomás e de Santo Agostinho são predominantes, mas formam aí uma verdadeira escola eclética, muitas vezes demandando a interferência das autoridades eclesiásticas para dirimir conflitos de interpretação ou de condução de problemas mais intrincados na estrutura do ensino. On se trompe complètement lorsqu’on pense que les philosophes scolastiques ont ignoré le problème de la systematisation scientifique. On a parfois évoqué, a propos de la pensés médiévale, l’image du cercle ou du système fermé: chaque point de la doctrine supposerait tous les autres, sans qu’on puisse assignar au système un point de départ ou une entrés. Cette conception est due à l’ignorance de la littérature philosophique du moyen âge. Jusqu’à la fin du siècle dernier, la pensés médiévale a eté connue surtout à travers la littérature théologique des commentaires sur les Sentences de Pierre Lombard, des sommes théologiques et des disputes scolaires. Or cette littérature ne traite pas ex professe de philosophie; elle se borne à utiliser, solon ses méthodes propes, les thèmes philosophiques qui l’inté46 ressent; tout au plus y trouve-t-on l’élaboratio philosophique de certaine problèmes déterminés; la systématisa tion, dans la mesure aú elle existe, Y est d’ordre théologique. STEENBERGHEN, Fernand Van. La Philosophie au XIIIe Siècle. Louvain, Publications Universitaires, 1966, pp. 120-121. Na ordem geral da filosofia nascida e desenvolvida sob a inspiração do cristianismo durante vários séculos encontramos uma tensão persistente entre as várias doutrinas e, principalmente, em torno do modo pelo qual a herança grega é recebida e assimilada no processo de formação da cultura medieval, por sinal riquíssima e pouco explorada pelos pensadores de língua portuguesa. Também na trajetória do pensamento moderno vamos encontrar várias seitas ecléticas, a par tir do movimento renascentista, em cujo cerne se tenta conciliar as doutrinas de Platão e de Aristóteles, entre outros, com a instituição de academias destinadas à aglutinação das diversas tendências no sentido de instaurar o novo humanismo, isto é, os studia humanitatis. Como se vê, para muitos filósofos pode parecer uma atitude um tanto dispersiva aquela assumida pelos ecléticos, já que, implicitamente, fica descaracterizada a tentativa de criação do saber com a predominância de novos referenciais teórico s. Reunir as categorias mais 47 importantes dos vários filósofos e com elas operar, independente de um impulso renovador que conduza a um sistema próprio, pode parecer uma atitude bastante cômoda frente à filosofia. Em todo caso, trata-se de um fato constatável que ensejaria muito mais uma análise diacrônica do que um aprofundamento nas razões da sua emergência. As “seitas ecléticas” insinuam a super posição de um modo de pensar meramente coordenante em relação aos sistemas filosóficos, operando o campo comum das temáticas aprofundadas pelos filósofos. Elas formam como que um espírito de consenso, de aceitação daquilo que julgam melhor no conjunto do pensamento filosófico, e nunca uma doutrina. O próprio termo “seita”, largamente utilizado pelos historiadores d a filosofia no tratamento do ecletismo, denuncia o sentido de crença em certos princípios norteadores da conduta do pensamento. 2. O Ecletismo no Pensamento Francês do Século XIX O ecletismo francês foi o único movimento desta natureza a ganhar considerável repercussão na história da filosofia. Por longos anos exerceu o papel de uma verdadeira corrente filosófica, disseminada em alguns países, valendo-se de um momento histórico em que os modos de pensar não encontravam uma saída para os seus vários impasses. De um lado, a forte predominância do naturalismo e do cientificismo trazia para o campo da discussão a 48 temática da valorização da razão advinda do ilu minismo, conjugada com as aporias surgidas nas posições assumidas pelos empiristas que pareciam interditar os caminhos de uma doutrina moral consistente. Por outro lado, a um enfraquecimento dos impulsos do pensamento racional-operatório, levando o homem a um estado de ceticismo egóico, “ensimesmado”, que resultaria numa espécie de apatia e desencanto com a realidade, num clima de “tempestade e ímpeto” (Sturm und Drang). O espírito do século XIX reflete a perplexidade do homem posto num complexo de encruzilhadas e não muito disposto a enfrentar as opções. O progresso da razão kantiana encontraria em Hegel um artificioso edifício do progresso da idéia em busca do absoluto, mas com categorias distintas e sempre voltado para a objetivação, encerrando a trilha histórica dos sistemas filosóficos. De Kant a Hegel encontramos, no plano da filosofia, um itinerár io marcado pela preocupação com o processo histórico, com o vivido de uma Europa tumultuada. A liberdade, a dignidade e a grandeza do homem são impulsos subjacentes ou explícitos no pensamento kantiano, levando-o a uma constante preocupação com a inserção do homem na vida social e histórica. A verdade consubstanciada na própria história é uma das convicções básicas do hegelianismo, muitas vezes relegada a segundo plano por alguns historiadores da filosofia. Homem do século XVIII, amadurecido no século XIX, Hegel deixa transparecer constantemente na sua obra a influência de Rousseau, de Montesquieu e da 49 linha de pensadores responsáveis imediatos pelos mais diversificados traços que caracterizaram o espaço de pensar a partir da ordem da subjetividade. Mas não se deixa levar pela generalizada atitude de isolamento, de “interiorização”, como um estado de espírito incapaz de arriscar-se ao jogo imprevisível da História. Es posible preguntarse de quién tomó Hegel expresiones como espiritu y genio de un pueblo. Ant e todo se piensa en Montesquieu, a quién Hegel habia estudiado particularmente y al que se refiere muchas veces. En Montesquieu la búsqueda de las leyes generales no excluye el estudio de las diferencias y de las especificaciones. Buscando el espiritu de las leyes Montesquieu quere descubrir las relaciones que tienen las leyes con el medio geográfico o con “el espiritu general de una nación”. …………………………...................... Pero de hecho no es el contrato, como contrato, lo que impresionó sobre todo a Hegel, sino la idea de voluntad general sobre las voluntades individuales, y el echo de considerar al Estado como voluntad es, para Hegel, el gran descubrimiento de Rousseau. HYPPOLITE, Jean. Introducción a la Filosofia de la Historia de Hegel. 50 Trad. de Alberto Drazul. Buenos Aires, ediciones CALDEN, 1970, pp. 25-26. Depreende-se de tudo isto que o chamado idealismo hegeliano não perde o contato com a concretude da existência histórica, haurindo das fontes do iluminismo a inspiração para a reto mada do sentido de totalidade. Mas não nos esqueçamos de que Hegel, como homem da primeira metade do século XIX, está vivendo também a efervescência do espírito do nacionalismo manifestado nos diversos Estados. A ânsia em torno das origens da nacionalidade acompanha o processo de formação das ciências históricas que buscam sedimentar-se com recursos à filologia, à etnologia, às produções literárias primitivas e outras manifestações culturais de cada povo. Hegel está atento à necessidade de uma articulação das idéias como frutos da liberdade, com o movimento oscilante da história, certo de que a guerra é uma constância e ao mesmo tempo uma necessidade. Influência de Heráclito ou excessiva admiração por Napoleão Bonaparte, cujos feitos e vitórias aplaude incondicionalmente? O espírito objetivo encontra a sua realização no direito, na moralidade e na eticidade. É uma presença que se desarticula da subjetividade, isto é, uma presença sem sujeito, embora com a característica de espírito. O itinerário da filosofia hegeliana nos mostra uma constância de preocupações com o cristianismo e com a tradição judaica desde os inícios de sua formação, salientando a distinção entre uma religião natural e uma 51 religião positiva. A religião natural, vivida pelos povos antigos privilegiava a harmonia do homem com a polis, esvaziando o seu apego à propriedade privada e colocando-o como inserção na órbita da vida pública, no exercício da filia comprometida com a liberdade. A religião positiva, ao contrário, oprime os indivíduos através de leis e princípios rígidos, descaracterizando o verdadeiro sentido da religião, fato que marca a emergência do cristianismo. É no seio da tradição cristã que vamos encontrar a assimilação do binômio senhor escravo, não em virtude da condição finita do homem frente à infinitude, mas em face de uma relação que se estabelece entre um ser decaído e um Deus situado acima de todas as coisas, diante do qual nós somos reduzidos à impotência e à escravidão. También el joven Hegel – como mostraremos detalladamente a continuación – ha visto en la antigua cuidadestado (polis) no un fenómeno social pasado y caducado, surgido en determinadas condiciones concretas y desaparecido en otras, sino el modelo eterno, el prototipo inalcanzado de una modificación actual de la sociedad y del Estado. LUKACS, Georg. El Joven Hegel. Trad. de Manuel Sacristan. Ediciones Grijalbo, S.A., Barcelona-México, D.F., 1972, p. 37. 52 Estas considerações podem dar a ente nder que Hegel foi um ardoroso adversário do cristianismo. Mas isto não ocorre, ao que se infere do conjunto dos seus escritos sobre o cristianismo e sobre a religião em geral. O destino da religião é a edificação do reino de Deus através de uma ação moral, até certo ponto des comprometida com a crença e mais ligada à história concreta do homem, como autoconsciência. Según la concepción del joven Hegel, este período del despotismo dura hasta el presente y penetra todas las manifestaciones de la vida social y de la ideologia. El joven Hegel enjuicia la decadencia del hombre principalmente según la medida en que el hombre se ha adaptado a la pérdida de la libertad, según la medida en la cual las cuestiones ideológicas se resuelven en dirección hacia la libertad o hacia el sometimiento bajo la positividad. LUKACS, Georg. Op. cit., p. 50. O problema da liberdade para Hegel se transforma no objeto central da filosofia da histó ria. A filosofia da história é nada mais nada menos do que a história do surgimento da idéia de liberdade encarnada no processo histórico. A religião é libertadora e a sua positividade “limitadora” deve ser substituída pela idéia de destino, em cujo lugar poderá ser encontrada a 53 reconciliação. A religião positiva está circunscrita à moralidade individual, como sedimento da sua for mação, mas acima desta se encontra a “religião de um povo”, como movimento de reconciliação do indivíduo com a totalidade e com a liberdade. O espiritualismo ou ecletismo se desenvolve nessa atmosfera histórico-filosófica, cuja riqueza de sugestões parece ter passado desapercebida aos olhos dos seus mais dotados representantes que bem poderiam ter aprofundado o diálogo com Hegel e outros pensadores importantes da época, no sentido de colocar em plano firme as indagações inspiradas no espiritualismo cristão. É verdade que o sistema hegeliano nã o encontrou “retumbância” na sua época, principalmente na França, Ficou, de certa forma, esquecido durante muitos anos por parte de muitos pensadores e profissionais da filosofia. O que houve foi uma reação contra o seu sistema, a começar por Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. Mas não faltaram aqueles que desejavam encontrar um ponto de partida para combater radicalmente a religião, principalmente a doutrina cristã. Dentre estes, o mais importante é Feuerbach. Na sua obra A Essência do Cristianismo acaba por reduzir a teologia à antropologia, concebendo Deus como homem e o homem como Deus. O que distingue a postura de Feuerbach da de Nietzsche, neste sentido, é o caráter de rigor e de busca de coerência sistemática nas analises das categorias do cristianismo, talvez em virtude da influência imediata do pensamento de Hegel. Ao invés de tomá-lo como objeto de combate, pura e sim54 plesmente, Feuerbach aprofunda as questões ligadas à religião, tirando suas conclusões no plano daquilo a que se propunha. O ecletismo francês também não deixa de ser uma reação ao absolutismo dos sistemas, inspirada no tradicionalismo dos filósofos católicos que se insurgem contra o racionalismo iluminista, frente à necessidade de restaurar os valores destruídos pela Revolução. Po deríamos afirmar, desde logo, que se trata de um movimento em torno de ideais religiosos e que as indagações filosóficas constituem apenas o pano de fundo cuja missão pré-determinada é sustentar teoricamente a vigência do espiritualismo. Daí a busca das “verdades” onde quer que elas se encontrem, formando um redil em que são acolhidas quaisquer idéias que não colidam com as verdades estabelecidas pelo cris tianismo. Mas é preciso deixar claro que não se trata de exclusivismo em relação ao espiritualismo cat ólico. Trata-se de um amplo combate ao materialismo, ao empirismo, ao positivismo e a todas as demais formas que privilegiam a matéria em detrimento do espírito. Assim, ao lado daqueles pensadores engajados e comprometidos com a ortodoxia católica encontra mos vários outros defendendo idéias semelhantes mas alheias ao dever de fidelidade à doutrina cristã. A interioridade é colocada como a fonte de onde emanam as categorias do pensamento. Da intimidade irradia o conhecimento, pois aí se situa o espírito como autoconsciência imune aos apelos da matéria que pode levar o homem à insegurança e desviá-lo do verdadeiro conhecimento. 55 As duas figuras apontadas pelos historiadores como mais importantes do ecletismo francês são representadas por Maine de Biran (1766-1824) e Victor Cousin (1792-1867). Maine de Biran desenvolve um pensamento caracterizado pela fragmentação – como de resto não é fato isolado – mas coerente com o espiritualismo cuja fonte originária se encontra no plano da interioridade. Com esta atitude, acaba por influenciar as filosofias intuicionistas, de Bergson a Farias Brito, embora este último pensador não tenha mantido contato direto com o conjunto da sua obra que vem a público entre 1920 e 1940, em 14 volumes, sob os cuidados de P. Tisserand e H. Gouhier. Preocupou-se basicamente com a psicologia e com a moral, disciplinas por ele tratadas a partir da sua vivência interior. Nesse sentido ele se aproxima de Kierkegaard, uma vez que o seu pensamento é uma espécie de auto-biografia, de testemunho vivo daquilo que se origina na sua consciência como intimidade a partir da qual o saber é construído. Combatendo o sensualismo dos ideólogos em geral, Maine de Biran afirma o primado do esforço revelador do eu consciente que exerce uma ação constante sobre a oposição da corporeidade. Esta luta do eu acaba por se transformar em liberdade fundante do próprio eu, enquanto ação plena de sentimento. Pues bien, si empezamos por concentrarnos dentro de los limites de la observación interior, o de los datos del sentido intimo, el pensamiento 56 primitivo no es otra cosa que la conciencia de la individualidad per sonal expresada por el vocabulo yo. Ese pensamiento admite dos elementos diferentes que no se dejan llevar a la unidad absoluta, si no es saliéndonos del punto de vista de la experiencia interior, para entrar en el campo de las abstracciones o de los sistemas aprioristas, es decir, par tiendo de creencias necesarias o de nociones intelectuales dadas, como de principios generadores de la ciencia humana. BIRAN, Maine de. Autobiografia. Trad. de Juan Segura Ruiz e outro. Aguilar Argentina, Buenos Aires, 1967. A atividade do pensamento se exerce sobre a passividade do não-eu, como espaço da exterioridade. Daí a dualidade entre hábitos passivos e hábitos ativos. Os atos perceptivos não podem ser reduzidos à sensação, na linha da tradição empirista, já que existe uma espécie de energia interior que impõe seu exercício sobre a realidade, como liberdade criadora. É inte ressante observar que Maine de Biran, nos seus estud os de psicologia e de antropologia, identifica a metafísica com a psicologia, no esforço de privilegiar a inte rioridade geradora das idéias, cuja concreção espa cializada se transforma em força. 57 Y al meditar así en que la conciencia, es decir, el sentimiento idéntico que invariablemente experimentamos de nuestra existencia particular, o de nuestro yo, deberia alterarse más que las restantes modificaciones sensibles, si no tuviese un caráter essencialmente distinto del de las sensaciones transformadas, llegaba ya entonces con toda naturalidad a la conclusión de que el yo, la persona, tenia su fundamento, o su manera de se5r primera, en la atividad esencial al alma humana; afirmaba que el yo no era otra cosa que el sentimiento de la fuerza activa y actuant e en cada momento para imprimir al cuerpo los movimientos de traslación encaminados a desplazarlo, a transportarlo en el espacio, a situar sus distintas partes al alcance de los objetos o de las causas de sansaciones; en una palabra, a servir en muchos casos de instrumentos necesarios de estas mismas sensaciones. BIRAN, Maine de. Op. cit. O pensamento de Biran parece a mais séria indagação em torno dos fundamentos do espiritualismo aparecido no seio do ecletismo francês, acentuando 58 questões relevantes e originais, dentro de uma argumentação sistemática contra o sensualismo dos ideólogos e contra todas as formas de empirismo. A questão dos fundamentos da moral com a qual se viam envolvidos os pensadores mais representativos da sua época encontra nele os alicerces mais sólidos e consistentes, se levarmos em conta os pressupostos cristãos na elaboração do discurso ético. Nesta ordem de pensar, Maine de Biran trouxe uma contribuição importante que muito se aproxima daquela empreendida por Henri Bergson, mais t arde, no sentido de restaurar os fios condutores da metafísica, com uma meditação da qual tiraram proveitos os pensadores cristãos das primeiras décadas do nosso século. A rigor, Maine de Biran não pode ser rotulado de eclético. O seu pensamento se desenvolve num plano autônomo, com um percurso de indagações que não pode ser confundido com as frágeis posições daqueles que assumiram conscientemente o ecletismo como universo de legitimação do discurso filosófico. O verdadeiro fundador do chamado ecletismo espiritualista é Victor Cousin. Para ele não existe ao longo de toda a história da filosofia qualquer sistema filosófico que possa ser rejeitado in totum. Em cada um dos sistemas pode ser encontrado sempre um conjunto de verdades “aproveitáveis”, o que o leva a acreditar que todas as veredas da filosofia já foram esgotadas. Trata-se, como se vê, de uma cômoda atitude frente ao desafio da realidade histórica, no interior da qual via o pensador francês a possibilidade de articular as categorias da Filosofia com as mais variadas tendências 59 políticas, principalmente no plano dos governos mo nárquicos, concebendo a meditação filosófica como indissociável da ação política. A Filosofia consistiria, basicamente, no espiritualismo, mas o ecletismo é o seu princípio fundamental no caminho da praxis. É a diretriz que deverá orientar a ampla atividade do homem como inserção na história, em busca de alicerces para uma ordem política, moral, religiosa e cultural, numa sistemática de poder vigente. A análise da interioridade deve contar com o instrumento da razão que garantiria a cientificidade da própria metafísica, adotando proce dimentos no sentido de chegar ao estabelecimento de leis tão precisas como as da física. Situando a psicologia em plano tão ambicioso, Cousin acaba reduzindo os fundamentos da metafísica ao espaço da articulação rigorosa do discurso psicológico. A razão emerge da consciência como seu fruto imediato, apreende a realidade no seu sentido de totalidade, partindo dos dados imediatos da própria consciência . Há em Cousin um constante recurso a Deus quando a racionalidade se surpreende em dificuldades para clarificar certas instâncias da ordem psicológica na sua tentativa de atingir o espaço da ontologia, como se a idéia de Deus pudesse justificar todas as su as incoerências. A sua idéia de Deus não é aceita pela ortodoxia cristã, pois ela assume diversos papéis e momentos distintos. Sob a influência de Hegel, Cousin às vezes faz de Deus a unidade dos contrários, não se apercebendo das inúmeras implicações de tal procedimento em relação às instâncias de saber que pretende atingir. 60 Eivado de equívocos e incoerências, o espiritualismo eclético de Cousin será muito mais o suporte da sua retórica a serviço da política da filosofia do que mesmo uma contribuição à reorientação do discurso filosófico. Com efeito, os seus escritos filosóficos estão estreitamente articulados com a sua prática política. E, enquanto político da filosofia, seu êxito é inegável, conseguindo transformar o ecletismo espiritualista em filosofia oficial da França durante longos anos, até à década de quarenta do século passado, quando começa a ser combatido em várias frentes, acabando por cair no descrédito, atingindo as raias do ridículo. Durante o seu “império”, conseguiu manter um controle rigoroso do pensamento filosófico, mormente quando, de posto em posto, chega ao cargo de Ministro da Instrução Pública. A atividade filosófica se trans forma no ingrediente do nacionalismo exacerbado que o pensador francês assume através de uma prática efetiva fermentada pelo seu notável estilo oratório. Numa obra escrita sobre a filosofia da Idade Média, tece longas considerações laudatórias a Pierre Abélard, deixando um espaço reduzido para Roger Bacon. A propósito desse período da história da filosofia trata apenas dos dois pensadores citados. E começa: Nous avons fixé ailleurs le caractère gènèral, marqué les diverses périodes, signalé les grands noms, esquissé les principaux systèmes de la philosophie scolastique. Cette philosophie est 61 particulièrement l’oeuvre de la France, qui produisit, forma ou attira les docteurs les plus. L’Université de Paris est au moyen âge la grande école de l’Europe. Or, l’homme qui par ses qualités et par ses défauts, par la hardiesse de ses opinions, l’eclat de sa vie, la passion innés de la polémique et um rare talent d’enseignement, concourut le plus à accroîte et a répandre le goût des études et ce mouvement intellectuel d’où est sortis au treizième siècle l’Université de Paris, cet homme est Pierre Abélard. COUSIN, Victor. Philosophie du Moyen Age. Durand-Didier, Paris, 1865, p. 1. De um modo geral, todos os escritos de Cousin são formulados numa linguagem em que predomina o espírito do retoricismo e a intenção de exaltar os valores nacionais, ignorando, propositadamente, quaisquer figuras que se coloquem acima da tradição do pensamento francês. Não se pode creditar nenhum indício de serenidade a essa atitude. Ao contrário, a embriaguez do nacionalismo e a volúpia do poder fazem de Cousin muito mais um “arauto de novos t empos” escudado em idéias inconsistentes do que um espírito voltado para a especulação filosófica. Parece-nos, por isto mesmo, que o seu esquecimento e o de seus discípulos por parte dos 62 historiadores da filosofia não é injusto, valendo salientar que isto ocorre mais acentuadamente na sua própria pátria do que em outros países onde teve influência destacada no momento em que assegurava à França o predomínio das duas idéias. Do interior do ecletismo espiritualista o que teve maior ressonância foi o retoricis mo inflamado, inteiramente incompatível com a atitude filosófica. O gosto pela sublimidade de um estilo abstrato se descomprometia com a razão, espalhando -se das severas cátedras universitárias aos auditórios onde eram debatidos os problemas políticos, com o mesmo ardor triunfante adequado ao passionalismo das massas. Estranhamente, o coração substitui a razão e a serenidade em todos os espaços do discurso eclético; e Victor Cousin não foge à regra, tanto nos seus escritos supostamente filosóficos quanto nas suas atitudes políticas semeadas numa nação ávida de afirmação e de hegemonia. Apesar de toda a parcialidade que caracteriza a obra de H. Taine sobre o ecletismo, não podemos negar, em grande parte, aquilo que escreve sobre Victor Cousin. Cita Taine um texto elucidativo dos seus argumentos contra o ecletismo: Mon âme m’échappe malgré moi, et je ne puis consentir à garder les biensèances que m’inspire ma faiblesse, au point d’oublier que je suis Français. C’est à ceux de vous dont l’âge se rapproche du mien que j’ose 63 m’adresser en ce moment; à vous l’unique soutien, la dernière espérance de notre cher et malheureux pays. Messieurs, vous aimez ardemment la patrie. Si vous voulez la sauver, embrassez nos belles doctrines. Assez long-temps nous avons poursuivi la liberté à travers les voies de la servitude. Nous voulions être libres avec la morale des esclaves. Non, la statue de la liberté n’a point l’intérêt pour base, et ce n’est pas à la philosophie de la sensation et à ses petites maximes qu’il appartient de faire les grands peuples. Soutenez la liberté française encore mal assurée et chacelante au milieu des tombeaux et des débris qui nous enviornnent, par une morale que l’affermisse à jamais; et cette forte morale, demandons-la à jamais à cette philosophie généreuse, si honorable pour l’humanité, qui, professant les plus nobles maximes, les trouve dans notre nature, et qui nous appelle à l’honneur par la voix du simple bon sens. – Sorti du sein des tempétes, nourri dans le berceau d’une révolution, élevé sous la mâle discipline du génie de la guerre, le dix -neuvième siècle ne peut en verité contempler 64 son imagem et retrouver ses instincts dans une philosophie nés à l’ombre des délices de Versailles, admira blement faite pour la décrépitude d’une monarchie arbitraire, ais non pour la vie laborieuse d’une jeune liberté environnée de périls. COUSIN, Victor. Cours de l’Histoire de la Philosophie. T. II, p. 233. In TAINE, Hyppolite. Les Philosophes Classiques du XIXe Siècle. Hachette, Paris, 1910. É quase irresistível o apelo à concordância com a opinião segundo a qual a “oratória filosófica” de Cousin seria hoje considerada um repertório de ilações voltadas para interesses imediatos que só encontraria ressonância entre ingênuos letrados de províncias bem distanciadas dos centros de produção do saber da filosofia. Qualquer indivíduo de mediana cultura filosófica não conseguiria avançar na leitura do seu Cours de l’Histoire de la Philosophie ao se deparar com o texto acima transcrito, a não ser por mera curiosidade. E se aceitarmos a tese de que a necessidade do redimensionamento do espírito da nacionalidade francesa frente à instabilidade política o teria levado à prática da filosofia a serviço do Estado, estaremos negando o sentido da própria Filosofia. Heg el também viveu os instantes de uma Europa fragmentada e é proverbial a sua admiração por Napoleão. Mas nem por isto se deixou envolver, no trato das questões filosóficas, pelas mesmas paixões que arrebataram 65 Cousin na sua França particularmente mergulhada em crise. A Filosofia é o caminho da praxis, como a entendeu Hegel, e não o discurso movediço que se confunde com os mais variados níveis do fluxo da consciência para se transformar num instrumento de salvação do Estado, dentro dos princípios cristãos, c omo a entendeu Victor Cousin. É inegável, no entanto, a existência de uma parte positiva na atividade desenvolvida por Cousin, prin cipalmente aquela que diz respeito à exaltação da liberdade e dos princípios morais. Por outro lado, foi ele um incansável lutador no plano das reedições das obras importantes de filósofos representativos do passado, tais como Descartes, Platão e outros, cujos critérios de escolha obedeciam sempre aos interesses da sua visão dos problemas. De qualquer forma, não vemos como incluir Cousin na tradição do pensamento filosófico. O sig nificado do seu ecletismo poderia ser encontrado nos estritos limites do contexto histórico em que viveu, não tendo deixado raízes aprofundadas que pudessem levar a uma continuidade das investigações r elativas à sua escola. O tratamento histórico do espiritualismo é muito escasso e começa a desaparecer com a morte do seu líder e com a dispersão dos seus discípulos. São raras as páginas dedicadas a esse movimento pelos grandes historiadores da filosofia, quando não ocorre estarem ausentes de importantes tratados de crítica diacrônica das idéias. Dir-se-ia que isto se deve ao impulso da orientação positivista que combatia radicalmente o 66 espiritualismo e qualquer forma de especulação metafísica. Mas não foram os positivistas os únicos responsáveis pela destruição do ecletismo. De um modo geral, houve uma espécie de desprezo generalizado ao ecletismo, em virtude da sua insignificância para a filosofia, por parte de todos os pensadores cujas obras sobreviveram ao tempo, exceto no que diz respeito aos pensadores católicos que sempre encontram algo de interessante nesse movimento, obviamente em função do espiritualismo. 3. A Contextualização do Ecletismo no Brasil As circunstâncias históricas por que passava o Brasil na primeira metade do século XIX, envolvido com o processo de independência que implicava, num amplo sentido, a formação de uma nova mentalidade, tanto no plano administrativo quanto no universo do processo cultural, ensejou a necessidade de encont rar, em outros países, um quadro de categorias que pudessem contribuir na elaboração de um pensamento nacional. A intelectualidade brasileira era formada no estrangeiro, com ênfase, na primeira fase, em Portugal e, na segunda, na França. Portugal, nos primeiros momentos de efervescência do Romantismo, exercia grande atração sobre os jovens. O processo de nossa emancipação fermenta nos nossos intelectuais o espírito de hostilidade à cultura portuguesa, decorrendo, desse 67 fato, a minimização da influência da cultura lusitana sobre a cultura brasileira. Saídos de um longo período de colonização, era natural que os brasileiros se mantivessem arredios a fontes de saber situadas no próprio solo da dominação. E nem haveria razão para continuarem ligados aos mesmos laços, já que pouca ou nenhuma contribuição a mãe-pátria havia dispensado aos nossos patrícios. Por outro lado, a tradição do pensamento francês era um chamado irresistível. Inúmeros brasileiros passam a estudar e a viver por períodos intermitentes na França, de lá orientando a vida cultural do Brasil que atinge sua independência literária em pleno Romantismo. Vige, então, na França, o espiritualismo eclético de Victor Cousin, como filosofia oficial. Oficializar a filosofia significa abastardá-la, desviá-la do seu caminho, destruí-la, finalmente. Pois é nesse círculo que o pensamento francês se desenvolve até à década de quarenta do século passado. E é nesse momento que ali se encontram alguns brasileiros aficcionados da Filosofia, dentre os quais se coloca a figura de Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882). Na sua História das Idéias Filosóficas no Brasil. Antônio Paim afirma: A filosofia de Cousin foi relegada a um plano inteiramente secundário pela posteridade. Emile Brehier resume do seguinte modo a opinião que dele fa zem os filósofos contemporâneos: 68 “Cousin é mais orador que filósofo e seu pensamento é o fruto natural desta educação puramente foral e humanista, quase estranha à cultura científica que se dava nos liceus imperiais”. Essa circunstância parece haver dis pensado os estudiosos do pensamento filosófico brasileiro de uma análise mais profunda do significado da influência de Cousin na formação da cultura brasileira. É impossível entretanto ignorar essa profunda identificação do ecletismo com o espírito nacional em processo de estruturação. A Escola Eclética, além da primeira corrente plenamente configurada em nossa terra, revela uma vitalidade inusitada. PAIM, Antonio. História das Idéias Filosóficas no Brasil. EDUSPGRIJALBO, 1974, 2ª ed., p. 207. Note-se que Antônio Paim está falando da influência do ecletismo no Brasil, o que não pode nos levar à aceitação dos seus fundamentos. Nem isto é sugerido no texto acima. A Escola Eclética conseguiu estruturar-se no Brasil, indiferente aos seus pressupostos de ordem estritamente filosóficos. Não seria apressado afirmar que o espírito retoricista e o espiritualismo foram os principais ingredientes que determinaram a adesão ao ecletismo entre nós. Em 69 geral, tomaram a parte pelo todo. Quem po de afirmar ter sido o padre Monte Alverne um filósofo? Conhecido pela sua eloqüência oratória, foi o pregador oficial da Corte, e como tal festejado. Como professor de filosofia, deixou inédito um Compêndio de Filosofia, publicado mais tarde, em 1859, como fruto de suas anotações de aulas, no qual se coloca francamente na dependência do ecletismo, sem qualquer contribuição original. Vocacionado para a oratória, nada mais natural do que seguir o exemplarismo de Cousin, com a vantagem de, como sacerdote, contar com os indicadores do espiritualismo, tão caros ao líder francês. Após dezoito anos afastado do púlpito, em virtude de cegueira, não resistiu ao pedido de D. Pedro II para, no dia 19 de outubro de 1854, pronunciar o panegírico de São Pedro de Alcântara. É conhecida a sua falta de modéstia expressa no exórdio do seu discurso que vale a pena transcrever. Não, não poderei terminar o quadro que acabei de bosquejar: compelido por uma força irresistível a encetar de novo a carreira que percorri vinte e seis anos, quando a imaginação está extinta, quando a robustez da inteligência está enfraquecida por tantos esforços, quando não vejo as galas do santuário, e eu mesmo pareço estranho àqueles que me escutam, como desempenhar esse passado tão fértil em 70 reminiscência? Como reproduzir esses transportes, esse enlevo, com que realcei as festas da religião e da pátria: É tarde: ... É muito tarde! ... Seria impossível reconhecer um carro de triunfo neste púlpito que há dezoito anos é para mim um pensamento sinistro, uma recordação aflitiva, um fantasma infenso e importuno, a pira em que arderam meus olhos e cujos degraus desci só e silencioso para esconder-me no retiro do claustro. Os bardos do Tabor, os cantores de Hermon e do Sinai, batidos da tribu lação, devorados dos pesares, não ouvindo mais os ecos repetirem as estrofes dos seus cânticos nas quebradas de suas montanhas pitorescas, não escutando a voz do deserto que levava ao longe a melodia dos seus hinos, perduraram os seus alaúdes nos salgueiros que bordavam o rio da escravidão: e, quando os homens que apreciavam as suas composições, quando aqueles que se deleitaram com os perfumes de seu estilo e a beleza de suas imagens vinham pedir -lhes a reprodução dessas epopéias em que se perpetuavam as memórias de seus antepassados, e as maravilhas do Todo Poderoso, – elas cobriam suas faces 71 umedecidas do pranto e abandonavam as cordas frouxas e desafinadas de seus instrumentos músicos ao vento das tempestades. Religião divina, misteriosa e encantadora, tu que dirigiste seus passos na vereda escabrosa da eloqüência, tu a quem devo todas as minhas inspirações, tu minha estrela, minha consolação, meu único refúgio, toma esta coroa... Se dos espinhos que a cercam rebentar alguma flor, se das silvas que a enlaçam reverdecerem algumas folhas, se um enfeite, se um adorno renascer destas vergônteas já secas; – deposita-as nas mãos do imperador para que as suspenda como um troféu sobre o altar do grande homem a quem ele deve seu nome e o Brasil a proteção mais decidida”. Citado por PINHEIRO, Fernandes, Cônego. In Curso de Literatura Nacional. Rio de Janeiro, CátedraINL, 1978, pp. 460-461. Parece que a aceitação e assimilação do ecletismo no Brasil se justifica a partir do ponto de vista do contexto histórico. Os pensadores bra sileiros mais relevantes desse período recebem sua formação superior na França como berço do ecletismo. Não há como fugir a esta constatação, se levarmos em consideração a 72 profundidade da penetração do ideário cousiniano em toda a estrutura do ensino francês. Por outro lado, interessava ao Brasil, jovem nação católica, preservar -se contra a disseminação das idéias cientificistas em geral. E o instrumento eficaz desse interesse não poderia ser mais adequado do que o espiritualismo, já com tantas mostrar de triunfo na França. Sem assumir caráter oficial, o ecletismo lançou suas sementes no processo educacional brasileiro, contribuindo para isto a crença na perfectibilidade infinita do homem abrigada pelos seus seguidores. É importante assinalar que a assimilaç ão do ecletismo entre nós se dá numa fase em que este já se encontrava me franca decadência no seu país de origem. As obras mais importantes dos ecléticos brasileiros aparecem no momento em que o positivismo penetra no seio da nossa cultura, encontrando ta mbém seus adeptos e adversários. Apenas no decênio de cinqüenta, pu blicaram-se: Os Fatos do Espírito Humano (1858), do mais importante representante da Escola, Domingos de Magalhães, o Visconde de Araguaia; as Investigações de Psicologia (1854), em dois volumes, de Eduardo Ferreira França, professor da Faculdade de Medicina da Bahia; o Compêndio de Filosofia (1851), em dois volumes, de Moraes e Vale; e, em 1859, o Com73 pêndio de Filosofia de Monte Alverne, escrito em 1833... PAIM, Antonio. Op. cit., p. 208. Sabemos que o positivismo foi uma espécie de batismo pelo qual passaram vários intelectuais bra sileiros, embora poucos tenham entendido a obra de Augusto Comte na sua integralidade, ao que se deduz do que aparece escrito na época em que as discussões se tornaram relevantes em torno da doutrina comteana. Sylvio Romero, no seu ensaio A Filosofia no Brasil (Deutsche Zeitung, Porto Alegre, 1878), que se constitui na primeira história das idéias filosóficas no Brasil, combate o ecletismo brasileiro de modo impiedoso e apaixonado, com uma linguagem ferina e in compatível com a serenidade que deve caracterizar a atividade filosófica, encontrando apenas pontos nega tivos em todos os seus representantes. Mas quando fala do positivismo não encontra medidas p ara exaltá-lo, afirmando ser a corrente filosófica mais importante do seu tempo; o confronto visível em relação aos ecléticos. São posições opostas – espiritualismo e positivismo – uma excluindo radicalmente a outra. Assim, o ecletismo espiritualista emerge no Brasil em meio a um ambiente cultural que ia sendo dominado pelo positivismo que teria influência muito mais duradoura e acabaria por dominar os espaços educacionais assumidos pelos ecléticos num curto período de tempo, em virtude da sua maior penetração como doutrina original e cuida dosamente elaborada por Comte. 74 Tem razão Sylvio Romero quando afirma que os ecléticos se acomodaram numa miscelânea de idéias infundadas, pretendendo inserir -se na modernidade ignorando pensadores como Hegel, Schopenhauer , Darwin, dentre outros. Como autores de um saber aprofundado e sistemático, não seriam, certamente, as melhores fontes para os nossos pensadores, quase todos comprometidos com o estilo literário e não com as idéias. Gonçalves de Magalhães, a figura central do ecletismo brasileiro, passa à filosofia quando realiza um considerável trabalho no plano literário, como poeta, crítico literário e historiador da literatura, cabendo a ele a glória de ter sido o introdutor do romantismo no Brasil, assim consagrado pela historiografia literária, como já dissemos alhures. Entretanto, ao que se deduz de uma leitura atenta de sua obra Fatos do Espírito Humano, essa circunstância em nada influiu no seu pensamento filosófico. Trata-se de um exercício de meditação que reflet e a natureza de um espírito bem formado e familiarizado com as questões mais fundamentais da filosofia. Seu diálogo com a tradição filosófica é amplo, vazado num estilo elegante sem prejudicar a precisão dos conceitos desenvolvidos. Percorre o seu discurso, do princípio ao fim, o combate ao sensualismo e a defesa do espiritualismo, socorrendo se de vários argumentos para justificar as convicções arraigadas no seu pensamento. Não podemos afirmar ter sido Gonçalves de Magalhães um epígono do espiritualismo ec lético de Victor Cousin. Eventualmente, há coincidências no 75 modo de pensar de ambos, sendo a mais acentuada aquela que diz respeito à defesa do espiritualismo e ao ataque ao sensualismo em geral. Mas isto não nos autoriza dizer que o pesador pátrio aderiu ao ecletismo como corrente filosófica pelo fato de ter convivido com alguns dos seus representantes e de se ter formado dentro da atmosfera de pensamento dominada por essa linha de investigação na França. Magalhães está muito mais influenciado por Maine de Biran. Quanto aos demais, o que existe é a apontada coincidência de interesses epistemológicos sincronizados com um misto de amizade e admiração pelos pensadores franceses em geral, com os quais partilharam suas preocupações. Por outro lado, o nosso pensador estava profundamente imbuído do espírito religioso, tratando as questões filosóficas como se fossem indissociáveis da sua conhecida mundividência cristã. Não acontece porém o mesmo com as verdades filosóficas, as quais têm íntima relação com a ordem r eligiosa, a ordem moral, a ordem política, enfim com todos os elementos do mundo social. MAGALHÃES, D.J.G. de. Fatos do Espírito Humano. Rio de Janeiro, Garnier, 1865, p. 17. Em todo caso, o seu cristianismo já estava afastado da tradição escolástica, em nada interferindo na liberdade de pensar que exercita da maneira mais ampla, 76 no plano estritamente filosófico. Jamais manifestou qualquer apreço pelo escolasticismo em voga, tendo, ao contrário, criticado essa doutrina numa linguagem e com citações que no s lembram a mesma atitude assumida pela ilustração pombalina. Esse processo cético, adotado muito a propósito por Descartes, a quem se confere hoje o título de criador da filosofia moderna, merece todos os nossos aplausos em atenção ao tempo e às circunstâncias em que apareceu esse pensador profundo, no meio do século décimo-sete, no auge da geral ceticismo que sucedeu à reforma de Lutero, e no descrédito e queda da filosofia escolástica, a qual nasceu, viveu, subtilisou-se, amesquinhou-se, definhou, e expirou nos claustros, em serviço da fé, e debaixo da tutela da teologia. MAGALHÃES, Op. cit., p. 32. Depois de rejeitar sumariamente a escolástica, aceitando a sua virtual decadência, Magalhães exalta a tradição filosófica deixada pelos grandes pensadores modernos, da qual não se poderá afastar, reconhecendo o seu papel na inquirição da verdade. Cita Malebranche, Locke, Leibniz, Reid, Kant e outros. 77 Ainda numa outra passagem significativa em relação ao seu desprezo pela escolástica, afirma o autor de Fatos do Espírito Humano: Não admira que os escolásticos, esses filósofos claustrais, mais ocupados em silogisar segundo as regras da dia lética, do que estudar a natureza, não se entendessem, ou não se quisessem entender, para melhor sustentar com argúcias as suas teses, quase sempre estabelecidas por um princípio de autoridade. Muitos dos seus argumentos e sofismas nos fariam hoje rir. MAGALHÃES, Op. cit., p. 219. À primeira vista podem parecer despropositadas essas críticas tão exacerbadas à escolástica feitas por um piedoso cristão, cujos esforços no plano da meditação filosófica estão voltados para a sustentação dos princípios do espiritualismo, em consonância com a sua fé. Mas não nos esqueçamos de que Magalhães era um médico formado pela Universidade de Coimbra, em plena vigência da reforma de 1772, inspirada no espírito da modernidade em cujo seio não havia mais lugar para a versão jesuítica do escolasticismo no plano pedagógico. Magalhães jamais se aprofundou nos estudos da escolástica. E nem poderia fazê-lo, uma vez que às suas mãos só apareciam os compêndios de divulgação do aristotelismo-tomista que acabaram por formar uma 78 imagem negativa de um dos momentos mais fecundos de produção intelectual. Só mais tarde é que os estudiosos começariam um trabalho de reavaliação da escolástica e de toda a meditação filosófica medieval, ensejando uma visão precisa de intensidade do trabalho intelectual operado nessa fase. E um dos fatores que contribuíram para esse retorno à Idade Média foi exatamente o espírito do romantismo de cuja atmosfera é legítimo representante o próprio Magalhães. Como o cristianismo católico se tornou possível independente de Aristóteles e Santo Tomás, ao contrário do que pensavam os inacianos, Magalhães se sentiu à vontade para criticar a escolástica sem conhecer os seus fundamentos, englo bando no mesmo objeto de ódio a cultura portuguesa e suas seqüelas. De qualquer forma, a atitude do pensador brasileiro frente à escolástica é um fato que se explica somente a partir do contexto em que ela foi assumida, não denunciando superficialismo no seu trabalho filosófico. Logo nas primeiras páginas de Fatos do Espírito Humano, somos chamados à atenção para o fato de que “a filosofia, como todas as ciências, deve ser estudada profundamente para ser entendida”, com uma crítica àqueles que se julgam competentes para apreciar “as verdades filosóficas, e o mérito de Platão, de Aris tóteles, de Descartes, ou de Locke” sem se aperceberem de que o mesmo não poderia suceder em relação às verdades matemáticas e físicas, nem quanto ao mérito de Newton e Cuvier. 79 Magalhães situa a psicologia como fundamento da filosofia: A base e ponto de partida de todas as ciências filosóficas é a psicologia, da qual elas são ampliações e aplicações. A psicologia lhes dá o elemento subjetivo, e reconhece as condições necessárias e absolutas da razão, objetos da metafísica. As leis gerais dos fenômenos e de suas relações lhe são fornecidas pelas ciências empíricas. Se a filosofia só se ocupasse do ideal absoluto, ela seria uma ideologia abstrata, uma pura metafísica. Por outro lado, a psicologia seria toda a filosofia, se o sujeito pensante não saísse da contemplação de si mesmo se o eu espontaneamente não se dis tinguisse do não eu, se ao subjetivo não se opusesse o objetivo. MAGALHÃES, Op. cit., p. 29. A importância atribuída à psicologia pelo pensador pátrio está relacionada com os atributos da consciência, da interioridade que funda toda a possibilidade do conhecimento. Considerados a alma e o corpo como uma dualidade, na clássica visão cartesiana, e tendo esta última como espírito puro, o lugar da interioridade se situa no centro do binômio corpo -alma, como força vital. Ao subjetivo se opõe o objetivo, mas é 80 no plano da subjetividade que toda a realidade é construída, isto é, as idéia constroem a realidade. Como a modificação, o ato, a qualidade, a faculdade de um sujeito qualquer, é esse mesmo sujeito modificado, em ação, em exercício, e fora dele nada para ele será, não existe realmente; como o movimento de uma corda é essa corda, em movimento, e fora da corda, e de qualquer outra cousa que se mova, não é nada, não existe realmente, e apenas será uma abstração do espírito, uma lei abstrata não executada por ninguém, e que só estará na inteligência de quem a pensou; segue-se que nada neste mundo se distingue do que o constitui; que nenhum ser se pode distinguir do seu modo de ser; que nenhuma faculdade do ser se pode distinguir do seu próprio modo de operar; porque esse modo de operar é uma modificação sua; é ele mesmo modificado. MAGALHÃES, Op. cit. A consciência é uma faculdade idêntica ao saber que antes de mais nada sabe de si mesma e no ato de percepção percebe-se a si mesma. A percepção enriquece o saber, na medida em que assimila algo que está fora de si. Mas é preciso distinguir o que está na 81 consciência daquilo que se situa fora dela. É nessa distinção que o ato de conhecer se torna claro. A memória retém a imagem dos fatos percebidos, na sua identidade com o eu consciente. Da mesma forma, “a imaginação nada mais é do que a memória das coisas sensíveis que está na consciência”. Magalhães esta belece o princípio de que as sensações são a priori, no sentido de enfatizar o primado da interioridade sobre a exterioridade. É incontestável, segundo acabamos de ver, que todas as sensações estão a priori na faculdade de sentir, como no gérmen preexiste o tipo do seu futuro indivíduo, ou como estava a Ilíada na mente de Homero, antes que ele a produzisse; e só carecem de um estímulo para manifestar-se. MAGALHÃES, Op. cit., p. 151. As sensações, como algo a priori, são os diversos modos da sensibilidade provocada pelos movimentos dos nervos. A sensação é em ato. O que vem de fora, na atividade perceptiva, é decorrência deste primeiro princípio a partir do qual é instaurada a estrutura do real. Quando os empiristas afirmam que os primeiros princípios são sensações primeiras, estão estabelecendo o primado do real sobre a consciência na representação do mundo. Em Magalhães, ao contrário, as sensações primeiras são os próprios modos de sentir. 82 O eu humano cônscio de si, e ciente ao mesmo tempo de alguma coisa, é o verdadeiro eu, o único ponto de par tida de uma boa psicologia; e não um eu abstrato, ou uma sensação, que não é uma modificação do eu que percebe, e que toma como um sinal da coisa percebida. MAGALHÃES, Op. cit., p. 183. Nesta linha de raciocínio o eu fica sempre a salvo na sua missão de irradiar a energia perceptiva, independente de todos os impulsos provocados pela realidade exterior. As sensações estão em nós, em n osso corpo e o espírito as sente “porque esse é o modo natural de recebê-las imediatamente, pelo contato, por assim dizer, imediato em que está com elas, como simples sinais das coisas”. Magalhães crítica Kant quando este separa a sensibilidade da perceptibilidade, censurando também Victor Cousin quando este opera a mesma crítica ao mestre de Koenigsberg, de maneira incompleta “porque ele mesmo (Cousin) considera a sensibilidade como uma faculdade da alma e a sensação como um fenômeno da consciência; como se a sensação fosse uma modificação do espírito humano” que nos levaria a reconhecer as oscilações imprevisíve is do próprio espírito como único fator que é, do conhecimento, de acordo com o modo de pensar do filósofo brasileiro. Estamos vendo, até aqui, que Gonçalves de Magalhães está interessado em aprofundar os problemas 83 da psicologia da natureza humana, articulando -os com a questão dos fundamentos do conhecimento, numa orientação nitidamente idealista. Por várias vezes, em Fatos do Espírito Humano, ele faz digressões em torno da anatomia e da neurofisiologia, sem se deixar influenciar pelo naturalismo, como poderíamos imaginar à primeira vista. Suas preocupações estão dirigidas para os caminhos obscuros dos mecanismos do pensamento e suas posições são sempre sustentadas a partir da tradição filosófica. Outras questões que suscitam detida atenção do filósofo pátrio dizem respeito à liberdade e à moral. Inteligência, liberdade e vida futura são condições indispensáveis à compreensão do homem enquanto sujeito de vícios e virtudes, do bem e do mal. A inteligência faz com que o homem possa distinguir o vício da virtude e o bem do mal. A liberdade e a vida futura são co-naturais ao homem. A inteligência abre o caminho da liberdade que será sempre um indicador da vida futura. Supondo porém uma sociedade de entes sem liberdade, sem virtudes nem vícios, sem bens nem males, todos de acordo e uniformes obedecendo a uma só vontade sempre justa; uma tal sociedade é possível, e talvez exista em qualquer outro sistema planetário; mas sendo também possível uma sociedade de homens livres, que não exclui a outra, nem é por ela excluída, 84 esta sociedade existe de fato no nosso planeta, e dele somos membros, livres graças a Deus, a fim de que sejamos justos por nós mesmos, virtu osos e sábios pelos nossos próprios esforços, e não um rebanho de máquinas, obedecendo cegamente a uma vontade soberana. MAGALHÃES, Op. cit., p. 370. A ordem social assume uma perspectiva providencialista, uma vez que “Deus está presente à ordem social; ele não a deixou entregue à mercê da vontade caprichosa de alguns homens; ele previu tudo, e deixando toda a liberdade ao espírito humano para pensar e determinar-se como quisesse, obrigou-o pela razão e pelo corpo a conformar-se à ordem providencial dos seus infalíveis planos, para o maior bem das suas criaturas, filhos da sua predileção em que reflete os seus pensamentos”. Em decorrência da sua característica de sociabilidade, o homem é um ente moral. É moral porque é social; é social porque é moral. Sociabilidade e moralidade são relações indissociáveis. Das considerações ligeiramente esboçadas acima, podemos chegar à conclusão de que Gonçalves de Magalhães, ao contrário de ter aderido plenamente ao ecletismo, situou-se no mesmo plano de independência em relação aos seus contemporâneos mais notáveis. Suas investigações e o desdobramento do seu pensamento não se subordinam a qualquer seita filosófica, e muito menos à eclética. As coincidências de pontos 85 doutrinários sempre existiram ao longo da história d a filosofia, conforme já afirmamos. O tom de seriedade da sua meditação faz com que ele ainda mais se distancie do estilo declamatório e vazio de Victor Cousin e seus discípulos. Ele próprio faz uma explícita restrição ao ecletismo quando afirma: Sem que professemos o ecletismo com a pretensão de conciliar sistemas, não podemos deixar de reconhecer, pela comparação das doutrinas diversas, antigas e modernas, que há muitos fatos e princípios em que todas elas estão de acordo, e muitas teorias que não são tão opostas, e disparatadas como parecem aos seus contraditores. MAGALHÃES, op. cit., pp. 35-36. Tratando com originalidade os problemas psicológicos, epistemológicos e morais, no bojo do espiritualismo, Gonçalves de Magalhães se coloca no limiar da instauração do pensamento filosófico brasileiro, sendo o passo mais importante desta tentativa. Embora não podendo ser considerado um filósofo independente, cujo exemplo, a rigor, só encontramos no nascimento da filosofia grega, ele inicia no Brasil a longa trajetória da afirmação do pensamento nacional. O ecletismo no Brasil teve aceitação generalizada principalmente em virtude da sua adequação ao espírito de uma época nacional carente de valores teóricos fundados em doutrinas filosóficas que não fossem de 86 encontro à dogmática do catolicismo. Estávamos como que perdidos entre uma escolástica rançosa e desa creditada, em face de um tratamento abusivo e incompetente a ela dispensado pelos jesuítas, e a invasão das idéias positivistas e materialistas que começa vam a assumir destaque entre os intelectuais de um modo geral. O ecletismo, como seita filosófica, colocava em plano secundário o saber operatório, embora exaltasse o valor das ciências, sem muita coragem para enfrentar seus argumentos, naquilo que contrar iavam os princípios do espiritualismo. De certa forma, as ciências eram ignoradas porque os ecléticos não dispunham de uma formação científica para criticá-las nos seus fundamentos. Da mesma forma, precária era a sua formação filosófica, levando -se em conta as críticas lançadas contra alguns filósofos do passado. Como já foi dito em vários momentos, os ecléticos primavam pela sublimidade do estilo, pelo retoricismo vazio, sem se darem conta de que filosofia não se faz com discurso vazio surgido espontaneamente da superficialidade do imaginário. A penetração do positivismo no Brasil pode ser associada à in consistência das palavras dos ecléticos, com o progressivo exaurimento da sua oratória que de forma alguma poderia agradar uma parcela da intelectualidad e voltada para os problemas científicos e para as indagações mais aprofundadas das questões filosóficas. O positivismo de Augusto Comte era uma doutrina nova, estruturada a partir dos substratos das ciências, com um corpus philosophicus inovador. Seu plano era organizar cientificamente a humanidade, tirando -a do estado 87 metafísico em que se encontrava, com todos os males daí decorrentes para lançá-la à busca do estado positivo ou científico, na esperança de que um dia o progresso das ciências conduzisse a uma tecnologia capaz de substituir os políticos na condução da racionalidade social... Subordinar a imaginação à observação é caminhar em sentido inverso do ecletismo. O espírito romântico e seus reflexos na literatura em geral propiciou uma atmosfera favorá vel ao ecletismo no Brasil. Ecletismo e romantismo se entre laçaram em grande parte dos seus propósitos e da sua ação. As “razões do coração” e os sentimentos religiosos e patrióticos em ambas as instâncias se harmonizam perfeitamente. Fuga do real, considerado impuro por parte dos românticos; fuga do real com objeto da experiência e garantia do conhecimento, em benefício da interioridade, por parte dos ecléticos. Coincidentemente, o ecletismo no Brasil teve a mesma duração do romantismo e como fator de de saparecimento os mesmos opositores, isto é, os positivistas que, agindo no plano literário acabam por desencadear o realismo-naturalismo como novo estilo de época, marcado pela descrição dos fatos da vida cotidiana incorporados nos personagens dos romanc es e dos contos. Declarados ecléticos brasileiros foram Monte Alverne, Antônio Pedro de Figueiredo, Eduardo Ferreira França e outros de menor representatividade. Monte Alverne, já vimos, destacou-se na oratória sacra, reunindo em torno de si milhares de ad miradores no auge do seu prestígio junto à Corte. Como filósofo, 88 não passou de um simples repetidor e fiel discípulo de Victor Cousin. Dele nos fala Leonel França: Mais tarde, quando lhe vieram às mãos as primeiras obras do ecletismo francês, que se ufana va de restaurar a verdadeira filosofia espiritualista sobre as ruínas do materialismo. Monte Alverne exutou. Orador e retórico, remirou-se com prazer nas frases sonoras e nos períodos grandiloquos de V. Cousin. O que era musica de palavras e harmonia de eloqüência pareceu-lhe solidez e profundidade de pensamento. FRANCA, Leonel. Noções de História da Filosofia. Rio de Janeiro, Agir, 1969, ed. 20, p. 264. O retrato de Leonel Franca, além de não merecer reparos, se aplica também a vários outros seguidores do ecletismo entre nós. O ilustre orador sacro, em cujo plano não encontrou rival, talvez jamais tenha pre tendido ser filósofo, não indo suas aspirações além do magistério desta disciplina, não nos restando nenhuma noticia acerca do seu poder de aglutinar d iscípulos. Talvez seja um mero equívoco da historiografia filosófica brasileira ocupar-se de Monte Alverne. Estaria muito melhor colocado na história da eloqüência sagrada no Brasil. 89 Quanto a Eduardo Ferreira França, trata-se de um convertido ao pensamento de Maine de Biran. Envolvido com os problemas das ciências médicas, após o seu doutoramento em Paris, começa, já aqui no Brasil, a inquietar-se com a reflexão filosófica. “No que se refere àquela parcela da elite mais diretamente familiarizada com a filosofia, o elemento catalizador há de ter sido a solução empirista do problema da liberdade, ensejada por Maine de Biran, de que é um exemplo eloqüente a meditação de Eduardo Ferreira França”. E prossegue o autor da História das Idéias Filosóficas no Brasil: No Brasil e não em Paris é que Eduardo Ferreira França descobriu o espiritualismo francês. Relata em seu livro: “Materialista, encontrava em mim um vazio, andava inquieto, aflito até: comecei então a refletir e minhas reflexões me fizeram duvidar de muitas coisas que tinha como ver dades demonstradas e, pouco a pouco, fui reconhecendo que não éramos só matéria, mas que éramos principalmente uma coisa diferente dela. Procurava nas minhas reflexões examinar o que eu era na realidade, observava que muitos fenômenos não eram explicáveis pela única existência da matéria; e assim progressivamente fui examinando as minhas opiniões até que passados alguns anos, e tornando 90 aos estudos dos filósofos, fui lendo aqueles que ao princípio me haviam desgostado, e encontrei um prazer indefinível, e o profundo Maine de Biran contribuiu especialmente para esclarecer a minha inteligência.” PAIM, Antônio. História das Idéias Filosóficas no Brasil. São Paulo, EDUSP GRIJALBO, 1974. É de se salientar que o mentor da conversão ao espiritualismo de Eduardo Ferreira França foi Maine de Biran e não as idéias ecléticas de Victor Cousin, o que indica, desde logo, um certo caminho para a independência do filosofar do mestre baiano. Afinal, é notória também a influência que Biran exerc e sobre Bergson. E nem por isto alguém ousou englobar o bergsonismo no ecletismo, embora a comparação possa parecer despropositada. Mas Bergson toma como tarefa fundamental restaurar o prestígio da metafísica frente aos ataques do positivismo. E não são po ucos os historiadores da filosofia que o intitulam de espiritualista, valendo-se, também, da sua doutrina, como sustentáculo da renovação da teologia, da mesma forma sob as investidas do cientificismo em geral. O ecletismo de Antônio Pedro de Figueiredo já foi exaustivamente estudado por Tiago Adão Lara no seu livro As Raízes Cristãs do Pensamento de Antônio Pedro de Figueiredo. Minas Gerais, Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, 1977. 91 Antônio Pedro de Figueiredo foi um fiel seguidor de Victor Cousin, tendo até mesmo sido apelidado de Cousin Fusco pelo fato de ser mulato. Professor do Colégio Pernambucano, traduziu o Curso de História da Filosofia Moderna de Victor Cousin, em três volumes. Jornalista por excelência e voltado para as questões políticas e sociais da sua época, enfrenta as mais diversas perseguições, mas não perde de vista a sua missão de ilustrado num meio carente de receptividade a quaisquer empreendimentos do espírito. As idéias ecléticas que divulgava só encontravam ressonância em pequenos círculos formados por seguidores dos mesmos princípios; o contrário de um Figueiredo combativo no plano político e jornalístico. As contribuições mais importantes por ele prestadas ao espiritualismo eclético estão basicamente no difícil trabalho de tradução e edição do Curso de Victor Cousin e no seu magistério. É difícil vislumbrar qualquer traço de originalidade no seu pensamento, talvez em virtude de sua propagada adesão ao ecletismo cousiniano, no qual pouco ou nada de original se encontra. O ecletismo no Brasil representa mais um estado de espírito caracterizado pela atitude espiritualista do que mesmo um esforço em torno de idéias. Esse estado de espírito proliferou em várias províncias, provocando discussões entre os partidários do cient ificismo e os adeptos do espiritualismo. As polêmicas não se restringiam a estes dois pólos, estendendo-se também aos católicos que, por sua vez, também combatiam várias idéias defendidas pelos ecléticos. Um retrato da penetração dessas discussões pelo int erior do país 92 encontramos numa pesquisa realizada pelos professores Ana Maria Moog Rodrigues, Florinda Conde, Tiago Adão Lara e Vera Brandão, publicada pela PUC -RJ, sob o título Corrente Eclética na Bahia, com uma introdução de Antônio Paim. Os textos ali publicados indicam que tanto no magistério quanto na publicística o ecletismo esteve presente. Não se pode negar esse fato. O Brasil sempre teve vocação para discutir e assimilar o que vinha e ainda vem da França. 93 CAPÍTULO III A MATURAÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO BRASILEIRO 1. O Positivismo como Instrumento de Combate Não se pode negar a importância do movimento positivista desencadeado por Augusto Comte (1798 1857) na França, com larga repercussão no Brasil. Por mais que tenha sido combatido e por ma is frágeis que sejam os seus argumentos, o positivismo é uma corrente de pensamento devidamente estruturada, com propósitos definidos e pacientemente trabalhados pelo seu fun dador. A obra de Comte reflete o espírito de um autêntico pensador que, antes de mais nada, acreditava no seu projeto e na vitória dos seus ideais. Parte ele do princípio de que era necessário organizar cientificamente a humanidade, de molde a conduzi-la à sua plena realização no plano político -social. Estava o pensador francês vivendo a turbulência de uma Europa desarticulada em todos os planos. Em razão dessa circunstância, tomou a si a tarefa de formular um ambicioso plano de “regeneração da humanidade”. Por aí se vê que as ambições comteanas se situam muito mais no espaço do ordenamento político, no seu amplo sentido, do que mesmo no universo da indagação filosófica. Como secretário de Saint -Simon, não deixou de sofrer, numa primeira fase, a influência do socialismo 94 francês. Mas a solidez do pensamento imaginava Comte encontrar nos visíveis resultados das ciências naturais. É nesta região da construção do saber que ele antevia a possibilidade de extrair as categorias mais precisas para a elaboração de um método capaz de progredir firmemente na missão de ordenar o espírito humano. Para tanto, era necessário subordinar a imaginação à observação. Este é o primado que deve orientar toda a órbita do saber, com a atenção voltada exclusivamente para a observação e descrição dos fatos da natureza, na sua manifestação imediata, a fim de chegar às suas leis, não como simples curiosidade do espírito, mas como condição necessária ao bem-estar individual e coletivo. Todo sentido real e inteligível da linguagem se reduz à enunciação dos fatos. Com esta orientação chegaremos a uma constante interligação dos fenômenos, já que existe entre eles uma articulação necessária, nas suas relações de semelhança e sucessão. As leis constituem a própria ciência, na medida em que constatam, no seu caráter de previsibilidade racional, as relações constantes exis tentes entre os fenômenos. Os fatos são referências a partir das quais a racionalidade elabora as leis; são a matéria-prima sobre a qual o espírito humano trabalha no sentido de ver o que é agora para prever o que será no futuro. Neste momento Comte está influenciado pela lógica indutiva de Stuart Mill, na qual parece encontrar suporte teórico para combater o empirismo, sobretudo quando afirma o caráter de previsibilidade das leis. No Discurso Sobre o Espírito Positivo, publicado como uma espécie de introdução ao seu Tratado Filosófico de Astronomia Popular, chega a afirmar: 95 Importa, pois, bem compreender que o genuíno espírito positivo se acha tão afastado, no fundo, do empirismo, como do misticismo; é entre estas duas aberrações, igualmente funestas, que deve caminhar: a necessidade de semelhante reserva continua, tão difícil como importante, bastaria, além disso, para verificar, de acordo com as nossas explicações iniciais, quanto a verdadeira positividade deve ser maduramente preparada, e não pode, de forma alguma, convir ao estado nascente da Humanidade. COMTE, Augusto. Discurso Sobre o Espírito Positivo. Trad. de Renato Barbosa Rodrigues Pereira, Porto Alegre, Globo-EDUSP, 1976, pp. 1920. O fundador do positivismo não esclarece a que pensamento empirista está combatendo, comparando esta orientação epistemológica com o misticismo em geral. Augusto Comte não se preocupou com os fundamentos do conhecimento e, sim, com a sua eficácia que seria verificada ao longo das constatações e descrições das leis da natureza. Essa tarefa seria desenvolvida por Stuart Mill, mais preocupado com questões epistemológicas. Mas nem por isto deixa de ser 96 o positivismo uma forma de empirismo, se levarmos em conta os postulados básicos por ele seguidos na tarefa de reconstrução do saber. De qualquer forma, é preciso ter em vista que o pensador francês é oriundo das ciências da natureza, com um acentuado pendor para o saber físico-matemático. Sua incursão no domínio da filosofia se dá a partir de uma rigorosa formação científica, mesclada de leituras no campo da realidade histórica e econômica, através da influência dos socialistas e fisiocratas franceses. Já afirmamos acima que Comte começa a fazer filosofia a partir da atração que sobre ele exercem os problemas sociais, ou melhor, a sociedade, a Humanidade como um todo. A filosofia só tem sentido se for considerada como o reflexo do estado geral do espírito humano. Assim, o nascimento da filosofia é explicado socialmente como a emergência de um conjunto de idéias vagas que brot am espontaneamente entre os grupos sociais, de forma desordenada, frente aos inúmeros fenômenos que os indivíduos presenciam e não podem explicar. Desta impossibilidade de explicação advém o espanto, a admiração, que conduz os homens a uma tentativa de est abelecer uma certa ordem no conjunto de idéias. Este conjunto de imagens, idéias e impressões constitui aquilo que Comte chamou de sabedoria universal. É o primeiro momento da filosofia que surge da própria realidade social e não de um indivíduo isoladamente. Ao indivíduo se opõe o conceito de Humanidade, o que conduz a crer que tanto a ciência quanto a filosofia têm sua fonte na totalidade histórico-social, refletindo cada uma destas instâncias 97 do saber o espírito de um estado histórico. A filosofia é a conseqüência natural das categorias operantes no plano da sabedoria natural das categorias operantes no plano da sabedoria universal, no sentido de colocar ordem nas idéias, como mero desdobramento destas. Surgem, então, os conceitos de estado e ordem. A idéia de estado histórico é o núcleo da filosofia da história de Comte. Para ele, como mostra no seu Discurso Sobre o Espírito Positivo acima referido, a humanidade evolui em três amplos ciclos históricos, desde a sua infância até atingir a maturidade. Seriam os estados teológico, metafísico e positivo. O conceito de estado equivale no positivismo ao de ordem. Um estado histórico se caracteriza por uma certa ordem es tabelecida nas instituições, nos costumes e em todos os modos de manifestação dos indivíduos considerados sempre coletivamente. A passagem de um estado a outro, portanto, a passagem de uma ordem a outra ordem significa o progresso. Ordem e progresso são fatores determinantes do processo histórico, enquanto refe rências do mecanismo de aperfeiçoamento da humanidade. Em tudo existe uma ordem progressiva e um progresso ordenado. A filosofia representa o regime intelectual dos estados, inferindo -se daí que não existe uma única filosofia, mas distintos modos de refletir a problemática de cada estado histórico. Portanto, a filosofia acompanhará sempre as sucessivas mudanças do processo global da história, na sua passagem de um estado a outro estado. Ela é a lei fundamental do espírito humano, na medida em que reflete essa estrutura através da qual um estado procede de outros e 98 conduz a outros, numa combinação harmônica. Em última análise, a filosofia deixa de ser sabedoria universal para assumir o papel de coordenadora dos fatos, como lei estrutural da ordem e do progresso. Coordenando os fatos, ela nos instala num determinado estado, isto é, usando uma linguagem que não agrada a Comte, a filosofia nos leva às diversas mundividências, à totalidade do espírito de uma época. O estado teológico ou religioso corresponde à fase primitiva da humanidade que, por sua vez, evolui do fetichismo, caracterizado pelo animismo, ao po liteísmo, caracterizado pela imaginação especulativa em torno dos deuses, ao monoteísmo, em cujo momento a razão unifica os deuses. No politeísmo e no monoteísmo Comte encontra uma atitude intelectual que perdurou no curso de toda a história, principalmente entre raças negras e parte de raças brancas. O estado metafísico ou abstrato representa um rompimento com o teológico, já que há nele um avanço considerável do espírito humano, substituindo as divindades pelas coisas, pela natureza em geral, sem recurso a entidades alheias ao mundo. O apelo no estado metafísico é à natureza, vista essa como objeto de especulação intrínseca, isto é, o caminho da atividade intelectual é explicitar a natureza dos seres da natureza na sua relação íntima com o Criador. Trata -se de um estado de trânsito entre o teológico e o positivo. No fundo, continua a mesma atitude especulativa, com a diferença acima apontada. A teologia e a metafísica são as categorias mais criticadas por Comte, em virtude da sua firme sobrevivência por tantos séculos. 99 Como a Teologia, a Metafísica tenta de fato explicar sobretudo a natureza íntima dos seres, a origem e o destino de todas as coisas, o modo essencial de produção dos fenômenos: mas, em vez de empregar para isso os agentes sobrenaturais propriamente ditos, substitui-os cada vez mais por entidades ou abstrações personifica das, cujo uso, verdadeiramente carac terístico, amiúde permitiu designá -la sob a denominação de Ontologia. ....................................................... Radicalmente inconseqüente, este es pírito equívoco conserva todos os princípios fundamentais do sistema teológico, tirando-lhe, porém, cada vez mais o vigor e a fixidez indis pensáveis à sua autoridade efetiva; é nesta alteração que consiste, de fato e a todos os respeitos, sua principal utilidade passageira, que se manifesta quando o regime antigo, por muito tempo progressivo, para o conjunto da evolução humana, atinge inevitavelmente aquele grau de prolongamento abusivo que tende a perpetuar de modo indefinido o estado de infância que ele dirigira antes dom tanta felicidade. COMTE, op. cit., p. 12. 100 O estado positivo ou científico corresponde ao abandono das duas primeiras fases. Todos os estados históricos são ciclos pelos quais passa a humanidade no seu curso natural de progresso. Mas o estado positivo parece ser para Comte a fase de maturidade definitiva, na qual se dá, em princípio, a inteira subordinação da imaginação à observação. Em cada um de sses estados encontramos delineado um regime. No estado teológico predomina o regime dos deuses, no estado metafísico a vigência é do regime das entidades e, finalmente, no estado positivo se instaura o regime dos fatos. Aí Comte se apega definitivamente às ciências naturais como parâmetros para a construção de uma ciência social. A “naturalização” da realidade histórico -social encontra nele um defensor tão ardoroso que muitas vezes dá a impressão de encontrar no progresso científico advindo do século XVII maior eficácia do que aquela vista pelos próprios cientistas. Eis, pois, a grande lacuna – embora seja, evidentemente, a única que importa preencher para acabar de cons tituir a filosofia positiva. Agora que o espírito humano fundou a física celes te, a física terrestre, tanto mecânica como química, e a física orgânica, vegetal e animal, falta -lhe concluir o sistema das ciências de observações, fundando a física social. Tal é, hoje, sob vários aspectos fundamentais, a 101 maior e mais premente necessidade da nossa inteligência; tal é, ouso dizê-lo, o primeiro objetivo deste curso, o seu objetivo especial. ....................................................... Porque o princípio filosófico do espí rito da física social se reduz, necessariamente, segundo as ex plicações precedentes, a conceber sempre os fenômenos sociais como inevitavelmente submetidos a verdadeiras leis naturais que comportam, regulamente, uma previsão acional, trata-se pois de fixar aqui, em geral, quais devem ser o objeto e o caráter próprio destas leis (cuja exposição efetiva virá contida na continuação deste volume), tanto quanto o permite o estado nascente da ciência que me esforço por criar. COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva. A Filosofia positiva e o estudo da sociedade. In GAR DINER, Patrick. Teorias da História. Trad. de Vitor Matos de Sá. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1974, p. 95. Até mesmo os termos da física são transpostos para a ciência social que recebe o nome de física social, compreendendo uma estática e uma dinâmica social. São fortíssimas as ressonâncias do espírito do positivismo nas tentativas de se encontrar um estatuto teórico para 102 as ciências sociais que permeiam toda a história das idéias sociais, desde os discípulos imediatos de Comte às mais variadas orientações epistemológicas vigentes ainda hoje. No plano estrito das ciências históricas, o pensador francês se aproxima claramente de Hegel, prin cipalmente na sua visão de história como totalidade, excluindo radicalmente o papel do indivíduo isolado como “figura” da história e privilegiando a Humanidade como um todo. O romantismo e a filosofia idealista são os gran des responsáveis pelo atraso no processo de organização científica da humanidade, em virtude da sua natural tendência à fuga da realidade, co mo lugar natural da realização da história. Esse era o momento vivido pelo pai do positivismo. Nele fermentou um modo de pensar, cujas linhas gerais tentamos traçar, que jamais pode ser desprezado, sob pena de se perder de vista ou deixar viciada a própria história intelectual da segunda metade do século dezenove. Após delinear o seu projeto científico, Comte acaba por entender que se a natureza e Deus não podem ser objetos de culto, desejável seria que a própria Humanidade fosse colocada nesse lugar. Cria, então, a Religião da Humanidade, cuja trindade é o Grande Ser (a humanidade), o Grande Meio (o espaço) e o Grande Fetiche (a terra). Estabelece um novo calendário no qual os dias, as semanas e os meses recebem seus respectivos patronos nomeados dentre as figuras mais representativas da história. Nada menos do que oitenta e quatro dias por ano são dedicados a festividades em 103 memória dos mais variadas personagens que exerceram papéis relevantes no processo de afirmação da humanidade. O dogma nuclear da Relig ião Positiva é amor por princípio, ordem por base e progresso por fim. Os rituais litúrgicos são semelhantes aos modelos do catolicismo, não faltando a figura dos sacerdotes com os processos de iniciação e consagração, templos, cultos e outros componentes do universo simbólico religioso. Essa nova atitude de Augusto Comte acabaria por causar, como é intuitivo, uma profunda dissidência entre os seguidores da doutrina positivista. Parte dos seus discípulos não adere à Religião da Humanidade, for mando a ala heterodoxa do movimento, cujo representante mais expressivo é Émile Littré (1801-1881), dissidente convicto que preservou a linha científica do pensamento positivista, recusando -se ao envolvimento com o misticismo da ortodoxia comteana – que formava a outra ala. É a partir da década de sessenta do século passado que começa a penetração das idéias positivistas no Brasil. O ambiente intelectual parecia propício à receptividade do pensamento comteano em virtude do acentuado declínio que já se verificava nas va gas posições defendidas pelos ecléticos na França, embora encontrássemos, à mesma época, sob a influência desse conjunto de princípios de que já tratamos no capítulo anterior. O positivismo no Brasil é recebido como um instrumento de combate a todas as for mas de especulação metafísica, fortalecido pelas categorias do cientificismo que serviu de alento triunfante àqueles que 104 se encontravam mergulhados na indecisão quanto ao destino global da nacionalidade. Era a emergência da esperança na precisão das ciências físico-matemáticas como dados irrefutáveis na operacionalidade da organização racional da sociedade, segundo os preceitos de Augusto Comte. Moralista por excelência, os seguidores do Sacerdote da Humanidade acabam por tentar substituir a moral católica então vigente por um novo tipo de moral fundada em rígidas diretrizes orgânicas articuladas no espaço da vigência positiva, cujo apelo se dirigia aos parâmetros das ciências naturais. Logo nos inícios da disseminação do positivismo no Brasil começa a luta entre aqueles que aceitavam a totalidade da doutrina comteana e os chamados heterodoxos que se inclinavam a ficar apenas com os ensinamentos estritamente científicos expendidos pelo mestre parisiense antes de realizar o projeto de uma Religião da Humanidade e encetar a sua fase catequética. Os adeptos da ortodoxia positivista, liderados por Miguel Lemos e Teixeira Mendes, exerceram muito maior influência entre nós, sobretudo em razão da sua pregação moral, do que aqueles que preferiram se restringir ao espírito cientificista subjacente às suas pretensões globais. Que fique claro, no entanto, que todos eles começaram pelo positivismo científico, muitos dos quais tiveram a oportunidade de freqüentar aulas de Comte em Paris. 105 Sem esses positivistas independent es (muitos dos quais ingressaram no magistério superior e secundário, militaram no imprensa, participaram do Governo Provisório, da constituinte e das assembléias e governos estaduais, além de ocuparem importantes postos no Exército e na Marinha, no alto funcionalismo, na diplomacia e na magistratura) quase nula teria sido a influência política do Apostolado, freqüentemente envolvido em problemas de ortodoxia e cerimônias litúr gicas, assim como se foi tornando imperceptível, em nosso cenário cívico, depois de escassearem entre nós os discípulos de Comte alheios ao grêmio de Miguel Lemos e Teixeira Mendes. LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964. Valendo-se do mesmo historiador do positivismo no Brasil, Cruz Costa nos informa que “já a partir de 1837, vários brasileiros seguiam, em Paris, na Escola Politécnica, os cursos livres de Augusto Comte, entre eles, como indica Ivan Lins, J.P. de Almeida, Patrício d’Almeida e Silva, Agostinho Roiz Cunha, Antônio Campos Belos e Antônio machado Dias – este mais tarde professor de matemática do Colégio Pedro II – e 106 Felipe Ferreira de Araújo Pinho que, no Império, foi deputado geral, presidente da província de Sergipe, e, na República, governador da Bahia”. E continua : “É, porém, de 1844, a primeira conferência à obra de Augusto Comte, no Brasil. Na tese sustentada pelo Dr. Justiniano da Silva Gomes – Plano e Método de um Curso de Fisiologia – referia-se ele a Comte, ao método positivo e à lei dos três estados". (Cf. COSTA, João Cruz. Contribuição à História das Idéias no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967) O mesmo não ocorreria com o catolicismo entre nós, cujas idéias eram recebidas através da catequese legitimada pelo aparelho Igreja-Estado, sem nenhuma preocupação com as questões envolvidas na longa tradição das doutrinas teológicas. Por muitas décadas os problemas da justificação teórica da religiosidade permaneceram obnubilados por uma espécie de consenso com forte vigência entre as mulheres e as massas incultas em geral. Todos os problemas relacionados com a salvação estavam como que resguardadas dos “perigos” da tematização, pairando a fé como sustentáculo único das convicções dessa imensa maioria. Mesmo entre os intelectuais católicos, o que se verifica é uma completa insensibilidade frente aos problemas teológicos, com exceção da corrente tomista que, também, foi pouco além da mera repetição dos conceitos tradicionais desta ordem de pensamento. Quanto ao positivismo, como dissemos, a iniciação se dá através do corpus científico estruturado 107 pelo pensador francês e tido por ele mesmo como definitivo. É mister não esquecer que, em carta a Hutton, Augusto Comte escrevia: não posso reconhecer como verdadeiros discípulos senão aqueles que, renunciando a fundar eles próprios uma síntese, consideram a que eu construí como essencialmente suficiente e ra dicalmente preferível a qualquer outra. O dever deles é então propagá la e aplicá-la, sem pretender criticála, ou mesmo aperfeiçoá -la. Primeira Circular do Apostolado Positivista no Brasil. In Cruz Costa, op. cit. Desta forma, embora advindos da mesma orientação cientificista arquitetada por Augusto Comte, os dois caminhos assumidos pelos positivistas bra sileiros convergem para um objetivo comum: o combate ao espírito especulativo e a instauração do estado po sitivo, com a organização racional do Estado brasileiro. Ambas as orientações – a ortodoxa e a heterodoxa – iniciam suas atividades ao mesmo tempo. Os Elementos de Matemática de Antônio Ferrão Muniz de Aragão, segundo os historiadores, teria sido a primeira obra de tendência heterodoxa publicada entre nós, em 1858. Teixeira Mendes nos dá notícia de que “o movimento em prol dos oprimidos havia determinado em 77 (1865) da parte de um discípulo do Positivismo, o cidadão 108 Francisco Antônio Brandão, a publicação de um opúsculo” que, “apesar de imperfeitamente traduzir os ensinos de Augusto Comte, este trabalho constitui a primeira manifestação social do Positivismo entre nós, de que tenhamos notícia” (Cf. MENDES, R. Teixeira, Benjamin Constant. Rio de Janeiro, Igreja Positivista no Brasil, 1913). O opúsculo a que se refere Teixeira Mendes é intitulado A Escravatura no Brasil, publicado em Bruxelas no ano de 1865. Um dos temas que mais preocupavam os seguidores da Religião da Humanidade era a questão social e uma das suas linhas de combate era a escravatura que representava um lamentável atraso no progresso das práticas políticas. Constava dos planos de Augusto Comte a “incorporação do proletariado à sociedade moderna”, no sentido de unir a humanidade como um todo, guardando, entretanto, os princípios de hierarquia na sua orga nização científica. Miguel Lemos e Teixeira Mendes foram os grandes líderes do movimento religioso positivista. A fun dação da Sociedade Positivista em 1876 que levou naturalmente à instituição da Igreja Positivista, pouco mais tarde, colocaria Miguel Lemos na liderança dessa via de ação preconizado pelo mestre francês. Na França, Pierre Lafitte se investira no cargo de sacerdote da humanidade, com a morte de Augusto Comte. O jovem Miguel Lemos, indo a Paris, recebe as unções de aspirante ao sacerdócio no Brasil, fortalecendo, assim, a sua posição entre o grupo que constituía a linha de fidelidade à religião positiva. Enfrenta os mais variados 109 atritos no seio da pequena comunidade em virtude de divergências de opiniões em relação àqueles cujas tendências estavam mais voltadas para a heterodoxia, isto é, para a aceitação apenas da doutrina científica positivista, acabando por perder a adesão de várias figuras importantes do movimento, dentre as quais a de Benjamin Constant, cujo espírito esteve sempre voltado para as questões das ciências e não para os rituais litúrgicos da seita que se desejava implantar. Semelhantes controvérsias se davam também em Paris entre os grupos de Littré e de Lafitte. Desde o início do seu apostolado, Miguel Lemos combate Littré, pelo seu espírito passivo, pelo seu eruditismo estéril de dicionarista, tendo-o como uma espécie de homem acomodado que em nada contribuía para as lutas que deveriam ser travadas em busca da consolidação do espírito positivo, sem nos referirmos à condição de heterodoxo de Littré. Mas não ficam aí as querelas de Miguel Lemos. Aos poucos começa ele a desconfiar da fidelidade e da competência do próprio Pierre Lafitte, culminando com o rompimento também com este. Dentre os positivistas que passaram a manter uma certa distância das questões diretamente ligadas à Religião da Humanidade destaca-se a figura de Luiz Pereira Barreto (1840-1932) que, pela primeira vez entre nós, traça as diretrizes de uma filosofia da história brasileira, segundo o modelo geral elaborado pelo mestre de Montpellier. Esse quadro fica delineado na sua obra As Três filosofias publicada em dois volumes, entre 1874 e 1876. 110 O plano primitivo da obra de Pereira Barreto consistia, a partir da questão religiosa, em “apresentar sucessiva mente à apreciação do intelecto bra sileiro a filosofia teológica, a filosofia metafísica e a filosofia positiva”, plano este que não se completou em virtude de ter Teófilo Braga publicado um volume a respeito do último dos assuntos programados, volume que Barreto acreditou poder substituir o seu, dispensando-se, portanto, de escrevê-lo. Estas três filosofias, escla rece Barreto, se referem, a primeira “aos conservadores, aos representantes do antigo passado; a segunda aos liberais, os representantes do passado moderno; a terceira aos contemporâneos efetivos da ciência atual, os representantes do presente e do futuro”, vale dizer, aos positivistas. BARROS, Roque Spencer Maciel de. A Evolução do pensamento de Pereira Barreto. São Paulo, EDUSP-GRIJALBO, 1967. Pereira Barreto cuida nesta obra, fundamentalmente, de problemas político-sociais, procurando encontrar os momentos básicos da evolução da nossa história e colocando em plano secundário os problemas da filosofia, até porque, talvez, isto fosse julgado 111 irrelevante para o nosso pensador, já que Comte trouxera as diretrizes modelares com caráter de terminalidade. Com isto, torna-se difícil uma análise aprofundada das categorias filosóficas operantes nas Três Filosofias, não só pela superficialidade que encerra esta obra como também em face do pressuposto teórico do positivismo que a transforma em repetição do pensamento comteano no sent ido de adequá-lo à nossa realidade histórica. Segundo Roque Spencer Maciel de Barros, na obra acima indicada, a grande preocupação de Pereira Barreto está voltada para o projeto educacional em cuja realização se colocaria o êxito do progresso, a caminho do estado positivo. Tem razão o ilustre especialista das idéias educacionais no Brasil, quando enfoca pedagogicamente o pensamento de Pereira Barreto, mostrando o seu significado educativo. Só mesmo nesta perspectiva teríamos a oportunidade de realçar o pensamento do positivista pátrio. Mas esta importância atribuída à educação não é privilégio exclusivo de um único positivista entre nós. Pedagogos pro excelência foram também Pedro Lessa e Benjamin Constant, entre outros. O magistério da filosofia do Direito, exercido por Pedro Lessa, desencadeou uma acentuada influência na formação dos bacharéis, contrariando a opinião daqueles que afirmam ter o cientificismo positivista proliferado em torno das academias que manipulavam as ciências naturais, esquecendo-se da sua ressonância nas Faculdades de Direito. No prefácio à primeira edição de seus Estudos de Filosofia do Direito, Pedro Lessa lamenta: 112 Outro fenômeno, que exprime outro mau sintoma social, é este que se nota freqüentemente em nossos dias: reconhecida a inanidade das doutrinas teológicas e metafísicas, em vez do esforço pela formação de uma teoria jurídica, baseada na rigorosa obser vação dos fatos, de acordo com o método científico, o que se tem dado, é um tal desvairamento dos espíritos, não rato aguilhoados pelo vão desejo de originalidade, que nada há hoje mais comum do que vermos doutrinadores que, a pretexto de explicarem filosoficamente o direito, a este des troem todo o fundamento, negam toda a razão de ser. LESSA, Pedro. Estudos de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1916, p. 10. Nesta mesma linha há de ser lembrada a obra jurídica de Clóvis Beviláqua representada pelo anteprojeto do nosso código civil que vige desde o dia primeiro de janeiro de 1917 aos nossos dias. O magistério e a doutrina de Beviláqua, espalhada em livros e no referido anteprojeto, refletem o espírito de um positivista convicto. Benjamin Constant também foi, sobretudo, professor. Ficou o seu magistério, a sua força moral e 113 intelectual exercida entre os jovens que abraçavam a carreira das armas. Tudo isso estava explícito na doutrina de Comte e não encontramos nenhum pensador original nesse espaço. No fundo, predomina o espírito doutrinário, no sentido de divulgação e contextualização de um sistema devidamente articulado. Como instrumento de combate ao espiritualismo eclético e a todas as formas de elocubrações ima ginárias, o positivismo foi a corrente filosófica mais importante aparecida entre nós na segunda metade do século XIX. Mas em nada contribuiu para a formação do pensamento filosófico brasileiro. Ao contrário, valendo se de uma sólida doutrina, acabou desestimulando as consciências no itinerário da indagação científica e filosófica em demanda de outros caminhos. Nem poderia ocorrer o contrário. O ideal de organização científica da humanidade trazia subjacente o progresso racional em demanda de uma sociedade industrial. Nessa tarefa, o espírito positivista continua presente ainda em nossos dias, em cujo espaço o aparelho estatal tem o domínio absoluto, interferindo em todas as esferas da vida dos indivíduos, com uma progressiva laicização da própria privacidade. Teorias “científicas” altamente sofisticadas justificam quaisquer desmandos do Estado, na sua operacionalidade tecnicista. Política é mera divag ação e, por isso mesmo, os políticos devem apenas ser tolerados numa engrenagem que só comporta a racionalidade aparente, por mais irracional que seja. Dentro deste clima parece não haver lugar para a filosofia. As racionalidades do Estado são mais imperio sas do que a 114 dignidade da razão e da pessoa humana, emergindo deste estado de coisas a constante substituição da verdade pelas falácias artificiosamente engendradas nos gabinetes para conter as multidões massacradas pelo complexo poder industrial. É a huma nidade cientificamente organizada; é o estado positivo de Augusto Comte. Esta é a síntese do legado positivista no Brasil, que longe de ser coisa do passado, é uma presença que se fortalece a cada dia, embora hoje os seus representantes estejam emancipado s, falecendo-lhes tempo e vocação moral e intelectual para uma meditação aprofundada sobre as raízes próximas da nossa contemporaneidade. 2. O Anglo-germanismo como Tentativa de Reconstrução Na formação do pensamento brasileiro teve contribuição importante o pensamento anglo-germânico representado por algumas figuras que aqui foram largamente estudadas, não deixando de receber combates e adesões. Poderíamos colocar em primeiro plano o evolucionismo biológico de Charles Darwin (1809-1882) pelo caráter revolucionário das suas teorias, embora algumas delas tenham sido tomadas de outros naturalistas. A Origem das Espécies (1859) e A Descendência do Homem (1871) são trabalhos lidos e discutidos pelos nossos intelectuais da segunda metade do século 115 dezenove, principalmente por aqueles que se deixaram influenciar nos primeiros momentos pela voga do positivismo de Augusto Comte. Darwin procura mostrar na primeira obra, através de minuciosas análises, o processo evolutivo das espécies nos reinos vegetal e animal, dentro de uma visão mecanicista, tendo como causa a lei por ele formulada, segundo a qual as variações acidentais e a seleção natural se dão em virtude da luta pela existência. Não há separação fixa e invariável na totalidade das espécies, mas uma seqüência de transições entre elas, o que faz com que umas se transformem em outras através do processo de seleção natural. Na segundo obra aqui indicada, Darwin generaliza a sua tese, estendendo ao homem o fato evolutivo, com o conseqüente abandono da idéia de Deus como o seu criador manifestada em A Origem das Espécies. Dentro da mesma concepção mecanicista, afirma que a formação do homem decorre de uma evolução obedecendo às mesmas causas naturais vigentes nas demais ordens das espécies. O homem descenderia de um tronco comum de simianos do Antigo Continente, existindo distintas raças ou subespécies, dentre as quais se situam os povos africanos e as raças da Oceania. A tendência natural é o extermínio das raças inferiores ou selvagens, como as da Oceania e as africanas por parte dos povos civilizados, na cadeia implacável da seleção natural. Outra figura importante do evolucionismo bio lógico bastante divulgada entre nós é Ernst Haeckel (1834-1919), seguidor de Darwin na Alemanha. A partir 116 das idéias do naturalista inglês, cria aquilo que ele mesmo intitulou de monismo, em oposição a todas as formas de dualismo, com a concepção de que o Universo é uma única substância, cujos dois elementos básicos são a matéria e a força. Com isto chegará ne cessariamente ao panteísmo como cosmovisão. Funda a religião monista, cujo objeto de adoração é a trindade – Verdadeiro-Belo-Bom. Essa religião deveria operar a fusão entre o cristianismo e a ciência, estabelecendo um culto constante ao progresso da ciência, com a união dos indivíduos em torno dos ideais do saber. Até mesmo uma Sociedade Monista Alemã é fundada em 1906, com a finalidade não só de propagar o ideário monista mas também de difundir a ciência moderna que seria o suporte da concepção do mundo, em substituição à mundividência cristã. Pensador de marcante influência no Brasil foi também Herbert Spencer que viveu entre 1820 e 1903, na Inglaterra. Spencer representa o ponto mais alto do evolucionismo que recebe sua roupagem filosófica como verdadeira filosofia da evolução. Influenciado pelo ideal romântico de progresso, o pensador inglês concebe uma lei da evolução que preside à totalidade do real cognoscível, abrangendo até mesmo a realidade espiritual. Todo o conhecimento é relativo, sendo o absoluto incognoscível, tal qual apregoava o positivismo de Augusto Comte. Para Spencer, a filosofia é também o conhecimento de maior grau de generalidade. O princípio dos princípios é a noção de força que engendra toda a possibilidade de conhecer a realidade que a manifesta. Sua sociologia é uma verdadeira apologia da 117 liberdade e um veemente ataque ao Estado, contrariando o ditatorialismo estatal de Comte, contra o qual se insurge neste campo. Spencer recebe influência de vários naturalistas que estabeleceram a fermentação do cientificismo na segunda metade do século dezenove, incorporando ao seu pensamento algumas linhas do positivismo comteano no espaço geral das categorias com as quais opera na edificação da sua mundividência. Era a ânsia de instauração de uma crença consolidada no progresso das ciências que constituía o espírito da época, contra o qual se insurgiriam os vários indicadores do espiritualismo. Já ao seu tempo aparecem alguns pensadores de formação naturalista que buscam atenuar o desprezo pela metafísica e pela religião, a partir das investigações científicas. Tais são os exemplos de Gustavo Fechner que, a partir da lei do paralelismo psicofísico passa do pampsiquismo ao panteísmo como religião; de Eduardo Hartmann que, partindo do panteísmo procura desenvolver uma metafísica do inconsciente; de Rudolf Lotze, envolvido no mesmo ambiente e interessado na construção de um discurso de inspiração pampsiquista. Estes são apenas alguns exemplos de investigadores que exerceram um papel importante no pensamento europeu e que foram divulgados entre nós na fase de maturação do pensamento brasileiro. Diríamos que o pano de fundo do naturalismo anglo-germânico foi uma fonte inolvidada pela in telectualidade pátria, tais são os apelos a ela dirigidos pelos nossos escritores de um modo geral, quer para 118 combatê-la, quer para aderi-la. Não se trata de uma discussão isolada, restrita ao Brasil. Ao contrário, o fenômeno se universalizou, ganhando penetração nos principais centros pensantes do mundo, com muito maior entusiasmo do que a doutrina positivista de Augusto Comte. As teses naturalistas permeiam o ambiente intelectual europeu e despertam a reação das diversas tendências filosóficas e científicas que enfrentavam o debate em torno da necessidade de se encontrar um caminho viável à reconstrução do discurso metafísico. Entretanto, podemos tentar encontrar em algum denominador comum dou trinário o correlato daquele núcleo e de suas relações com a periferia do grupo. O fato, aliás, é que mesmo entre os dois fundadores da Escola não havia identidade de vistas nem de posição filosófica: em Tobias Barreto encontramos um definido credo monístico, em Sylvio Romero um predomínio do spencerismo. Parece certo, pelo caso dos fundadores e para além dele, que o monismo e o evolu cionismo constituíram as concepções gerais mais características do grupo. E talvez possamos tomar o evolu cionismo como a concepção mais difundida entre seus integrantes, aparecendo o monismo como espécie 119 de contraste no caso de Tobias, como contrapartida e complemento em outros casos. Se fizéssemos um corte longitudinal no acervo das produções da Escola, pondo à vista as idéias básicas de cada um de seus componentes (desde os iniciadores aos continuadores finais), encontraríamos sempre presente a idéia de evolução. O que será perfeitamente compreensível, já que esta idéia foi própria de todas as grandes filosofias do século dezenove, sobretudo em sua segunda metade, e sobretudo nas filosofias sociais. SALDANHA, Nelson. A “Escola do Recife” na Evolução do Pensamento Brasileiro. In CRIPPA, Adolpho. As Idéias Filosóficas no Brasil – Séculos XVIII e XIX. São Paulo, Editora Convivio, 1978, p. 90. Obra Coletiva. Como se vê, na segura afirmação de Nelson Saldanha, o monismo e o evolucionismo anglo -germânicos não foram movimentos ignorados ou mesmo considerados de importância relativa mas, como temáticas emergentes no contexto do século XIX, não puderam deixar de preocupar os espíritos pensantes. Tais orientações pela primeira vez no Brasil se erigiram em indicadores cujos alicerces, considerados sólidos ao tempo, atravessaram décadas e entusiasmaram gerações, 120 até que seus argumentos começassem a ser minados no mesmo solo onde foram produzidos. Sylvio Romero acaba por abandonar sua afeição para com as doutrinas positivistas, lançando-se no universo do evolucionismo spencerista, tão logo assimilou os postulados da obra do pensador britânico. Nada de novo nessa atitude, Romero passava de uma a outra orientação, sem jamais ter criado coisa alguma de original. Como crítico de idéias, saliente-se o seu pendor para o trabalho intelectual, sem perder de vista a dose de ódio que espalha onde quer que lance sua pena. A crítica para ele é mais um pretexto para combater os seus adversários e não um instrumento pedagógico a serviço da contextualização de idéias. No caso específico de que estamos nos ocupando, serve o discurso do historiador da literatura brasileira como um exemplo da penetração do evolucionismo entre nós. Na sua A Filosofia no Brasil, afirma Romero: Entre os úteis serviços prestados por Comte à filosofia destacam-se, a meu ver, os seguintes: A excelente classificação das ciências, superior às propostas por Ampère e por Spencer. O grande pensador classificou-as pela ordem natural, a ordem do desenvolvimento. Três são os princípios fundamentais de tal trabalho: 1º) os fenômenos se desenvolvem na ordem de sua complexidade crescente, e de sua gene121 ralidade decrescente; 2º) cada ordem de fenômenos, exigindo induções que lhe são próprias, só pode tornar -se sistemática sob o impulso dedutivo resultante de todas as ordens menos complicadas; 3º) as ciências mais especiais e mais complexas requerem não só as verdades das ciências mais simples, como também seus métodos. Firmado nestas bases, o sábio francês classificou as ciências em matemática, astronomia, física, química, biologia e sociologia. Tudo é bem deduzido; há porém aí um pequeno defeito de detalhe. Comte desdenhou inteira mente dos trabalhos psicológicos e estabeleceu um hiato entre a biologia, como ele a encarava, e os estudos sociológicos. Foi levado a este passo pelo modo anti-científico porque foi tratada até seu tempo a ciência dos fenômenos cerebrais. ....................................................... É também um grande mérito do positivismo o ter abraçado, e a judado a desenvolver e a propagar, os quatro princípios fundamentais do monismo contemporâneo: a relatividade, a ima nência, a evolução e a unidade dos seres. Estes elementos indispensáveis à ciência de nossos dias não foram 122 descobertos por Comte. Ele os a ceitou e é, por isso, um benemérito do pensamento livre. ROMERO, Sylvio. A Filosofia no Brasil. Porto Alegre, Deutsche Zeitung, 1878, pp. 69-71. Ainda é visível o apreço do crítico literário pelas idéias de Augusto Comte, embora já manifeste as não menos visíveis tendências à passagem para o evo lucionismo spencerista que se daria irremediavelmente. Sem qualquer justificação de que porventura seria merecedora a memória do seu antigo mestre e nos deixando soltos em relação aos momentos de avanço das suas filiações doutrinárias, Romero afirma em seguida: Se fosse preciso, poderíamos encher vinte páginas com as incongruências do sistema de Comte. Sua lei da evolução das ciências é tão insustentável, que, para seguir o seu exemplo, deixando de lado, arbitrariamente, grande porção de fatos, seria possível, com muita plausibilidade, apresentar exatamente a hipótese oposta à sua. ROMERO, Sylvio. Doutrina Contra Doutrina. Rio de Janeiro, Livraria Clássica de Alves, 1893, 2ª ed., p. 115. 123 Mas não ficam aí as invectivas do inventariante do folclore nacional. Quanto a Spencer, teve sempre o su premo bom senso de evitar a idiotificação sistemática, e por isso exatamente é querido de todos os amigos da verdadeira cultura, ao lado dos primeiros espíritos do nosso tempo, Tudo quanto há de verdadeiramente ilustre na filosofia e na ciência em nosso século é adversário declarado dessa doutrina mofenta, talhada para a mediania submissa e rasteira, que ainda não produziu um só homem superior. Aqui mesmo no Brasil, o que há de mais distinto nos domínios da inteligência, em todos os ramos da atividade pensante, anda afastado dessa malária espiritual. O mandismo, fórmula do positivismo brasileiro, é uma lazeira que há de passar. ROMERO, op. cit., pp. 122 -123. Como confiar nesse tipo de crítica? Porventura o mandismo – ou as idéias de Teixeira Mendes – constituem a formula do positivismo brasileiro? De qualquer forma, o que fica patente é a ausência de formação filosófica em Sylvio Romero. Sua grande contribuição à vida intelectual do país se situa no plano da historiografia literária, em cujo campo 124 produziu a obra mais respeitável, ainda hoje não superada. Também seria ingenuidade negar o seu magistério crítico. Pelo menos foi um homem que acompanhou o seu tempo, exercendo influência no seu acanhado meio, como polarização de debates em torno da vida intelectual. Neste sentido, o anglo -germanismo encontra nele um dos seus maiores representantes no Brasil, no caminho da sua vulgarização. A sua pedagogia crítica, embora viciada pelo sectarismo, serviu como exemplo de como se pode manipular as idéias sem nada de sólido construir. O naturalismo de que se ocuparam os intelectuais brasileiros da segunda metade do século XIX foi um valioso instrumento de afirmação das nossas tendências pensantes, não podendo ser confundido com afirmações eivadas de passionalismo. A obra de Romero sobrevive graças à generosa absolvição da história e à necessidade de preservar o que nela existe de esforço de trabalho. Apesar de carente de serenidade, confor me já afirmamos alhures, o juízo de Sylvio Rabelo sobre Romero é bastante adequado: “Necessariamente Sylvio Romero teria de ceder à vaidade de contribuir com algum conceito “original” para o acervo das doutrinas e das idéias gerais. Ele não passaria por ne nhum domínio, fosse do pensamento ou fosse da ação, sem deixar vestígio pessoal – uma direção nova, um esclarecimento ou uma retificação a erros ou falhas que sempre via por toda parte. Nada se fechava à sua intemperança crítica. Mas a nenhum domínio Sylvio Romero trouxe soluções mais inconsistentes e mais ingênuas do que ao da filosofia”. 125 E prossegue o ferino crítico pernambucano: Folheando-se hoje os livros em que a sua crítica se acende em polêmica, sente-se a precariedade de uma inteligência que esteve mais a serviço da paixão pessoal do que a serviço da verdade literária. A distância que nos separa do seu tempo e a ausência de solidariedade que nos poderia ligar aos seus movimentos, como escritor, e aos seus interesses, como homem, reduzem esses livros a uma proporção mínima. Entretanto, a Sylvio Romero eles pareciam feitos com o sopro da eternidade – obras que se destinavam a atravessar os tempos pela força da verdade que encarnavam. Basta considerar os seus juízos sobre autores que lhe mereceram a mais completa condenação e repulsa. RABELLO, Sylvio. Itinerário de Sylvio Romero. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, pp. 88 89. Em todo caso, como já deixamos implícito, a obra do polemista pátrio, embora não merecendo a que nela nos detenhamos com instrumentos e categorias filosóficas, teve o destino de chamar a atenção para a necessidade de se lançar com maior seriedade sobre os 126 grandes problemas que envolvem a interpretação da nossa cultura. Companheiro inseparável de Romero foi Tobias Barreto (1839-1889), seguramente a figura mais importante da meditação que ganha corpo a partir dos anos setenta do novecentismo. Tobias se assemelha a Romero no espírito polêmico, mas dele se separa radicalmente na inteligência, na capacidade de percepção dos problemas, no sentido da universalidade. O primeiro é impetuoso, mas profundo; o segundo é arrogante e superficial. Tobias é sincero e imparcial, contendo suas mágoas quando os temas exigiam reflexão mais séria; Romero é injusto para com os seus inimigos, negandolhes valor que ele próprio não tinha condições de perceber... O primeiro viveu na miséria e no isolamento, enquanto o segundo desfrutou do fausto e das benesses do Estado. Tobias Barreto inicia sua participação na vida intelectual brasileira sob a influência do ecletismo, passando por um ligeiro apreço pelo positivismo para, em seguida, encontrar abrigo no germanismo. Haeckel será seu grande inspirador num determinado momento, encontrando o pensador pátrio na orientação monista articulada pelo mestre alemão a sua porta de entrada para um outro universo de pensamento, muito mais por razões geográficas do que mesmo em virtude da consistência de idéias. Tobias Barreto estava interessado no deslocamento do eixo de irradiação de idéias que atingiam a nossa formação, isto é, desejava ele que a França perdesse a sua hegemonia. 127 Com o exaurimento da discussão em torno do positivismo e do ecletismo, continua Tobias se in vestindo contra a metafísica clássica e defendendo o monismo evolucionista. Entretanto, o pe nsamento haeckeliano continha um elemento inconciliável na opinião do nosso pensador: era a concepção mecanicista do universo. A ausência da concepção teleológica poderia interditar uma série de questões compreendidas no âmbito da filosofia em cujo campo s e dava o combate. Temos assim que a rejeição do positivismo foi o resultado da busca por uma solução da questão que se propunha a si mesmo já nos primórdios do seu contato com a doutrina de Augusto Comte, isto é, a determinação dos limites em que se po deria aceitar a metafísica – entendida esta como a discussão de problemas propriamente filosóficos – expurgada, de antemão, do que dissesse respeito à “causa primeira”. Este o objetivo a que se propôs Tobias Barreto, segundo se pode deduzir das restrições opostas ao positivismo no estudo A Religião Natural de Jules Simon, escrito em 1869. PAIM, Antônio. A Filosofia da Escola do Recife. Rio de Janeiro, Saga, 1966. 128 Assumida a posição a favor de um diálogo mais aprofundado com os temas da filosofia, Tobias acaba por abandonar o haeckelismo e adotar uma atitude de franca adesão à volta à Kant, no momento em que o neokantismo iniciava os seus primeiros passos. É interessante observar que no seu trabalho intitulado Notas a Lapis sobre a Evolução Emocional e Mental do Homem já é citado o nome de Otto Liebmann. Se a justiça da história e da crítica científica se regulasse pelo direito dos lapônios, segundo o qual o urso não pertence a quem o mata, mas a quem lhe descobriu a pista, Darwin ficaria fora de questão na contenda pela glória. Basta lembrar os nomes de Geoffroy, Saint-Hilaire, Lamarck, Goethe, e até Kant e Herder, na opinião de Otto Liebmann, para saber entre quem então a disputa seria travada. MENEZES, Tobias Barreto de. Estudos de Filosofia. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1966, v. 2, p. 7. A aproximação dos neokantianos da primeira fase será uma etapa decisiva no percurso intelectual de Tobias Barreto. Daí em diante, as questões da filosofia se consolidam no seu espírito, ganhando uma diretriz que irá facultar a firmação de algumas teses que serão incorporadas como conquistas do pensamento brasileiro. 129 Essa aproximação não se dá em termos de “escolas”, como poderia ser entendida à primeira vista, frente à importância dos grupos de Marburgo e de Baden. A volta de Kant, de um modo geral, começa na década de sessenta, conforme se sabe. E o prosseguimento dessa atitude vai coincidir com a trajetória intelectual de Tobias Barreto. Na sua obra intitulada Questões Vigentes, de 1888, aparecem dois capítulos que demonstram claramente a predileção do pensador pátrio pelo kantismo. Isto se verifica nos capítulos Glosas Heterodoxas a um dos Motes do Dia, ou Variações Anti-Sociológicas e Recordação de Kant aos quais voltaremos mais tarde. Assim que conseguiu domina a língua alemã, Tobias abandonou todas as linhas do pensamento francês que sempre se manifestaram como favoritas da intelectualidade brasileira. Combatendo o positivismo de Augusto Comte, Tobias afirma: Bem pode parecer que, assim me exprimindo, eu obedeça à minha velha predileção pela Alemanha e a um tal ou qual desagrado que em geral me causam os produtos do espírito francês. Completo engano. É certo que não faço segredo do meu germanismo. Na questão suscitada por Lord Dunsany, se gaulês ou teutônico – não duvidaria tomar, em todo caso, 130 o partido do nobre inglês e pronunciar-me pela preferência do segundo. Mas isto não me veda reconhecer que a Alemanha também pagou a sua quota de papel e tinta à mania da época. Os seus positivistas, que aliás contam-se nos dedos, não me são menos antipáticos do que os franceses, posto que sinta-me obrigado a confessar-lhes um pouco de gratidão, por haverem eles indiretamente, com a maior robustez dos seus argumentos e a maior profundeza das suas indaga ções, melhor assentado a insustenta bilidade do positivismo e sobretudo a inanidade da sociologia. MENEZES, op. cit., p. 60. Assim, Tobias representa no Recife o momento mais importante da maturação do pensamento filosófico brasileiro. A assimilação do pensamento kantiano será para ele a via de acesso à discussão em torno dos problemas relacionados com a cultura e com a metafísica em cujos campos ele terá oportunidade de levantar a possibilidade de contribuições originais. Não é de se estranhar o seu germanismo. Muitos dos seus críticos vêem nessa atitude uma espécie de descompromisso com a realidade brasileira, numa forma de alienação. Nada mais equivocado. Deve -se até mesmo entender o contrário, tendo -se presente que a volta a Kant representou o momento de aprofundamento 131 do diálogo do jovem Brasil com aquilo que havia de mais representativo no pensamento universal. Significativa é a afirmação de Paulo Mercadante: Para nós, a volta a Kant significava a exposição e a divulgação de uma filosofia quase que desconhecida. O idealismo clássico, em virtude do seu sentido revolucionário, sobretudo no que representou quanto à velha meta física, encontrara fraca ressonância no Brasil. De Kant o que se conhecia era a exposição de sua doutrina pela superficialidade eclética. Por isso, a volta a Kant iria representar para nós o indispensável degrau para o combate à velha metafísica, constituindo, na história do pensamento brasileiro, um passo adiante, tendo-se em conta o caráter descolorido de nossa filosofia tradicional. O papel que desempenharia ia ligar-se a todo um formidável embate. MERCADANTE, Paulo. O Germanismo de Tobias Barreto. In MERCADANTE, Paulo e PAIM, Antônio. Tobias Barreto na Cultura Brasileira. São Paulo, EDUSP-GRIJALBO, 1972, p. 156. 132 Já no seu trabalho intitulado Deve a Metafísica ser Considerada Morta?, de 1875, Tobias Barreto deixa clara a sua posição frente à metafísica. Não se trata de combatê-la pura e simplesmente. Trata-se de buscar um caminho para recolocar os seus problemas, expurgando deles o dogmatismo como procedera Kant. Não há como negar o valor da metafísica no seio mesmo da própria atividade científica. O problema das relações da metafísica com as ciências, tão discutido em nossos dias, aparece claramente delineada no pensador de Recife. Basta mencionar as concepções fundamentais e realmente indispensáveis da filosofia natural que trata dos átomos e das forças, ou as da atração considerada como ação que se exerce em distância, ou as da energia potencial, ou as antinomias de um vácu o ou não vácuo, para lembrar o fundo metafísico da física e da química, ao passo que no tocante às ciências biológicas, o caso ainda é mais grave. Que é um indivíduo entre as plantas e os animais inferiores? Os gêneros e as espécies são realidades ou abstrações? Há uma coisa que se chama força vital? Ou este nome denota apenas uma relíquia do velho fetichismo metafísico? A teoria das causas finais é legítima ou ilegítima? Eis aí alguns 133 dos assuntos metafísicos sugeridos pelo mais elementar estudo dos fatos biológicos. MENEZES, op. cit., v. 1, p. 138. Eis um outro momento em que Tobias atribui à metafísica, mais uma vez, o papel de questionadora dos fundamentos da ciência: Ou será porventura o matemático um fato menos real do que as suas figuras, o físico menos real do que os corpos, que ele observa, a experiência enfim menos real do que os seus objetos? As ciências exatas não podem negar que elas têm uma existência, cujo reconhecimento aumenta de dia em dia. Estes fatos seriam os únicos que não necessitam de uma explicação? Não deve portanto haver uma ciência, que faça da explicação deles o seu alvo: uma ciência, que considere a matemática, a física, a experiência, como seus objetos, da mesma forma que a matemática tem por objeto as grandezas, a física os corpos, a experiência as coisas em geral? Ou dá -se porventura que a matemática, a física, a experiência, expliquem-se a si mesmas? Se não se explicam, deve haver 134 então uma ciência distinta e autônoma que esteja para a matemática como esta para as grandezas, que esteja para a física, como esta para os corpos, que esteja enfim para toda experiência como esta para os fenômenos dados. Esta ciência, tão necessária como as outras, é a filosofia crítica, é a metafísica, no bom sentido da expressão. MENEZES, op. cit., v. 2, p. 91. Afastando-se de Augusto Comte que faz da filosofia um mero instrumento de coordenação dos fatos científicos em cujo campo o sentido da positividade fenomênica se coloca acima de quaisquer pretensões da metafísica, o pensador brasile iro está certo de que o papel do filósofo jamais poderá se restringir ao de um contemplador do artificialismo da criação científica. Estão aí postas as questões mais relevantes suscitadas por grande parte dos cientistas contemporâneos, muitos dos quais lançam na dúvida o próprio valor do seu trabalho e buscam constantemente um diálogo mais aproximado com a filosofia. Ora, Tobias Barreto estava vivendo um momento em que o progresso das ciências trazia implícita a idéia de que a razão filosófica era uma atmo sfera nebulosa que aos poucos deveria desaparecer dos horizontes do saber. Bem mais tarde é que começam a aparecer trabalhos significativos que progressivamente vão tentando mostrar que essa mentalidade cientificista não era tão consistente conforme se apr egoava. Bastaria 135 citar os nomes de Henri Poincaré, Émile Boutroux, Léon Brunschvicg e outros para darmos conta das dimensões que o problema dos fundamentos das ciências assu miriam logo mais tarde, acentuando -se cada vez mais em nossos dias. Era esta a dir etriz que o pensador pátrio já ensaiava imprimir à filosofia, como tarefa mais alta do espírito. Versando os temas com precisão e segurança, ele se coloca na vanguarda de muitas discussões que surgiriam do espaço do cientificismo e, notadamente, do kantismo. Outra questão com a qual se defronta o nosso filósofo é a relacionada com a cultura. Miguel Reale e Antoni Paim já levaram a análise do problema ao seu exaurimento. Certamente, sua importância decorre, em grande parte, do fato de ter Tobias Barreto se insurgido contra o conceito rousseauniano de cultura, chamando a atenção para o papel da consciência na elaboração do mundo humano. Rousseau deixou escrito que em as sunto de educação, - tout consiste à ne pas gâter l’homme de la nature en l’appropriant à la societé. Neste princípio, que se lê na quinta carta do 4º livro da Nouvelle Héloise, culmina-se o edifício de suas idéias reformadoras. Entretanto a verdade está do lado contrário. O processo da cultura geral deve consistir precisamente em gastar, em desbastar, por assim dizer, o homem da natureza, adaptando-o à sociedade. 136 MENEZES, op. cit., p. 45. Pela primeira vez entre nós a abordagem da temática da cultura é feita com o aparato conceptual da filosofia, embora devamos lamentar a ausência do seu aprofundamento por parte do pensador pátrio. Trata da questão a propósito de combater a sociologia como ciência, negando radicalmente a esta o seu próprio objeto. Era natural que não visse nessa ordem do saber qualquer manifestação que pudesse despertar o se u interesse, já que o seu espaço ignorava a tessitura operatória da filosofia crítica. Daí chegar ao problema da cultura com os instrumentos da meditação filosófica. Diz Antônio Paim: O interesse pela consideração da cultura do ângulo filosófico remonta a Tobias Barreto. O pensador brasileiro considerou-a como o elemento chave para refutar a idéia de determinismo social posta em circulação pelo positivismo. No período contemporâneo, suas teses são retomadas e aprofundadas. PAIM, Antônio. Problemática do Culturalismo. Rio de Janeiro, PUC, 1977, p. 43. Ao suscitar a discussão em torno dos valores do espírito, Tobias Barreto está longe, pensamos nós, de imaginar que tais problemas seriam os indicadores 137 básicos das preocupações dos neokantianos da escola de Baden, liderados por Windelband, que apregoava a distinção entre os valores da natureza e os valores do espírito, postulando, consequentemente, uma ordem de pensar que deixasse clara a separação entre ciências nomotéticas e ciências ideográficas. Não era possível, por um lado, continuar aplicando os parâmetros das ciências naturais na explicitação de fenômenos a eles refratários e, por outro lado, deixar de reconhecer a existência de tais fenômenos. Assim, enquanto as ciências nomotéticas cuidariam das leis da natureza, em última análise, as ciências ideográficas cuidariam do reino do espírito, com ênfase na questão dos valores e da história referenciados ao indivíduo. Ficariam, assim, abertas as possibilidades para o conhecimento de uma realidade até então objeto de abandono ou de equívocos. Os marburguenses radicalizaram a volta a Kant, reduzindo a filosofia a uma teoria do conhecimento científico e excluindo, ipso lato, qualquer possibilidade de instauração das chamadas ciências ideográficas. 138 CAPÍTULO IV A MATURIDADE DA MEDITAÇÃO BRASILEIRA 1. O Momento de Farias Brito Tentamos mostrar, nos capítulos anteriores, as feições características da assimilação do pensamento europeu por parte dos nossos patrícios, salientando as instâncias mais relevantes que emergiram em meio ao confronto de idéias. Torna-se necessário, agora, situar os dois momentos que nos parecem capitais no desdobramento do processo de formação das idéias filosóficas no Brasil. Tais momentos são representados por Farias Brito e Miguel Reale. Raymundo de Farias Brito (1862-1917) é formado no seio do movimento de idéias oriundo do Recife. Embora começando o debate no mesmo campo, não encontramos na sua obra nenhuma filiação definida a esse movimento tão representativo do pensamento pátrio. É verdade que acompanha Tobias Barreto no seu combate ao naturalismo mecanicista e ao determinismo histórico do positivismo, ambas posições inconciliáveis com as aspirações da liberdade (Cf. BRITO, Raymundo de Farias. Finalidade do Mundo. Fortaleza, Tipografia Universal, 1895, v. 1, pp. 145-163). Aí aparece claramente a concordância do pensador cearense com o mestre de Recife, não só na interpretação do pensamento de Noiré, como também na exaltação do pensamento 139 kantiano. Mas Farias Brito segue um caminho autônomo após trazer sua contribuição à crítica do pensamento francês e anglo-germânico que fermentaram a luta de idéias na segunda metade do século passado. Clóvis Beviláqua foi ainda mais ex plícito ao assinalar que, entre a série da Finalidade do Mundo e a dos Ensaios sobre a Filosofia do Espírito, se opera “um desvio na orientação filosófica de Farias Brito. O natu ralismo não o satisfaz para o desenvolvimento do seu pensamento funda mental e volta-se para o espiritualismo que a esse tempo pretendia tomar a sua desforra do positivismo, do evolucionismo e do monis mo dominantes”. A afirmação de Clóvis Beviláqua é até certo ponto justa. Farias Brito trocou, de fato, o naturalismo pelo espiritualismo. RAMOS DE CARVALHO, Laerte. A Formação Filosófica de Farias Brito. São Paulo, EDUSP-Saraiva, 1977, pp. 14-15. Equivoca-se o saudoso mestre da Universidade de São Paulo, ao encampar a opinião do jurista pátrio sobre o itinerário do pensamento britiano. Mas tal equívoco, entretanto, milita a favor de Farias Brito. De fato, ele passa, não da adesão ao naturalismo, mas da discussão 140 com este à construção de uma filosofia do espírito, buscando na análise da consciência a garantia para a restauração da metafísica. O que se pretende insinuar, ao que se infere das afirmações acima, é o caráter religioso do espiritualismo britiano, esquecendo -se de que o pensador de que tratamos sempre se situou além das preocupações místicas que poderiam obstaculizar a sua confessada e decidida vocação para a busca da verdade. Na realidade, a partir da publicação da Base Física do Espírito (Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1912) e de O Mundo Interior (Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais, 1914), Farias Brito imprime uma nova direção ao seu pensamento, julgando -se já amadurecido para tentar uma via autônoma na tarefa de restauração do prestígio da metafísica. As suas investigações constituem “um esforço doloroso e triste” no sentido de retomar os problemas da filosofia e recolocá -los numa perspectiva distanciada da tradição. Nem volta a Kant, nem volta a Santo Tomás ou a tudo mais que já foi objeto de debate. Volta à consciência, ao espírito, como órgão capaz de conduzir a um encontro radical com a realidade. Espírito e consciência se identificam em Farias Brito. O espírito não é somente a base do edifício do pensamento, o princípio dos princípios: é também fato que resiste a toda a dúvida, verdade que desafia o capricho mais desordenado dos céticos. E negá -lo é coisa que, só 141 por si, envolve absurdo, porque negar é ato da consciência e a consciência é fenômeno do espírito. Negar o espírito é negar-se, e negar-se é dizer: eu sou e não sou. O espírito é pois, o princípio dos princípios e a verdade das verdades, o fundamento de toda a realidade e a base de todo o conhecimento. BRITO, Raymundo de Farias. O Mundo Interior. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1951. 2ª ed., p. 16. Logo adiante afirma o pensador pátrio: O materialismo, entretanto, não conhecendo, ou não pretendendo conhecer das coisas, senão o aspecto exterior, só admite corpos. Mas como afir mar ou negar qualquer coisa, sem reconhecer-se a si próprio como espírito, aquele que nega ou afirma, uma vez que só um espírito, isto é, uma consciência, pode afirmar ou negar? BRITO, op. cit., p. 48. Assim, se o espírito é consciência, como se vê expressamente afirmado acima, não há como interpretar as posições do filósofo pátrio dentro de um amplo contexto do espiritualismo religioso, já que a consciência é o espaço de articulação dos saberes e não a via 142 de acesso ao plano da fabulação mística ou da fé raciocinada. O itinerário filosófico de Farias Brito determina a fermentação de um momento distinto na meditação brasileira, na medida em que os seus passos vão se firmando num lento processo de ultrapassagem. Espa lhando o diálogo, ele vai conscientemente superando suas próprias contradições, tão frequentemente apontadas como pontos a descaracterizar a importância do seu pensamento. Em todo pesador encontramos uma natural evolução das idéias que percorre a totalidade d as suas preocupações, nos horizontes do possível, em busca de objetivos para cuja tarefa é necessário ter em vista até mesmo as limitações existenciais inelutavelmente impostas a cada um. Daí a razão pela qual a obra britiana ainda é interpretada por alguns como sendo uma espécie de fragmentação dentro da qual seria arriscada a missão de explicitar o seu fio condutor. O momento de Farias Brito se caracteriza pela passagem do ciclo polêmico dominante no grupo de Recife a uma atitude de deliberado afastamento dos exaltados confrontos de idéias que em muito prejudicaram a formação do pensamento brasileiro. A trajetória biográfica de Tobias Barreto, bastante conhecida, é relevante para o estudo das idéias da Escola pelo fato de que algumas de suas posições teór icas se relacionam com atitudes pessoais. Este é, aliás, 143 um aspecto que se encontra em outros membros da Escola – a começar por Silvio Romero. Muitos dos ressentimentos de Tobias Barreto se refletiram em sua visão dos homens, da vida e do mundo; e esses ressentimentos nasceram do conflito que teve de manter desde cedo com seu tempo e seu meio: mulato, pobre, feio, pretensioso, pertinaz, agressivo. SALDANHA, Nelson. A “Escola do Recife” na Evolução do Pensamento Brasileiro. In CRIPPA, Adolpho. As Idéias Filosóficas no Brasil. São Paulo, Convívio, 1978, Séculos XVIII e XIX, p. 84. Falando da “Escola do Recife”, Nelson Saldanha está dando apenas uma idéia de como o passionalismo polêmico dominava os meios intelectuais do grupo, notadamente as figuras apontadas como as mais representativas e até mesmo como “chefes” de Escola. Felizmente, Farias Brito buscou sempre uma certa distância dessas diatribes. Suas críticas ao ideário da época foram sempre serenas, fazendo predominar a instância da razão e aceitando a realidade existencial tal qual recebida, certo de que se tratava de um mundo impiedoso, dramático e existencialmente injustificável. Sua vida é o exemplo de resignação a todo tipo de sofrimento, de brandura e de solidariedade frente à dor inexorável que a todos atinge. 144 É com esta visão da existência humana que ele consegue isolar-se na sua fragilidade e seguir o seu itinerário, alheio ao ódio e às contendas que se situassem aquém das idéias. O seu desejo não era lutar contra o mundo e, sim, compreendê-lo naquilo que ele é, como o lugar do sofrimento que a ninguém deve ser atribuído senão à própria natureza das coisas. As paixões, as emoções e os sentimentos em geral se articulam na interioridade do próprio indivíduo, cabendo a ele a tentativa de conviver co m a mundaneidade e não a instigação do ímpeto e da revolta. Talvez por isso mesmo Farias Brito tenha sido visto como um mártir da filosofia, tal era a sua indiferença para com o sofrimento e o seu apego à vida do pensamento. Tobias Barreto, seu ex-professor, já havia manifestado sua preocupação com o problema da consciência e com os mecanismos de distinção entre a natureza e os objetos culturais, estabelecendo o princípio de que natureza e cultura são realidades distintas e como tais devem ser consideradas. O mundo natural constitui a matéria-prima sobre a qual trabalho o pensamento, decorrendo deste fato o constante artefazer da esfera habitacional do homem, num movimento de re-arranjo como fruto da liberdade. O mundo da cultura espelha valores, mas reflete, acima de tudo, os horizontes do homem aprisionado nos fatos brutos e ao mesmo tempo ansioso por ultrapassá-los. Farias Brito não retoma estas discussões nos mesmos termos em que as havia colocado seu antigo mestre. Na sua luta em torno da fundamentação r igorosa do conhecimento, ele assume o princípio de que 145 consciência e realidade se colocam no plano da absolutização. Há, pois, de toda a forma, pelo menos dois absolutos: a consciência ou o espírito em nós, e as coisas ou a matéria fora de nós. O que há d e relativo é somente o conhecimento, o laço que se estabelece entre estes dois absolutos. As duas operações fundamentais do entendimento no ato de julgar são a afirmação e a negação e é daí que derivam as duas grades categorias a que tudo pode ser reduzido no nosso sistema de idéias: o ser e o não-ser, a existência e o nada. Pois bem: o nada é o pólo negativo; e o espírito e a matéria, ou, para falar em linguagem mais precisa e adequada, o sujeito e o objeto, ou a consciência e o movimento, como termos essenciais e necessários do conhecimento, são os dois pólos positivos da existência. Mas esses dois últimos princípios, o sujeito e o objeto ou a consciência e o movimento, não são simples relações. São, pelo contrário, duas posições absolutas. O que quer dizer: são realidades, existências fenomenais, ou 146 “alucinações verdadeiras”, segundo a palavra célebre de Taine. BRITO, Raymundo de Farias. O Mundo Interior. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1951. p. 264. Aí se vê esboçada pelo filósofo pátrio a diretriz essencial de uma teoria do conhecimento, já não tanto comprometida com a discussão em torno do clássico problema da relação sujeito-objeto, mas enfatizando a questão da interação consciência-movimento, ou consciência-mundo. Essa atitude denuncia que não lhe satisfazem nem o racionalismo nem o empirismo, cujas posições procura combater. O pensador cearense jamais erigiu a razão como instrumento de garantia do conhecimento nem como fonte da construção da realidade, como que pressentindo os desvios teleológicos das racionalidades subjacentes aos processos culturais e às civilizações, responsáveis em grande parte por um mundo marcado pela incerteza. A razão britiana não é a razão do racionalismo emergente das “revoluções científicas” que vêm re fabricando o mundo com visíveis ameaças à potencialidade de realização do homem como liberdade. Por seu turno, a via empirista interditara a solução de um dos mais preocupantes problemas postos à meditação de Farias Brito, qual seja a questão da moral. É quase certo que esta questão o tenha levado a conceber a filosofia, num determinado momento, como sendo, na prática, a religião, como fator de orientação moral. 147 A todas as ciências ou grupos de ciências de que temos até aqui tratado, é preciso ainda acrescentar a psicologia transcendente ou metafísica. A esta corresponde na prática a religião. BRITO, op. cit., p. 34. Páginas adiante o pensador cearense retoma o tema, na sua angústia em torno da clareza das idéias: ... o que significa que a religião não é ciência, mas tem por fundamento a ciência; não a ciência da matéria, destinada a servir como instrumento da ação sobre os elementos exteriores, ou segundo uma fórmula mais precisa, destinada a estabelecer o domínio do homem sobre a natureza; mas a ciência do espírito ou a filosofia moral destinada a orientar-nos na vida e a estabelecer o domínio do homem sobre si mesmo. BRITO, op. cit., p. 88. Claro está, mais uma vez, que na ordem do pensamento britiano não há lugar para uma visão mística da existência humana e do universo. A religião que preconiza é a articulação da moralidade com os padrões teóricos da especulação metafísica. É a ação 148 refletida que conduziria o homem, não ao culto de qualquer entidade, mas ao abrigo da verdade como teleologia permanente do espírito. Desse modo, a teoria britiano do conhecimento se distância a cada passo da epistemologia naturalista em busca de um outro ponto de reflexão que não tomasse como pressuposto aquelas categorias comprometidas com o cientificismo em geral. Existe explícito em Farias Brito o propósito de fundar as ciências em alicerces rigorosos, distintos daqueles que sustentavam o espaço das investigações com as quais ele entrou em contato no seu processo de formação. O reducionismo naturalista fazia do discurso físico-matemático e da observação das diversas regiões da natureza as únicas atitudes compatíveis com o processo global do conhecimento. As ciências do espírito eram relegadas a segundo plano ou simplesmente rejeitadas as suas aspirações, por força de um apego generalizado ao observacionismo e ao experimentalismo. O que transcende a órbita do universo corpóreo fica por conta das “divagações cerebrinas”, na linguagem de Augusto Comte, subjacente ao triunfo momentâneo do materialismo em geral. Farias Brito levanta sua voz contra essa atitude, afirmando que Não é necessário insistir para tornar patente a verdade desta conclusão: a psicologia é essencialmente diferente de todas as outras ciências. Em outros 149 termos: a ciência do espírito difere radicalmente das ciências da matéria e jamais poderá ser como estas, redu zida a sistematizações rigorosas e a fórmulas precisas Além disto, difere também essencialmente das mesmas, por sua significação prática. Com relação às ciências da matéria pode dizer-se que o conhecimento é generalizado em conceitos e sistematizado em leis, e ao mesmo tempo consolidado em livros. A ciência é assim uma espécie de arquivo do pensa mento, e bem coordenados os docu mentos, compreende-se que não é difícil determinar a posição precisa de cada idéia, ou fazer a interpretação rigorosa e segura de cada fato. BRITO, op. cit., p. 25. No movimento do pensamento britiano fixado nestas e em outras passagens, não podemos negar a influência de Bergson. E é natural que isto ocorra, uma vez que o pensador francês também mantinha preocupações idênticas relacionadas com o universo da atitude científica, distinguindo desta a atitude filosófica, na mesma tentativa de restaurar o valor da metafísica, minado pelos ataques do materialismo em geral e, principalmente, pelo positivismo. Mas na mesma ordem de influência poderíamos colocar W. Windelband que, em 1894, no seu célebre discurso reitoral intitulado 150 História e Ciência Natural, propõe a divisão das ciências em nomotéticas e ideográficas, estabelecendo a distinção entre o reino da natureza e o reino do espírito nos procedimentos do conhecimento, distinção que deve ser vista apenas a estrutura lógica dos atos epistemológicos e não nos objetos, já que ambas as ciências são empíricas. As ciências nomotéticas a bordam a natureza com a finalidade de penetrar na sua estrutura legal, constatando suas leis e explicitando o curso das suas transformações, enquanto as ciências ideográficas ou históricas tratam do indivíduo e dos valores por ele produzidos, na sua espec ificidade. Não diria que Farias Brito, ao manifestar suas preocupações com o problema, estivesse diretamente influenciado pelos neo-kantianos de Baden, mas que houve uma simples coincidência de pontos de vista. De qualquer forma, trata-se de orientações assumidas com o nítido caráter de inconformismo frente às categorias de pensar que não conseguiam ultrapassar as aporias surgidas no percurso das tentativas de reconstruir o discurso da metafísica. O momento de Farias Brito no pensamento brasileiro é marcado pelo aprofundamento da problemática epistemológica que atinge a sua importância na medida em que a volta ao sujeito se coloca no cerne das suas preocupações. Esta volta ao sujeito é que vai possibilitar a retomada do caminho originante do pensar, a partir da reflexão centrada em torno da consciência. 151 A consciência é, pois, o fato primordial da natureza, espécie de ponto de contato entre dois mundos de que um é a imagem do outro. Realidade de um lado e conhecimento do outro como imagem da realidade – eis tudo o que existe, poder -se-á, pois, dizer. Mas no fundo dessa dupla manifes tação será necessário reconhecer a consciência, sem a qual não se poderia compreender, nem uma nem outra cousa. De maneira que, além da realidade exterior que se desenvolve no espaço e no tempo, impõe-se a existência de uma realidade interna, de uma atividade de ordem psíquica, cuja essência consiste exatamente nessa consciência que é o princípio mesmo produtor do conhecimento. BRITO, op. cit., pp. 278-79. A consciência colocada como o princípio produtor do conhecimento faz com que Farias Brito suscite a discussão mais importante que deveria ser travada em nossos dias em torno da primazia do sujeito humano na reelaboração do caminho através do qual se possa encontrar o lugar da vivência do real. A volta ao sujeito, preconizada por Farias Brito, determinaria o rompimento com a operacionalidade de vários conceitos e um retorno à consciência como o 152 tema capital a partir do qual a questão do conhecimento seria inteiramente reformulada. Eis o que vimos acentuando como sendo a característica fundamental da contribuição britiana à afirmação do pensamento brasileiro. Parece-nos que o pensar pátrio da contemporaneidade se articula com a universalidade, a partir da sua decidida vocação para a inserção nos debates relacionados com as inúmeras circunstâncias que assinalam a presença do homem no mundo. Por isto mesmo, a volta ao sujeito, à consciência, é o acontecimento mais importante a ser acentuado no pensamento brasileiro contemporâneo, a partir de Farias Brito,pelo menos nas camadas mais representativas da meditação filosófica. Mas este retorno não se dá em condições semelhantes àquelas verificadas a partir do século dezesseis, por demais conhecida entre os trabalhadores da filosofia. Pelo contrário, trata-se de erigir a consciência como único privilégio do conhecimento e como a instância suprema de garantia da evidência. Por outro lado, não há como negar a importância que assumem os intrincados problemas da liberdade, quando os pensadores contemporâneos buscam dirigir suas investigações no espaço do fluxo do sujeito. Toda a problemática filosófica é redimensionada nesta perspectiva, com a finalidade de trazer soluções capazes de expressar o sentido e o significado de um dos temas que há milênios inquietam o homem. A análise viável e o suporte epistemológico dos seus resultados estão situados do lado do sujeito e não do objeto. 153 Parto deste princípio: o fundamento real, o critério último de toda a verdade é o testemunho direto da consciência, de modo que para mim quando qualquer conhecimento estiver de acordo com esse testemunho, é verdadeiro; quando em desacordo com ele, é falso. E é o que não depende de prova, porque não se ignora que a consciência é o órgão mesmo do conhecimento, sendo que nenhum conhecimento pode haver que não seja transmitido por esse órgão, nem pode ser verdadeiro sem que esteja em conformidade com ele. Isto poderia ser dito ainda mais claramente afir mando-se que fora dos limites da consciência nenhum conhecimento é possível, sendo evidente que não podemos conhecer uma cousa de que não temos ou não podemos ter representação na consciência. BRITO, Raymundo de Farias. Finalidade do Mundo. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1957, v. 1, 2ª ed., p. 35. Note-se que quanto a esta posição o pensador pátrio se mostra seguro desde os inícios da sua produção filosófica. O primeiro volume da obra acima citada, na sua primeira edição, data de 1895. E nenhuma mudança 154 encontramos na sua última obra O Mundo Interior, de 1914, largamente citada neste trabalho. Tal filosofia do espírito ou da consciência traz explícitas as categorias de uma nova diretriz epistemológica e nunca a intenção de sustentar doutrinariamente o espiritualismo, conforme durante tanto tempo vinha Farias Brito sendo interpretado. Talvez pelo fato de ter sido ele um dos mais autorizados críticos do materialismo no seu tempo, restou-lhe a equívoca atribuição de espiritualista. Esquece a maioria dos seus críticos do fato de que a filosofia do espírito resulta de uma atitude crítica e não implica a inserção do homem no reino das crenças na sobrevivência do espírito... Por outro lado, nada impede que o pensador, ao se deter na análise de um problema, possa operar com categorias hauridas daquilo que vulgarmente se c hama de materialismo, sem ferir as suas convicções religiosas. Do ponto de vista da teoria do conhecimento, a dicotomia materialismo -espiritualismo tem pouca ou nenhuma significação no contexto geral das inves tigações filosóficas. Tais expressões são freq üentes nos espíritos leigos em matéria de filosofia e denotam sempre e em primeiro plano as preocupações de ordem religiosa. O materialista é visto como aquele que só acredita no Universo corpóreo como existência concreta. Neste sentido, Farias Brito não foi materialista. Já o espiritualista representa a figura daquele que coloca o espírito enquanto vida triunfante como existência verdadeira e guardiã da perenidade que, em última instância, ultrapassa a própria condição humana. 155 Também nesta perspectiva o pensador cearense não foi espiritualista. Seriam ociosas estas considerações e até des propositadas as incursões em torno de problemas já tão discutidos e incorporados à ordem do senso comum. Mas não nos iludamos. É exatamente esta perspectiva que foi tomada pelos críticos de formação católica, no calor do momento de renovação espiritual, para “propagar” a obra britiana. Felizmente, estudos recentes vêm mostrando o equívoco dessa orientação, situando o itinerário intelectual do mestre cearense como um dos instantes mais salientes da afirmação da maturidade do pensamento nacional. 2. O Momento de Miguel Reale Miguel Reale (1910-) representa a fase mais significativa de toda a história do pensamento brasileiro. Não se trata de afirmação gratuita como poderia parecer à primeira vista, já que a crítica assim se tem reiteradamente manifestado em relação à obra do pensador paulista. De fato, todo o esforço da meditação brasileira, desde a sua proto-história, encontra em Reale a configuração que expressa claramente a amplitude de uma problemática que sempre esteve presente, de uma forma ou de outra, nos seus momentos mais relevantes: o homem como consciência. A sua caminhada de pensador emerge de preocupações com o universo das indagações jurídicas 156 já no alvorecer da juventude, enquanto ainda estudante de Direito. Aos poucos, a inquietude do pensar vai afastando-o das questões meramente dogmáticas para conduzi-lo ao campo da indagação sobre os fundamentos do Direito, o que redundaria no seu coroamento como o primeiro grande jus-filósofo brasileiro reconhecido internacionalmente. Do plano das indagações jurídico -filosóficas, o itinerário do pensamento realeano caminha decisiva mente para uma concentração nos problemas estritamente filosóficos. A ensaística especulativa que num determinado momento parecia se constituir num derivativo de diletante, à margem de uma intensa preocupação com a temática jurídica, vem cedendo o lugar para um trabalho delineado no campo operacional ditado pela inquietação filosófica. Esta atitud e, segundo nos parece, pode ser verificada, como momento referência, no seu livro Experiência e Cultura (São Paulo, EDUSP-GRIJALBO, 1977). O incentivo e a dedicação ao estudo do pensamento brasileiro por parte de Miguel Reale, a partir da fundação do Inst ituto Brasileiro de Filosofia, sugere desde logo a intenção de estabelecer o diálogo com o universo do discurso intelectual pátrio, como um meio de distanciamento da subserviência aos padrões da cultura alienígena e sem prejuízo do caráter universalista da construção do saber. Esta face da atividade do nosso pensador caracteriza nitidamente o seu apreço pelos problemas ligados às raízes da cultura brasileira, como o solo de descoberta dos horizontes da histo 157 ricidade do destinar da brasilidade, não perdend o de vista a sua condição de homem situado. É o próprio Reale que explicita esta posição: Essa compreensão plural do processo histórico, segundo distintos plexos de estimativas, denominei-a “historicismo axiológico”, muito embora o termo “historicismo” possa dar lugar a equívocas interpretações, tão forte é a pressão ideológica exercida pelo materialismo histórico. Desde que admito a historicidade radical do ser do homem, cuja pessoa emerge como fonte de todos os valores, por ser o homem o único ente que, de maneira originária, é e deve ser porque é, não vejo como se possa empregar outra palavra que não seja “historicismo”. REALE, Miguel. Experiência e cultura. São Paulo, EDUSP-GRIJALBO, 1977, p. 227. Falando expressamente da cultura brasileira, afirma o pensador: É certo que, há bem poucas décadas, nossa experiência cultural consistia mais em uma atitude de perplexidade e de indagação perante os resultados oferecidos pela especulação européia, 158 do que em uma atitude de perplexidade e de indagação perant e problemas postos pos nós mesmos. Por tal motivo, tornamo-nos extremamente sensíveis a cada novo surto do pensamento europeu, participando dele tão intensamente que cada geração só tomava contato com a problemática vivida em seu país pela geração anterior, em virtude de um movimento reflexo, ou como efeito de uma “espelhação” alienígena. Essa forma sutil de alienação impediu, durante muito tempo, que se constituísse no Brasil uma correspondência direta e fecundante entre os próprios brasileiros, os quais, sem o perceber cla ramente, iam, todavia, assumindo posição mais ou menos distinta perante seus modelos preferidos. REALE, Miguel. O Homem e seus Horizontes. São Paulo, Convívio, 1980, pp. 114-15. Assim, no processo de formação do pensamento brasileiro, encontramos certas atitudes que se caracterizam por um verdadeiro maniqueísmo. De um lado, apropriação pura e simples do pensamento europeu, como a mais autêntica fonte de toda a possibilidade de elaboração do conhecimento. De outro lado, estabelecimento de fronteiras geográficas que 159 levassem à produção de um saber verdadeiramente “tupiniquim”. Estas posturas contribuem, em grande parte, para a ainda generaliza da intolerância ou desprezo em relação à meditação brasileira, na medida em que poucos se dedicam a um confronto de idéias capaz de estabelecer os rumos da articulação do saber com a ordem da universalidade. Pode-se afirmar que é privilégio de Miguel Reale o delineamento das instâncias do filosofar brasileiro, com a delimitação dos problemas e a enfatização do tema da consciência como a preocupação básica que percorre o discurso da nossa especulação. (Cf. O Culturalismo na “Escola do Recife”, in Anais do I Congresso Brasileiro de Filosofia, São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia, 1950, v. 1, pp. 209-228). E ele próprio representa a característica que teve a oportunidade de acentuar como a marca dominante da contribuição brasileira à filosofia. Com efeito, podemos tomar como referência a obra acima indicada (Experiência e Cultura) e outros escritos posteriores para darmos conta de que o movimento do pensamento de Reale caminha decisivamente para uma aproximação cada vez mais clara das categorias do pensamento fenomenológico. Já nos seus primeiros trabalhos de natureza filosófica, manifesta o seu apreço por Kant e pelo kantismo em geral, cujas categorias de pensar permeiam constantemente o seu lavor intelectual. O desenvolvimento coerente da pers pectiva transcendental tem sido preo160 cupação diuturna de Miguel Reale, notadamente a partir do ensa io “Para um cr iticismo ontognosiológico” (1953). Não se trata de restaurar pura e simplesmente as teses kantianas. Mas de descobrir o que têm de du radouro e, ao mesmo tempo, enriquecê-la à luz da meditação posterior nelas inspirada. PAIM, Antônio. Problemática do Culturalismo. Rio de Janeiro, PUC, 1977, p. 31. Ora, a perspectiva transcendental haurida das posições kantianas vai ter um desenvolvimento autônomo na caminhada do pensar realeano, até chegar à noção de consciência transcendental, agora já nitidamente inspirado em Husserl. Esta noção haveria de conduzi-lo a um diálogo fecundo com a problemática do conhecimento, no qual ainda são visíveis os seus recursos ao kantismo, apesar de todo o esforço no sentido de superá-lo. O caráter de dialeticidade do conhecimento por ele defendido intransigentemente parece o ponto de divergência mais relevante em relação à atitude fenomenológica. Com efeito, para Husserl, o conhecimento, em última instância, é fruto da intencionalidade da consciência que permite a doação originária do sentido do mundo da vida. Mas o conhecimento tem como garantia de sua evidência o plano da consciência como ser absoluto. Portanto, fica claro o privilégio do sujeito 161 na elaboração dos processos do saber, embora a palavra de ordem seja a volta às coisas mesmas, “em carne e osso”. A objetividade será sempre constituída na consciência, embora a priori material esteja na realidade, cuja matéria-prima será sempre o solo próprio da intuição do eidos do mundo da vida. Não é sem razão que o próprio Husserl se confessa idealista, na quinta das suas Meditations Cartésiennes. Constituir o mundo na consciência e atribuir a esta a condição de garantidora do conhecimento, implica a indagação sobre o modo pelo qual o âmbito inteiro da realidade encontr a nela a sua origem fundante. Il faut donc faire comprendre comment, sur um plan supérieur et fondé sur ce premier, s’effectue l’attribution à un objet du sens de transcendence objectiva proprement dite, seconde dans l’ordre de la constitution; il ne s’agit pas ici de mettre en lumière une genèse s’accomplissant dans le temps, mais d’une “anlyse statique”. Le monde objectif est toujours déjà lá, tout fait; il est uma donnés de mon expèrience objective que se déroule actuelle et vivante; et ce qui n’est plu s objet le l’expèrience garde sa valeur sous forme d’habitus. Il s’agit d’interroger cette expèrience elle-même et d’élucider, par l’analyse de 162 l’intentionalité, la manière dont elle “confère le sens”, la manière dont elle peut apparaitre comme expèrience et se justifier comme évidence d’un être réel et avant une essence propre, susceptible d’explicitation, comme évidence d’un être qui n’est pas mon être propre et n’en est pas une partie intégrante, bien qu’il ne puisse acquérir de sens ni de justification qu’à partir de mon être à moi. HUSSERL, Edmund. Méditations Cartésiennes. Trad. de Gabrielle Pfeiffer e Emmanuel Levinas. Paris, J. Vrin, 1953, p. 89. A gênese em Husserl assume dois aspectos ou modos que se desenvolvem em estreita articulação, dentro daquilo que se denominou de gênese passiva e gênese ativa. A gênese passiva compreende a interioridade do meu próprio universo, com as suas emoções, sentimentos, volições, hábitos e tudo mais que emerge da estrutura do meu corpo. A gênese ativa envolve a operância da atividade perceptiva da exterioridade, isto é, todo o fluxo da consciência intencional voltando para a busca do sentido, da estrutura eidética da objetividade, como um dado que já está aí, na envolvência do âmbito inteiro da experiência. A interação consciência-mundo parece implicar uma dialeticidade específica que supera as restrições de Miguel Reale quando afirma: 163 Abstração de outros possíveis valores, o criticismo ontognoseológico poderia ser visto, de certa forma, como um desenvolvimento a utônomo dado à fenomenologia husserliana, em virtude de não me parecer que a experiência cognoscitiva se verticaliza na subjetividade transcendental, tal como ocorre na orientação conclusivamente idealista do autor das Investigações Lógicas, por ser só possível como processo ontognoseológico, no qual sujeito e objeto se co-implicam, um supondo o outro e cada um deles irredutível ao outro, ambos tendo plenitude de sentido na unidade dialética em que concretamente se insere. REALE, Miguel. Experiência e Cultura. São Paulo, EDUSP-GRIJALBO, 1977, p. 107. Ao contrário do que afirma o pensador paulista, a experiência cognoscitiva não se verticaliza na subjetividade transcendental, segundo a itinerante investigação husserliana, dado que não exclui a co implicação sujeito-objeto nem a irredutibilidade de um ao outro. É claro que Husserl repele a substancialização do sujeito, entendendo-se como simples lugar ideal onde se instaura a possibilidade de vivenciação evidenciadora de 164 toda realidade, a partir do fluxo intencional da consciência. A divergência suscitada por Reale parece ser mais o fruto do seu apego à idéia de uma res cogitans que marcou profundamente a tradição do pensamento ocidental do que mesmo a seqüência natural das suas aproximações do universo fenomenológico. A sua tão estimada “dialética da complementaridade” – haurida da física, diga-se de passagem – traduz esta ânsia no sentido de polarizar o processo epistemológico, buscando nessa “polaridade-implicação” o momento da contradição. Ora, o sentido da contradição em Husserl é esvaziado pela própria idéia de evidência. Vejo que algo é contraditório porque tenho a evidência da sua contradição. É desta forma que o sentido da transcendentalidade husserliana se incompatibiliza com o logicismo kantiano ao qual ainda se vê ligado, de certa maneira, o pensamento de Reale. Seja como for, não há como deixar de reconhecer que a sua ontognoseologia vem demonstrando sucessivamente uma tendência a entrelaçar o âmbito das categorias nela implicadas com a atitud e epistemológica assumida em todo o seu rigor pela fenomenologia. Poder-se-ía afirmar que para aqueles que optaram, como é o meu caso pela prévia indagação ontognoseológica, o que se impõe é principiar (no duplo sentido desta palavra densa de significados) pela análise fenomenológica 165 do ato intencional que correlaciona um sujeito a um objeto, ou, mais genericamente, a subjetividade à objetividade, na co-implicação EuMundo. REALE, Miguel. O Homem e seus Horizontes. São Paulo, Convívio, 1980, p. 69. Nada mais próximo da atitude fenomenológica do que as peremptórias afirmações de Reale no seu último livro. Ao longo da leitura de suas últimas obras, o pensador paulista nos deixa a impressão de um espírito que se encontrou definitivamente com Husserl e seus discípulos mas não quer se declarar na mesma área de confluência. Com tal atitude, naturalmente deseja man ter as categorias próprias por ele consolidadas ao correr da sua meditação filosófica e incorporadas ao espaço da compreensão das gerações que já se d ebruçaram sobre a sua produção intelectual. Trata-se apenas de uma hipótese contida nesta afirmação, cujo limiar da pro babilidade nem sequer nos arriscamos a descortinar nos horizontes de um trabalho que espelha esforço e pertinácia. Em todo caso, quando percebemos o pensamento realeano esmiuçando a problemática do conhecimento e se defrontando com questões já tratadas exaustivamente pelos fenomenólogos, o desacordo momentâneo parece mais um exercício contra a evidência do que a tentativa de superar a próp ria fenomenologia. 166 Não à guisa de conclusão, mas como simples projeção na linha do horizonte, diria que, enquanto no universo da cultura o centro está em toda parte e a circunferência até onde possa atingir nossa energia perquiridora, o centro da cogitação metafísica se situa em cada consciência intencional e a circunferência em nenhuma, o que nos leva a crer sermos uma ilha de problemas circundada por um oceano de mistérios. REALE, op. cit., p. 73. Está aí configurado o caráter de infinitude da órbita do filosofar e a permanência da incompletude do saber, por mais que a caminhada do espírito abrigue o desejo insaciável de encontrar pontos claros, espaços precisos na vivência originária do real. A apoditicidade é apenas um alvo a ser atingido, um possíve l lançado à atividade eidética que conduziria à estruturação do mundo na consciência como ser absoluto. A nossa modesta tentativa nestas considerações sobre o papel de Reale no pensamento brasileiro é mostrar, como já dissemos, a maneira pela qual a trilha da meditação pátria atinge nela o exemplarismo da busca ou “centralização” da consciência como atmosfera ensejadora de toda leitura da realidade. Os seus debates com a filosofia moderna e, recentemente, com o pensamento fenomenológico-existencial confirma m se167 guramente esta tendência que se tornou inexorável a partir do diálogo estabelecido com Kant, de cujo pensamento é respeitável conhecedor. A linha ascen dente da sua trajetória culmina com uma preocupação fecunda em torno da interação consciência -mundo e da historicidade do homem. Desse modo, nem o “real em si”, nem o “sujeito em si” são concebíveis separadamente: o que marca a finitude do homem são a ambivalência e a provisoriedade de tudo aquilo que ele constrói, sendo a cultura o grande envolvente, ou, como digo, empres tando ao termo significado diverso predominantemente gnoseológico que lhe dá Husserl, o horizonte global do homem na totalidade de sua experiência histórica, sempre in fieri. REALE, op. cit., p. 37. O problema da cultura concebida como “horizonte global” do homem está presente em cada passo das cogitações do nosso pensador, dentro da ampla esfera das categorias filosóficas, fato que, necessariamente, levou seus intérpretes a situá-lo como a mais representativa figura do culturalismo no Brasil, em virtude da sua ânsia em torno da explicitação da ontologia do mundo da vida na visão husserliana. Não é nosso propósito tratar dessa questão que comportaria longas disquisições e um debate extrapolante do intuito 168 que vimos percorrendo, assim como desejo nosso não é também penetrar na sua densa obra de jus -filósofo. O que objetivamos deixar patente é o expressivo significado da presença de um pensador que representa, em termos de esforços meditativo, a maturidade de produção filosófica brasileira, abrindo novos horizontes no plano da expressão espiritual pátria que assume nos nossos dias o seu papel mais elevado. 169 CONCLUSÃO A nossa incursão em torno dos caminhos da formação do pensamento filosófico brasileiro, desde a sua proto-história até os dias atuais, teve como objetivo essencial trazer à luz as etapas decisivas que vêm marcando as aberturas ou mostrações de problemas subordinados a uma preocupação dominante com a questão do homem. Tentamos deixar claro que as correntes filosóficas estrangeiras foram contextualizadas no Brasil com uma certa cautela e, por isto mesmo, não podem ser consideradas como simples transposição de categorias que ganharam foros de escolas ou sistemas na Europa. Ao situar os pensadores, escolhemos aqueles que nos parecem mais representativos dos seus momentos, com vistas à elucidação do modo pelo qual as vigências intelectuais européias foram assimiladas na ambiência pensante formada pela nossa intelectualidade e buscando caracterizar o alcance dos seus esfo rços no sentido de desdobrar os problemas filosóficos dentro de uma certa autonomia. Nesta perspectiva, chegamos à convicção de que no ecletismo a figura de Gonçalves de Magalhães representa o momento inicial da autonomia do pensamento brasileiro, uma vez que, não obstante influenciado por essa frágil corrente filosófica, o pensador brasileiro contra ela se insurge em vários momentos, mantendo suas posições próprias e contribuindo de 170 modo original para a solução de questões importantes postas ao espiritualismo em geral. Por outro lado, tentamos salientar a insig nificância do positivismo em termos de produção filosófica entre nós, o que ao se constitui em nenhuma novidade, já que o projeto de Augusto Comte previa o papel secundário que a filosofia iria exercer. O mesmo não se pode dizer do anglo -germanismo que teve vasta repercussão nos nossos meios, acentuadamente no grupo de Recife. O espírito do cientificismo propagado pelos naturalistas ingleses e alemães foi a primeira influência mais forte assimilada pelos intelectuais brasileiros, não só pela repercussão que teve na Europa, como também em virtude de incorporar um conjunto de categorias marcadas pela fixação na matéria como objeto único do qual promanariam todas as fontes do saber. Saber é saber da matéria. Daí o impasse surgido no campo das ciências do espírito e na vasta área das investigações metafísicas em geral. Era impossível – como de resto continua sendo – conciliar o fluxo da consciência com o espírito de objetivação propagado pelo cientificismo de maneira enfática, produzindo um sucesso inusitado ao longo de toda a segunda metade do século dezenove. Os problemas da psicologia e da metafísica acabam por se transformar numa espécie de resíduo especulativo oscilante e meio à positividade que se constituía no núcleo das discussões do momento. Quanto à psicologia, era necessário incorporá-la ao âmbito do naturalismo o que iria determinar a formação do experimentalismo dos “psicólogos de gabinete” como 171 diria Farias Brito, ou dos “psicólogos de escrivaninha”, na expressão de Edmund Husserl. Duramente criticadas, as discussões em torno da chamada psicologia científica em muito contribuíram para o avanço das investigações acerca da consciência, advindo daí a convicção cada vez mais assentada entre nós de que o homem como consciência é que deve ser considerado o centro da meditação filosófica. É o que ocorre com Tobias Barreto, Farias Brito e Miguel Reale, indicando apenas os momentos mais expressivos no desenvolvimento desta linha de pensar. Os problemas metafísicos são enfrentados levando em conta os mesmos pressupostos, notadamente no que diz respeito aos requisitos implícitos de uma teoria do conhecimento. A contribuição brasileira ao combate do cientificismo está no mesmo plano de igualdade em relaç ão às demais que surgiram em várias partes do mundo. Para constatar esta afirmação bastaria um confronto sumário entre O Mundo Interior, de Farias Brito, e A Filosofia como Ciência de Rigor, de Edmund Husserl, o mais autorizado crítico do naturalismo. A universalidade do pensamento brasileiro nem sequer foi colocada em discussão, uma vez que a meditação filosófica não comporta fronteiras geo gráficas e os nossos pensadores emergem exatamente do âmbito dos debates que ressoam na inteligência da ocidentalidade. A brasilidade dos ilustrados pátrios jamais implicou a ruptura com as categorias universais da filosofia e, por isso mesmo, não poderia imaginar um 172 pensamento cujo objeto estivesse centrado no “pau brasil” ou na exoticidade das tribos indígenas. Soube ram os filósofos brasileiros dialogar com o espírito europeu em geral, mantendo sua linha de independência e trazendo contribuições efetivas à solução de problemas inquietantes em torno dos quais se debatiam os grandes centros pensantes do mundo. Com isto, a linha dominante na formação do pensamento filosófico brasileiro, caracterizada pela preocupação com o homem enquanto consciência, acaba por ser uma espécie de vanguarda dos grandes pro blemas metafísicos emergentes na nossa contemporaneidade, todos eles voltados, de uma forma ou de outra, para a mesma questão. 173 BIBLIOGRAFIA CITADA 01. BARROS, Roque Spencer Maciel de. A Evolução do Pensamento de Pereira Barreto. São Paulo, EDUSPGRIJALBO, 1967. 02. BIRAN, Maine de. Autobiografia. Tradução de Juan Segura Ruiz e outro. Aguilar Argentina, Buenos Aires, 1967. 03. BOUTERWEK, F. História da Poesia e da Eloqüência Portuguesa. Tradução de Walter Koch. Citado por Guilhermino César in Historiadores e Críticos do Romantismo. 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