Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 VIII Encontro da ANDHEP “Políticas Públicas para a Segurança Pública e Direitos Humanos” GT11 Mundialização, Tensões e Direitos Humanos 28 a 30 de abril de 2014 São Paulo – SP Faculdade de Direito da USP ISSN: 2317-0255 2512 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 A(s) Voz(es) das Ruas: de que “sociedade civil” estamos tratando? Franceli Pedott Dias Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Aragon Érico Dasso Júnior Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Gabriela de Abreu Oliveira Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Frederico Oderich Muniz Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul; Gabriela Santos Martel Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrantes do Grupo de Pesquisa Estado, Democracia e Administração Pública GEDAP/UFRGS 1. Introdução Em função da variedade de atores incluídos no rótulo denominado de sociedade civil, este texto preliminarmente precisa aclarar qual o seu referencial teórico e qual o sentido que será empregado à expressão. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o termo sociedade civil não define um conjunto homogêneo e, seguramente, é uma das expressões mais controversas no campo das ciências sociais aplicadas. Conforme o interlocutor, a mesma palavra admite uma diversidade de significados, o que gera uma inevitável confusão (COHEN; ARATO, 2000; NOGUEIRA, 2003; SORJ, 2010). Por exemplo, há inúmeros e diferentes tipos de organizações, tais como: movimentos sociais, organizações não governamentais, sindicatos, organizações religiosas, associações profissionais, etc. O que há em comum entre essas organizações é que todas são privadas, voluntárias e sem fins lucrativos. Ademais, essas organizações possuem diferentes formas de financiamento. Muitas operam com recursos exclusivos de seus associados, outras captam recursos no 2513 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 mercado e, recentemente, observa-se um crescimento exponencial daquelas que são sustentadas por repasses do Poder Público. Também é possível afirmar que há organizações da sociedade civil das mais diferentes tendências ideológicas. Por exemplo, a mesma expressão que serve para que se faça oposição ao capitalismo e se defenda a radicalização da participação cidadã, também é empregada por aqueles que defendem fervorosamente o livre mercado e a democracia exclusivamente representativa. Em segundo lugar, é preciso reconhecer que as teorias sobre a sociedade civil, geralmente, utilizam definições idealizadas das organizações e muitas das vezes pouco dizem sobre a vida real. Por exemplo, nem toda organização da sociedade civil é uma ação coletiva real, pode ser uma ação individual revestida formalmente de um aparente interesse público. Não se pode, portanto, afirmar a priori que todas as iniciativas da sociedade civil são balizadas por valores como solidariedade e moralidade. O risco que se corre ao fazê-lo é mascarar interesses privados e relações de poder e de dominação. Tal equívoco é comum e muitos estabelecem uma rígida e, por vezes falsa, oposição entre a sociedade civil e o mercado, venerando a primeira e demonizando o segundo. É crescente o número de organizações da sociedade civil que surgem como representações e extensões do mercado, ou seja, organizações formalmente constituídas como se fossem do campo da sociedade civil, mas que na realidade são meros braços dissimulados do mercado. Tal fenômeno também se dá quando organizações da sociedade civil são cooptadas por governos e/ou por Administrações Públicas. No caso brasileiro isso é especialmente perceptível no caso das Organizações Sociais (OSs) e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), organizações não governamentais que buscam uma qualificação extra que lhes permita receber recursos públicos, o que gera um comprometimento de autonomia e de independência. Ainda que essa multiplicidade de significados possa, por vezes, gerar dificuldades, é importante reconhecer que não se busca um pensamento único sobre o conceito de sociedade civil. O que se pretende afirmar, de forma introdutória, é que por mais relevante e representativa que seja uma organização da sociedade civil ela nunca possuirá a legitimidade que carrega uma organização pública, pois organizações da sociedade civil, embora representem interesses legítimos eles nunca são interesses universais. Ou seja, uma organização da sociedade civil sempre será, por natureza, uma organização privada, mesmo quando está convencida da contribuição que traz para uma sociedade mais solidária e fraterna. Nesse sentido, é necessário também deixar evidente qual a relação que existe entre as 2514 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 organizações da sociedade civil e os partidos políticos (instituições legítimas, segundo o texto constitucional brasileiro) para a representação política. Essa tarefa não é menor e representa um desafio ainda maior em um contexto de descrédito da política. É fundamental que se tenha clareza que o papel da sociedade civil não é substituir a sociedade política. Segundo Gramsci, ambas fazem parte do Estado e ambas possuem papéis complementares e a simbiose desse processo é que garante possibilidades para um sistema realmente democrático. Representam distintas formas de fazer política. Os partidos políticos têm como missão ganhar eleições e governar. Para isso, mobilizam interesses que favorecem ou prejudicam determinados segmentos da sociedade. Nesse sentido, partidos estão em oposição natural, conforme suas ideologias. O mesmo fenômeno é observado nas organizações da sociedade civil, mas há parcela significativa da academia que nega tal oposição. Evidente que muitas das vezes, uma mesma causa pode ser assumida por diversas organizações da sociedade civil, mas o mesmo pode acontecer ao reverso, quando organizações da sociedade civil disputam o conceito de interesse público. Em função dessas diversas observações preliminares é que Nogueira (2003) propõe a “redescoberta” do conceito de sociedade civil, a partir de uma revisão radical da formulação gramsciana. Para realizar tal tarefa, sugere a existência de três concepções de sociedade civil na realidade contemporânea: a político-estatal; a liberista; e a social. A primeira é a digna representante do pensamento gramsciano, pois nela é a política que comanda. As lutas sociais e institucionais são construídas juntas, articuladas a partir de uma estratégia de poder e hegemonia. Para Gramsci (2000), sociedade política (SP) + sociedade civil (SC) = Estado. Portanto, para essa concepção de sociedade civil, o termo “terceiro setor” soa incompreensível, pois se o primeiro setor é o Estado e o segundo é o mercado, criar um terceiro setor para agrupar organizações que são da sociedade civil, seria o mesmo que retirar a sociedade civil da concepção de Estado. A sociedade civil liberista faz parte do universo gerencial, da introdução da teoria da Nova Gestão Pública na Administração Pública brasileira, estabelecendo uma prevalência da lógica do espaço privado sob a lógica do espaço público. Nessa concepção, quem comanda é o mercado e a luta social através da competitividade, sem quase nenhuma interferência pública. Para Gramsci (2000), a fórmula que melhor a define é sociedade civil (SC) + Mercado ≠ Estado. Nela, a sociedade civil e o mercado estão em polos opostos ao Estado. No Brasil, pode-se identificar essa aliança no eufemismo “setor público não-estatal” (que mascara o conceito de privado sem fins lucrativos), utilizado pelo 2515 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 governo Fernando Henrique Cardoso e disseminado pelo ministro Luiz Carlos Bresser Pereira no “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado” (PDRAE), no ano de 1995. Finalmente, Nogueira (2003) faz referência a um terceiro tipo de sociedade civil: a social, que habita o campo do “ativismo global”. Esse tipo também contempla a política, mas com sentido distinto da visão gramsciana. Nela, a luta social, frequentemente, exclui a luta institucional e, muitas das vezes, chega até a se chocar com a mesma. A fórmula que a define sociedade civil (SC) – sociedade política (SP) ≠ Estado? ≠ Mercado. Nessa concepção, a sociedade civil está distante tanto da sociedade política quanto do mercado. Nega que faça parte do Estado, pois se considera superior e, portanto, imune aos partidos políticos e aos governos. 2. A(s) Voz(es) das Ruas Importa realizar uma análise de quatro movimentos populares que ocorreram ao redor do mundo nos últimos cinco anos: a Primavera Árabe, Occupy Wall Street, o Movimento 15-M e as Jornadas de Junho de 2013, respectivamente. 2.1 Primavera Árabe As reivindicações da sociedade árabe iniciaram na Tunísia, em 18 de dezembro de 2010, com o ato de um cidadão tunisiano que, em protesto contra as condições de vida de seu país, ateou fogo no corpo, chamando atenção da população para os problemas do país. Assim, a Primavera Árabe tratou de questões sociais, econômicas e políticas que afetavam o Mundo Árabe há muitos anos, principalmente em função de governos autoritários. Após o ato do jovem tunisiano, a população foi às ruas protestar contra o governo de Zine El Abidine Ben Ali, protesto conhecido por Revolução de Jasmin, que repercutiu em outros países com governos ditatoriais. Assim, as manifestações chegaram a importantes países do mundo árabe, conferindo visibilidade mundial aos protestos e pressionando os defensores do autoritarismo. Os protestos ganharam força nos meses de janeiro e fevereiro de 2011, passando a grandes revoluções e guerras civis. No Egito, em 25 de janeiro de 2011, iniciou a Revolução da Juventude, com protestos contra o governo Hosni Mubarak e a situação econômica do país, o que durou dias, até que os egípcios conquistassem seus direitos. A Líbia também passou a buscar a renúncia de seus ditadores, o que se transformou em uma guerra civil, que durou meses. Na Síria, os protestos da Primavera também atingiram proporções de guerra, pois os 2516 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 apoiadores do governo firmaram uma resistência contra a oposição, o que intensificou a revolta. O Mundo Árabe possui muitas reservas de recursos consumidos pelo resto do mundo, mas, por outro lado, apresenta um alto índice de pobreza, pois os regimes autocráticos mantem a riqueza nas mãos dos governos e seus apoiadores, deixando o restante da população à margem. Estas autocracias vigoram há décadas nos países árabes, financiados por potências estrangeiras em nações estrategicamente escolhidas, sem eleições diretas, sem liberdade de expressão, com poucos investimentos sociais e índices crescentes de desemprego (FERABOLLI, 2012). Assim, a Primavera Árabe significou mais que uma revolta pelo abuso de poder, mas uma indignação de uma sociedade que não tinha oportunidades. Importa ressaltar que a maior parte dos manifestantes eram jovens. Isso ocorreu, por exemplo, na Tunísia, onde a maioria dos participantes tinha menos de 30 anos e clamavam pela necessidade de uma reforma política no país (CHEROBINO, 2013). As redes sociais foram o principal instrumento utilizado por esses jovens para a organização dos protestos (CASTELLS; CARDOSO, 2006). As pressões populares repercutiram de diversas formas em cada país. A Revolução de Jasmim foi apoiada pelo exercito e provocou, em 14 de janeiro de 2011, a fuga do líder autocrata que dominava há duas décadas o governo tunisiano. Em 2014 foi aprovada uma nova Constituição, que garantiu uma série de direitos à sociedade, como a igualdade de gêneros, liberdade de expressão e um governo democrático. Contudo, tal governo ainda apresenta problemas na questão social e econômica, como o desemprego (RAMOS, 2014). No Egito a revolução dos jovens derrubou o líder que governava há 30 anos, o que além de levar esperança para outros países árabes, apontaria para um caminho de democratização do país. A queda do ditador resultou na posse do Conselho Supremo das Forças Armadas, prometendo-se uma futura possibilidade de democracia, com nova constituição. Entretanto, o primeiro presidente eleito pelo voto, Mohamed Morsi, se tornou impopular por seu autoritarismo e ações contra o exército, pausando a transição democrática prevista para o país e provocando uma nova onda de protestos, o que fez o governo passar o poder ao chefe da Suprema Corte de Justiça do Egito, que convocou uma constituinte e elaborou uma nova constituição, que conferia poderes aos militares, o que foi referendado. Ainda assim, o Egito vem sofrendo diversos atentados terroristas por parte dos islamitas (CARVALHO JUNIOR, 2012). 2517 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Na Líbia, as forças da oposição conseguiram assassinar Muamar Kadaffi que governava há 42 anos, e tomar o poder. Tal tentativa de romper com o regime ditatorial existente desencadeou uma guerra civil, pois diferente dos outros países, a Líbia era a única que possuía uma autocracia liberalizada e opressora. As consequências dessas manifestações e do assassinato de Muammar Khaddafi refletiram em um novo regime político, fundado em uma República Parlamentarista (JOFFÉ, 2011). Na Argélia, as manifestações resultaram na realização de novas eleições (contudo, manteve o presidente Kuwait e Bahren, em função do alto número de abstenções). Em outros países, os protestos foram menores, como no Marrocos, Jordânia, Cisjordânia, Iraque, Irã, Arábia Saudita e Omã, e não tiveram grande êxito na conquista de mudanças nas estruturas do governo. Apesar disso, na Síria, os protestos continuam contra a ditadura de Bashar Al-Assad, presidente desde 2000, com o cargo herdado por seu pai, que ficou 30 anos no poder. As tentativas de repressão transformaram esses protestos em uma guerra civil, a mais longa e violenta da Primavera Árabe, que completa quatro anos e mais de 150.000 mortos. Por fim, no Lêmen, através de um ataque contra o palácio presidencial, conseguiuse a assinatura de um acordo com o ex-presidente Ali Abdulhah Saleh, assumindo o poder Abd Rabbuh Mansur Al Radi, seu vice, que anunciou a instauração de um governo de conciliação nacional. 2.2 Occupy Wall Street Em março de 2011, o grupo ativista canadense Adbuster Media Foundation lançou a proposta de uma ocupação pacífica em Manhattan, para protestar contra a influência das corporações na política americana, a falta de medidas reais e eficientes para o combate dos efeitos da crise econômica que continuava a espalhar-se pelo mundo e pela crescente desigualdade econômica e social. A ideia lançada pela Adbuster Magazine, principal canal de comunicação do grupo, rapidamente se espalhou pela internet, com o auxílio de redes sociais como Twitter e Facebook. O chamado consistia em combater o que era visto como maior ambiente de corrupção da democracia: Wall Street, o centro financeiro do país. Assim, pretendia-se reunir vinte mil pessoas em Manhattan, em 17 de setembro, e ocupar Wall Street por alguns meses, com tendas, cozinhas comunitárias e barricadas pacíficas (OCCUPYWALLSTREET, 2011), o que ficou conhecido como Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street). 2518 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Em 17 de Setembro do mesmo ano começou, em Nova Iorque, a ocupação do movimento popular quando manifestantes se reuniram no Parque Zuccotti, localizado no centro financeiro de Manhattan, levantando uma pauta de reivindicações e criticando as instituições políticas e financeiras do país de não terem sido capazes de amenizar e resolver os problemas causados pela crise financeira que se iniciou em 2007. A maior parte dos manifestantes era formada por jovens, com alto nível de escolarização, embora houvesse diversificação em relação à raça e gênero. (CROTTY, 2011). O movimento também aponta uma crise no modelo de representação política americano e apresenta uma legitima forma de participação: a organização em assembleias (SCHNEIDER, 2011), onde todos possuíam poder de fala nas tomadas de decisões. As assembleias ocorriam em formatos variados, como grupos de trabalho e assembleias gerais, e possuíam objetivos distintos, tais como: aspectos informativos, reflexivos, de divulgação ou decisórios. Para organização dessas assembleias, havia grupos de mediação previamente escolhidos e sem a presença de qualquer tipo de princípio hierárquico. O objetivo era chegar a um consenso de caráter não-vinculativo (definido como non-binding consensus), ou seja, atingir uma decisão coletiva que pode ser alvo de mudanças decididas posteriormente, desde que coletivamente. O problema desse processo é que o consenso pode demorar dias e demandar horas de discussão. (SCHNEIDER, 2011). A organização em Assembleias permitiu a organização de pautas. Todas as assembleias eram organizadas em formato de agenda, de modo a abordar problemas específicos, discutir soluções e fazer convocações e anúncios. O formato das assembleias manteve-se o mesmo, desde o início até o final da ocupação (NYC GENERAL ASSEMBLY, 2011). As primeiras reivindicações (conhecidas como Declaração da Ocupação) foram publicadas na primeira edição do The Occupy Wall Street Journal, ferramenta de publicação do movimento. O documento concentra-se no ataque às grandes corporações americanas. As principais acusações dizem respeito à desigualdade proveniente do modo como as forças corporativas influenciam e, de certo modo, organizam a sociedade (NYCGA. NET, 2011). A maior falha do movimento é que ele foca de modo muito vago em propor soluções e alternativas ao problema, direcionando todo o seu ataque prioritariamente ao que é considerada a fonte do problema. O slogan mais conhecido da campanha, We are the 99% (“Nós somos o 99%”) resume a ideia central do movimento, que alega que a desigualdade econômica e social do país é crescente e que o sistema econômico do país é direcionado para a parcela mais 2519 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 rica da população (CONGRESSIONAL BUDGET OFFICE, 2011). O objeto central da campanha era, portanto, promover uma melhor distribuição de renda entre os americanos. Outros assuntos importantes que também foram abordados pelos participantes do Occupy Wall Street foi: a redução da influência das corporações na política americana; o desemprego gerado pela crise; soluções para o endividamento estudantil; corrupção; evasão e elisão fiscal; e outros. O movimento foi acusado de ser apolítico, devido à sua formação bastante heterogênea e independente e, inicialmente, foi taxado pela mídia como anticapitalista, mas notou-se que o principal objetivo não era destruir o capitalismo e sim reformulá-lo. Joseph Stiglitz (2011) afirma que as demandas dos manifestantes são uma sociedade e uma economia mais justas através de uma democracia em que as pessoas, e não os dólares, falem mais alto e em que a economia de mercado entregue o que promete. Em 15 de novembro de 2011, os manifestantes foram forçados a desocupar o acampamento no Parque Zuccotti. Mesmo assim, o movimento manteve-se forte através da internet. Provavelmente, o maior resultado do Occupy Wall Street foi sua repercussão em manifestações em várias partes do mundo. O projeto de Wall Street tornou-se algo maior, conhecido como Occupy Movement, que se espalhou por 951 cidades de 82 países diferentes, além de 600 cidades nos Estados Unidos (ROGERS, 2011). No entanto, poucas políticas e abordagens reais foram feitas para solucionar os problemas levantados durante as manifestações, visto que o próprio movimento não possuía uma agenda de demandas práticas. Além disso, o movimento permitiu a mudança no debate político e social, que fez com que o déficit econômico fosse visto da perspectiva dos problemas enfrentados pela maior parte da população. 2.3 Movimento 15M O movimento 15-M ou Indignados que iniciou em 15 de maio de 2011, foi um protesto organizado, via redes sociais, por jovens espanhóis com ideologia de esquerda (CALVO; GÓMEZ-PASTRANA; MENA, 2011). As reivindicações tinham como foco os governos e as instituições financeiras pela elevação das taxas de desempregos e das desigualdades sociais nos países atingidos pela crise em 2008, quando os governos injetaram recursos em bancos privados para mantê-los, o que fez reduzir os recursos para os setores sociais, como saúde e educação e aumentou a carga tributária. (SALATIEL, 2011). Além disso, as reivindicações atacavam o sistema político espanhol, pois os 2520 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 manifestantes defendiam que os partidos não representavam os reais anseios da população. Esse movimento foi idealizado pela Democracia real Ya, uma plataforma digital que mobilizou em torno de 200 pequenas associações. A ideia era organizar, no dia 15 de maio, em diversas cidades espanholas, um movimento pacífico para repensar sobre as eleições de 22 de maio do mesmo ano. (EL PAÍS, 2011). No decorrer dos protestos, surgiram diversas reivindicações políticas, econômicas e sociais que viriam a se confrontar com o modelo democrático e econômico vigente da Espanha e, consequentemente, do mundo. As reivindicações políticas ganharam um enfoque maior, justamente pela proximidade das eleições no país. Algumas das reivindicações foram: petição para o fim do modelo bipartidário entre os principais partidos (Partido Popular e o Partido Socialista Operário Espanhol); fim da corrupção no governo e; defesa de uma participação cidadã na política. A ideia inicial era que o movimento durasse até o dia 22 de maio, mas só se encerrou no dia 27 de maio. As principais manifestações ocorreram em Madrid (com 20 mil manifestantes) e Granada (com 5 mil), onde houve paralisações nas principais estradas e confronto com a polícia. (EUROPA PRESS, 2011). Em 15 de maio, foi montado um acampamento na praça Puerta del Sol, que foi dissolvido na madrugada do dia 16, pelas forças armadas. No dia 17 de Maio, houve uma grande assembleia em Madrid onde os manifestantes decidiram novamente realizar o acampamento na praça, que contou com 200 pessoas acampadas. No dia 18 de maio, o protesto ganhou os principais jornais de comunicação, como The Washington post, The New York Times, Der Standard, Jornal de Notícias, Le Monde e os noticiários da BBC e da CNN, ocorrendo a divulgação da manifestação pelo mundo. Porém, as redes sociais continuavam a ter as principais informações sobre o movimento (EL MUNDO, 2011). Neste dia, na praça Puerta del Sol, os manifestantes elaboraram 3 propostas para serem consideradas pelo governo Espanhol: a reforma da Lei Eleitoral; verdadeira separação dos poderes; a regeneração (da ética) política. (PROPOSTA ESCRITA EM MADRID, 2011). Com as eleições se aproximando, a Junta Eleitoral Central emitiu, em 19 de maio, um comunicado dizendo que a manifestação seria ilegal nos dias 21 e 22 de maio, mas os indignados mantiveram as suas manifestações. Tal proibição e a declaração oficial de ilegalidade pelo Tribunal Constitucional, só fez aumentar o número de manifestantes, que, na praça Puerta del Sol, foi calculado em 28 mil pessoas (TELESUR-SOL TV, 2011). No mesmo dia, houve assembleias em diversas cidades e algumas das propostas iniciais 2521 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 foram mantidas: criação de assembleias populares, aumento do salário mínimo e a recusa a políticas de privatizações. Na noite do dia 20 e madrugada do dia 21 de maio, mesmo com as proibições e o cerco policial, 28 mil pessoas continuavam no centro de Madrid e 32 mil espalhadas pelo restante da Espanha. Outras cidades da Europa também aderiram à manifestação, como: Londres, Bruxelas, Lisboa, Amsterdã, Atenas, Milão, Budapeste, Tânger, Paris, Berlim e Roma. Foi então que, diante desse apoio, no dia 22 de maio, a assembleia do movimento decidiu continuar com as manifestações. (GONZÁLEZ; SANTAEULALIA; SALEH; DOLZ, 2011). No dia 23 houve uma proposta dos manifestantes para que realizassem uma assembleia com o Congresso dos Deputados (MARTÍN, 2011), porém isso não aconteceu. Ainda se encontravam na praça em torno de 200 a 300 pessoas acampadas no Puerta del Sol, sem a devida atenção do governo espanhol. (EL PAIS, 2011). Com essa repercussão, em 24 de maio, a Comissão de Comunicação da Acampada Sol recusou um convite para aparecer na televisão espanhola no programa 59 segundos, alegando que apenas uma pessoa não poderia comunicar a realidade do movimento em um estúdio, uma vez que o caráter do mesmo é democrático (ACAMPADASOL, 2011). O dia 27 de maio foi marcado por uma violenta ação policial em Barcelona com a justificativa de limpar a Plaza de Catalunya em função de um jogo do Barcelona que ocorreria no dia seguinte. Após esse incidente, os manifestantes voltaram a ocupar a praça e o porta-voz da comissão declarou que uma parte da praça seria deixada livre para que o jogo fosse transmitido no local. (SÁNCHEZ; CASANOVAS, 2011). O Movimento dos indignados foi marcado pela luta pacífica. O seu maior legado foi repensar o atual modelo econômico e o regime político espanhol. Para Josep Maria Antentas: “A maior vitória do movimento é que ele permitiu a muitas pessoas recuperar a confiança na ação coletiva, na capacidade coletiva de mudar as coisas” (ANTENAS, 2011). Mesmo que o movimento 15-M tenha sido de grande importância para a Europa e, principalmente, para a Espanha, ele não obteve força suficiente para reverter as políticas antissociais ou as reformas de cunho neoliberal, mas conseguiu mostrar que outro mundo é possível e que a ação coletiva é um passo importante para as grandes mudanças. Mesmo que ele tenha sido um pequeno passo para se discutir as mudanças políticas na Europa, o resultado das eleições ainda ficou a desejar, pois em 22 de maio, um partido de direita espanhol, o Partido Popular (PP), foi eleito com 44,6% dos votos (ALENCASTRO, 2011). 2522 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 2.4 Jornadas de Junho de 2013 no Brasil As jornadas no Brasil iniciaram-se em junho de 2013, quando o povo tomou as ruas de várias cidades para protestar por mudanças e melhorias nas condições de vida. Este evento começou na cidade de São Paulo, com o objetivo de reduzir os valores das passagens do transporte público. Após seu inicio, a reivindicação passou a ser adotada em 353 cidades do país e foi ganhando muitos participantes, o que fez aumentar as pautas a serem reivindicadas, incluindo-se temas como corrupção, Copa do Mundo e melhoria dos serviços públicos, etc. (SINGER, 2013; RICCI, 2013; ALVES, 2013). André Singer (2013), ao analisar as manifestações, identificou três fases principais do movimento. A primeira fase ocorreu na cidade de São Paulo nos dias 06, 10, 11 e 13 de junho, como tentativa de reduzir o preço das passagens do transporte público, contando com a participação de duas a cinco mil pessoas. Essas primeiras movimentações foram organizadas, principalmente, pelo Movimento Passe Livre (MPL), através de redes sociais e foram marcadas por intensos confrontos entre manifestantes e policiais. A atuação policial foi marcada por muita violência e repressão atingindo “transeuntes e jornalistas de maneira indiscriminada” (SINGER, 2013, p. 25). Nessa primeira etapa, a mídia conservadora tratava as manifestações de forma limitada, relacionando-as aos transtornos que causavam aos cidadãos, bem como tratava os manifestantes, de forma geral, como vândalos e baderneiros (PRADO, 2014; MOREIRA; SANTIAGO, 2013). A segunda fase do movimento, que foi o seu auge, ocorreu entre os dias 17, 18, 19 e 20 de junho, quando milhares de pessoas de diferentes cidades passaram a aderir aos protestos, ampliando as demandas e tornando-as mais vagas. A alta adesão aos protestos deveu-se, principalmente, a atuação violenta da polícia na primeira fase das jornadas. Ao perceber a adesão popular em grande número, a mídia conservadora mudou sua opinião e passou a tratar as manifestações como legitimas, tentando pautar algumas das reivindicações (PRADO, 2014; MOREIRA; SANTIAGO, 2013; AMARAL, 2013). Por fim, a terceira etapa ocorreu a partir do dia 21 de junho até o final do mesmo mês e foi marcada pela fragmentação do movimento. Nesse momento, o protesto foi perdendo força e dividiu-se em movimentos menores que reivindicavam questões pontuais como, por exemplo, a redução de pedágios (SINGER, 2013). As jornadas de junho apresentam algumas características fundamentais. Primeiramente, importa ressaltar “a ausência das grandes organizações políticopartidárias ou grandes movimentos sociais” (MOREIRA; SANTIAGO, 2013, p. 19), o que 2523 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 significa que as mobilizações foram organizadas por vias não institucionais da política, sem representação de partidos políticos e grandes organizações, o que geralmente ocorre em grandes mobilizações. Em função disso, o movimento se “denominou” como antipartidário, o que foi interpretado, por muitos políticos e alguns autores, como um golpe da direita (BRASILINO; GODOY; NAVARRO, 2013). Contudo, como bem explica Alves (2013), embora a direita tenha tentado se promover, a não aceitação de partidos políticos não representou um golpe da direita, bem como não significou que o movimento fosse, em sua essência, não partidário, indicou, na verdade, a insatisfação geral da sociedade com os seus representantes (seja de direita ou de esquerda) e com as atuais instituições representativas. Um segundo aspecto importante é a força das redes sociais, para a mobilização da sociedade civil e como uma alternativa a mídia conservadora. As redes sociais, como o Facebook e o Twiter se mostraram capazes de formar opinião e mobilizar a população, criando uma alternativa às mídias corporativas. Para AMARAL (2013) mais que uma alternativa, as redes sociais demonstraram que a grande imprensa é descartável. Por fim, outra característica fundamental das manifestações foi a composição social dos manifestantes. Alguns autores entendem que houve a predominância da classe média, enquanto outros afirmam que a maior parte dos participantes se enquadram na classe do “precariado” (SINGER, 2013), composto, principalmente, por jovens-adultos com alto nível de escolarização, mas condições de trabalho e vida social precárias (ALVES, 2013). Segundo Singer (2013) as manifestações foram compostas tanto pela classe média, quanto pelo “precariado”. Mesmo com divergências em relação à composição social dos participantes, é possível afirmar que houve a presença predominante de jovens, o que desconstrói a “visão de que a juventude é despolitizada e não participa da política” (MOREIRA; SANTIAGO, 2013, p. 18). Embora as jornadas de junho tenham iniciado como uma resistência ao aumento dos preços das passagens dos transportes públicos e posteriormente, assumido outras pautas, as verdadeiras causas que deram origem a esse movimento vêm sendo muito debatidas. Para Leitão (2013) a sociedade em geral, antes mesmo do inicio das jornadas, vinha insatisfeita com uma série de problemas que o país enfrenta, como por exemplo: ineficiência da gestão pública, má utilização do dinheiro público, insegurança, ineficiência dos serviços públicos, etc. Nesse sentido, importa esclarecer que a luta por melhores condições de vida e protestos dos mais variados, não são inéditos e não iniciaram em junho de 2013. Assim, o 2524 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 caso do tatu bola, eleito como mascote da Copa do Mundo de 2014, que foi derrubado em Porto Alegre em 2012, como uma forma de protesto contra a copa e lutas contra o aumento de passagens do transporte público, como a Revolta do Buzu em Salvador em 2003, a grande luta contra o aumento no Distrito Federal em 2008, a Luta contra o aumento em São Paulo em 2010, demonstram que as jornadas de junho de 2013 no Brasil não foram o inicio de protestos da população (MOVIMENTO PASSE LIVRE – SÃO PAULO, 2013). Segundo Ricci (2013), o governo Lula cometeu dois erros políticos que podem ter contribuído para os protestos. O primeiro erro foi “interditar” os canais sociais, em que a população organizava e discutia suas demandas, fazendo esses canais ingressarem na estrutura do Estado ou terceirizando seus serviços. Nesse sentido, a população perdeu o acesso direto aos locais em que sua insatisfação era imediatamente acolhida. O segundo erro foi abrir mão do papel que os governos de esquerda cumprem ao enfrentar temas conservadores. Embora possa haver muitas razões que tenham contribuído para as jornadas de junho de 2013 no Brasil, a maior parte dos autores concorda que há um aspecto especifico que impulsionou os protestos: a crise da representação política no Brasil (MOREIRA; SANTIAGO, 2013; PRADO, 2013). Assim, o discurso de antipolítica utilizado pelos manifestantes não representa um repúdio a política em si, mas a forma com que os políticos atuais conduzem os interesses sociais, baseados, principalmente, em seus próprios interesses (AMARAL, 2013). Importa ainda, analisar os efeitos produzidos pelas manifestações de junho de 2013. Primeiramente, esse movimento deu visibilidade a uma forma de ação política que não é muito praticada no Brasil: a participação popular. Além disso, as manifestações mostraram que as ruas podem ser um importante espaço para a participação da população fora de vias institucionais e governamentais (MOREIRA; SANTIAGO, 2013). Mostraram ainda, a incapacidade dos governos em dialogar com a sociedade, confirmando a ideia de crise representativa. Como resposta aos apelos das ruas a presidente, Dilma Rousseff, fez um pronunciamento em rede nacional propondo cinco pactos que envolviam: responsabilidade fiscal; plebiscito para verificar a vontade da população na criação de uma Constituinte específica para a Reforma Política e o combate a corrupção, que seria transformada em crime hediondo; saúde; educação e; transporte público (MONTEIRO; MOURA; ROSA; DOMINGOS, 2013). A constituinte para a reforma política foi muito 2525 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 questionada e a sua ideia foi abandonada, enquanto o plebiscito, também bastante criticado, não saiu do papel. Embora algumas medidas não tenham tido efetividade, importa perceber que o clamor das ruas obrigou o governo Dilma a dar atenção às demandas sociais e, ao menos, propor alguma solução. Além disso, em apenas uma noite foi rejeitada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, aprovado o uso dos royaltties do petróleo para a saúde e educação e aprovada a lei que transforma a corrupção em crime hediondo. Da mesma forma, governos estaduais reduziram o valor das passagens de ônibus públicos, debateram sobre o passe livre para estudantes e congelaram os preços dos pedágios e da energia (BRASILINO; GODOY; NAVARRO, 2013). CONCLUSÕES Este texto, representa uma tentativa inicial de lidar com 4 fenômenos contemporâneos de ocupação das ruas e que colocam em xeque modelos democráticos, conceitos sobre sociedade civil e novas formas de pressão e de participação popular. Portanto, é um estudo introdutório e que merece uma continuidade de pesquisa e um aprofundamento das suas características comuns e das suas diferenças de natureza. Entretanto, algumas conclusões são possíveis neste momento. A primeira e mais importante conclusão é que nenhum dos movimentos analisados representa uma verdadeira contribuição de caráter contra-hegemônico para a superação de uma sociedade de corte liberal e capitalista. Todos têm pautas que, na sua estrutura profunda, não colocam em xeque o sistema. Na verdade, pensam, por vezes de forma ingênua, que é possível domesticar o capitalismo ou, ao menos, torná-lo mais igualitário e justo, o que contraria a própria natureza do sistema, que é, por definição, injusto e excludente, pois meta última é a acumulação (individualismo) e não a distribuição (solidariedade). Um segundo aspecto comum diz respeito à ausência de grandes partidos políticos na origem dos processos. Parece haver um esgotamento desse modelo exclusivamente representativo. Crises sucessivas parecem corroborar com essa ideia. Outro aspecto que une os quatro movimentos é a utilização das redes sociais como um canal direto de comunicação entre os organizadores dos movimentos e a sociedade em geral, retirando da imprensa o papel central de divulgação dos fatos. Também é possível afirmar, a partir da experiência do Movimento 15-M, que quaisquer eventos que venham a ocorrer no Brasil, ao longo de 2014, especialmente no contexto da 2526 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Copa do Mundo (junho / julho), influenciarão nas eleições federal e estaduais de outubro deste ano. Nesse sentido, é importante resgatar o conceito de Nogueira a respeito da sociedade civil social, aquela em que os seus integrantes têm preconceito com relação à política. Portanto, são atores passivos desse processo, podendo, muitas vezes, como no caso espanhol, colaborarem para a eleição de forças conservadoras, mesmo que diretamente não tivessem essa intenção. Ademais, percebe-se que os movimentos Occupy Wall Street, Movimento 15-M e as Jornadas de Junho tiveram como foco central a crise da representação política, ou seja, esses movimentos partem do pressuposto que os partidos políticos estão prejudicando os segmentos mais vulneráveis da sociedade (trabalhadores, estudantes etc.), retirando deles direitos sociais como saúde, educação, transporte, aposentadorias, pensões etc. Esses movimentos protestam por uma verdadeira representação política onde haja uma conformidade entre os interesses da sociedade e as ações políticas ao invés desse descompasso onde a sociedade não tem voz dentro do Estado. Conclui-se, definitivamente, que um traço comum entre todos os fenômenos é a presença de uma parcela considerável da população jovem, ou seja, de uma população que muitas vezes, ainda não está inserida no mercado de trabalho ativo ou que está em situações precarizadas de emprego (seja pelo pagamento de salário inferior ou seja pela informalidade). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACAMPADASOL. Sobre la solicitud de asistencia al programa “59 segundos”. Madrird: 2011. Disponível em: <http://madrid.tomalaplaza.net/2011/05/24/sobre-lasolicitud-de-asistencia-al-programa-59-segundos/>. Acesso em: 16 mar. 2014. ALVES, Giovanni. Precariado: a espinha dorsal dos protestos nas ruas das 353 cidades brasileiras. Cadernos IHU ideias, ano 1, nº 191, 2ª ed., 2013. ALENCASTRO, Luiz Felipe. Resultado das eleições na Espanha deixa Partido Socialista francês em alerta sobre dispersão dos votos. UOL notícias, 2011. 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Acesso em: 16 mar. 2013. 2531 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 AS OBRIGAÇÕES DO ESTADO ANTE O CONTEXTO DE MANIFESTAÇÕES: Uma análise das Jornadas de Junho no Brasil à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos Felipe Tôrres Pereira – Universidade Federal da Paraíba Louis Philippe Patrick De Jongh Filho – Universidade Federal da Paraíba Victor Machado Viana Gomes –Universidade Federal da Paraíba INTRODUÇÃO A recente história do Brasil é marcada por mobilizações populares que contribuíram sobremaneira para a mudança do paradigma político nacional, por meio do retorno ao regime democrático. Retomando esse legítimo meio de expressar-se, grande parte da população, no mês de junho de 2013, voltou às ruas para reivindicar seus direitos, contudo, a repercussão dos protestos foi muito além das pautas iniciais dos manifestantes. As manifestações sociais representam o exercício do direito à liberdade de pensamento e de expressão, bem como do direito de reunião e de associação, todos garantidos pela Constituição Federal e pelos diversos tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro. Nesse sentido, as diversas tratativas internacionais estabelecem uma série de obrigações que devem ser cumpridas pelos agentes estatais frente aos protestos sociais, de forma a garantir o livre gozo dos direitos dos manifestantes em harmonia com os direitos dos demais cidadãos. Caso o Estado não cumpra com os mencionados deveres, poderá ser responsabilizado no plano internacional. Desta feita, por meio deste artigo, pretende-se, com fulcro na jurisprudência e na doutrina do Direito Internacional, realizar uma investigação dos deveres do Estado quanto às manifestações, bem como demonstrar as violações de direitos que foram perpetradas por seus agentes, máxime pelas forças policiais. Todavia, é preciso ressaltar que este estudo não tem o escopo de realizar uma análise acerca da motivação dos protestos ou da legitimidade e da razoabilidade das reivindicações, de sorte que compreendemos as limitações decorrentes dessas omissões. 1 VINCULAÇÃO AO SISTEMA INTERAMERICANO Da mesma maneira que ocorre no campo das obrigações civis, na área internacional vigora o princípio do pacta sunt servanda, o qual, na dicção do art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, determina que “todo tratado em vigor vincula as partes e deve ser cumprido de boa fé”. Desta feita, quando um Estado adere a um tratado de Direitos Humanos deve adotar medidas em dois sentidos: suprimir as normas e as práticas de qualquer natureza que 2532 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 impliquem a violação das garantias previstas na Convenção; e expedir normas e desenvolver práticas direcionadas à observância das aludidas garantias1. Ademais, de acordo com a interpretação dos arts. 2 e 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos (doravante CADH), um Estado não pode alegar a existência de uma lei interna ou o modelo de sua estrutura federal para justificar o descumprimento de uma determinação contida em um tratado de Direitos Humanos. Por consequência, caso o Estado não empreenda os esforços necessários para adimplir o pactuado, poderá ser responsabilizado internacionalmente pelas suas ações ou suas omissões. No caso brasileiro, a análise da responsabilidade internacional será feita pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante Corte IDH), em decorrência da adesão à CADH, ratificada de forma plena pelo Brasil, em dezembro de 1998. Neste sentido, frisa-se que as decisões emanadas da Corte possuem natureza vinculante, posto que o: Estado, no plano internacional, é responsável pelas obrigações internacionais que assumira por meio de tratados e convenções internacionais, dentre elas as de prontamente cumprir as decisões dos tribunais internacionais, cuja competência 2 contenciosa ele mesmo aceitou . Mas é necessário salientar que as decisões do aludido Tribunal devem nortear a atuação dos demais Estados que fazem parte do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como meio de prevenir que novas demandas contenciosas sejam apreciadas nas instâncias internacionais, o que provavelmente, ensejará a responsabilidade estatal. Além da observância do entendimento da Corte, as disposições emanadas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante CIDH ou Comissão), órgão que, dentre outros aspectos, é responsável pelo juízo de admissibilidade das denúncias, bem como pela tentativa de composição entre os peticionários e as vítimas e pela elaboração de informes, de conclusões e de recomendações na seara dos Direitos Humanos, também devem ser observadas pelos Estados. Esta necessidade deriva do fato dos: informes e das opiniões da Comissão constituírem critérios jurídicos valiosos de implementação e ordenação valorativa das cláusulas do Pacto de São José da Costa Rica, as quais devem ser levadas em consideração para adotar decisões de direito interno em harmonia com o preceituado na 3 ordem internacional (tradução nossa) . 1 Corte IDH. Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Julgamento 26 de setembro de 2006. Série C. No. 154. §118. 2 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana de Direitos Humanos. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 407. 3 BOGGIANO, Antônio; BOSSERT, Gustavo apud HITTERS, Juan Carlos. ¿Son vinculantes los pronunciamientos de la Comisión y de la Corte Interamericana de Derechos Humanos? (control de constitucionalidade y convencionalidad). Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional.núm. 10. julho-dezembro de 2008, p. 140. 2533 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Contudo, não se pode olvidar dos entendimentos derivados dos demais órgãos de proteção dos Direitos Humanos, a exemplo da ONU e das demais cortes de Direitos Humanos, como a Corte Europeia (doravante Corte EDH), principalmente no que atine às situações que não possuem um grande respaldo jurisprudencial no âmbito do Sistema Interamericano. Além disto, insta asseverar que no âmbito brasileiro o STF, nos RE 466.343-SP e HC 87.585-TO, julgados em 2008, estabeleceu que os tratados de Direitos Humanos que não tiverem o caráter de emenda constitucional – pelo fato de não terem sido aprovados de acordo com o previsto no art. 5º, §3º, da Constituição Federal – possuem o caráter de norma supralegal. Dessa forma, não obstante estejam abaixo da Carta Magna, são superiores à ordem jurídica infraconstitucional. Aclarando essa situação, André de Carvalho Ramos (2013) preleciona que: consagrou-se no STF a teoria do duplo estatuto dos tratados internacionais de direitos humanos: supralegal para os que não foram aprovados pelo rito especial do art.5,§3º, quer sejam anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional 4 n.55/2005 e constitucional para os aprovados de acordo com o rito especial . Sendo assim, faz-se mister a observância do disposto na CADH e de sua interpretação emanada dos órgãos do SIDH, não apenas pelo papel que desempenha na ordem nacional, mas também, como mencionado alhures, pela possibilidade de uma responsabilidade internacional do Estado brasileiro, o que traria diversas consequências negativas para o país. 2 VIOLAÇÕES DE DIREITOS 2.1 VIOLAÇÃO AO DIREITO À INTEGRIDADE O direito à integridade é salvaguardo por diversos instrumentos internacionais5 e deve ser compreendido em suas três dimensões, quais sejam, física, psíquica e moral6. No contexto dos protestos, a violação a esse direito está comumente associada à inadequação no uso da força por parte dos agentes de segurança, de sorte que é dever do Estado proporcionar equipamentos adequados, bem como regular o uso de tais instrumentos e 4 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 267. 5 Art 1° da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, art 5° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 5° da Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 7° do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, art 3° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 6 GUZMÁN, José Miguel. El derecho a la integridad personal. Centro de salud mental y derechos humanos. CINTRAS, Chile, 2007, p.1. 2534 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 treinar as forças policiais para atuarem em tais situações, de modo a resguardar os direitos dos manifestantes7. Utilizado de forma excessiva, o uso da força acarreta violação tanto à integridade como à dignidade humana8. E, quando cometidas por autoridades que atuam em nome do Estado, tais violações são de responsabilidade deste9. Nesse sentido, nas manifestações é permitida a utilização de meios não-letais por parte dos agentes policiais, caso seja estritamente necessário e tal ação esteja contida no fulcro de seu dever, sendo adotados meios não-violentos previamente ao uso da força propriamente dito10. Devem ser empregados ainda meios de coação legítimos e as atuações devem ser pautadas pelos critérios de moderação, de proporcionalidade e de progressividade11. Com efeito, durante os protestos no Brasil, muitas pessoas sofreram com a violência policial, inclusive aquelas que protestavam pacificamente, por exemplo, contra o aumento das tarifas do transporte público. Situação oposta seria no caso de restabelecimento da ordem, devido à violência gerada pelos manifestantes, todavia, mesmo assim, isto não implicaria a permissão de violar os direitos destes. Deveria o Estado adotar em tais situações as medidas de desconcentração mais seguras e menos lesivas para os manifestantes12. A despeito disso, muitas vezes, os próprios agentes policiais submeteram os manifestantes a uma situação degradante. Ora, fazer o uso de meios não-letais deliberada e indiscriminadamente tem a finalidade precípua de humilhar, degradar e romper a resistência física e moral da(s) vítima(s), despertando, assim, um sentimento de medo, ânsia e inferioridade13. Vale lembrar alguns registros feitos durante os protestos, os quais ilustram os abusos cometidos pelas forças de segurança. Uma mulher foi atacada com spray de pimenta por um PM; um idoso foi retirado à força da rua por um policial; jatos d’água foram lançados contra manifestantes, os quais foram perseguidos e fichados, e bombas foram jogadas contra a imprensa; repórteres foram atingidos no olho por tiros de bala de borracha. 7 CIDH. Informe sobre seguridad ciudadana y derechos humanos. OEA/Ser.L/V/II, Doc 57, de 31 de dezembro de 2009. 8 Corte IDH. Caso LoayzaTamayo vs. Perú. Exceções Preliminares.Sentença de 31 de janeiro de 1996. Serie C No. 25. 9 Corte IDH. Caso Cantoral Benavides vs. Perú. Exceções. Sentença de 3 de setembro de 1998. Serie C No. 40, § 78. 10 ONU. Código de Conduta para os Encarregados da Aplicação da Lei (CCEAL), adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua resolução 34/169, de 17 de dezembro de 1979. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/manuais/dh/mundo/rover/c5.htm>. Acesso em: 17 out 2013. 11 CIDH. Informe sobre seguridad ciudadana y derechos humanos. Op. Cit. § 133. 12 Ibdem.§133. 13 Corte EDH. Case of Ireland v. the United Kingdom. Julgamento 18 de janeiro de 1978.§ 223. 2535 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Nesse sentido, são alarmantes as violações contra jornalistas, os quais, muito embora devessem receber maior tutela do Estado, em virtude da importância de seu ofício para a cobertura de tais acontecimentos14, são alvos frequentes dos abusos policiais. Segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), contabilizam-se 163 de agressões ou detenções contra 152 jornalistas, durante as manifestações, entre maio de 2013 e março de 2014, sendo 79% do número total de agressões de responsabilidade dos agentes policiais. Em face disso, a ONU manifestou preocupação com o uso excessivo da força por parte dos agentes policiais durante as manifestações, de sorte que enviou uma carta ao governo brasileiro cobrando explicações acerca do emprego abusivo de armas não-letais, da detenção de um grande número de pessoas e dos sérios riscos aos quais estavam submetidos os jornalistas durante tais protestos. 2.2 VIOLAÇÃO À LIBERDADE PESSOAL O direito à liberdade pessoal também é amplamente tutelado pelos instrumentos internacionais. Não se pode privar alguém de sua liberdade, salvo se o motivo e o processo estiverem em conformidade com a lei. Desse modo, a forma mais evidente de violação de tal dispositivo nas manifestações ocorre por meio das detenções ilegais. Com efeito, o poder punitivo do Estado deve se restringir à proteção dos bens jurídicos fundamentais, visando à proteção dos ataques mais graves que lhes causem danos ou os ponham em perigo. Nesse viés, as privações de liberdade devem ocorrer apenas nos casos de necessidade social urgente e proporcionalmente a tal necessidade15. Em outras palavras, as correntes penais modernas advogam o chamado “direito penal mínimo”, sendo a detenção, portanto, a ultima ratio. Para estabelecer se uma detenção está adequada aos parâmetros convencionais, é preciso observar se esta preenche os requisitos formais e materiais, ou seja, se ela é prevista legalmente no ordenamento jurídico de um Estado e se tal normativa não é arbitrária16. Quando a detenção é ilegal ou arbitrária (ou seja, não se sabem os motivos e as 14 ONU. Joint Statement: United Nations (UN) Special Rapporteur on the Protection and Promotion of the Right to Freedom of Opinion and Expression Special Rapporteur for Freedom of Expression of the OAS Inter-American Commission on Human Rights: Joint declaration on violence against journalists and media workers in the context of protests. Disponível em: http://www.oas.org/en/iachr/expression/showarticle.asp?artID=931&lID=1 . Acesso em: 25 out. 2013. 15 Corte IDH. Caso Vélez Loor Vs. Panamá. Exceções Preliminares, Reparações e Custas. Sentença de 23 de novembro de 2010. Serie C No. 218.§170. 16 CIDH. Informe sobre seguridad ciudadana y derechos humanos. Op. Cit. § 144. 2536 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 razões pelos quais houve a detenção)17, considera-se que há um risco maior de serem violados direitos outros do detento como a integridade física e a dignidade humana, pois este se encontra mais vulnerável em tal situação18. Com isso, não se exclui a possibilidade de cerceamento temporário da liberdade de alguém, desde que tal privação seja necessária para a preservação do direito de outras e segundo o interesse geral19. Todavia, ordens para detenções ou encarceramentos, cujas causas ou procedimentos sejam incompatíveis com os direitos fundamentais podem ser configuradas como não-razoáveis, imprevisíveis e desproporcionais20. Do mesmo modo, com base nas circunstâncias de cada caso, é preciso verificar se houve um mínimo de severidade apto a provocar danos à integridade do detento21. Dessa forma, a pessoa privada de sua liberdade deve ser conduzida sem demora às autoridades habilitadas por lei a exercer a função judicial22. Tal detento também tem o direito de se comunicar com sua família, seu advogado ou outra pessoa de confiança23. É preciso lembrar ainda que o Estado assume a posição de garante em relação às pessoas privadas de liberdade, cuja tutela deve ser reforçada pela condição de maior vulnerabilidade a qual se encontram24. Disto depreende-se que o Estado é responsável por qualquer tratamento cruel, desumano ou degradante que seja infligido a um indivíduo sob sua custódia25, considerando-se, como exemplo deste, o isolamento prolongado26. Durante as manifestações que ocorreram no Brasil, registrou-se um número elevado de detenções. Segundo dados coletados por dez ONGs brasileiras e apresentados em audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, somam-se ao todo mais de 1.700 prisões durante os protestos de junho de 2013 até março de 2014. Houve detenções ilegais por toda a sorte de motivos descabidos, como a de um repórter que foi levado à delegacia por portar vinagre (substância que atenua os efeitos do 17 Corte IDH. Caso Walter Bulacio vs. Argentina. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 18 de setembro de 2003.§ 128. 18 Ibdem. § 127 19 CIDH. Informe sobre seguridad ciudadana y derechos humanos. Op. Cit. § 42. 20 Corte IDH. Caso Gangaram Panday Vs. Suriname. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 21 de janeiro de 1994. Série C No. 16. § 124. 21 Corte EDH. Case of Ireland v. the United Kingdom.Julgamento 18 de janeiro de 1978. § 162-163. 22 Recomendação Geral n. 8 (192), Comitê de Direitos Humanos da ONU, com relação ao direito à liberdade e à segurança pessoais (artigo 9°). 23 ONU.Professional Training Series. Human Rights in the Administration of Justice: A Manual on Human Rights for Judges, Prosecutors and Lawyers. United Nations Publications: New York and Geneva, No. 9, p. 208-209, 2003. 24 Corte IDH. Caso Juan Humberto Sánchez Vs. Honduras. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 7 de junho de 2003. Série C. No. 99. § 111. 25 Corte EDH. Case of Yavuz Vs. Turquía. Application nº 67137/01. Sentença de 10 de janeiro de 2006. § 38. 26 Corte IDH. Caso Nelson Iván Serrano SáenzVs. Equador. Mérito. Sentença de 6 de agosto 2009. § 51. 2537 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 gás lacrimogêneo), a condenação de um morador de rua a 5 anos de prisão por carregar detergente consigo no momento da manifestação ou a detenção de adolescentes e de crianças, os quais muitas vezes não foram levados a delegacias especializadas ou ao menos separados dos adultos. Nesse sentido, a própria ONU se manifestou por meio de carta endereçada ao governo brasileiro, questionando o número elevado de prisões de manifestantes, dentre os quais protestavam pacificamente na ocasião ou sequer haviam participado dos protestos. Do mesmo modo, é grave o fato de existirem evidências de que houve prisões ilegais ou fundamentadas em flagrantes forjados por agentes policiais. Ademais, é preocupante o relato de manifestantes que denunciam terem sido submetidos a terror psicológico e ameaças durante sua detenção, sendo levados para presídios de segurança máxima por um suposto crime cometido durante as manifestações, tendo sido em grande parte liberados, posteriormente, algo que demonstra o caráter arbitrário de tais detenções. 2.3 VIOLAÇÃO AO DIREITO À VIDA O direito à vida é um direito supremo, pois sem ele não há que se falar em demais Direitos Humanos, de sorte que seu grau de importância implica a impossibilidade de interpretações restritivas27 e a norma que confere a sua proteção é reconhecidamente inderrogável e de caráter jus cogens28. Desta feita, ninguém pode desrespeitar tal direito ou privar arbitrariamente outrem de sua condição de existência, salvo em circunstâncias especificamente previstas em lei; cabendo ao Estado punir eventuais transgressões29. Principalmente, se tais violações partirem de suas próprias autoridades, pois se trata de uma questão de alta gravidade30. Neste contexto, o uso da força letal por agentes de segurança deve estar em consonância com os “Princípios Básicos Sobre o Uso da Força e Armas de Fogo Pelos 27 Corte IDH. Caso Ximenes Lopes Vs.. Brasil. Exceções Preliminares. Sentença de 30 de novembro de 2005. Serie C No. 139, § 124. 28 TRINDADE, Antônio A. Cançado. Direito Humano: Personalidade e Capacidade Jurídica Internacional do Indivíduo. In: O Brasil e os Novos Desafios do Direito Internacional, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004, p. 225 29 BASCH, Fernando Felipe. The Doctrine of the Inter-American Court of Human Rights Regarding States' Duty to Punish Human Rights Violations and Its Dangers.American University International Law Review, v. 23, No.1, p. 195-229, 2013. 30 Comitê de Direitos Humanos da ONU. Recomendação Geral n. 6 (1982) sobre o direito à vida (artigo 6°). 2538 Anais do VIII Encontro da ANDHEP Funcionários Responsáveis Pela Aplicação da Lei” ISSN: 2317-0255 31 e atender aos critérios de excepcionalidade, necessidade, proporcionalidade e humanidade32, para que tal atuação não incorra em privação arbitrária da vida. Em outras palavras, deve ser o último recurso a ser utilizado, a fim de combater ações criminosas ou violentas e resguardar a vida em perigo, incluindo a do próprio policial, se se tratar de legítima defesa33. Pela eventualidade, a suposição de uma execução extrajudicial gera por si só a necessidade de uma investigação oficial efetiva, principalmente quando agentes estatais estão sendo acusados de tal crime34. E, nesse viés, faz-se necessário castigar os responsáveis, pois a impunidade cria perigosa margem para a repetição do abuso cometido35. Assim, mesmo que a atuação não enseje mortos ou feridos, a ação descabida de agentes de segurança já caracteriza uma transgressão ao direito à vida36. Ademais, percebe-se a existência de uma política de segurança pública voltada principalmente contra um grupo determinado de pessoas na América Latina, qual seja, o dos jovens negros, pobres e que moram em comunidades carentes, os quais sofrem mais comumente com a violência policial37. Acontece que o Estado brasileiro tem forças de segurança reconhecidamente violentas. Corroborando com tal afirmação, vale mencionar que o Conselho de Direitos Humanos da ONU já recomendou ao Brasil o fim de sua Polícia Militar, pois tal instituição faz as vezes de “esquadrão da morte”, praticando torturas e execuções extrajudiciais. Desse modo, durante as manifestações, ocorreram mortes decorrentes do uso excessivo da força pelos agentes policiais. Registram-se os casos de uma senhora que morreu de infarto, ao ser jogada uma bomba de efeito moral dentro do bondinho em que estava; de um homem que morreu devido a uma infecção pulmonar grave após supostamente inalar gás lacrimogêneo; de pessoas que morreram atropeladas por veículos durante a confusão dos protestos; o de um jovem que, ao tentar fugir das investidas da polícia, acabou caindo de um viaduto; da operação na comunidade Nova Holanda, dentro do Complexo da Maré (RJ), após uma manifestação, que resultou na morte de 13 pessoas; inter alia. 31 CERD. Observación General No.XXXI,U.N. Doc. CERD/C/GC/31/Rev.4(2005). Corte IDH. Caso Zambrano Vélez y otros Vs. Ecuador. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 4 de julho de 2007.Serie C No. 166. §§83-85. 33 CIDH.Informe sobre seguridad ciudadana y derechos humanos. Op. Cit. §113. 34 Corte EDH. Case of Hugh Jordan v. the United Kingdom. Julgamento 04 de maio de 2001. § 105. 35 Corte IDH. Caso Vargas Areco vs. Paraguay. Mérito, Reparações e Custas. Sentencia de 26 de setembro de 2006. Serie C No. 155. § 127. 36 Comissão ADHP. Kazeem Aminu Vs. Nigeria. Communication No 205/1997(2000). Sentença de 11 de maio de 2011. § 18. 37 CIDH. La situación de las personas afrodescendientes en las américas. 2011. §§. 173-174. 32 2539 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Por oportuno, como primeiro recurso a ser utilizado pelo Estado a fim de apurar uma possível violação e, se for o caso, punir os responsáveis, as investigações devem ser conduzidas, consoante os parâmetros internacionais de devida diligência para situações de mortes violentas38. Logo, é preciso que aquelas sejam sérias, imparciais e efetivas, do contrário estar-se-ia violando principalmente o direito à vida, mas também direitos outros como o acesso à justiça. Nesse sentido, a Chefe da ONU para os Direitos Humanos, Navi Pillay, apontou o abuso da força policial e a utilização de armas de fogo como fatos preocupantes nas manifestações do Brasil, solicitando o fim de tais condutas e a implementação de investigações transparentes, voltadas a apurar violações de Direitos Humanos. 2.4 VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA RETROATIVIDADE Os princípios da legalidade e da retroatividade norteiam e limitam a atuação das autoridades em um Estado que se proclama democrático e de Direito39. Nesse sentido, é preciso que o tipo penal seja prévio à conduta ilícita praticada40 e que tal conduta seja claramente definida, de modo que se possam identificar seus elementos objetivos e subjetivos41. Para tanto, o legislador deve evitar a utilização de termos imprecisos, genéricos e plurissignificativos, porquanto tal grau de indeterminação deixa margem para um nível de arbitrariedade maior do que o permitido pelos contornos da legalidade, algo que poderia ocasionar a limitação injusta de direitos fundamentais como a vida e a liberdade, por parte do aplicador da lei 42. Ademais, conforme já se apontou, a normativa interna deve atender aos parâmetros de convencionalidade, de sorte que não se pode argumentar direito doméstico para justificar violação a uma determinação contida em um tratado internacional de Direitos Humanos. Logo, mostra-se preocupante a inexistência de uma normativa apropriada em âmbito nacional, para regular o uso da força pelos agentes de segurança, algo que, definitivamente, 38 Corte IDH. Caso Juan Humberto Sánchez Vs. Honduras. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 7 de junho de 2003. Série C No. 99 §127. 39 Corte IDH. Caso Massacres de El Mozote y lugares aledãnos Vs. El Salvador Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 25 de outubro de 2012. Serie C No. 252. § 156. 40 Corte IDH. Caso Baena Ricardo y otros Vs. Panama. Mérito, Reparações e Custas. Sentença 02 de fevereiro de 2001. Série C. No. 22 §106. 41 Corte IDH. Caso Castillo Petruzzi y otros Vs. Perú. Mérito, Reparações e Custas. Sentencia de 30 de mayo de 1999. Serie C No. 52. § 121 42 Corte IDH. Caso Baena Ricardo y otros Vs. Panama. Op. Cit. §§108 e 115. 2540 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 cria condições para o cometimento de condutas abusivas decorrentes da utilização de armas letais e não-letais, ainda que existam parâmetros internacionais nesse sentido43. Outrossim, ao arrepio da legalidade, aplicam-se contra os manifestantes normas incompatíveis com o contexto de protestos, como a “Lei sobre Organizações Criminosas” e a “Lei de Segurança Nacional”; justificam-se mortes arbitrárias com a figura do “auto de resistência”, o qual é facilmente forjável; e ainda se cogita a aprovação de outras leis repressivas, cujo texto deixa margem para a limitação do direito de manifestação e enseja a possibilidade de mais prisões arbitrárias, como a lei que tipifica o terrorismo. 2.5 VIOLAÇÃO ÀS LIBERDADES DE PENSAMENTO E DE EXPRESSÃO A liberdade de expressão é um direito inerente ao ser humano, posto não ser criado ou outorgado pelo Estado44, e possui grande importância para o bem-estar e o desenvolvimento pessoal. Além do mais, é considerada como pedra angular em uma sociedade democrática e instrumento indispensável para a formação da opinião pública45, a qual, a seu turno, permite o controle por parte da sociedade e, por consequência, fomenta a transparência das atividades públicas e promove a responsabilidade dos funcionários públicos por sua gestão pública46, prevenindo a criação de condições propícias ao desenvolvimento de regimes autoritários. Seu conteúdo não engloba apenas o direito de expressar seu próprio pensamento, mas também o direito e a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda índole47. Neste sentido, possui duas dimensões, quais sejam: individual, que assegura a possibilidade de utilizar qualquer meio idôneo para difundir o pensamento próprio e levá-lo ao conhecimento dos demais; e social, concretizada pelo direito de todos conhecerem as opiniões e as notícias. Ambas devem ser protegidas e o sentido e a plenitude de cada uma dependem da outra48. 43 CIDH. Informe sobre seguridad ciudadana y derechos humanos .Op. Cit. §133. ESPIELL, Héctor Gros. La Convención Americana y la Convención Europea de Derechos Humanos Analisis Comparativo. Editora Jurídica do Chile: Santiago, 1991. p. 24. 45 Corte IDH. Caso Claude Reyes Vs. Chile. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 19 de setembro de 2006. Série C. No. 151. § 85. 46 Corte IDH. Caso Ricardo Canese Vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2004. Serie C No. 111. § 97. 47 Corte IDH. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 22 de novembro de 2005. Serie C No. 135. § 69. 48 GONZA, Alejandra; RAMIREZ, Sérgio García. La Libertad de expresión em la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Corte Interamericana de Derechos Humanos e Comissión de Derechos Humanos del Distrito Federal: Toluca, 2007.p. 29. 44 2541 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Isto posto, cumpre assentar que os protestos ou manifestações sociais são um dos principais meios para o exercício da liberdade de pensamento e expressão, uma vez que permitem a ampla difusão das pautas de cada pessoa ou de cada grupo de pessoas, sendo, deste modo, ferramenta de demanda às autoridades públicas e canal de denúncias públicas sobre abusos ou violações aos Direitos Humanos49. Além de representarem um meio democrático e salutar para o exercício do direito em tela, as manifestações apresentam uma relação intrínseca com os direitos à liberdade de reunião e à liberdade de associação, de tal maneira que, consoante a Comissão Africana, quando há uma violação a qualquer um destes, implícita e automaticamente, ter-se-á uma transgressão àquele direito50. Desta maneira, ao analisarmos os direitos de reunião e de associação também será feita a apreciação dos direitos à liberdade de pensamento e de expressão. Todavia, quanto ao direito em comento, é cabível destacar o papel desempenhado pelos profissionais de imprensa, os quais exercem a manifestação primária e principal da liberdade de pensamento e expressão, de forma que não se pode desvencilhá-los, pois um jornalista representa uma pessoa que decidiu exercer a liberdade de expressão de modo contínuo, estável e remunerado 51. Em virtude de seu caráter essencial, é consolidado o entendimento segundo o qual estes profissionais precisam da proteção e da independência necessárias para realizarem suas funções, pois são os responsáveis pela manutenção de uma sociedade informada, requisito indispensável para que esta goze de sua liberdade de maneira plena52. Aplicando o exposto ao contexto das manifestações, percebe-se que os jornalistas exercem o direito à liberdade de expressão em suas duas dimensões, desenvolvendo um trabalho vital à obtenção de informações pluralísticas e que retratem com fidedignidade as diversas situações e circunstâncias ocorridas nos protestos. Influenciando, desse modo, na formação da opinião pública, a qual terá elementos concretos para subsidiá-la, como também na própria consecução dos fins almejados pelos manifestantes. Contudo, em reforço do já mencionado neste estudo, o Estado, que possui a obrigação de garantir que os jornalistas não sejam detidos, ameaçados, agredidos ou limitados de qualquer maneira no exercício de seu ofício, em um contexto de 49 CIDH. Informe Anual 2005. OEA/Ser.L/V/II.117, Doc.7, 27 de fevereiro de 2006, Vol. III, Informe da Relatoría Especial para a Liberdade de Expressão, Capítulo V.§1º. 50 Comissão ADHP. Case International Pen, Constitutional Rights Project, Interights on behalf of Ken Saro-Wiwa Jr. and Civil Liberties Organization c. Nigeria. Julgamentoem31 de outubro de 1998. Communication No. 137/94. 51 Corte IDH. Caso Fontevecchia y D’ Amico Vs. Argentina. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 29 de novembro de 2011. Série C. No. 237. § 46. 52 Corte IDH. Caso Ivcher Bronstein Vs. Perú. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 6 de fevereiro de 2001. Serie C No. 74. § 150. 2542 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 manifestações53, quedou-se inerte. Como prova disso, reportam-se as lesões à integridade física e as prisões arbitrárias de repórteres pelo simples motivo de estarem desempenhando sua profissão, o que, neste contexto, significa uma ameaça ao Estado, por ser forma de denunciar a conduta violadora de direitos perpetrada pelos agentes estatais. Diretamente relacionada à situação discutida, a Corte Interamericana, ao apreciar o Caso Vélez Restrepo y familiares Vs. Colombia, declarou a responsabilidade internacional do Estado pela violação à liberdade de pensamento e de expressão. Dita condenação decorreu do fato das forças militares, em uma situação de manifestações sociais, terem causado agressões à integridade do jornalista Vélez Restrepo, impedindo-o de continuar gravando a intervenção estatal no protesto e, por conseguinte, obstando a possibilidade das informações chegarem aos seus destinatários54. Destarte, o comentário supramencionado demonstra a real possibilidade de o Estado brasileiro ser responsabilizado pelas suas ações e suas omissões em relação aos jornalistas durante as manifestações, caso não empreenda atividades que visem a modificar a sua forma de (não) atuação e/ou se omita em proceder à investigação, ao julgamento e à sanção devidos dos autores das violações de direitos e a reparação dos danos sofridos pelas vítimas. 2.6 VIOLAÇÃO AO DIREITO DE REUNIÃO O direito de se reunir de forma pacífica e sem armas é garantido pelo art. 15 da CADH, o qual é considerado como um direito de cunho individual, cujo exercício ocorre de forma coletiva55, máxime por meio dos protestos sociais, nos quais pessoas se agregam de forma esporádica para perseguirem fins de interesse comum56, e, no caso brasileiro, as manifestações apresentaram uma diversidade de intentos, os quais, assim como antes ressalvado, não serão objeto de discussão. Desta forma, diante das manifestações, o Estado possui a obrigação principal de não criar obstáculos ao seu exercício e adotar as medidas necessárias à garantia de seu desenvolvimento, salvaguardando o direito dos participantes e de terceiros57. Além do mais, 53 OEA. Declaración conjunta sobre violência contra periodistas y comunicadores en el marco de las manifestaciones sociales. 13 de setembro de 2013. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=931&lID=2. Acesso em: 08 abr. 2014. 54 Corte IDH. Caso Vélez Restrepo y familiares Vs. Colombia. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 03 de setembro de 2012. Série C. No. 248. § 148. 55 Barendt, Eric. Freedom of Speech. Clarendon Press Oxford: New York, 1985. p.268. 56 Corte IDH. Caso Escher Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 06 de julho de 2009. Série C. No. 200. § 169. 57 Corte IDH. Caso Baena Ricardo e outros Vs. Panamá. Op. Cit. §151. 2543 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 levando em consideração que os manifestantes exercem um direito legítimo, devem-se priorizar os meios causadores do mínimo possível de danos58. Nesta senda, também tem a obrigação de desenvolver as medidas necessárias com vistas a prevenir situações de violência derivada do exercício abusivo ou ilícito do direito de reunião, assegurando o desenvolvimento pacífico dos manifestos, bem como dispersar aqueles que se tornem violentos ou obstrutivos, porém, sempre agindo de forma legal, necessária e proporcional 59. Quanto aos mencionados critérios, avulta destacar que a necessidade de uma medida não é caracterizada apenas pelo seu caráter útil ou indispensável, mas também, por representar uma necessidade social imperiosa, ou seja, aquela que restringe da menor forma possível o direito protegido e que os objetivos coletivos autorizadores da intervenção sejam superiores à garantia do pleno gozo do direito de reunião60. Por sua vez, a proporcionalidade consiste na racionalidade ou na ponderação entre a restrição autorizada ao direito e a medida de sua aplicação61. Também é imprescindível frisar que a atuação preventiva do Estado apenas é permitida quando forem constatadas ameaças sérias e iminentes, pois a mera existência de um risco é insuficiente para autorizar a sua intervenção, mesmo com precedentes de atos de violência em manifestações anteriores. Desta feita, deve-se fazer uma análise real das circunstâncias, a fim de determinar quais são as medidas necessárias para neutralizar as ameaças62 concretas. Nesta esteira, em reforço do exposto no presente estudo, é imprescindível que as forças estatais possuam treinamento e ordens precisas, e utilizem, em todos os momentos, meios não-letais de repressão63, os quais só podem ser utilizados quando os demais meios tenham sido esgotados ou tornaram-se ineficazes64. Nos protestos em âmbito pátrio, percebe-se, de forma direta, o desrespeito a ditas determinações, já que as forças policiais, de modo geral, sem recorrer a qualquer alternativa, valem-se os meios não-letais de repressão de forma indistinta e desarrazoada, deixando de realizar a diferenciação adequada entre aqueles que exercem seu direito de Comissão ADHP, Case Mouvement Burkinabé dês Droits de l’Homme et dês Peuples Vs. Burkina Faso. Communication No. 204/97. Julgamento 24 de Junho de 2010. §63. 59 CIDH. Informe sobre Seguridad Ciudadana y Derechos Humanos. OEA/Ser. L/V/II. Doc. 57,31 de dezembro de 2009. §§ 194, 195. 60 Corte IDH. La Colegiación Obligatoria de Periodistas (arts. 13 y 29 Convención Americana sobre Derechos Humanos. Opinión Consultiva -5/85 de 13 de novembro de 1985. § 46. 61 Corte IDH. Caso Kimel Vs. Argentina. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 02 de maio de 2008. Série C. No. 193 § 16. 62 Corte EDH. Case of Alekseyev Vs. Russia. Applications No. 4916/07, 25924/08 and14599/09.Julgamento 21 de outubro de 2010. §75. 63 CIDH. Informe sobre Seguridad Ciudadana y Derechos Humanos. Op, Cit. § 193. 64 Corte IDH. Caso Zambrano Velez Vs. Equador. Op. Cit. §83. 58 2544 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 forma legítima e a parcela que aproveita desta situação para perpetrar danos aos cidadãos e ao patrimônio público. Isto é, não se pode intervir, por exemplo, com o uso da força em uma manifestação, em virtude do teor das reivindicações dos manifestantes, e mesmo que haja circunstâncias ensejadoras da utilização da força estatal, a ausência de proporcionalidade é flagrante, em especial no que concerne aos destinatários das medidas estatais e à intensidade da resposta governamental. Ademais, outro argumento bastante empregado como justificativa da ação do Estado consiste na preservação da ordem pública (condições asseguradoras do funcionamento normal e harmônico das instituições sobre um sistema coerente de valores e princípios 65), principalmente quanto à ordenada circulação de tráfego e a consequente preservação dos direitos dos demais cidadãos. Não obstante esta argumentação seja legítima, algumas considerações devem ser feitas. Inicialmente, destaca-se que, ante a probabilidade de abusos cometidos pelo Estado, a Corte Interamericana já estabelece que a ordem pública pressupõe a máxima circulação de ideias e informações, e que a sua preservação não pode ser invocada como meio de desnaturalizar o exercício de direitos66. Deste modo, é requisitada a adoção de uma especial tolerância com os protestos pacíficos67, malgrado sejam obstrutivos, e a mobilização de todo o aparato governamental necessário, com vistas a garantir que o protesto cause os menores transtornos possíveis, conciliando-o com os direitos dos demais cidadãos. Além disto, para auferir a necessidade da medida, é mister a feitura de um juízo de ponderação entre as manifestações sociais e o direito a livre circulação de tráfego, observando-se que a liberdade de expressão não é apenas um direito, mas um dos precípuos e mais importantes fundamentos de toda a estrutura democrática68. Portanto, diante deste tipo de manifestação, as forças estatais devem, primeiramente, inteirar-se acerca da natureza do movimento e estabelecer o trajeto do protesto junto com os manifestantes. Caso isto não seja possível ou se alguma situação inesperada surgir, é devido implementar negociações com os partícipes, e, em hipótese de frustação deste meio, utilizar formas de dissuasão (a exemplo do posicionamento ostensivo dos policiais), e ainda, em ultima ratio, é permitido o uso dos meios não-letais, nos moldes já mencionados. 65 Corte IDH. La Colegiación Obligatoria de Periodistas (arts. 13 y 29 Convención Americana sobre Derechos Humanos. Op.Cit. § 64. 66 Ibidem, § 69. 67 Corte EDH. Case of Disk and KeskVs.Turkey.Application No. 38676/08.Julgamento 27 novembro de 2012.§29. 68 CIDH. Informe sobre Seguridad Ciudadana y Derechos Humanos. Op. Cit. § 198. 2545 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Mais uma vez é neste ponto que gravita o descumprimento das tratativas internacionais pelo Estado brasileiro, pois os agentes policiais empregam o uso da força de maneira desmedida, arremessando bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha, sprays de pimenta, entre outros, de maneira desmedida, o que, por muitas vezes, acaba desencadeando conflitos com os manifestantes, cuja consequência é o aumento das violações de Direitos Humanos. 2.7 VIOLAÇÃO À LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO É inegável a importância do direito de associação como instrumento consolidador de uma sociedade democrática, posto que permite a união de cidadãos para perseguirem fins comuns, sejam privados ou públicos, possibilitando que as pessoas expandam seus horizontes para a consecução de seus objetivos. Sem deixar de destacar que representa um meio pleno da liberdade de cada um, bem como é fundamental para suscitar o debate de ideias e a participação política, sendo, portanto, um elemento irrenunciável da democracia pluralista ou da “Constituição do pluralismo” 69. Seguindo este entendimento, a CADH consagra o direito à liberdade de associação em seu art. 16, garantindo a toda pessoa a possibilidade de associar-se livremente com outras a fim de buscar a realização de escopos lícitos e sem interferências ou pressões que possam alterar ou desvirtuar tal finalidade70. Ademais, salienta-se que o direito em comento possui duas dimensões, quais sejam: individual, voltada para a liberdade de cada um associar-se com os demais e de utilizar qualquer meio para exercê-la; e social, posto ser meio apto a permitir que os seus integrantes alcancem conjuntamente fins comuns71. Logo, para garantir o pleno respeito à liberdade de associação, o Estado deve abster-se de impedir ou de limitar a liberdade de se associar dos cidadãos, bem como não interferir de forma arbitrária em seu exercício 72. Outrossim, possui a obrigação positiva de prevenir os atentados contra a mesma, protegendo quem a exercer, e de investigar as violações cometidas73. 69 HÄBERLE, Peter apud SANCHÉZ, Miguel Carbonell. Democracia e derecho de asociación: apuntes sobre lajurisprudencia interamericana. Revista Pensamiento Constitucional. Perú, vol. 15, no. 15, 2011. Disponível em: http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/pensamientoconstitucional/article/view/3058. Acesso em: 06 abr. 2014. 70 Corte IDH. Caso Escher Vs. Brasil. Op. Cit. § 170. 71 Corte IDH. Caso Huilca Tecse Vs. Perú. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 03 de março de 2005.Serie C No. 121 §§70,71. 72 Corte IDH. Caso Cantoral Huamaní y García Santa Cruz Vs. Perú. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 10 de julho de 2007. Serie C. No. 167 §144. 73 Ibdem. § 141. 2546 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Apesar da intrínseca relação entre o direito à liberdade de associação e de reunião, é devido asseverar que o gozo daquela implica necessariamente a criação ou participação em entidade ou organização com personalidade jurídica distinta de seus membros, ao passo que este, como dito anteriormente, requer a simples união esporádica para a busca de fins comuns74. Desta maneira, nos protestos de junho, foi patente a participação direta de associações dos mais variados tipos, caracterizando um verdadeiro pluralismo de ideias e de posicionamentos. Ainda mais, observou-se que a maioria dos eventos foi organizada por diversas entidades, o que corrobora o exercício do direito à liberdade de associação. Todavia, a ação das forças do Estado representou clara violação ao seu gozo, pelos mesmos motivos ensejadores do desrespeito ao direito de reunião, pois as hipóteses de restrições que são aplicadas a este, também são cabíveis à liberdade de associação. Sendo assim, o Estado, ao interferir de forma arbitrária, desproporcional e desnecessária nas mobilizações sociais, descumpriu com suas obrigações positivas e negativas; impedindo que as associações e seus membros pudessem buscar suas pautas de forma livre, assim como foi omisso no sentido de investigar as referidas violações. Ademais, como dito, desde que persigam fins lícitos, o Estado deve propiciar as condições necessárias para que possam desempenhar suas atividades, o que não aconteceu em determinadas ocasiões, nas quais membros de determinadas associações de cunho político de esquerda não tiveram a ampla possibilidade de expressar suas demandas, ante a hostilização de parcela dos participantes contrária a este posicionamento. Diante disso, os agentes estatais deveriam ter adotado as medidas devidas para protegê-los e permitir que pudessem defender suas bandeiras de atuação. Além desta vertente mais coletiva, é cabível destacar que muitos dos manifestantes eram defensores de Direitos Humanos, os quais, no âmbito internacional, são caracterizados como todos aqueles que desenvolvem ações destinadas à proteção e realização dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais75. Nesta perspectiva, a sua atuação também é abarcada pelo art. 16 da CADH, o qual compreende o direito de toda pessoa a formar e participar livremente de organizações, associações ou grupos governamentais orientados à vigilância, denúncia e promoção dos Direitos Humanos76. Por conseguinte, é dever do Estado facilitar os meios necessários à realização de suas atividades, protegê-los quando são ameaçados, abster-se de impor obstáculos que 74 Corte IDH. Caso Escher e outros Vs. Brasil. Op. Cit. § 169. CIDH. Segundo Informe sobre la Situación de las Defensoras y los Defensores de Derechos Humanos en las Américas. OEA/Ser.L/V/II. Doc.66. 31 de dezembro de 2011. § 12. 76 Corte IDH. Caso Kawás Fernández Vs. Honduras. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 3 de abril de 2009.Serie C. No. 196. § 146. 75 2547 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 dificultem a realização de seus trabalhos e investigar, séria e eficazmente as violações sofridas77. Sublinhando que, dentre as maneiras de atuação, o Estado deve oferecer condições para promoverem e participarem de manifestações78. Mais uma vez, registra-se a atuação errônea por parte dos agentes do governo brasileiro, já que, assim como salientado anteriormente, sendo os protestos sociais meios de denunciar violações de direitos e peticionar às autoridades públicas, constituem formas inatas de atuação dos defensores de Direitos Humanos. Em consequência, a sua intervenção desmedida nas manifestações, além das detenções arbitrárias e das lesões ocasionadas a esse grupo de pessoas, representou flagrante violação à liberdade de associação, o que não deixou de produzir um efeito amedrontador sobre os outros indivíduos dedicados à defesa dos Direitos Humanos79. CONCLUSÃO Ao lume do exposto, percebe-se que, no contexto dos protestos populares, iniciados em junho de 2013, o Estado brasileiro não cumpriu, em diversas ocasiões, com os parâmetros internacionais de proteção dos Direitos Humanos, aos quais está vinculado através de tratados e de convenções. Notícias divulgadas pela mídia apontam para sérias violações ao direito à vida, ao direito à integridade pessoal, à liberdade de expressão, ao direito de reunião e à liberdade de associação. Resulta, assim, preocupante a conduta das autoridades públicas do país, responsáveis pela repressão aos manifestantes, especialmente de seus agentes de segurança, que frequentemente usaram a força de modo excessivo e desproporcional. Relevante é, pois, realizar, como procuramos fazer neste trabalho, uma revisão das principais normas que regem, atualmente, a matéria, buscando tornar mais claro quais os deveres do Estado diante de situações de demonstração pública de insatisfação por parte da população. Passado o momento de maior instabilidade política e social, espera-se, agora, uma atuação mais consciente e coordenada das autoridades governamentais, visando a investigar, a corrigir e a sancionar as ações ilegais perpetradas por seus agentes para reparar os erros cometidos, sempre que for possível, e adotar todas as medidas essenciais à prevenção de novas arbitrariedades. 77 Corte IDH. Caso Fleury y otros Vs. Haiti. Mérito e Reparações. Sentença de 23 de novembro de 2011. Serie C. No. 236. § 100. 78 ONU. Declaração das Nações Unidas sobre Defensores de Direitos Humanos. Resolução 53/144 da Assembleia Geral das Nações Unidas. Nova Iorque: 9 de Dezembro de 1998. 79 Corte IDH. Caso Kawás Fernandez Vs. Honduras. Op. Cit. § 153. 2548 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 REFERÊNCIAS BARENDT, Eric. Freedom of Speech. Clarendon Press Oxford: New York, 1985. BASCH, Fernando Felipe. The Doctrine of the Inter-American Court of Human Rights Regarding States' Duty to Punish Human Rights Violations and Its Dangers. American University International Law Review, v. 23, No.1, p. 195-229, 2013. GONZA, Alejandra; RAMIREZ, Sérgio García. La Libertad de expresión em la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Corte Interamericana de Derechos Humanos e Comissión de Derechos Humanos del Distrito Federal: Toluca, 2007. GUZMÁN, José Miguel. El derecho a la integridad personal. Centro de salud mental y derechos humanos. Santiago: Cintra, 2007. 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In: O Brasil e os Novos Desafios do Direito Internacional, Rio de Janeiro: Forense, 2004. 2549 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 “Desafios à Consolidação do Sistema Internacional de Proteção aos Refugiados” Helisane Mahlke1 Resumo O presente artigo analisa as possibilidades e desafios da construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados. Para tanto, analisa-se o papel dos regimes internacionais, formados por regras e princípios, instituições e pela atuação das Cortes Internacionais na composição desse Sistema. Palavras-chaves: Sistema; Direito Internacional dos Refugiados; regimes. Abstract This paper analyses the possibilities and challenges in constructing an international system for the protection of refugees. Therefore, is analyzed the role of the international regimes, composed by rules, principles, institutions and the International Courts as part of this System. Keywords: System; International Refugees Law; regimes. Introdução O Direito internacional dos Refugiados pode ser considerado um direito essencialmente humano e universal por princípio. Por ser compelido à migração forçada em razão de fundado temor de perseguição ou grave violação de direitos humanos, o refugiado encontra-se desprovido da proteção de seu Estado de origem e busca por abrigo em outro Estado2. Tal situação relega o solicitante de refúgio a um 1 Doutoranda em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2550 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 “limbo” jurídico e político até que lhe seja reconhecido o direito à proteção. Diante desse quadro, existem três elementos fundamentais para que o Direito Internacional dos Refugiados possa alcançar sua efetividade: a consolidação de um arcabouço normativo com interpretação uniforme para lhe dar coesão; a cooperação internacional mediante regimes que garantam uma ampla proteção; e o comprometimento (compliance) dos Estados a esses regimes. Porém, a construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados encontra resistências. Tradicionalmente, a concessão de refúgio é tida como parte da agenda de política externa dos Estados e, portanto, está atrelada aos seus interesses definidos em termos de poder. Essa apropriação indevida do refúgio, como competência estatal discricionária, desnatura a essência de um direito que deve ser apenas “declarado” pelo Estado e não “constituído” por ele. Assim, parte-se da premissa na qual um sistema de proteção amplo e efetivo somente poderá ser alcançado, se houver um tecido normativo e institucional capaz de cooptar os Estados a comprometerem-se com ele. Para analisar a possibilidade de consolidação desse sistema, é fundamental investigar a influência dos regimes internacionais na política externa dos Estados, apontando as causas que os levam a aderirem a eles. Para tanto, primeiro será feita uma avaliação da proteção internacional dos refugiados, apontando os principais problemas relativos à sua implementação. Posteriormente, será discutida a questão da ordem e da justiça nas relações internacionais e a importância dos regimes para a sua consolidação. E assim, após essas considerações, serão observados os desafios à construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados. Vide definição do art. 1º da Convenção Internacional para Refugiados, de 1951: “um refugiado ou uma refugiada é toda pessoa que por causa de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao mesmo.” A definição amplificada, em âmbito regional, é conferida pela Declaração de Cartagena de 1984, adotada pela maioria dos Estados latino-americanos, inclusive o Brasil. Tal Declaração considera como refugiado também aquele indivíduo vítima de “graves violações de Direitos Humanos”. 2 2551 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 1. Críticas ao sistema internacional de proteção ao refugiado Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que, apesar do uso corrente do termo “sistema” de proteção aos refugiados por aqueles que se dedicam ao tema, entendese que tal nomenclatura não reflete a realidade. A razão para essa afirmação é a constatação de que, apesar da existência de normas internacionais sobre refúgio, quando se observa sua implementação, constata-se que o que existe é um arranjo fragmentado de iniciativas nacionais. Os reflexos dessa fragmentação é o que se pretende discutir de maneira crítica. Mas antes, cabe estabelecer breves considerações sobre os antecedentes do Direito Internacional dos Refugiados. Pode-se tomar como ponto de partida a criação do Escritório Internacional Nansen para Refugiados (em 1931)3, fruto da preocupação com os refugiados advindos da Revolução Comunista na Rússia e do esfacelamento do Império Otomano. Posteriormente, o advento das duas Guerras Mundiais exacerbou o número de refugiados e deslocados internos, impondo a necessidade de uma resposta legal e institucional ao problema. Na esteira da reconstrução pós-conflito, foi criada em 1946 a Organização Internacional para Refugiados (OIR)4, uma agência especializada das Nações Unidas destinada a auxiliar os milhares de refugiados europeus vítimas da guerra. Contudo, a agência é sucedida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) criado em 19505, prenunciando a adoção do principal marco normativo do Direito Internacional dos Refugiados: a Convenção de 1951 e do seu Protocolo Adicional de 1966. Contudo, a estrutura criada no pós-Guerra possuía limitações geográficas e temporais6, ou seja, era destinada apenas aos refugiados europeus provenientes do conflito. Essa estrutura criada em caráter provisório, é a mesma que Nansen era delegado da Noruega na Liga das Nações e criou o ‘Passaporte Nansen’ para refugiados. Tal iniciativa, bem como seu trabalho diante do Alto Comissariado, fez com que o diplomata fosse agraciado com Prêmio Nobel da Paz em 1922. 4 A OIR entrou em pleno funcionamento em 1948, sendo composta por 26 Estados, dentre eles o Brasil. 5 Desde sua criação, o ACNUR já ajudou mais de 50 milhões de pessoas e ganhou por duas vezes o Prêmio Nobel da Paz (1954 e 1981). Segundo estatísticas do próprio órgão, até o final de 2010, somam-se quase 34 milhões de pessoas ao redor do mundo, incluídos refugiados, solicitantes de refúgio, apátridas e deslocados internos. Especificamente: Refugiados, 10.549.686; deslocados internos, 14.697.804; apátridas, 3.463.070. 6 Refere-se à chamada ‘cláusula temporal’ (ela era aplicável aos fluxos de refugiados anteriores à sua entrada em vigor) e o ‘limite geográfico’ (aplicava-se apenas a refugiados europeus). As limitações 3 2552 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 hoje tem de atender a uma realidade bem diferente. Na atualidade, a problemática dos refugiados cresceu em número e complexidade, desafiando os instrumentos legais e institucionais vigentes a corresponder adequadamente à necessidade de proteção desses indivíduos. O crescimento exponencial do número de solicitantes de refúgio contrasta com a falta de articulação política e institucional para administrar fluxos cada vez maiores. Esses números são provenientes da proliferação de conflitos (tanto internacionais, quanto guerras civis internas) que agravam a situação em Estados já fragilizados pelo subdesenvolvimento, pela exploração e pela disputa de poder. Nesses fragile states, as estruturas institucionais corruptas, opressoras ou mesmo inexistentes, são incapazes de garantir a segurança e proteção de sua população, expondo um grande grupo de indivíduos a situações de extrema vulnerabilidade.7 Além disso, a complexidade da mobilidade humana na atualidade produz os chamados fluxos mistos8, ou seja, categorias de migrantes que podem ser atribuídos a múltiplas classificações. Diante dessa realidade contemporânea, especialistas e ativistas advogam pela revisão do quadro normativo existente, especialmente da Convenção de 1951. Entende-se, todavia, que tal iniciativa pode resultar em um recrudecimento da legislação, bem como das políticas para refugiados. A atual conjuntura mundial não favorece um “ambiente” propício à construção de uma convenção contendo definições legais mais amplas. Além disso, considera-se que a revisão da Convenção não seria necessária, pois entende-se que, uma vez que o Direito Internacional dos Refugiados é parte integrante do conjunto normativo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, foram, posteriormente, suprimidas pelo Protocolo Adicional à Convenção sobre Refugiados (de 1967), qual retirou o limite temporal; e pela a Declaração de Cartagena (de 1984) que considera, também, como refugiado aquele que tenha sido vítima de ‘violação maciça de direitos humanos’, permitindo, assim, a ampliação da possibilidade de proteção. 7 Segundo os dados do ACNUR, a maioria dos refugiados não consegue migrar até os países industrializados e localizam-se nas fronteiras dos conflitos em campos com condições precárias. Além disso, deve-se considerar o caso dos deslocados internos, que não chegam a cruzar as fronteiras dos Estados, tornando-se, frequentemente, vítimas vulneráveis dos conflitos. Para acesso às estatísticas, consultar o Mid-year Trend/2013 do ACNUR, disponível em: http://www.unhcr.org/52af08d26.html. 8 Essas categorias de migrantes podem ser: migrantes econômicos, refugiados, apátridas, deslocados internos e deslocados ambientais. Quanto a essa última categoria, os deslocados ambientais, existe grande controvérsia acadêmica e doutrinária: alguns especialistas consideram como “refugiados ambientais” aqueles indivíduos que se veem forçados a abandonar sua terra natal devido a catástrofes ambientais ou climáticas. Contudo, parte da comunidade epistêmica considera que se tratam de uma categoria à parte, pois não há, neste caso, “fundado temor de perseguição”, que é uma das características do refúgio. 2553 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 bastaria recorrer à proteção complementar9 para suprir a falta de previsões legais que garantam direitos a esses indivíduos.(MAcADAM, 2007). Sem dúvida, mais efetivo do que criar novos instrumentos legais, seria fortalecer os mecanismos de compliance ou enforcement já existentes, capazes de conferir efetividade ao Direito Internacional dos Refugiados. Esse contraste entre a crescente necessidade por uma atuação cooperativa da comunidade internacional e a vontade política dos Estados, esbarra em uma estrutura convenientemente fragmentada, que permite maior grau de discricionariedade destes. Mesmo diante da necessidade de fortalecimento dos regimes internacionais, persistem as fragilidades de uma estrutura criada para ser provisória. Ironicamente o ACNUR, diferentemente da OIR, não possui sequer o status de agência especializada, o que limita sua autonomia e capacidade de atuação10. Essas circunstâncias fazem com que a organização tenha que necessariamente estabelecer “parcerias” com entidades estatais e organizações da sociedade civil, a fim de concretizar a proteção aos refugiados. Na maioria dos Estados, especialmente no Brasil11, o sistema de proteção é formado por uma estrutura tripartite composta pelas entidades do governo; da sociedade civil e representação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados atuando em conjunto, mas com funções diferentes. Contudo, essa estrutura deixa o poder de decisão sobre a concessão do refúgio sob o domínio do Estado e dos ditames das diretrizes da 9 Por “proteção complementar” entende-se o arcabouço legal que compõe o Direito Internacional dos Direitos Humanos, do qual o Direito Internacional dos Refugiados é parte integrante. Assim, na ausência de previsão específica em relação a casos que não estão previstos nas cláusulas de inclusão da Convenção de 1951. Ver mais em: MAcADAM, Jane. Complementary Protection in International Refugee Law, Oxford University Press, 2007. 10 O orçamento do ACNUR provém principalmente de doações de países, diferentemente de outras agências da ONU. Seu orçamento atual é de 3 bilhões de dólares. Suas necessidades orçamentárias que, segundo dados da própria instituição, foram estimadas em 3,59 bilhões de dólares e 3.42 bilhões de dólares, em 2012 e 2013 respectivamente. 11 No Brasil, procedimento de determinação do status de refugiado é da alçada do CONARE (Comitê Nacional para Refugiados), órgão de deliberação coletiva, ligado ao Ministério da Justiça, responsável pelo procedimento de análise da solicitação de refúgio. Além disso, o órgão possui a função de coordenar e orientar as ações necessárias para tornar efetiva a proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados e, juntamente com outras duas instâncias (o ACNUR e a Sociedade Civil) compõe a estrutura tripartite responsável por efetivar a política nacional para refugiados. O órgão foi criado pela Lei 9674, de 1997 (“Estatuto do Refugiado”), que incorpora em seu texto normativo as normas internacionais às quais o Brasil adere. 2554 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 sua política externa. Em razão disso, frequentemente, a atuação dos países quanto ao refúgio é, por assim dizer, “seletivamente humanitária”. Assim, cada Estado constrói sua política nacional para refugiados, geralmente estabelecida por uma legislação nacional sobre o tema. Essa “nacionalização” da proteção aos refugiados é evidenciada inclusive em Estados que ratificaram as Convenções Internacionais. O resultado disso é um contrassenso, na medida em que, mesmo tendo se comprometido com as normas internacionais, o Estado ainda detém o monopólio sobre sua interpretação e aplicação. Como superar esse quadro, pretende-se discutir na terceira parte desse artigo. Mas antes, faz-se necessária uma breve discussão sobre a ordem e a justiça nas relações internacionais. 2. Ordem e Justiça no Sistema Internacional Dando prosseguimento à reflexão proposta, cabe analisar o que levaria os Estados a comprometerem-se com normas internacionais? Responder a essa questão é fundamental para compreender se é possível estabelecer um sistema internacional de proteção aos refugiados. Conforme a descrição anteriormente feita sobre os antecedentes do Direito Internacional dos Refugiados, a situação de milhares de indivíduos no pós-guerra impôs à comunidade internacional a necessidade de criar regimes12 capazes de oferecer-lhes proteção. Esses regimes são compostos por organismos e convenções destinados à governança do tema, porém, para que estes se estabeleçam, o primeiro passo é a adesão voluntária dos Estados às normas internacionais. Mas, o que se pode considerar como um fator de compliance dos Estados aos regimes internacionais, ou seja, o que faz com que os Estados venham a aderir às normas e a cooperar com as instituições? Andrew Hurrel aponta três perspectivas de análise para essa questão: a ética de responsabilidade do Estado; o fato de o Estado ter um papel fundamental na proteção das diferentes identidades; e o fato de que, 12 Segundo a definição dada por John Gerard Ruggie na década de 70, regimes internacionais são “conjuntos de expectativas mútuas, regras e regulações, planos, energias organizacionais e comprometimentos financeiros que são aceitos por um grupo de Estados” (Ruggie, 1975: 570-571). Mas, o conceito preferido para esse estudo é o que foi cunhado por Stephen Krasner na década de 80 que define regimes internacionais como conjuntos de princípios implícitos ou explícitos, normas, regras e procedimentos em torno dos quais as expectativas dos atores convergem em uma dada área das relações internacionais” (Krasner, 1982). 2555 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 mesmos frágeis, as instituições da sociedade internacional conseguem estabelecer meios moralmente significativos para limitar o conflito em uma realidade onde o consenso é difícil (HURREL, 2003). A contínua tensão entre ordem e justiça deriva da instabilidade de uma autoridade legítima no cenário internacional, na medida em que mesmo instituições complexas são baseadas na distribuição de poder, mais do que na hierarquia e no equilíbrio, e os Estados se utilizam da sua própria visão de conflito e insegurança para justificar sua visão própria de ordem e justiça. Essa perspectiva implica na clássica contraposição entre os interesses dos Estados e as necessidades dos indivíduos. Para superar essa aparente dicotomia é necessária a construção de uma comunidade moral global, na qual exista um processo justo, que não seja refém dos interesses unilaterais. Essa visão de justiça global não encontra seu fundamento em uma razão universalmente abstrata, mas em um universalismo concreto, decorrência natural das necessidades de uma sociedade e dos conflitos que são parte da própria dinâmica social. É nesse cenário que cresce a importância das instituições internacionais como peças fundamentais da governança da problemática do refúgio. Contudo, não se ignora os desafios que essas instituições enfrentam, sobretudo quanto à sua efetividade e legitimidade. Esses dois elementos podem ser assim postos: a efetividade refere-se à aplicação do Direito Internacional e a legitimidade é auferida somente na construção de uma comunidade internacional que partilha valores comuns. (GIBNEY, 2001). Diante dessa realidade é fundamental observar criticamente o sistema internacional que temos hoje: Em primeiro lugar, a concepção minimalista (tradicional) de ordem mostrou-se inadequada para abarcar toda uma série de desafios que se apresentam em uma realidade global heterogênea (emergência de outros atores que, por vezes, rivalizam com os Estados) e cuja principal característica é a transnacionalidade (mobilidade humana, de bens, valores e informação). Além disso, evidencia-se uma grande interdependência entre as nações, em vários níveis, o que torna a cooperação indispensável. 2556 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 A necessidade de gerir questões universais (que transcendem as fronteiras dos Estados) pressupõe a necessidade de criação de regras que deveriam intervir na forma como as sociedades se organizam internamente, ou seja, um fortalecimento coercitivo das normas internacionais capazes de intervir em questões internas de repercussão global. Nesse contexto: como o Estado recepciona as normas e decisões internacionais. Além disso, essas mudanças também repercutiriam na organização interna das sociedades, produzindo revoluções em suas estruturas de modo a atender à crescente demanda por satisfação das necessidades do indivíduo, levando as nações a adaptarem-se a elas. E, por fim, observa-se o surgimento, mesmo que embrionário, de uma consciência cosmopolita e da percepção de que a justiça deve pautar a política internacional. O sistema internacional é caracterizado pela expansão e densidade dos aspectos normativos (proliferação de instituições e regimes), por sua complexidade (intrincada arquitetura construída a partir da interdependência dos variados atores) e as deformidades que resultam das desigualdades que ainda minam qualquer tentativa de estabelecimento de um conjunto de valores compartilhados, que são elementos essenciais para a consolidação de uma comunidade internacional. (HURREL, 2003). Mas, a grande questão que permanece diante dessas observações é se essas “deformidades” podem ser corrigidas pelo próprio sistema normativo, ou se é ele próprio a razão da perpetuação destas. É nesse espectro que deve ser empreendida a análise do papel das instituições destinadas ao estabelecimento da ordem e da justiça nas relações internacionais (especialmente as Cortes Internacionais). Passemos, então, a avaliar o papel dessas na consolidação de um sistema internacional de proteção aos refugiados. 3. Construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados Conforme as considerações feitas, podemos observar que o refúgio ocupa um lugar especial no Direito Internacional, delineado pelo conflito entre a soberania estatal (caracterizada pela territorialidade e autopreservação) e os princípios humanitários (expressos no do Direito Internacional dos Direitos Humanos). Contudo, o Direito Internacional dos Refugiados continua sendo um regime de proteção incompleto, 2557 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 encobrindo imperfeitamente o que deveria ser uma situação de exceção. (GOODWIN-GILL & MAcADAM, 2007). Como é sabido, os instrumentos de proteção dos refugiados foram criados para aqueles indivíduos vitimados por graves violações de Direitos Humanos, pelo colapso da ordem social ocasionado por conflitos, guerra civil ou agressão. Todavia, trata-se de instrumentos imperfeitos, enquanto forem negados aos solicitantes de refúgio os direitos mais básicos contidos na Convenção e seu Protocolo, como a permanência temporária ou o retorno seguro aos seus países de origem. O status jurídico internacional de refugiado implica, necessariamente, consequências legais para os Estados (notadamente o respeito ao princípio do non-refoulement13). E, portanto, a despeito dos interesses políticos existentes, o reconhecimento do status de refugiado gera responsabilidades para o Estado em relação à proteção que deve ser dispensada ao indivíduo. (GOODWIN-GILL & MAcADAM, 2007). Segundo HATHAWAY (2005, p. 6), em princípio, os Estados comprometem-se a não usar a “desculpa” da autoridade política soberana ou da diversidade cultural para “rationalize failure to ensure the basic rights of persons subject to their jurisdiction – including refugees.” Contudo, a realidade demonstra que existe um paradoxo entre o reconhecimento internacional desses direitos e a dificuldade de torna-los efetivos em território nacional. Porém, também se observa que a política para refugiados sempre esteve atrelada, em quaisquer países, aos imperativos da raison d’État, sejam as oscilações econômicas e crises sócio-identitárias, aos interesses das elites e aos conflitos geopolíticos. Diante dessa realidade, não é difícil deduzir porque a Convenção sobre Refugiados (1951), dentre tantos outros Tratados de Direitos Humanos, ainda não possui um mecanismo próprio para promover a responsabilidade dos Estados, sob os auspícios de um órgão supervisor independente. Mesmo que muitos países tenham se comprometido com a Convenção e seu Protocolo, o que se observa é que há uma tendência a burlar o dever legal de oferecer ao refugiado a proteção de que ele precisa. Enquanto os Estados continuam proclamando sua disposição em oferecer proteção aos refugiados, como parte de sua discricionariedade política ou de seus interesses cobertos pelo verniz 13 Vide art. 33 da Convenção Internacional sobre o Direito dos Refugiados , de 1933. 2558 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 humanitário, na verdade formulam defesas estratégicas com o objetivo de evitar imigrantes forçados. Todavia, isso não sugere que deva haver uma “reforma” da Convenção, mas sim, que os mecanismos de implementação do Direito dos Refugiados sejam aperfeiçoados. (HATHAWAY, 2005). A questão é avaliar de que maneira pode-se aprimorar o sistema de proteção para que ele fique mais efetivo. A crescente judicialização14 da proteção aos refugiados é uma consequência natural, considerando o conjunto de normas que compõe essa vertente do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Contudo, traduzir essas normas internacionais para a realidade doméstica ainda é problemático. Violações são cometidas ao direito subjetivo ao refúgio, não apenas quanto aos vícios no processo de reconhecimento do status de refugiado, como na violação do princípio do non-refoulement. O crescente papel das Cortes é fomentado, em grande parte, pelas organizações de assistência aos refugiados que servem como intermediárias no processo de judicialização. As Organizações não-governamentais15 têm atuado de forma decisiva na questão do refúgio, não apenas auxiliando no trabalho de assistência, mas denunciando as violações de direitos às Cortes Internacionais. Contudo uma tendência controversa se apresenta: por um lado a questão da mobilidade humana, de forma geral, tem sido cada vez mais “judicialializada” nos países ocidentais, acarretando uma mudança significativa na forma como os países democráticos concebem suas obrigações em relação aos estrangeiros presentes em seus territórios. Por outro lado, observa-se que, ao mesmo tempo em que os países assinam convenções que fornecem instrumentos que aumentam o poder das cortes no reconhecimento dos direitos dos refugiados, há um crescimento das medidas restritivas à entrada de imigrantes. (GIBNEY, 2001). 14 Por judicialização da política para refugiados entende-se o recurso ao poder judiciário na busca de efetivar direitos, seja pelo recurso aos Tribunais Superiores, seja aos Tribunais Internacionais. Entende-se que, suas decisões não apenas podem servir para concretizar a implementação das prerrogativas previstas nas Convenções Internacionais e na Lei interna, como estabelecer um paradigma que propicia uma reforma na sociedade e no tratamento dispensado aos refugiados. 15 No Brasil, podemos citar a atuação da As entidades que se dedicam a tais tarefas são: Associação Antônio Vieira (ASAV), a Cáritas Brasileira, a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP) e o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH). 2559 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Essas medidas restritivas visam, essencialmente, prevenir a entrada desses indivíduos, impedindo que estes cheguem a solicitar refúgio16. Paradoxalmente, o desenvolvimento dos mecanismos jurídicos de proteção aos direitos humanos dos imigrantes vem alimentando ações que impedem a possibilidade de exercê-los. Assim, aparentemente, o custo do crescimento de medidas legais inclusivas “dentro” do território do Estado é o rápido desenvolvimento de medidas de exclusão “fora” dele. Portanto, percebe-se que a expansão da judicialização é apenas parte da necessidade para uma ampla proteção. Há necessidade de promover políticas mais inclusivas para os refugiados e fortalecer os organismos internacionais para que estes possam exercer seu papel na proteção de identidades que transcendem a fronteira da cidadania estatal. (GIBNEY, 2001). A possibilidade da construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados necessariamente passa pela consolidação dos regimes existentes. Em primeiro lugar, isso significa fortalecer a atuação das agências e organizações internacionais que se dedicam à causa. Nesse escopo, cabe refletir sobre a possibilidade de fortalecer a posição do ACNUR e lhe conferir maior autonomia e capacidade de ação. Assim, o Alto Comissariado poderia aprimorar seu trabalho em uma realidade de demanda crescente e atuar de maneira mais decisiva na cooperação com os Estados e outras Organizações.17 Para evitar que o solicitante de refúgio se veja refém dos interesses políticos, é fundamental que haja uma internacionalização dos sistemas de proteção. Essa internacionalização deve se dar por meio da harmonização das legislações e procedimentos de determinação do status de refugiado em diversos países, por meio do estabelecimento um standard de interpretação que uniformize a aplicação das Convenções Internacionais. Como exemplo o caso dos “boat people”, migrantes que tentam alcançar o território europeu ou australiano pelo mar e acabam sendo interceptados pela guarda desses países ainda no mar. Os que não morrem em decorrência da travessia, muitas vezes são levados a verdadeiros depósitos humanos como o caso da Ilha de Lampeduza. 17 Destaca-se o papel de outras instituições como a UNRWA (United Nations Relief and Works Agency) criada em 1949 com mandato de assistência aos refugiados Palestinos provenientes do conflito de 1948. Além da OCHA (Office for the Coordination of Humanitarian Affairs) ligada ao Secretariado das Nações Unidas e que também tem uma participação importante na assistência aos refugiados. 16 2560 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Na tentativa de buscar harmonizar as políticas de proteção aos refugiados com as normas internacionais, as Cortes Internacionais (Corte Interamericana e Corte Europeia de Direitos Humanos e Corte Europeia de Justiça e, de maneira indireta a Corte Internacional de Justiça)18 têm se manifestado sobre a responsabilidade dos Estados em reconhecer o “direito” ao acolhimento daqueles que solicitam o refúgio e em relação à necessidade de aprimorar o sistema de acolhimento. O papel das Cortes Internacionais é decisivo não apenas na efetividade do Direito Internacional dos Refugiados, mas também na uniformização das normas internacionais, ao fornecer não apenas a possibilidade de responsabilização do Estado que não reconhece o direito devido. Além disso, a produção de jurisprudência capaz de uniformizar a interpretação das normas internacionais sobre refúgio, que devem ser aplicadas pelos Estados, forneceria a coesão e harmonia necessárias para consolidar um verdadeiro sistema internacional de proteção aos refugiados. Conclusão A título de conclusão dessa breve reflexão sobre o sistema de proteção internacional dos refugiados, cabe voltar os olhos para a lição de Giorgio Agambem19: “O refugiado deve ser considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um conceito limite que põe em crise radical as categorias fundamentais do Estado-nação, do nexo nascimento-nação àquele homem-cidadão, e permite assim, desobstruir o campo para uma renovação categorial atualmente inadiável, em vista de uma politica em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal, nem mesmo através da figura dos direitos humanos.” 18 A Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte Europeia de Justiça possuem extensa jurisprudência no que concerne aos direitos dos refugiados e à responsabilidade dos Estados em reconhecê-los. Interessantemente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos não possui um número tão significativo de casos julgados sobre refúgio, mas poderá produzir uma jurisprudência simbolicamente importante. O caso Pacheco Tineo vs. Bolívia, levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, admitido por ela, e encaminhado à Corte Interamericana para julgamento, será o primeiro caso em que uma Corte Internacional irá pronunciar-se sobre o reconhecimento do status de refugiado. Algo que interfere diretamente na política discricionária dos Estados. A comunidade epistêmica aguarda com expectativa o pronunciamento da Corte. Já que, quando proferida, a decisão da Corte irá fixar importante jurisprudência sobre a aplicação e interpretação das normas sobre refúgio que terão o poder de vincular os Estados partes da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (vide art. 22, §7º, sobre direito de asilo). 19 AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: o poder e a vida nua, p.141. 2561 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 O refugiado desafia a noção tradicional dos Direitos Humanos, por denunciar a “nudez abstrata” do indivíduo. Se a cidadania é expressa como o “direito a ter direitos”, como reconhecê-los sem a pertença a uma comunidade política? O Direito dos Refugiados, que transcende os direitos do cidadão, somente poderia ser garantido a partir de uma tutela internacional. A suposta “natureza humana” não nos garante a igualdade de direitos, pois esta não nos é dada, mas resulta da organização humana orientada pelo princípio da justiça, ou seja, não nascemos iguais, mas tornamo-nos iguais por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais. (ARENDT, 1989). O pilar do Direito dos Refugiados é o reconhecimento. A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 confere àquele por ela protegido um direito subjetivo ao acolhimento. Contudo, a figura do refúgio representa o limiar da proteção internacional dos Direitos Humanos. Como garantir direitos a um indivíduo considerado à margem da sociedade, relegado a um limbo político, causado pela exclusão originária e pela possibilidade de ulterior rechaço? Na constelação de Estados os direitos humanos inalienáveis são mera abstração sem um Estado para dar-lhes concretude, ou seja, um indivíduo carece de cidadania para ter seus direitos reconhecidos (AGAMBEN, 2010). O refugiado, excluído da comunidade política, encontra-se em situação de vulnerabilidade absoluta. A contrario sensu, é justamente a abstração desses direitos universais que acaba por condenar o indivíduo a uma posição original (a “vida nua”) da qual ninguém reivindica tutela. Em um sistema de Estados a garantia de direitos depende menos da sua sacralidade e mais de sua inserção em um ambiente político que lhe forneça reconhecimento (AGAMBEN, 2010). Por isso, a necessidade de transcender a perspectiva estatocêntrica para uma internacionalista, capaz de substituir o interesse do Estado pela necessidade dos povos. Assim, cabe perguntar: por que é importante que exista um sistema internacional de proteção aos refugiados? A resposta sobre o porquê da criação de um sistema internacional se expressa na necessidade de uma harmonização e coerência na aplicação das normas internacionais sobre refúgio, para que a proteção seja efetiva. E se questionar para que serve um sistema internacional de proteção aos refugiados, a 2562 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 resposta manifesta-se na necessidade de atender a expectativas de direito que transcendem as fronteiras dos Estados. Compondo as reflexões feitas acima, conclui-se que a construção de um sistema internacional de proteção aos refugiados deve contar com a ação integrada das Organizações Internacionais, da Sociedade Civil internacional e da cooperação entre os Estados. A atuação de todos esses atores deve ser coordenada pelas normas internacionais que compõe o arcabouço legal do Direito Internacional dos Refugiados. E, por fim, as Cortes Internacionais serão as responsáveis por manter a coerência na interpretação e aplicação dessas normas, impedindo que o sistema se fragmente em interpretações nacionais e atitudes discricionárias dos Estados, que são guiados por seus interesses. Somente com a consolidação desses regimes é que é possível assegurar uma ampla proteção ao refugiado: o destino desses indivíduos é responsabilidade da comunidade internacional, como também a afirmação desta com base nos parâmetros morais da humanidade. Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I”. 2ª ed. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2010. ANDRADE, José H. Fischel de. O Brasil e a Organização Internacional para Refugiados. In Revista Brasileira de Política Internacional. Nº 48, 2005. (p.60-96). _______________. 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Os movimentos de refugiados e suas repercussões revelam como crises humanitárias demandam ações políticas no âmbito internacional. As organizações internacionais e não governamentais buscam a cooperação estatal, mas, para obterem êxito, precisam negociar com as autoridades governamentais a partir de condições colocadas por elas. Nesse ponto, destaca-se a atuação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), uma agência especializada da ONU. A agência internacional se vale de parcerias com ONGs, entre outras instituições representantes da sociedade civil, para viabilizar operações e programas de assistência a refugiados. E busca ainda o compromisso dos Estados envolvidos nos fluxos para implementar soluções em prol do grupo. É interessante notar a forma como determinadas agências humanitárias compreendem os refugiados. A imagem deles como pessoas sem ajuda, que precisam de ajuda, reforça a necessidade dos outros em assisti-los, assim como a ideia de incapacidade. São percebidos numa condição que requer ação e intervenção direta e imediata, independentemente de sua participação ou consulta. São tratados de forma passiva, como dados estatísticos ou números, e de forma homogênea, como recipientes de objetos ou itens de assistência humanitária. A estigmatização em torno dos refugiados é utilizada pelos atores que lidam com eles, já que, de modo geral, parece não pretenderem que os refugiados interfiram de forma assertiva na prestação da ajuda humanitária. É apenas esperado que os refugiados apreciem, portanto, o que lhes é oferecido pelos que fornecem a assistência (NEEDHAM, 1994; HARRELL-BOND, 1999). Muitas organizações humanitárias, historicamente, não estão acostumadas a adotar uma abordagem participativa que possa ser programada e planejada. Assim, apresentam dificuldade em partilhar o poder e a participação com outras pessoas fora da agência, como os beneficiários. Os empecilhos à participação dos refugiados fizeram com que programas de assistência a refugiados fossem vistos como ultrapaternalistas (BARNETT, 2010). Nesse sentido, é importante desenvolver 2566 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 mecanismos para que os refugiados sejam inseridos como o quarto ator, em plena parceria com os demais (país de refúgio, ACNUR e ONGs), o que implicaria, em alguma medida, compartilhamento do poder que os outros três já possuem. É necessário incluir os refugiados no desenho dos projetos de assistência, a partir da avaliação das necessidades, identificação de problemas, assim como no processo de implementação, monitoramento e avaliação dos programas (GREENHAM, MORAN, 2006; CLARK, 1987). O ACNUR vem reconhecendo, ao menos discursivamente, a importância da participação dos refugiados no desenvolvimento, implementação e avaliação dos programas de integração local e reassentamento para que tenham êxito. O envolvimento das lideranças e comunidades refugiadas nesse processo e nas decisões tem sido apontado como essencial para colocar as necessidades materiais imediatas e responder a essas demandas (ACNUR, 2004). Refugiados e política pública no Brasil No Brasil, a parceria entre o ACNUR e as instituições religiosas (sobretudo, as Cáritas, organismos da Igreja Católica) com o intuito de prover assistência a refugiados remota à época da ditadura militar, no final dos anos 1970. Com o processo de redemocratização em meados dos anos 1980, abriram-se novas possibilidades rumo a um compromisso internacional e doméstico em relação às temáticas dos direitos humanos e dos refugiados (MOREIRA, 2012). O tema dos refugiados foi inserido na pauta do tema mais amplo dos direitos humanos na segunda metade dos anos 1990, a partir de articulações de atores não estatais de atuação doméstica e internacional, as quais foram bem sucedidas por se conjugarem a interesses governamentais ligados à politica externa e interna (Idem). Assim, o primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996 previa a elaboração de projeto de lei para regulamentar o estatuto dos refugiados como proposta de ação de curto prazo, dentro das metas do plano (BRASIL, 1996). O processo de institucionalização do tema dos refugiados no Brasil se configurou com base na aprovação da legislação nacional específica sobre refugiados (Lei n. 9.474/97), a qual trouxe uma série de provisões, dentre elas a definição do termo “refugiado”. De acordo com o texto legal: Será reconhecido como refugiado todo individuo que: I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontrese fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; (...) 2567 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 III – devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refugio em outro país (BRASIL, 1997). A lei brasileira também criou o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), composto por representantes dos Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores, do Trabalho, da Saúde, da Educação e do Desporto, do Departamento da Polícia Federal (DPF) e da sociedade civil, todos com direito a voto. O representante do ACNUR também se faz presente, com direito a voz. O arranjo institucional do CONARE consolidou a estrutura (chamada de tripartite) no Brasil, reunindo os principais atores envolvidos com os refugiados: instituições religiosas (Cáritas), organização internacional (ACNUR) e governo brasileiro (representado por seus órgãos e presidindo o CONARE). Suas atribuições contemplam: julgar em primeira instância os pedidos de refúgio, ou seja, realizar o processo de elegibilidade pelo qual se reconhece o estatuto de refugiado, determinar a perda e cessação da condição de refugiado; além de “‘orientar e coordenar ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados” (BRASIL, 1997). O marco jurídico brasileiro relativo aos refugiados foi visto como inovador, de vanguarda, avançando sobretudo ao incluir a definição ampliada dada pela Declaração de Cartagena de 1984 (instrumento regional aplicado na América Latina), reconhecendo como refugiados pessoas que fugiram de seus países em decorrência de graves violações de direitos humanos. Outro ponto de contribuição se referia à composição do CONARE, que abarcava a participação de atores da sociedade civil com direito a voto (MOREIRA, 2012). A partir desse aporte jurídico, politico e institucional, vale refletir sobre a constituição de uma política pública para essa população estrangeira no país. Frey (2000) define que política pública (public policy) assume conteúdos concretos, que consistem em configurações materiais das decisões políticas (policy), a partir do processo político (politics), que se desenrola na estrutura institucional do sistema político (polity). Três dimensões perpassam, assim, a esfera da política pública: a primeira é a material, referente ao conteúdo concreto da política, a segunda, processual, relativa ao processo pelo qual se desenvolve a política e a terceira, institucional, relacionada ao sistema político e ao arcabouço normativo no qual se insere a política. Concebemos o nascimento de uma política pública em relação aos refugiados a partir da inter-relação entre essas três dimensões, situada no tempo e no espaço. 2568 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 A legislação nacional pode ser vista, seguindo os termos colocados por Frey, como arcabouço de uma política pública em relação aos refugiados elaborada pelo governo, com participação também dos atores não estatais, instituições da sociedade civil e organização internacional. Para além da aprovação desse marco jurídico-político institucional, importa analisar os encaminhamentos para efetivação de tal política. Nesse sentido, revela-se fundamental compreender como os refugiados (destinatários da mesma e tratados aqui como sujeitos) percebem o apoio prestado pelos atores envolvidos ao longo desse processo e sua situação no país. Condições de Vida da População Refugiada no Brasil: A pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil foi realizada em 2007, coordenada pela Profa. Dra. Rosana Baeninger, do Núcleo de Estudos de População (NEPO) da UNICAMP, em parceria com as Cáritas Arquidiocesanas de São Paulo e Rio de Janeiro, ACNUR e com recursos financeiros da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. A pesquisa inédita se baseou em survey e teve como objetivo principal conhecer as condições de vida desse contingente populacional, a partir de suas características socioeconômicas e demográficas, bem como o acesso às políticas sociais no país. Adotou a família como categoria de análise, considerando membros refugiados e não refugiados, residentes habituais, não habituais e ausentes. O foco incidiu sobre os refugiados reconhecidos pelo processo de elegibilidade (BAENINGER, DOMINGUEZ, AYDOS, 2007; BAENINGER, 2008). As entrevistas com 280 1 refugiados residentes em São Paulo e Rio de Janeiro, de diversas origens, foram realizadas nas Cáritas sediadas nas duas capitais, que auxiliaram os pesquisadores a entrarem em contato com os entrevistados. A opção por realizar as entrevistas nas sedes dessas instituições se deveu ao fato de os refugiados constituírem uma população protegida, não sendo possível ter acesso a seus endereços residenciais. A fim de obter respostas não enviesadas, a pesquisa contou com uma equipe de entrevistadores2 para aplicar o questionário aos refugiados (Ibidem). O questionário 3 de 14 páginas contemplava perguntas fechadas sobre composição da família, discriminação, proteção legal, participação em programas 1 Do universo de 280 questionários, 79 foram aplicados em São Paulo e 201 no Rio de Janeiro (BAENINGER, 2008). 2 Participaram como entrevistadores: Julia Bertino Moreira, Juliana Arantes Dominguez, Mariana Recena Aydos, Ricardo Dantas, Miriam Lutz, Cristiani Souza e Sylvain Souchaud. 3 O questionário tinha 184 quesitos, com a seguinte estrutura: 2569 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 governamentais, moradia, emprego, nível salarial, condições de trabalho e rendimentos, acesso à saúde, educação, transporte e trajetória migratória. As perguntas abertas indagavam sobre: (1) a permanência do entrevistado e de sua família no Brasil, (2) os motivos que os levaram a ‘escolher’ este país de refúgio, (3) se pretendiam mudar de cidade e como avaliavam o apoio do (4) ACNUR, (5) do CONARE e (6) da CÁRITAS. Um dos fatores de dificuldade para aplicação do questionário foi a barreira linguística (BAENINGER, DOMINGUEZ, AYDOS, 2007). Em muitos casos, o Português não era a língua materna dos entrevistados, o que gerou problemas de comunicação. Algumas entrevistas foram realizadas em outros idiomas: Inglês, Espanhol e Francês. As respostas às perguntas abertas sobre a avaliação do trabalho das instituições pelos refugiados foram interpretadas a partir das verbalizações dos entrevistados, depois categorizadas em: suficiente, insuficiente e não respondeu/não sabe/não conhece. Os dados foram analisados de forma quantitativa, a partir da construção de bancos com uso do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS). Optamos por separar, num primeiro momento, os dados obtidos mediante as entrevistas aplicadas aos refugiados em São Paulo e Rio de Janeiro (e, com isso, foi possível captar a avaliação dos refugiados sobre o apoio da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro). Depois, agrupamos os dois bancos para trabalhar as respostas sobre o ACNUR e o CONARE de forma unificada. Ainda empregamos análise qualitativa a partir de verbalizações selecionadas para ilustrar as visões dos refugiados sobre as instituições apreciadas, apontando tanto aspectos negativos quanto positivos citados por eles (MOREIRA, 2012). O banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil possibilitou conhecer não apenas as características socioeconômicas, Módulo de identificação: 11 quesitos Módulo 1 – Características do domicílio: 54 quesitos Módulo 2 – Características dos residentes (habituais e não habituais): 14 quesitos para cada membro da família Módulo 3 – Constituição da família: 11 quesitos para cada membro da família Módulo 4 – Educação, documentação e status de refúgio: 18 quesitos para cada membro da família Módulo 5 – Saúde: 14 quesitos para cada membro da família Módulo 6 – Trabalho e rendimentos: 22 quesitos para os membros da família com mais de 14 anos de idade Módulo 7 – Deslocamentos, refúgio e trajetórias migratórias: 34 para cada membro da família Perguntas abertas: 6 questões para o entrevistado 2570 Anais do VIII VIII Encontro Encontro da da ANDHEP ANDHEP Anais do ISSN: ISSN: 2317-0255 2317-0255 demográficas e o acesso às políticas sociais dessa população estrangeira4, mas também como o grupo avalia o apoio prestado por instituições do Estado, da sociedade civil e da organização internacional atuantes no país. De acordo com estatísticas do CONARE, do ACNUR e das Cáritas Arquidiocesanas de São Paulo e Rio de Janeiro, em 2007 havia 2.409 famílias de refugiados no Brasil, das quais 1.015 residiam em São Paulo e 1.394, no Rio de Janeiro (BAENINGER, DOMINGUEZ, AYDOS, 2007). A maioria dos refugiados na capital carioca provinha de Angola, em função do fluxo iniciado na década anterior. Já as origens dos refugiados situados na capital paulista eram mais diversificadas5 (AYDOS, BAENINGER, DOMINGUEZ, 2008). O banco de dados da pesquisa revelou que as condições de trabalho e os níveis salariais foram avaliados pelos entrevistados, de modo geral, como insatisfatórios. O acesso aos serviços públicos também foi considerado precário, principalmente em termos de saúde e moradia. Ainda foi apontada a dificuldade no reconhecimento de certificados e diplomas universitários. Outro ponto relevante foi que 53,4% da população residente em São Paulo se declarou insatisfeita ou muito insatisfeita a respeito de discriminação (Idem). Frequentemente associados a “fugitivos”, grande parte da população brasileira desconhece quem sejam os refugiados, o que acarreta maiores obstáculos para sua integração na sociedade local e inserção no mercado de trabalho (MOREIRA, BAENINGER, 2010). Além das questões socioeconômicas avaliadas pelos refugiados sobre suas condições de vida no país, é importante saber a opinião deles a respeito do trabalho realizado pelas instituições que atuam em prol deles: CONARE, ACNUR e Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e do Rio de Janeiro. Avaliação sobre o apoio prestado pelo CONARE: Parcela significativa (35,7%) dos refugiados entrevistados em São Paulo e Rio de Janeiro não responderam, não souberam dizer ou afirmaram não conhecer o CONARE, como mostra o Gráfico 1. Um dos fatores que contribuem para o desconhecimento da instituição é a sua localização geográfica, já que o Comitê está sediado em Brasília, enquanto a maior parte dos refugiados reside nas capitais mencionadas. 4 Para maiores informações sobre a pesquisa, consultar: BAENINGER, DOMINGUEZ, AYDOS, 2007; BAENINGER, 2008; AYDOS, BAENINGER, DOMINGUEZ, 2008. 5 Do total em São Paulo, 737 famílias eram provenientes da África (72,6%), 143, da América Latina (14,1%), 83 do Oriente Médio (8,2%), 40 da Europa (3,9%) e 12, da Ásia (1,18%). Do total no Rio de Janeiro, 1.256 famílias eram provenientes da África (90,1%), 89, da América Latina (6,4%), 23, do Oriente Médio (1,6%), 18, da Europa (1,3%) e 8, da Ásia (0,6%) (BAENINGER, DOMINGUEZ, AYDOS, 2007). 2571 2571 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 GRÁFICO 1 – QUESTIONÁRIOS APLICADOS AOS REFUGIADOS NO RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO: COMO AVALIA O APOIO DO CONARE? Não respondeu/ não sabe/ não conhece 35,7% Su$iciente 30,7% Insu$iciente 33,6% Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. É interessante observar também as falas dos refugiados entrevistados pela pesquisa. Algumas verbalizações denotam a falta de conhecimento e de contato com o CONARE, como se observa abaixo: QUADRO 1– ASPECTOS APONTADOS PELOS REFUGIADOS, RELACIONADOS À FALTA DE CONTATO COM O CONARE: “Não vê diretamente o papel, a ação do CONARE”. “Não tem contato direto com o CONARE (começando porque fica em Brasília), nem sabe diferenciar muito dos outros órgãos”. “Não consegue falar com eles”. “Quer acesso direto ao CONARE, sem passar pela Cáritas”. “Não conhecem muito bem a situação dos refugiados, não entram em contato com eles”. “Acha que poderiam fazer um pouco mais, acompanhar mais de perto, ver como está, se está dando certo ou não”. “Veio só uma vez, é muito pouco. Não conseguia falar com eles”. “Não se faz sentir. Tem atuação pouco significativa”. “Ruim, não se fazem presentes”. “Conhece só pelo nome, mas não tem contato. Pensa que o apoio é inexistente, porque só conhece a instituição pela sigla”. “Só ouviu falar, mas não sabe o que faz. O CONARE deveria fazer uma reunião com os refugiados para ouvir suas demandas. Deveria ter mais contato com a realidade dos refugiados”. Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Respostas à pergunta aberta n. 5 do questionário. 2572 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 De acordo com as colocações transcritas, nota-se o interesse por parte de refugiados em ter maior contato e acesso direto com o Comitê Nacional e a sugestão da realização de reuniões. Importa-lhes ter espaço para expor sua situação e fazer demandas, ou seja, serem ouvidos pelos membros da instituição. O apoio do CONARE foi avaliado como insuficiente por 33,6% dos entrevistados nas duas capitais. O órgão é reconhecido como encarregado pela concessão do estatuto de refugiado e pela documentação no país, mas, segundo os entrevistados, falta apoio principalmente para aprimorar as suas condições de vida, como se nota abaixo: QUADRO 2 – ASPECTOS NEGATIVOS APONTADOS PELOS REFUGIADOS SOBRE O APOIO DO CONARE: “Ruim demais, não ajuda nada”. “Ruim, pois discrimina os refugiados africanos, tratando-os de forma diferenciada com relação aos refugiados de outras origens. O Brasil deveria parar de receber refugiados africanos, já que não conseguiu absorver seus próprios problemas com a população negra brasileira”. “Apoio pouco significativo. Fez o papel dele, aceitando o refúgio”. “Apoio ruim, não tem real noção da situação e das condições de vida da população refugiada”. “Apoio apenas para documentação, tem que apoiar para melhoria das condições de vida”. “Gostaria de enaltecer o que falha: mais organização e procura de apoio ao refugiado”. “Péssimo. É uma assistência praticamente nula – quase inexistente”. Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Respostas à pergunta aberta n. 5 do questionário. Quando o trabalho do Comitê foi tido como suficiente (em 30,7% dos casos), a principal razão mencionada foi o reconhecimento do estatuto de refugiado e a concessão de documentos, como se apreende das falas transcritas a seguir: QUADRO 3 – ASPECTOS POSITIVOS APONTADOS PELOS REFUGIADOS SOBRE O APOIO DO CONARE: “Apoio muito bom, por ter concedido refúgio”. “Bom, porque através deles obtiveram a legalização”. “Muito importante, por dar reconhecimento do status de refugiado. Representa o apoio do governo”. “Acha que o CONARE cumpre minimamente seu papel em termos da 2573 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 documentação dos refugiados”. Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Respostas à pergunta aberta n. 5 do questionário. Avaliação sobre o apoio prestado pelo ACNUR: Quanto ao ACNUR, uma proporção menor, de 17, 5% dos entrevistados, não respondeu, não soube dizer ou afirmou não conhecer a agência internacional, como aponta o próximo gráfico. Vale lembrar que, tal qual a sede do CONARE, o Escritório do ACNUR se localiza em Brasília. Mas o maior conhecimento da instituição pode ser atribuído ao fato de se tratar de uma agência da ONU, da qual já ouviram falar ou com a qual tiveram contato durante a trajetória migratória até chegar ao Brasil. Embora o organismo da ONU seja responsável pelo financiamento do auxílio financeiro concedido inicialmente aos refugiados, o apoio prestado foi avaliado pela maioria dos refugiados (50,7%) como insuficiente, como se apreende: GRÁFICO 2 – QUESTIONÁRIOS APLICADOS AOS REFUGIADOS NO RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO: COMO AVALIA O APOIO DO ACNUR? Não sabe/ não respondeu/ não conhece 17,5% Su$iciente 31,8% Insu$iciente 50,7% Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Sistematização das respostas à pergunta aberta n. 4 do questionário. Entre os pontos negativos apresentados pelos refugiados em relação ao ACNUR, sobressaem: o valor e corte do auxílio financeiro e o problema com moradia, como se observa a partir das transcrições a seguir. QUADRO 4– ASPECTOS NEGATIVOS APONTADOS PELOS REFUGIADOS SOBRE O APOIO DO ACNUR: 2574 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 “O ACNUR é como mãe, deveria ser, para os refugiados, deveriam planejar a vida dele. Casa, comida e roupa não são suficientes (...). Precisam de mais oportunidades, precisam se realizar”. “Péssimo. Muito ruim. Não atendeu bem (...). A pessoa não recebe apoio suficiente, começando pela moradia. É muito ruim, os albergues, não são boas condições”. “Não fazem nada, porque não sabem nada sobre a vida dos refugiados no Brasil, suas dificuldades. Não fazem nada para ajudar os refugiados”. “Não fazem as coisas como as pessoas pedem. Pediram-se muitas coisas para eles, mas eles não fazem. As coisas não mudam, mesmo com os pedidos”. “Apoio não tão eficaz. Não cuidam bem das pessoas, cortaram todos os benefícios”. “Falta maior preocupação do ACNUR com os refugiados, especialmente com relação a questões econômicas. Tem que ter maior atenção com os refugiados”. “Apoio muito fraco, pois os refugiados têm vida difícil, já que têm de se ‘virar’ pouco tempo depois que chegam”. “Péssimo, porque é muito limitado, desumano. Especialmente comparando com a sua atuação em outros países onde há realmente um amparo deste órgão. Aqui, é entregue às moscas, não tem liderança. Acha que é só fachada, muito inconsistente. Falta interesse real em ajudar os refugiados. Não tem força, não tem capacidade para cuidar dos refugiados”. “Faltam algumas coisas. Mais auxílio, estar mais presente, mais atenção”. Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Respostas à pergunta aberta n. 4 do questionário. Da mesma forma como ocorre com o CONARE, nota-se o interesse dos refugiados em ter maior contato com a organização internacional, que deveria conhecer melhor a situação vivenciada por eles no país. Além disso, alguns entrevistados pontuaram que a atuação da agência da ONU é diferenciada, de acordo com os países em que trabalha. É relevante observar, nesse ponto, a percepção acerca da diferença de tratamento conferido aos refugiados em países considerados desenvolvidos, quando comparado ao Brasil: “Depende de cada país – eles dão um suporte diferente para cada país”; “Comparando com outros refugiados de outros países, a assistência que recebem aqui é insuficiente, não dá para levar uma vida digna”; “O apoio do ACNUR é diferente entre o Brasil e a Europa (lá só cortam o apoio se o refugiado arrumar emprego, se perder, dão o apoio de novo)” (Idem). E também quanto à origem dos refugiados: “Necessidade de maior apoio dos refugiados sem haver discriminação entre as diferentes origens”; “Precisa dar mais atenção para os africanos, que precisam mais de assistência e proteção (muitos morrem de fome). Acha que o ACNUR privilegia outros refugiados, do Oriente 2575 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Médio, da Europa”; “Acha que eles estão priorizando países em guerra e os angolanos estão ficando em segundo plano” (Idem). Em contrapartida, os pontos positivos elencados em relação ao ACNUR estavam ligados, sobretudo, ao oferecimento do auxílio financeiro, à documentação, educação e saúde, como se verifica abaixo: QUADRO 5– ASPECTOS POSITIVOS APONTADOS PELOS REFUGIADOS SOBRE O APOIO DO ACNUR: “ACNUR dá oportunidades para todos. Cabe a você desenvolver a sua intelectualidade”. “Acha que ajudaram com relação à documentação. Achou o apoio bom”. “Bom. Atendem bem as necessidades”. “Muito bom o apoio, ajudaram em tudo que ele precisou”. “Se não fosse por eles, não sabe como seria a situação deles”. “Por enquanto é mais que bom. É uma mão amiga, recurso de R$ 300,00 é muita ajuda, e ficar legal no país, curso de português que ajuda muito”. “Bom, porque possibilita a documentação, o que é uma garantia. Por possibilitar os estudos”. “Teve apoio do ACNUR no início. Não tem do que se queixar, teve apoio para estudar, apoio financeiro, de remédio. Ajudaram-no quando preciso”. Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Respostas à pergunta aberta n. 4 do questionário. Avaliação sobre o apoio prestado pelas Cáritas: Os refugiados possuem maior contato com as Cáritas, que prestam assistência, auxiliam no processo de integração local, proveem cursos e facilitam o acesso a serviços, bem como fornecem o auxílio financeiro subsidiado pelo ACNUR. Como bem explicou um refugiado entrevistado: “O contato sempre foi com a Cáritas”. As instituições religiosas estão situadas em São Paulo e Rio de Janeiro, onde reside a maioria dos refugiados que vivem no país. Com relação à Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, a maioria (63,3%) dos entrevistados residentes na capital paulista avaliou como suficiente o apoio prestado pela instituição religiosa, como se constata pelo Gráfico 3. 2576 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 GRÁFICO 3 – QUESTIONÁRIOS APLICADOS AOS REFUGIADOS EM SÃO PAULO: COMO AVALIA O APOIO DA CÁRITAS? Não respondeu/ não sabe/ não conhece 2,5% Insu$iciente 34,2% Su$iciente 63,3% Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Respostas à pergunta aberta n. 6 do questionário. Os fatores positivos estavam ligados principalmente ao atendimento dado pela instituição aos refugiados, além do apoio em termos de documentação, educação, saúde, como se verifica adiante: QUADRO 6– ASPECTOS POSITIVOS APONTADOS PELOS REFUGIADOS SOBRE O APOIO DA CÁRITAS SP: “Muito bom, mais próximo dos refugiados, tem real noção da situação destas pessoas e realmente se mostra preocupado e interessado”. “Muito importante. Dá uma forma mais humana, mais pessoal às diversas situações, condições e necessidades dos refugiados”. “Acha ótimo o apoio da Cáritas, maravilhoso. Acha que são pessoas ótimas, que sabem o que estão fazendo”. “Um pessoal muito bom, carinhoso, a gente é bem recebido, de braços abertos. Excelente”. “Muito bom, por conta da relação de proximidade e apoio que eles têm. Apoiam os refugiados da melhor maneira possível”. “Bom, pois encaminhou a cursos profissionalizantes. Acredita que podem ajudar com a validação de seus estudos universitários”. “Bom apoio, pois lhe possibilitou sua legalização e a condição de continuar estudando no Brasil”. “Bom, porque auxiliam nas questões mais diretas, fornecendo cursos e auxílio médico e psicológico”. Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Respostas à pergunta aberta n. 6 do questionário. 2577 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 De outro lado, pontos negativos sobre a instituição religiosa paulista também foram mencionados pelos entrevistados, especialmente atrelados ao atendimento e auxílio em questões voltadas para trabalho e moradia. QUADRO 7– ASPECTOS NEGATIVOS APONTADOS PELOS REFUGIADOS SOBRE O APOIO DA CÁRITAS SP: “Um pouco duros, só depois começaram a perceber que eles eram seres humanos”. “Não distribuem tudo o que dizem que distribuem. Quando tem um problema, eles nem escutam ou se preocupam com o problema”. “Não tem nenhuma pessoa que o trate bem. Não tem nenhum apoio bom (...), já foi bom, não é mais”. “É feia, muito ruim. Ficam esperando. As pessoas ficam conversando e não atendem”. “Acha ruim, porque não atende os refugiados devidamente. Privilegia os brancos em detrimento dos africanos (e angolanos, principalmente). Poderiam tratar melhor”. “Apoio não muito bom, pois muitas vezes não satisfaz a muitas necessidades dos refugiados. Atendimento, em geral, demora demais”. “Podiam fazer mais (como anunciar emprego, auxiliar a alugar uma casa a um custo menor)”. “Deveria dar mais auxílio com relação a trabalho e moradia”. Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Respostas à pergunta aberta n. 6 do questionário. Ao contrário da avaliação sobre o trabalho da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, o apoio prestado pela Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro foi tido como insuficiente pela maioria (59,7%) dos refugiados entrevistados na capital carioca. GRÁFICO 4 – QUESTIONÁRIOS APLICADOS AOS REFUGIADOS NO RIO DE JANEIRO: COMO AVALIA O APOIO DA CÁRITAS? Não respondeu/ não sabe/ não conhece 2,5% Su$iciente 37,8% Insu$iciente 59,7% Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, 2578 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Sistematização das respostas à pergunta aberta n. 6 do questionário. Surgiram pontos interessantes referentes a aspectos negativos atribuídos à instituição, como a questão financeira e a vinculação à Igreja, além de questões relacionadas com atendimento, moradia, trabalho, saúde, educação, transporte, como se abstrai do quadro seguinte: QUADRO 8– ASPECTOS NEGATIVOS APONTADOS PELOS REFUGIADOS SOBRE O APOIO DA CÁRITAS RJ: “Dependente demais da Igreja”. “Péssimo, não dão apoio suficiente e o que dão é precário. A Cáritas tem fundo para ajudar a todos mesmo que simbolicamente”. “Acredita que haja diferenças na forma de atendimento, de acordo com a origem, a cor, a língua dos refugiados. Tem que melhorar a forma de tratamento das pessoas. Às vezes, tem que esperar por muito tempo. Em muitos casos, é melhor não procurar a Cáritas, pois sabe que não terá ajuda. Muitas pessoas recebem ajuda, outras não”. “Não dá o apoio devido. Não explica o que se passa aos refugiados, em termos do que está sendo feito”. “Medíocre. O apoio é cortado antes de o refugiado conseguir trabalho e não tem como se manter”. “Horrível. Porque não dão apoio nenhum, não fazem nada. Há muitos refugiados em péssimas condições e eles não fazem nada”. “Às vezes, precisa de algo, mas não é assistido, não é orientado, informado. Poderia ser melhor, com mais ajuda (principalmente financeira) e com medicamentos (que nem sempre dão)”. “Deveria ter psicólogo mais acessível, uma reunião com os refugiados para avaliar. Eles sempre só falam que não têm verba, que não podem fazer nada. Amigos ficam em situações ruins, com traficantes de drogas na favela, pois não têm oportunidade”. “O problema maior é de moradia (acha que o ACNUR/ Cáritas poderiam ajudar a arrumar casas para refugiados)”. “Acha que a assistência (remédios) poderia melhorar e transportes também (principalmente para os refugiados que estudam). Acha que deveria dar uma ajuda financeira (salário mínimo)”. “Faltam algumas coisas. Mais auxílio, estar mais presente, mais atenção. Questão de bolsas também”. “É muito difícil. Questões como moradia, locomoção, trabalho, poderiam receber uma assistência melhor nisso. Também na educação dos filhos – a escola em que eles estão é muito ‘barra pesada’”. “Falta para a Cáritas ter uma política de não abandono das pessoas – como acontece em outros países. Teria que apoiar o refugiado com moradia e pelo menos com cesta básica (mensal). O auxílio para escola no início do ano é muito pequeno, não dá para nada. Tinha que dar condições para a pessoa crescer com 2579 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 as próprias pernas”. “Tem que melhorar, dar mais apoio às pessoas. Principalmente nesta questão de estudos, formação, capacitação dos refugiados”. Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Respostas à pergunta aberta n. 6 do questionário. Já a apreciação positiva sobre o suporte da instituição religiosa carioca estava ligada a uma questão simbólica, uma associação afetiva, vinculada à ideia de família. Em algumas falas, aparece a sensação de pertencimento à instituição, que teria responsabilidade sobre eles. Também há menção à ajuda em termos de documentação, assistência jurídica, educação, transporte e auxílio financeiro. QUADRO 9– ASPECTOS POSITIVOS APONTADOS PELOS REFUGIADOS SOBRE O APOIO DA CÁRITAS RJ: “Nosso pai, nossa mãe no Brasil (vê como responsável pelos refugiados)”. “A Cáritas que nos recebeu (nós somos deles)”. “É que nem pai e mãe. Sustentou, deu apoio. É ótimo, excelente”. “Considera sua família”. “Ótimo. Muito atenciosos e muito carinhos. Apoiam, possibilitando dignidade aos refugiados. Só tem a agradecer a eles”. “Excelente. O trabalho deles é subsistência para nós. Cáritas carrega um intermédio grande para a nova identificação social, nacional do refugiado”. “Acha maravilhoso, porque é como a ‘casa da mãe’. Se precisar de algo, dentro das possibilidades, eles procuram ajudar (...), procuram fazer o melhor”. “Sempre foi bem atendido pelo pessoal, bem tratado. Nota 10 para eles.” “Ajudou com documentos, cursos de português de 1 mês, dinheiro para transporte durante 1 ano. A advogada ajudou muito. São pessoas carinhosas, boas”. “Ajudaram-no a estudar (ajudaram a conseguir bolsa de estudo na faculdade, deram curso profissionalizante)”. “Bom apoio com questões financeiras, de saúde, além de tudo, curso de português”. “A Cáritas está fazendo o papel dela, dando orientação para as pessoas”. Fonte: Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007. Respostas à pergunta aberta n. 6 do questionário. É pertinente observar ainda a relação entre as instituições, a partir da maneira apresentada por alguns entrevistados. De um lado, há a percepção de que a instituição religiosa fica atada à agência internacional: “Eles (Cáritas) são muito limitados pela ACNUR, que está por trás”; “Eles (Cáritas) cumprem ordem do 2580 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 ACNUR. Poderiam brigar mais por algumas coisas que a gente quer, alguma necessidades. Poderiam exigir mais do ACNUR” (Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007). De outro lado, quanto à aplicação dos recursos destinados pela agência da ONU às Cáritas: “Acha que [a Cáritas] não recebe o que o ACNUR diz que manda para o Brasil. O dinheiro não aparece (pesquisa na internet)”; “Acha que precisa dar mais apoio para Cáritas, para repassar auxílio para os refugiados estudarem (investir na educação)”; “Acha injusto o apoio prestado pelo ACNUR entre São Paulo e Rio de Janeiro. Acha que no Rio de Janeiro os refugiados recebem auxílio por mais tempo do que em São Paulo (recebem desde que chegam e continuam recebendo depois que são reconhecidos)”; “O ACNUR deve mandar dinheiro (muita verba) para Cáritas e não sabemos o destino desse dinheiro”; “Acredita que o ACNUR não sabe do que realmente acontece. Acha que na Cáritas é necessária uma ouvidoria” (Idem). E, por fim, com relação ao financiamento, fazendo referência também ao governo brasileiro: “A pessoa fica na dúvida se realmente não tem apoio ou se o governo dá, mas o dinheiro não chega até eles”; “Não sabe se a verba impede que eles façam mais, não sabe o que se passa por trás” (Idem). A partir dos relatos, transparece ainda a dificuldade dos refugiados em definir o papel de cada instituição e como elas se articulam para lhes prover apoio no país: “Acha que o ACNUR e a Cáritas são a mesma coisa”; “Chamam tudo de ACNUR, nunca pensou na separação”. Como bem elucidam dois entrevistados: “Os órgãos parecem atuar sempre em conjunto, dificultando a percepção das funções específicas”; “Não há comunicação sobre o que as instituições (ACNUR, CONARE) fazem. (...) As três instituições deveriam agir em conjunto para conhecer a realidade dos refugiados” (Banco de dados da pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, NEPO/UNICAMP, ACNUR, CÁRITAS RJ e SP, SEDH, 2007). Nota-se que a noção sobre a atividade desempenhada por cada um dos atores, dentro da estrutura institucional configurada no Brasil, parece não ser amplamente difundida em meio aos refugiados acolhidos no país, como revelou a pesquisa. Reflexões finais: A partir dos dados obtidos pela pesquisa Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, os resultados indicam que o apoio fornecido pelas instituições estatais e não estatais que atuam em prol do grupo no país se revela, de modo geral, insuficiente, segundo os refugiados entrevistados. 2581 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Uma questão de relevo diz respeito ao desconhecimento dos refugiados sobre o CONARE e ACNUR e as funções exercidas pelas instituições, como já indicado acima. Como o contato direto dos refugiados se dá, sobretudo, com as Cáritas (que prestam assistência direta, distribuem o auxilio financeiro e oferecem serviços ao grupo), há dificuldade em definir o papel de cada instituição e como elas se articulam na chamada estrutura tripartite. É fundamental, nesse sentido, instruir, dar mais informações sobre o papel desempenhado por cada instituição e como elas interagem no trabalho com os refugiados. Além disso, o desenho institucional do CONARE não estabeleceu canal para diálogo com refugiados, que são excluídos do processo de debate sobre assuntos que lhe dizem respeito. Os atores da sociedade civil assumiram a representação dos refugiados. Nesse ponto, não se deve perder de vista a postura paternalista frente aos refugiados adotada por instituições atuantes em prol do grupo. A participação dos refugiados nas discussões e deliberações sobre pontos que lhes dizem respeito levaria a uma mudança na articulação trilateral, vale dizer, no espaço assumido pelos outros atores (governo, agência internacional da ONU e instituições religiosas). Seria necessário incorporar, portanto, os próprios refugiados nessa arquitetura, o que, como apontado pela literatura, nem sempre é bem visto pelas instituições que trabalham com o grupo, porque implica compartilhar poder com um novo ator (e tratá-los efetivamente como sujeitos). A representação dos refugiados, desempenhada por instituições domésticas que atuam no âmbito da sociedade civil, e a tutela internacional exercida pela organização internacional são questionáveis, à medida que é importante contemplar formas de participação dos próprios refugiados em relação aos programas implementados. Faz-se necessário pensar em como estabelecer um meio de interlocução direto e eficaz entre os refugiados e as instituições que trabalham com eles no país. Uma possível solução seria criar um canal institucional dentro do CONARE para ouvir o grupo, criando mecanismos participativos, através de reuniões, audiências, grupos de trabalho ou consultas sobre propostas de medidas a serem adotadas. Alguns refugiados entrevistados fizeram sugestões nesse sentido, com o intuito de sanar esse distanciamento entre eles e o Comitê Nacional. Seria interessante enviar membros em missões in loco para as Cáritas e outras ONGs que assistem refugiados e reassentados no país, para ouvir seus problemas e suas sugestões para solucioná-los. O Comitê deveria viabilizar maior acesso do grupo à instituição, abrindo espaço para dar voz aos refugiados e às demandas que desejem apresentar e atuando de forma mais ativa e como coordenador efetivo na busca de 2582 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 soluções para os problemas apresentados pelos refugiados. Afinal, trata-se do espaço institucional pertinente para discutir alternativas e adotar medidas para resolvê-las. O diálogo dos refugiados com as instituições que trabalham com eles se revela essencial e, não resta dúvida, deve ocorrer e ser mantido de forma constante. Nesse ponto, merece reflexão, mais uma vez, como os próprios refugiados podem contribuir. É importante incluir as comunidades de refugiados (e líderes eleitos por elas, se houver) como participantes, ao lado do governo, organizações da sociedade civil e ACNUR, auxiliando nesse processo de identificar as necessidades dos recém-chegados e reavaliando-as ao longo do processo de integração local. As comunidades de refugiados devem participar tanto do processo de definição quanto de execução dos programas oferecidos. Há, nesse sentido, farta literatura internacional, apontando a relevância do envolvimento dessas comunidades para que se alcancem resultados positivos no processo de integração local. É preciso também demarcar as áreas em que o apoio é considerado insuficiente pelos refugiados (a exemplo de moradia e inserção no mercado de trabalho, como apontando pela pesquisa), e pensar em políticas públicas direcionadas para o grupo. As instituições devem se engajar, a partir de um esforço conjunto nos processos de mapeamento das necessidades dos refugiados, com a participação dos próprios, e na concretização de medidas para satisfazê-las. As possíveis soluções para lidar com reações negativas por parte da população brasileira frente aos refugiados abarcam a adoção de programas de conscientização, informação, educação sobre a condição e a situação do refugiado no país (o que funciona para combater a discriminação vivenciada pelo grupo). Além disso, programas que beneficiem tanto os refugiados quanto a comunidade local (a exemplo da ação coordenada sobre campanha de saúde pública com evento cultural promovida pelo ACNUR e ONG no Complexo da Maré no RJ6), que ajudam a aproximá-los da comunidade com a qual passam a se relacionar após o ingresso no país. A politica relativa aos refugiados no Brasil enquanto política pública governamental construída no país, envolvendo a participação de atores não estatais tanto no processo de adoção, mas sobretudo de sua implementação, traz à tona a necessidade de se pensar em medidas mais assertivas para sua devida efetivação, tendo em vista as demandas colocadas pelos próprios sujeitos aos quais se destina. 6 Ver: ACNUR, ACNUR e Ação Comunitária do Brasil lançam campanha “Maré de Saúde” no RJ. 2008. Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/portugues/noticias/noticia/acnur-e-acaocomunitaria-do-brasil-lancam-campanha-mare-de-saude-norj/?L=type=100&tx_ttnews%5Bpointer%5D=3>. Acesso em: 18 nov. 2011. 2583 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Referências Bibliográficas: ACNUR. Resettlement Handbook. 2004. Disponível <http://www.unhcr.org/pages/4a2ccba76.html>. Acesso em: 05 set. 2009. em: AYDOS, Mariana Recena; BAENINGER, Rosana; DOMINGUEZ, Juliana. Condições de Vida da População Refugiada no Brasil: trajetórias migratórias e arranjos familiares. III Congresso da Associação Latino-Americana de População. Córdoba, 2008. BAENINGER, Rosana (Coord.) et all. População Refugiada: retrato das condições de vida das famílias em São Paulo e Rio de Janeiro. Campinas: Nepo/Unicamp, 2008. ______; DOMINGUEZ, Juliana; AYDOS, Mariana Recena. Condições de Vida da População Refugiada no Brasil: divulgação da pesquisa de campo e resultados preliminares. Anais do V Encontro Nacional de Migrações. Campinas, Nepo/ Unicamp, 2007. BARNETT, Michael. Humanitarianism, Paternalism, and the UNHCR. In: BETTS, Alexander; LOESCHER, Gil. (Ed.). Refugees in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2010. BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos I. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 10 out. 2009. ______. Lei n. 9.474, de 22 de julho 1997. <http://www.senado.gov.br/sicon>. Acesso em: 12 jan. 2012. 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Conclusão: a excepcionalidade da atuação do Judiciário como antítese ao direito ao contraditório e à defesa da dignidade da pessoa humana enquanto prerrogativas fundamentais da justiça. 5. Referências. 1. Introdução: uma nova abordagem dos direitos humanos a partir da crítica aos tribunais especiais Este artigo foi desenvolvido a partir dos conteúdos trabalhados e de discussões realizadas na disciplina de Direitos Humanos sob a orientação do Professor Doutor Fernando Joaquim Ferreira Maia. O estudo se apoia no método de coleta de dados qualitativos por meio de pesquisa bibliográfica e de conteúdo audiovisual com a finalidade de elaborar uma reflexão (sem se deter em pormenores) a partir do conceito de campo jurídico trabalhado pelo filósofo francês Pierre Bourdieu (2011) aplicado à análise das relações de poder e dos processos que envolveram a formação dos tribunais especiais para julgamentos de crimes de guerra após a Segunda Guerra Mundial. Recorreu-se a conteúdos audiovisuais que, mesmo como obras adaptadas ou roteiro de ficção, trazem essa temática e reproduzem o contexto da época de forma fidedigna. Foram selecionadas as películas de “O Leitor” (THE READER, 2008), obra de ficção ambientado no período pós-guerra, assistido e discutido em sala de aula, e “Hannah Arendt” (HANNAH, 2012), visto posteriormente, e que retrata a vida da filósofa alemã do título e a sua trajetória na escrita do relato sobre o julgamento de Adolf Eichmann, um dos agentes do nazismo. As circunstâncias que envolvem a formação de tribunais especiais para julgamentos de crimes relacionados ao nazismo, após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939- 1945), ainda são temas de várias discussões e análises sobre os fundamentos que orientam o conceito de dignidade da pessoa humana. Em 1948, serviram de base para a criação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, permanecendo como objeto de 2585 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 estudos na área da Sociologia ao estender o Direito como um campo de desenvolvimento de relações de poder. Por isso, o Direito não está isento da interpretação que o compreende para além de um sistema de normas e condutas das relações sociais sob a forma de decisões que pressupõem certa neutralidade. Esse questionamento advém, antes de tudo, da observação do Direito como um instrumento que carrega consigo a dualidade entre o que, no jargão dos juristas, chama-se de “letra fria da lei”, ou seja, um conjunto de normas objetivas e, em certos aspectos, inflexíveis, que devem pautar a decisão de um juiz, em contraponto à jurisprudência, também entendida como “direito vivo”, e que incorpora uma série de fatores socioeconômicos para a compreensão da pluralidade de costumes e condutas de relações sociais presentes num determinado período histórico a fim de atender à sociedade como um todo e sem a distinção de grupos. Neste caso, deve-se considerar a existência de duas “verdades”: a verdade historiográfica, que atesta a morte de milhares de judeus como vítimas do holocausto; e a “verdade sociológica” situada em torno da análise e questionamento do discurso político e jurídico produzido sobre certos fatos históricos. Esta última abordagem tornou-se bastante polêmica no relato produzido pela filósofa alemã Hannah Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann, um dos agentes do regime nazista responsabilizado pela organização e transporte de judeus aos campos de concentração, condenado à forca, em 1961, na cidade de Jerusalém. Em seu relato, que foi transformado em livro com o título Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal (ARENDT, 1999), Arendt usa a expressão “banalidade do mal” para elaborar uma análise sobre Eichmann como um indivíduo que obedecia a ordens sem questionar, ou seja, o tipo ideal do burocrata que, em busca de ascensão, não mediu as consequências de suas atitudes. Com isso, embora não tenha sido entendida dessa forma, a autora não pretendia afirmar a inocência do réu, mas sim, questionar a forma como o Estado o transformou num monstro diante da pressão pública e a projeção midiática sobre o episódio. Pretende-se focar sobre o fato de que, sob o pretexto da defesa dos direitos humanos, esses tribunais também burlaram direitos constituintes como o de defesa por parte dos réus. A importância desse tipo de abordagem sociológica sobre o Direito permite uma reflexão crítica e impõe, sobre o ponto de vista hermenêutico, entender o direito do ponto de vista do contraditório e da defesa da dignidade da vida humana como prerrogativas fundamentais da justiça. Além do mais, assinala uma compreensão do campo jurídico a partir do papel do sociólogo na abordagem de determinados fatos em defesa dos direitos humanos. Isso, por entender que a garantia dos direitos humanos não deve ser repassada somente ao Estado ou a órgãos supranacionais (como no caso dos tribunais especiais e do 2586 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Conselho de Segurança da ONU), à luz da lei e da doutrina, mas sim, à sociedade civil como instância capaz de consolidar e intervir nessa construção. 2. Os tribunais especiais e a violação do princípio do juiz natural A grande questão que envolve a formação dos tribunais especiais foi o clamor pela punição de agentes nazistas responsáveis pelo genocídio cometido contra os judeus em campos de concentração da Europa durante a guerra. Longe de questionar a legitimidade e a validade desses tribunais para punir os envolvidos, esta que foi uma das maiores barbáries ocorridas no século XX, é inegável que toda a projeção sobre os crimes somada à pressão exercida sobre o júri, ocasionou em influência sobre as condenações, o que tornam questionáveis, em certos momentos, os meios para que fosse feita a justiça na busca da “verdade” dos fatos. Outro caso emblemático ocorrido antes da condenação de Eichmann foi o episódio que ficou conhecido como o Julgamento de Nuremberg, que aconteceu na cidade alemã de mesmo nome, entre os anos de 1945 e 1946, onde foram condenados os 24 principais dirigentes do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Sobre esse julgamento, mas que também vale para o caso de Eichmann, fica evidente a “espetacularização” do processo em que as dificuldades para a defesa dos réus diante da hostilidade dirigida a eles pela imprensa, pelos promotores e pelo júri caracterizaram o que Pedro Paulo Filho (2014) descreve como “um Tribunal de vencedores e favor dos vencedores”, uma vez que “a Alemanha vencida na Segunda Guerra estava submetida aos aliados, que instituíram o Tribunal de Nuremberg para julgar os vencidos de guerra”. Uma questão fundamental para se entender “Nuremberg” é a sua excepcionalidade. Um juízo criado pos factu para processar e julgar autoridades de um país vencido não pode ter sua legitimidade baseada na imparcialidade e equidade, o que, por si, compromete a finalidade do próprio procedimento judicial. Para evitar situações assim os atos da função de prestação da justiça pelo Estado devem ser realizados por juízes instituídos pelo ordenamento e competentes segundo a lei, por regra geral (DINAMARCO, 2002, p. 203). A Constituição Federal, em seu art. 5º, incisos XXXVII e LIII, consagra a garantia da imparcialidade do Judiciário nesta exigência. É o que se denomina de princípio do juiz natural. Um juízo formado após a ocorrência da lide, sem competência territorial definida na legislação não pode assegurar a dignidade da pessoa humana e viola o juiz natural. Impor ao Judiciário que tenha, previamente à ocorrência da lide, competência territorial ou material estabelecida pelas leis 2587 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 processuais e de organização judiciária (NERY JÚNIOR, 2002, p. 72) significa coibir o julgamento de questões por órgãos constituídos após a ocorrência do fato ou direcionados a uma pessoa específica, como foi a natureza dos Tribunais de Nuremberg, de Tóquio e, contemporaneamente, do Tribunal para julgar crimes cometidos na ex-República da Yugoslávia. O juiz natural significa, sob pena de nulidade do julgamento, que não haverá juiz ou tribunal de exceção; todos têm o direito de submeter-se a um julgamento por juiz competente, pré-constituído na forma da lei; o juiz tem de ser imparcial, sendo assegurados impedimentos e garantias ao magistrado (NERY JÚNIOR, 2002, p. 66-67). Por isso, questiona-se a atuação de magistrados em Tribunais de exceção. Especificamente, nos tribunais mencionados, a ação dos magistrados foi objetiva, dirigida e concreta. Atuou-se sobre um caso específico e com um fim específico e, obviamente, a ampla defesa, o contraditório, a atividade persecutória de provas pelos tribunais ficou prejudicada. Clara ofensa ao princípio do juiz natural. Ao contrário, o topos da dignidade da pessoa humana, para tirar o juízo da sua excepcionalidade, indica que o juiz deve atuar difusa e abstratamente, ou seja, ele vai agir sobre qualquer caso, estipulado em lei, de forma geral. A regra é que todo aquele ato que cria juízo, abstrato e geral, antecedentemente ao fato, para julgar matéria específica prevista em lei, não ofende ao juiz natural. Em outras palavras, o juiz natural impõe que o processo e julgamento sejam feitos por juiz que já fosse competente ao momento em que praticado o ato a julgar (DINAMARCO, 2002, p. 203). O princípio do juiz natural é composto pelo trinômio: julgamento por juiz/préexistência do órgão judiciário/juiz competente (enumeração das causas que o juiz tem que julgar). Essas são as garantias do princípio do juiz natural: 1) direito a julgamento por juiz integrante do quadro da magistratura; 2) o órgão que for julgar a causa deve preexistir aos fatos com base nos quais a causa será proposta (veda-se a criação de tribunais de exceção. Ademais, se esta garantia não for obedecida, o julgamento será tido como inexistente); 3) a competência, esta significando a indicação taxativa das causas que o juiz tem a atribuição de processar e julgar definido pela Constituição ou lei. Não é lícito impor a ninguém um juiz cuja competência não resulte do ordenamento em vigor, não podendo os órgãos do Poder Judiciário alterar as regras de competência estabelecidas na lei (DINAMARCO, 2002, p. 205-206). Em resumo, o conteúdo do princípio do juiz natural: 1) existência de prévia constituição de órgãos para a prestação da justiça; 2) garantia de independência e 2588 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 imparcialidade dos juízes; 3) fixação da competência através de critérios objetivos; 4) observância do procedimento (NERY JÚNIOR, 2002, p. 73). Seguem exemplos do reflexo do princípio do juiz natural na jurisprudência brasileira: Civil. Recurso Especial. Incidente de falsidade. Competência. Compete ao juiz de primeira instancia processar o incidente de falsidade, por haver a sentença na ação principal sido anulada pelo tribunal, sem ofensa ao art. 393 do Código de Processo Civil. (REsp 10.566/MG, Rel. Min. DIAS TRINDADE, j. 18/06/1991) A competência deve prevalecer também por questões de ordem prática e processual, na medida em que a realização de perícia ou inspeção judicial no Juízo será facilitada, porquanto lá já se encontra o produto objeto da divergência entre as partes; o que, sem dúvida, contribui para a celeridade da prestação jurisdicional.[...] Negado provimento ao agravo interno. (AgRg nos EDcl no AgRg no Ag 727.699/ES, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, j. 07/12/2006) Agravo regimental. Direito processual civil. Conforme precedentes desta Corte, em se tratando de ação cautelar de produção antecipada de provas, por questões de ordem prática e processual, pode ser reconhecida a competência do foro onde encontra-se o bem objeto da lide, facilitando, com isso, a realização de diligências, perícias e inspeção judicial, bem como possibilitando maior celeridade à prestação jurisdicional. AGRAVO IMPROVIDO. (AgRg no Ag 1137193/GO, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, j. 27/10/2009) 3. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região anulou de ofício a sentença sob o fundamento de que o Juiz Federal nomeou seu irmão para atuar na causa como perito judicial. 4. Os casos de impedimento e de suspeição do juiz estão previstos nos arts. 134 e 135 do CPC e são inteiramente aplicáveis ao perito, ex vi do art. 138, III, do mesmo diploma. 5. Por força do art. 245 do CPC, a nulidade 2589 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 dos atos deve ser alegada na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão. 6. Na hipótese, merece reforma o aresto recorrido porque: a) inexistiu arguição da suspeição ou impedimento pelos expropriados em momento oportuno, operando-se a preclusão; b) o juiz que proferiu a sentença é diverso daquele que nomeou o irmão como perito; e c) foi adotado o laudo do Incra para a fixação do valor da indenização, não havendo qualquer prejuízo para as partes. 7. Recurso Especial parcialmente provido. (REsp 876.942/MT, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, j. 25/08/2009) Também o princípio do juiz natural abrange a ideia de promotor natural. Pela regra do art. 129, inciso I da Constituição Federal, cabe ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública. O princípio do promotor natural garante ao acusado que este seja processado e julgado pelas autoridades competentes, previamente estabelecidas em lei. O acusado tem direito de ser julgado de forma imparcial; de receber a acusação de um acusador escolhido previamente ao fato ocorrido, e através dos meios legais. É vedada a instituição de um acusador de exceção, escolhido arbitrariamente, “por indicação” (NERY JÚNIOR, 2002, p. 93). O princípio do promotor natural impede, por exemplo, que o Chefe do Ministério Público avoque processos, efetue livremente substituições, designações e delegações, fora dos casos taxativamente enumerados em lei. Também todos os cargos devem ser fixos, específicos, com atribuição e funções previamente determinadas em lei (NERY JÚNIOR, 2002, p. 96). Está-se falando de uma garantia que significa não apenas o direito de o cidadão ser julgado por órgão independente do Estado, mas também o de receber a acusação independente de um órgão do Estado escolhido previamente segundo a CF e a lei (NERY JÚNIOR, 2002, p. 93-94). O princípio do promotor natural exige quatro requisitos básicos: 1) investidura no cargo de Promotor de Justiça; 2) existência de órgão de execução; 3) lotação por titularidade e inamovibilidade do Promotor de Justiça no órgão de execução, exceto as hipóteses legais; 4) definição em lei das atribuições do órgão. Apesar de todas as garantias processuais dadas às partes, o princípio do juiz natural se insere na compreensão do Direito como campo jurídico, o que será tratado no próximo item. 2590 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 3. O direito e o conceito de campo jurídico como esfera de disputas internas para a manutenção do status quo A compreensão do Direito além de um sistema de normas jurídicas constitui, sobre o que alguns juristas nomeiam como “ciência do direito”, um campo de poder o qual está organizado segundo regras próprias e relações presentes na definição do conceito de campo jurídico, elaborada pelo filósofo francês Pierre Bourdieu. Este conceito apresenta o Direito como uma esfera de disputas internas para a manutenção de um status quo por parte de seus operadores, mas também, como uma dimensão isolada do restante da vida social a qual a maioria das pessoas é privada de participar. Embora Bourdieu não tenha dedicado sua obra exclusivamente à área do Direito, em contraposição a outros estudiosos como o sociólogo do direito Niklas Luhmann (MADEIRA, 2007), sua contribuição é bastante significativa para a teoria social, principalmente no que diz respeito à violência simbólica exercida pelo Estado. O contraponto oferecido por Luhmann colabora para o enriquecimento desta discussão no contexto da realização dos tribunais de exceção porque oferece uma percepção ampla do sistema jurídico e sua relação com outras esferas sociais e que pode colaborar com a discussão que se pretende realizar no tópico em questão. Bourdieu elabora sua teoria a partir de uma análise da vida social além da esfera objetiva para observar, também, os elementos simbólicos que definem o caráter das relações de poder e que estabelecem os espaços e diferenças entre os grupos sociais com base em relações de dominação. Sobre isso, a professora Maria da Graça Jacintho Setton (2008) explica que Bourdieu concebe a sociedade sob a ótica sistêmica e relacional como uma estrutura hierarquizada que envolve poder e privilégios determinados pelas relações materiais/econômicas (salário, renda), relações simbólicas (status) e/ou culturais (escolarização). Porém, a distribuição desigual dos recursos e poderes, na obra de Bourdieu, recebem o prefixo capital por determinar, semelhante à lógica monetária, as relações dos que possuem ou não uma posição privilegiada na hierarquia social. Esses recursos são definidos como o capital econômico (a renda, a posse de bens e imóveis), o capital cultural (os saberes e conhecimentos reconhecidos socialmente por meio de diplomas e títulos), o capital social (relações sociais que podem ser revertidas em valor de capital) e capital simbólico (vulgarmente, conhecido como prestígio ou honra). 2591 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Toda essa série de fatores, em maior ou menor volume e, dependendo da forma como esses capitais são incorporados e arranjados na trajetória social de cada um, irão definir um sistema de disposições de cultura que Bourdieu define como habitus (SETTON, 2008). De forma mais ampla, o habitus é entendido como a classe incorporada e compreende uma série de outros fatores além do capital econômico e que determinam a posição do indivíduo na sociedade. Dessa maneira, entende-se que o habitus é incorporado e exercido num campo específico, este, definido como: (...) um sistema estruturado de forças objetivas, uma configuração relacional capaz de impor sua lógica a todos os agentes que nela penetram. Nenhuma ação pode ser diretamente relacionada à posição social dos atores, pois esta é sempre retraduzida em função das regras específicas do campo no interior do qual foi construída. Como um prisma, todo campo refrata as forças externas, em função de sua estrutura interna (MADEIRA, 2007, p.21). Assim, o que Bourdieu definiu como campo jurídico, em sua obra intitulada Para uma sociologia do campo jurídico, corresponde simplesmente a mais um desses “territórios simbólicos” em que o poder é exercido por grupos dominantes sobre grupos de dominados: Essas relações no campo jurídico são também relações de poder, e um dos fundamentos desse poder é a instituição do próprio campo. O campo jurídico institui em torno de si um monopólio, no tocante ao direito de acesso ao próprio campo, determinando que apenas os profissionais podem atuar nele. Estes produzem a necessidade de seus próprios serviços, como os únicos capazes de adotar postura correta perante a lei. Essa imposição de fronteiras àqueles que estão ou não preparados para “entrar no jogo” representa uma retirada de posse e de direitos do cidadão. Esse é obrigado a recorrer aos profissionais da área, que são os que sabem as regras escritas e não escritas. Essa constituição de uma competência propriamente jurídica e de um poder específico serve, também, para controlar o acesso ao campo, determinando os conflitos que merecem entrar nesse campo e a sua forma. A forma como os conflitos devem se conformar aos padrões do campo é um 2592 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 elemento fulcral, pois é justamente através da forma de discurso que se confere, em parte, a legitimação do campo jurídico. Desse modo, a situação jurídica funciona, para as partes, como lugar neutro, que produz uma neutralização das posturas, onde o conflito se converte em diálogo de experts (CARLOMAGNO, 2011, p.246, grifo nosso). Vê-se, então, numa tentativa de retomar a temática exposta no início do texto sobre a formação dos tribunais especiais no pós-guerra, como a noção de campo jurídico foi preponderante para que, naquelas circunstâncias, o Estado, representado pelas forças aliadas que saíram vitoriosas da Segunda Guerra, estabelecesse as “regras” para a condenação de réus acusados de crimes contra a humanidade, mas que, por outro lado, foram vitimados pela iniquidade das relações impostas sobre o sistema jurídico. Em outras palavras, Bourdieu descreveria esse quadro como uma demonstração do poder simbólico exercido pelo Estado por meio do “metacapital” caracterizado como a “força física legítima (com a polícia e o exército), o capital econômico (como regulador/interventor nos mercados), o capital da informação, e, essencial, o capital simbólico”, nesse caso, representado pelo uso da violência simbólica pelo campo jurídico (CARLOMAGNO, 2011, p. 247). Porém, diferente de Bourdeiu que entende o seu conceito de campo jurídico como resultado da reprodução social e das disputas de poder entre “dominantes” e “dominados”, Luhmann afirma a existência de um sistema jurídico à parte, embora não completamente isolado, da esfera da vida em sociedade. Assim, ele estabelece a ideia de três grandes esferas sociais distintas: os sistemas vivos, definidos como as operações vitais; os sistemas psíquicos, formado pelos indivíduos; e os sistemas sociais, que consistem basicamente nas comunicações. De acordo com Madeira (2007) somente é possível entender a interação entre estes sistemas psíquicos individuais e os sistemas sociais por meio um paradoxo. Luhmann explica que estes sistemas se autorreproduzem porque são fechados, mas que essa autoreprodução somente é possível porque existe uma abertura no meio. Sendo assim, “os seres vivos são sistemas abertos e fechados, mas não abertos ou fechados, mas são fechados porque são abertos ao meio” (2007, p.28). Em outras palavras, os sistemas sociais estão fechados, mas não completamente isolados uma vez que há uma interação por meio da comunicação sendo, este, o único elemento capaz de romper as barreiras da clausura individual do sistema. Sendo assim, de acordo com Luhmann, estes sistemas comunicativos que se estabelecem são os responsáveis pela reprodução dos subsistemas como a educação, a 2593 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 economia, a política e próprio direito. Assim, semelhante aos sistemas, o direito é uma esfera aberta e fechada com o preceito mínimo para o estabelecimento da ordem social. Desta forma, a sociedade não existiria como uma confluência de forças individuais, mas de comunicações para a manutenção de um consenso mínimo e indispensável para a própria realização da vida em sociedade: Como Luhmann preocupa-se com o problema da ordem, toda a sua teoria trata da impossibilidade de existência de um consenso fático entre os indivíduos, como mecanismo de orientação social, como fundamento da sociedade. Portanto, cada sistema só poderá ter conhecimento daquele fator que fica sob seu código particular e sua seletividade. É dentro dessa ideia que se situa o sistema jurídico. Segundo Luhmann, o direito ao longo da evolução cultural, foi se autonomizando da moral a partir de um processo de diferenciação funcional, até chegar a constituir-se num sistema social autopoiético, composto de comunicações de expectativas normativas, cuja validade se remete de modo recursivo a outras expectativas normativas. (...) Em Luhmann, a partir de sua organização interna, o sistema jurídico acaba por estabilizar-se, pois todas as operações se reproduzem sem influência externa, a não ser pela assimilação seletiva de fatores do entorno, de acordo com os critérios do próprio sistema jurídico. Toda a avaliação do direito é realizada de modo recursivo, por seus próprios códigos jurídicos. O direito positivo reproduz-se de acordo com seus próprios critérios e códigos de preferência (MADEIRA, 2007, p.28-32). Soa como um argumento tópico. A tópica está inserida na retórica e se organiza como uma forma de pensar mediante pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade. Como a tópica se insere na disputa entre posições contrárias, a tarefa sempre passa por encontrar um conjunto de topoi e ordenar uma série de questionamentos sobre a questão (VIEHWEG, 1979, p. 23-27). Pela tópica, fixam-se crenças e ideologias e que a tarefa do orador é adequar o seu discurso a essa ideologia previamente fixada e com o objetivo de realizar o consenso. O princípio do juiz natural, aplicado topicamente, permite a construção de valores e a disseminação da ideologia dominante na sociedade. 2594 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Na análise sobre teoria de Luhmann, o direito figura um sistema autônomo calcado sobre o consenso para o estabelecimento da ordem social. A aplicação desse pensamento sobre a análise da formação de tribunais especiais no contexto da Segunda Guerra Mundial pode ser entendida como coerente quando se observa, por exemplo, a necessidade de autorreferência do próprio sistema jurídico para julgar os crimes cometidos durante o conflito o que, no entanto, não exclui as críticas sobre a forma como por quais componentes essa Corte foi estabelecida. Nesse sentido, de acordo com Madeira (2007), os pontos que aproximam a compreensão de Luhmann e Bourdieu consistem principalmente no fato de o direito poder exercer em contextos como esse, ainda que com explicações distintas, influência sobre a esfera política e vice versa: Com relação às decisões judiciais, Luhmann estabelece que os casos não problemáticos são fundamentados na ponderação de interesses, enquanto nos mais complicados, essa fundamentação cede lugar à auto referencia do sistema, ou seja, a referencia dos casos já decididos. Cada decisão duvidosa antecipa o sentido para a produção de outras decisões, assim como, por outro lado, aproveita essa prática estabelecida através de reiteradas decisões (de gêneros parecidos). Nesse sentido, há estabilização de expectativas apenas por ocasião de um conflito atual ou iminente. O sistema jurídico deve aguardar o conflito para poder evoluir. Na grande maioria das regulações, o direito cria, em torno de um ponto de inflexão, conflitos para evitar conflitos, e os motivos não residem numa antecipação da espera da solução do conflito, senão na regulação do agir enquanto tal. Segundo Luhmann, o sistema jurídico calca na fundamentação das decisões a possibilidade de observação de tendências e a conseqüência de determinação do que será decidido. Além disso, o autor continua, nesse momento, sustentando a legitimidade do sistema jurídico – assim como faz Weber – no caráter de legalidade. Luhmann estabelece que o direito está baseado em um paradoxo, que é o fato de o direito positivo só ter validade na medida em que pode ser modificado através de uma decisão. No tocante às interferências no sistema jurídico, assim como Bourdieu, Luhmann afirma que o sistema jurídico, autoreferente, autopoiético e fechado, acaba sendo conciliado com a política sob a forma do 2595 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Estado de Direito. O direito é o instrumento de legitimação da política. O sistema político vale-se do direito a fim de justificar o seu poder (2007, p.34, grifo nosso). Com isso, pode-se detectar como que a maior divergência entre as ideias apresentadas de Bourdieu e Luhmann consistem no poder da ação individual. Por outro lado, os autores mantém posições semelhantes com relação às dificuldades de acesso, numa perspectiva microssocial, das classes populares que, respectivamente, não detém o habitus e os meios linguísticos para o acesso às decisões no âmbito jurídico. O que se verifica, no entanto, é que para Luhmann, o formalismo e a codificação presentes são imprescindíveis ao sistema jurídico para que haja uma separação entre o direito e os aspectos morais ou políticos, enquanto que Bourdieu denuncia essas práticas justamente por serem entendidas por ele como um tipo de violência simbólica que é legitimada e neutralizada no campo jurídico (MADEIRA, 2007). No entanto, mais importante que pontuar os principais aspectos nas teorias dos dois autores, é verificar a sua relação com a estruturação do Estado, especificamente, na tentativa de universalizar decisões e ações como prerrogativa para se atingir um consenso. Pode-se concluir, pela análise do contexto da formação dos tribunais de exceção, que estes estão apoiados na tentativa de manutenção do status quo dos operadores. Numa perspectiva mais ampla da situação que se está discutindo, compreende as estratégias políticas dos países “vencedores” do conflito e violam os próprios princípios constitucionais processuais de garantia real do contraditório e da ampla defesa, a exemplo do princípio do juiz natural. Porém, é notável como o pensamento de Bourdieu se destaca como uma compreensão diferenciada, embora sem desconsiderar a contribuição de Luhmann, por se aprofundar sobre a questão dos jogos de poder existentes na própria gênese do Estado como um campo social no qual o direito figura uma peça indispensável para a sua manutenção. Para Bourdieu, o Estado se apresenta como um microcosmo, supostamente autônomo no interior de um mundo social expandido, mas onde se joga um jogo político legitimo e regido por regras particulares. No sentido de explicar a formulação de sua ideia, o filósofo francês recorre à análise feita por Karl Marx sobre os bastidores do poder político por meio da metáfora do teatro e da teatralização do suposto consenso que mascara a movimentação das pessoas que não aparecem, mas estão a manipular os cordéis das marionetes e são, de fato, as verdadeiras detentoras do poder. Sob a forma de uma parábola, Bourdieu utiliza a figura do deus romano Jano (ou Janus) representado por dois 2596 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 rostos opostos que olha para frente e para trás e figura alguém que tem controle sobre o começo e o fim, a entrada e a saída, ou seja, detentor do universal, para explicar a sua aplicação no estudo na cultura como um processo de formação de consensos como um processo de universalização e criação de monopólios em confronto com o particular: (...) Retomar a gênese do Estado é retomar a gênese do campo onde a política se desenrola, se simboliza, se dramatiza em suas formas características. Entrar nesse jogo do político legítimo, com suas regras, é ter acesso à fonte progressivamente acumulada do “universal”, à palavra universal, às posições universais a partir das quais é possível falar em nome de todos, do universum, da totalidade de um grupo. É possível falar em nome do bem público, do que é o bem público, e, ao mesmo tempo, apropriar-se dele. Esse é o princípio do “efeito Janus”: há pessoas que possuem acesso ao privilégio do universal, mas não é possível ter o universal sem ao mesmo tempo monopolizar o universal. Há um capital do universal. O processo constitutivo dessa instância de gestão do universal é inseparável do processo de constituição de uma categoria de agentes que se apropriam desse universal. (...) A criação de unidades de medida nacionais e estatais é um progresso em direção à universalização: o sistema métrico é um padrão universal que supõe consenso, do latim consensus, “concordância” ou “conformidade”. Esse processo de concentração, de unificação, de integração é acompanhado de um processo de desapropriação, porque todos os saberes e competências associados ao local passam a ser desqualificados (BOURDIEU, 2012, grifo nosso). 4. Conclusão: a excepcionalidade da atuação do Judiciário como antítese ao direito ao contraditório e à defesa da dignidade da pessoa humana enquanto prerrogativas fundamentais da justiça A exposição das ideias de Bourdieu sobre a monopolização do universal contribui para a compreensão da postura política dos países Aliados como uma estratégia de controle justificada pela necessidade da punição dos crimes gravíssimos cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Diante do fato ocorrido, era inquestionável a necessidade de 2597 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 revisão da barbárie cometida por todos os envolvidos, mas que, no entanto, tomou as feições de um jogo político que propriamente um instrumento de justiça. No centro da questão ventilava-se a dignidade da pessoa humana como elemento de legitimação de direitos individuais, econômicos, políticos e sociais no sistema jurídico constitucional. Colocava-se a pessoa humana como valor fonte do direito, o que a posicionaria no sentido de sua expansão para todos os domínios da vida. Essa ideia deveria abranger uma esfera mínima para a sobrevivência da sociedade e passaria pela efetivação de direitos individuais e sociais. Pelo menos este era o discurso dos juristas europeus e americanos. Robert Alexy (2002, p. 344-345), ao resumir a concepção do Tribunal Constitucional da Alemanha, acerca da dignidade da pessoa humana, afirma que a pessoa deve ser compreendida na sua vinculação à sociedade e a partir da sua aspiração “em se determinar e se desenvolver num ambiente de liberdade”. Isto significa a introdução nos textos constitucionais de princípios dotados de juízos de valor. A dignidade da pessoa humana seria um valor supremo que atrairia o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem e orientaria as normas constitucionais e o direito como um todo. O valor da dignidade humana dá sentido à interpretação normativa e unidade material à Constituição. Seria no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontraria o seu elo com os direitos humanos, estes como o conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelo ordenamento jurídico nacional e internacional” (PEREZ LUÑO, 2002, p. 48). Esse reconhecimento envolve a proteção da dignidade da pessoa humana através de normas e princípios jurídicos válidos nos limites do território da competência jurisdicional de um Estado. Peter Härbele (2003, p. 49), ao colocar os direitos fundamentais como base da democracia, afirma que eles “não garantem somente a liberdade do Estado, senão também a liberdade no Estado”. O contraditório e a ampla defesa seriam, nesta ótica, um direito fundamental, pois envolveria o direito de ação relativo à pretensão do indivíduo perante o Estado. Aqui, a dignidade da pessoa humana, do ponto de vista da atividade de solução de litígios que ocorre no Judiciário, se desdobra no princípio do devido processo legal. Este princípio está consubstanciado no art. 5º, LIV da CF (ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal). É princípio fundamental do processo, do qual todos os demais princípios derivam; espécie de meta princípio. Pode-se dizer que o devido 2598 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 processo legal é gênero do qual todos os demais princípios processuais são espécies (NERY JÚNIOR, 2002, p. 32). Vale ressaltar que o ordenamento norte-americano emprega, ao devido processo legal, sentido material, estendendo-o à defesa da vida, da liberdade e da propriedade privada. De acordo com o devido processo legal, a parte deve ter acesso à justiça, exercendo o direito de ação e a ampla defesa. O processo deve ser regido por garantias mínimas de meios (ou seja, o direito à citação; direito a um julgamento rápido e justo; direito a arrolar testemunhas; direito ao contraditório; direito a só ser processado de acordo com as leis vigentes à época do fato; direito à isonomia; proteção contra medidas ilegais de busca e apreensão; proteção contra provas ilícitas; direito à assistência judiciária e à justiça gratuita; direito a não produzir prova contra si próprio) (NERY JÚNIOR, 2002, p. 41-42) e resultados equilibrados (mediante julgamentos justos). Entretanto, esse discurso é desmascarado na formação de tribunais como o de Nuremberg, realizado entre 1945 e 1946, para o julgamento de dirigentes do regime nazista alemão, e expõe como os países “vencedores” foram responsáveis por estabelecer, dentre outras manobras, punições que, salvo os crimes de guerra, não haviam sido qualificados no sistema internacional antes da guerra, o que violaria fragrantemente a dignidade da pessoa humana. Por isso, é notável como a postura adotada pelos “vencedores” diante dos “derrotados” advém de questões políticas anteriores ao próprio conflito e que foram deslocadas para o campo jurídico, aqui, no sentido dado por Bourdieu, num jogo de poder estabelecido sobre regras particulares: O primeiro grande problema para a defesa foi à conciliação de sistemas jurídicos no Tribunal que eram bastante distintos, uma vez que a Corte era composta por cinco nações diferentes, contando a Alemanha, e para complicar ainda mais quase todas tinha seu sistema jurídico próprio. Norte-americanos e britânicos utilizavam o modelo anglo-saxão, enquanto que franceses e alemães o romanogermânico, e ainda havia o novel sistema jurídico dos soviéticos. Desta forma, optou-se por um misto dos dois primeiros, com uma certa prevalência do modelo anglo-saxão, já que era o modelo comum as duas potências idealizadoras da idéia do Tribunal (HORTA, 2006, p.6). 2599 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Não houve preocupação com o princípio do devido processo legal e muito menos em oferecer aos litigantes o direito ao processo justo, com oportunidades reais e equilibradas. Sobre isso, para concluir, Henrique Clauzo Horta (2006) reitera: Outros dois princípios fundamentais que foram feridos, quais sejam o da Legalidade ou Reserva Legal “nullum crimen nulla poena sine lege (não há crime nem há pena sem lei que preveja o fato)”, e o da Irretroatividade da Lei Penal, evidentemente prejudicaram os réus, já que três dos quatro encargos coletivos pelos quais foram julgados e punidos os acusados, surgiram ali naquele Tribunal. Entretanto, foi justamente ao deixar de lado o respeito por tais princípios que foi possível criar a Corte Militar Internacional de Nuremberg. (...) Esses princípios considerados como bases em qualquer ordenamento jurídico para a garantia da ordem e da justiça, já estavam consagrados há alguns séculos, além do mais a infração cometida pelo Tribunal de Nuremberg ía de encontro ao próprio direito interno dos países que ali julgavam – exceção ao sistema jurídico soviético (2006, p.8). Vale ressaltar que a análise feita sobre a formação dos tribunais especiais para os julgamentos dos crimes de guerra cometidos por agentes nazistas durante a Segunda Guerra Mundial não constitui um caso isolado. Episódios recentes como a formação do Tribunal Penal Internacional da antiga Iugoslávia, em 1993, para o julgamento dos crimes e abusos cometidos durante o conflito na região dos Balcãs, e a realização do Tribunal Especial do Iraque que, em 2005, julgou e condenou o ex-chefe de Estado iraquiano Sadam Hussein, põem em questionamento o valor da dignidade da pessoa humana em desacordo com as normas jurídicas que asseguram o devido processo legal, o direito ao contraditório e o direito à ampla defesa dos réus. Constituem verdadeiros exemplos que mostram a contradição entre o discurso universalista anglo-europeu dos direitos humanos e o modus operandi da União Europeia e dos Estados Unidos nas relações internacionais e, de igual modo, no seu direito interno. Tudo isto aponta para a necessidade de análises do ponto de vista jurídico e dos aspectos sociopolíticos entre os países envolvidos e que devem apontar para uma revisão 2600 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 deste sistema estabelecido de forma arbitrária e em desacordo com vários pactos firmados sobre a defesa dos direitos humanos. 5. Referências ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002. ARENDT, Hannah. Eichmman em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. BOURDIEU, Pierre. As duas faces do Estado. Revista Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo, ano 5, n.54, out. 2012. Disponível em: <https://www.diplomatique.org.br/edicoes_anteriores.php?pagina=3>. Acesso em: 4 abr. 2014. CARLOMAGNO, Márcio Cunha. Constituindo realidades: sobre A força do direito de Pierre Bourdieu. 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Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. 2602 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Migrações internacionais, movimentos sociais e acesso à justiça no Estado de São Paulo: A luta pela efetivação do direito à educação escolar Tatiana Chang Waldman1 Introdução É significativo iniciar o questionamento acerca das migrações internacionais e do movimento social de migrantes2 no Brasil, e particularmente no Estado de São Paulo, a partir de uma breve análise da legislação migratória vigente, o Estatuto do Estrangeiro (Lei n.º 6.815/80), aprovado por decurso de prazo, em pleno regime de exceção, e que traz em seu conteúdo, ainda hoje, a doutrina da Segurança Nacional, impondo critérios altamente seletivos para a entrada e permanência de pessoas no país e determinando inúmeros deveres aos migrantes, que não encontram os seus correspondentes direitos. São mais de três décadas de vigência sem que se alcançasse um consenso do conteúdo para uma nova legislação migratória, fazendo com que um texto notoriamente descontextualizado com os princípios da atual Constituição brasileira, permaneça sendo aplicado. No que diz respeito ao direito à educação, a partir da promulgação do Estatuto do Estrangeiro inseriu-se no ordenamento jurídico brasileiro dispositivos3 que condicionam a matrícula do migrante em estabelecimento de ensino de qualquer grau à sua situação migratória regular no país. Como decorrência, o Brasil passava a excluir os migrantes indocumentados4 da garantia do direito à educação escolar. Nesse sentido, a questão fundamental que estará presente ao longo de todo o artigo é em que medida os dispositivos sobre o direito à educação escolar 1 Mestre e doutoranda na área de concentração de Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD/USP). 2 Maria Beatriz Rocha-Trindade destaca que o termo emigração traz a ideia de saída de alguém por um tempo significativo do país de sua nacionalidade com o objetivo de trabalhar temporariamente ou estabelecer residência em país estranho. Os sujeitos desta ação são denominados, por quem os considere como ausentes e enquanto a situação se mantiver, emigrantes. Sob o ponto de vista do destino que foi encarado como o alvo da decisão de partir, os mesmos sujeitos são agora vistos como aqueles que chegam do exterior e são denominados imigrantes. A autora enfatiza, já na década de 1990, que as denominações emigração e imigração tendem a cair em desuso, substituídas pelo termo “migração” que simplifica em uma só palavra a mesma realidade de situação e sujeito. (In: ROCHATRINDADE, Maria Beatriz. (Org.). Sociologia das Migrações. Lisboa: Universidade Aberta, 1995. p. 31-32). Neste sentido, utilizaremos o termo migrante nesse artigo para designar os migrantes internacionais. 3 Cf. a redação do arts. 48 e 97 do Estatuto do Estrangeiro. 4 Os migrantes indocumentados são conceituados pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) como toda pessoa não nacional que “entra ou permanece em um país sem ter os documentos necessários, nomeadamente, entre outros: (a) alguém que não tem os documentos legalmente exigidos para ingressar em um país, mas alcança ingressar clandestinamente; (b) alguém que ingressa com documentos falsos; (c) alguém que depois de ingressar com os documentos legalmente exigidos, permanece para além do período de permanência permitido ou viola as condições de ingresso e permanece sem autorização (tradução nossa)”. (In: INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION. Glossary on Migration. 2. ed. Genebra: International Organization for Migration, 2011. Disponível em: < http://publications.iom.int/bookstore/free/Glossary%202nd%20ed%20web.pdf >. Acesso em: 17 fev. 2012. p. 102). No presente artigo também utilizaremos o termo “migrante em situação irregular” como sinônimo de “migrante indocumentado”. 2603 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 constantes no Estatuto do Estrangeiro, não recepcionados pela Constituição Federal de 1988, comprometeram e ainda hoje comprometem o acesso ao sistema de ensino nacional por parte de migrantes indocumentados. Diante do atual ordenamento jurídico brasileiro, norteado pela chamada Constituição Cidadã, tal indagação, a primeira vista, poderia parecer questionar um debate já superado. Afinal, a garantia do direito universal à educação foi afirmada exaustivamente pela legislação vigente no Brasil. A Constituição Federal de 19885, a legislação infraconstitucional, especialmente o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA ˗ Lei n.º 8.069/1990) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB ˗ Lei n.º 9.394/1996), e o expressivo rol de Tratados Internacionais ratificados pelo país6, asseguram que hoje deverá ser plenamente garantido o direito humano à educação escolar a todas as pessoas residentes no Brasil, sejam brasileiras ou estrangeiras, estejam as últimas em situação migratória regular ou irregular. Tamanha mobilização em se proclamar o direito à educação no Brasil não evitou, no entanto, que os dispositivos do Estatuto do Estrangeiro fossem aplicados. Observou-se que no Estado de São Paulo, já na década de 1990, foi publicada uma Resolução da Secretaria da Educação ˗ Resolução n.º 9 (SE 09/90) ˗ que com base nos preceitos do Estatuto do Estrangeiro, excluiu da Rede de Ensino Estadual, com a proibição de frequência na escola e o cancelamento da matrícula, os migrantes indocumentados. A violação desse direito se perpetuou por cinco anos fundamentada nessa normativa da Secretaria da Educação que resistia em reconhecer o evidente: uma interpretação coerente do ordenamento jurídico nacional indicava que o direito à educação deveria ser universalmente garantido. Só em 1995, após manifestações incessantes dos movimentos sociais, uma nova Resolução, que assegurou a matrícula de todos os alunos estrangeiros nas escolas estaduais de São Paulo que ministram o ensino fundamental e médio, sem qualquer discriminação, foi publicada (Resolução n.º 10 ˗ SE 10/95). Ainda no mesmo Estado de São Paulo, sob a vigência da Constituição Federal, do ECA, da LDB, dos Tratados Internacionais, e agora, também, de uma Resolução da própria Secretaria da Educação do Estado (SE 10/95), houve quem advogasse pela aplicação dos dispositivos do Estatuto do Estrangeiro e questionasse o acesso às instituições de ensino por parte de migrantes indocumentados no país. Nesse sentido, a pesquisa propõe identificar e refletir sobre a trajetória da luta do movimento social de migrantes pelo acesso à educação escolar no Estado de São Paulo, 5 6 Cf. a redação do art. 205, da Constituição Federal brasileira de 1988. Pode-se destacar a Convenção sobre os Direitos da Criança, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador). 2604 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 analisando de forma crítica qual é a relação entre este movimento social e o sistema jurídico. É possível observar, por um lado, a incipiente utilização do Poder Judiciário como locus para a luta pelo reconhecimento do direito à educação por esse grupo e, por outro, a mobilização intensa nos níveis legislativo e, especialmente, administrativo. Os Poderes Legislativo e Executivo se destacam, portanto, como arenas institucionais destinatárias das demandas. Objetivamos questionar, nesse sentido, o que fez com que esse movimento social se afastasse do debate inserido no Poder Judiciário e o que a atuação desse Poder poderia agregar na luta pelo acesso à educação desse grupo específico7. 1. A Resolução n.º 9 (SE-09/90) da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e suas consequências para os migrantes Como anteriormente mencionado, em plena década de 1990, ou seja, passados dois anos da promulgação de nossa Constituição Cidadã, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo publica a Resolução n.º 9 (SE-09/90), de 8 de janeiro de 1990, que dispõe sobre as condições de matrícula de alunos estrangeiros na Rede Estadual de Ensino8. A Resolução, com fundamento no Estatuto do Estrangeiro, determina que os migrantes indocumentados não teriam sua matrícula efetuada na Rede de Ensino Estadual. E mais, o Ministério da Justiça deveria ser notificado com a relação de alunos estrangeiros matriculados, assim como aqueles que tiveram suas matrículas canceladas e os que terminaram o curso. Mas por que passados dez anos de vigência do Estatuto do Estrangeiro o Estado de São Paulo resolveu adotar tal Resolução? Se estivéssemos diante de mera desatenção com a temática, não haveria qualquer publicação de normativa específica em âmbito estadual. Com a Resolução a Secretaria reforça que o Estado de São Paulo, em que pese o conteúdo constitucional referente ao direito universal à educação, aplicaria os dispositivos revogados do Estatuto do Estrangeiro. De acordo com Celso Fernandes Campilongo “a aposta dos movimentos sociais no direito – e, portanto, a confiança na força do direito – pode aflorar de três modos: ‘contra’, ‘pelo’ e ‘após’ o direito. ‘Contra o direito’ significa, na essência, luta pela sua revogação, substituição ou por uma nova interpretação do direito vigente. No fundo identifica-se com um obstáculo construído pelo direito e procura-se removê-lo também através do direito. Não se trata, na verdade, de transgressão ou afronta ao direito, mas de modificação do direito. ‘Pelo direito’ representa a luta pelo reconhecimento e afirmação de direitos ainda não estabelecidos: conquista de novos direitos, na lei ou na justiça. ‘Após o direito’ consiste na busca por eficácia: adoção de políticas, reorientação da jurisprudência em conformidade com avanços legislativos, mudança de comportamento”. (In: CAMPILOGO, Celso Fernandes. Interpretação do direito a movimentos sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 34). Ao que tudo indica, diante dos desrespeitos ao acesso ao direito à educação de migrantes no Estado de São Paulo, o movimento social deveria apostar, especialmente, em uma nova interpretação do direito vigente. 8 Cf. SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Resolução n.º 9, de 8 de janeiro de 1990.Dispõe sobre as condições de matrícula de alunos estrangeiros que visem disciplinar a questão na Rede Estadual de Ensino. 7 2605 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Para o advogado Belisário dos Santos Júnior, à época membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e presidente da Associação de Advogados Latino-americanos pela defesa dos Direitos Humanos, já na década de 1980, antes mesmo da publicação da Resolução n.º 9 (SE09/90), eram poucas as escolas em São Paulo que aceitavam matricular estudantes migrantes em situação irregular. O que significa que os dispositivos do Estatuto do Estrangeiro foram aplicados desde o início de sua vigência por muitas instituições de ensino. Como decorrência, as escolas mais flexíveis diante da falta de documentação de muitos alunos concentraram um grande número de migrantes. Ele acredita que a Resolução só veio a ser elaborada pelo conhecimento do descumprimento dos dispositivos por certo número de escolas. A razão de ser da Resolução seria, então, reafirmar a necessidade de cumprimento do Estatuto do Estrangeiro e demonstrar que não haveria mais flexibilidade com as instituições de ensino que aceitassem a matrícula de migrantes indocumentados9. Mesmo com a publicação da Resolução n.º 9 (SE-09/90), persistia existindo um número reduzido de escolas que diante dos pedidos insistentes de muitos pais, aceitavam os alunos sem documentação como “ouvintes”, desde que até o final do ano letivo estes alcançassem a regularização. Os que não apresentassem a devida documentação, por não serem formalmente matriculados, deixariam de receber o histórico escolar ou qualquer documento que comprovasse a frequência na escola. Tal conduta foi adotada por algumas instituições de ensino até o momento em que a severa fiscalização e as pesadas multas as constrangeram a obedecer a Resolução. De acordo com o Centro Pastoral do Migrante de São Paulo, foi a partir de 1993 que se tornou impossível efetuar a matrícula de imigrantes em situação irregular no Estado de São Paulo10. Como consequência, dados da Secretaria de Educação do Estado informaram que aproximadamente quatrocentas crianças e adolescentes migrantes, em situação irregular no país, apresentaram suas matrículas canceladas e foram proibidos de continuar a frequentar a escola durante os cinco anos de vigência da citada Resolução (1990-1995)11. 2. A mobilização social pela efetivação do direito à educação escolar em São Paulo Desde o final da década de 1970 e início da década de 1980 havia instituições situadas na cidade de São Paulo preocupadas em acolher e trabalhar com os migrantes internacionais residentes no Brasil. Em 1977 passa a existir o trabalho do Centro Pastoral dos Migrantes na 9 SANTOS JÚNIOR, Belisário dos. O acesso à educação escolar de imigrantes nas décadas de 1980/1990 em São Paulo. [jun., 2012] Entrevistadora: WALDMAN, Tatiana Chang. 10 CENTRO PASTORAL DOS MIGRANTES N. SRA. DA PAZ. Dossiê escola: crianças proibidas de frequentar a escola. São Paulo, 1994. p. 5. 11 BONASSI, Margherita. Canta, América sem fronteiras: imigrantes latino-americanos no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2000.p.171-173; 176. 2606 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 cidade. Em 1980 se inicia, inserido na Comissão Paz e Justiça da Arquidiocese de São Paulo e a pedido de Dom Paulo Evaristo Arns, um serviço de defesa dos migrantes internacionais em razão da promulgação do Estatuto do Estrangeiro e do alto número de deportações constatadas à época12. Poucos anos depois, em 1985, o Serviço Pastoral dos Migrantes começa seu trabalho de articulação na organização de migrantes nacionais e a partir de 1989 também de migrantes internacionais13. É na década de 1990, entretanto, que estas instituições14 começam a receber numerosos relatos de migrantes que não puderam efetuar sua matrícula nas instituições de ensino do Estado de São Paulo em razão da falta de documentação brasileira. De acordo com Margherita Bonassi15, foi por meio de notificações emitidas pelas escolas apresentadas pelos migrantes que se tomou conhecimento da Resolução n.º 9 (SE-09/90). O Centro Pastoral dos Migrantes procurou, então, a Secretaria da Educação. Seus funcionários, no entanto, pareciam saber muito pouco, neste primeiro momento, sobre a normativa. A fim de entender o que se passava e solucionar o problema da exclusão dos migrantes indocumentados das escolas no Estado, o Serviço Pastoral dos Migrantes e o Centro Pastoral dos Migrantes dialogaram e visitaram, dentre outras instituições, escolas, Delegacias e Coordenadorias de Ensino, a Secretaria da Educação, a Polícia Federal, associações que trabalhavam com direitos humanos, consulados e grupos paroquiais. A dificuldade de sensibilizar as pessoas acerca do tema era evidente, muitos entendiam a Resolução como uma medida burocrática, sem entender a abrangência dos seus efeitos; outros tantos entendiam como justificável a exclusão do sistema de ensino pela falta de documentos16. A divulgação da publicação da Resolução e da exclusão de muitas crianças migrantes das escolas passou a ser pauta de boletins dos movimentos operários, pastorais e no semanário O São Paulo, da Arquidiocese17. O Serviço Pastoral dos Migrantes, por meio de seu boletim Nosotros, tentava sensibilizar profissionais e entidades para, em conjunto, lutar contra a 12 SANTOS JÚNIOR, op. cit., 2012. SILVA, José Roberval Freire da. O acesso à educação escolar de imigrantes nas décadas de 1980/1990 em São Paulo. [mar., 2011]. Entrevistadora: WALDMAN, Tatiana Chang. 14 Interessante observar a forte presença da Igreja Católica na luta pelos direitos dos migrantes internacionais em São Paulo e no Brasil. Todas as entidades destacadas se incluem nesta vinculação. De acordo com Eliane Botelho Junqueira “Los abogados populares también tienen una fuerte relación con la Iglesia católica a través de sus comisiones pastorales […] confirmando la tendencia detectada por Fernando Rojas de que la Iglesia en América Latina y, en especial, en Brasil representa la segunda y principal fuerza en la formación de esos grupos de abogados, en razón de su participación en la lucha contra la explotación económica y los regímenes autoritarios (1986: 61)”. In: JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Los abogados populares: en busca de una identidad. El Outro Derecho, n. 26-27, p. 193-227 Bogotá, ILSA, abr. 2002. p. 197. 15 BONASSI, Margherita. O acesso à educação escolar de imigrantes nas décadas de 1980/1990 em São Paulo. [fev., 2011]. Entrevistadora: WALDMAN, Tatiana Chang. 16 BONASSI, op. cit., 2000, p. 176-177. 17 Ibid. 13 2607 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Resolução que violava direitos fundamentais dos migrantes18. A mídia impressa de grande circulação e os grandes canais da televisão, entretanto, resistiam em noticiar os desrespeitos sofridos por migrantes. A pedido do Centro Pastoral dos Migrantes, a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, pelo advogado Belisário dos Santos Júnior, requereu formalmente à Secretaria da Educação, na pessoa do então Secretário Fernando de Moraes, a revogação da Resolução n.º 9 (SE-09/90)19. A partir de um encontro com Dom Paulo Evaristo Arns foi possível, ainda, agendar uma audiência com o Secretário da Educação para junho de 1993. No encontro, no entanto, o Secretário e a assessoria jurídica da Secretaria afirmaram que nada poderiam fazer, na esfera estadual, diante dos dispositivos federais. Fernando de Moraes se dispôs a dialogar com o Ministro da Justiça em conjunto com os advogados e membros do Centro Pastoral dos Migrantes e do Serviço Pastoral dos Migrantes. O Secretário solicitou, também, a elaboração de um documento que relatasse a realidade dos migrantes e que incluísse uma lista com os nomes de ao menos, cinquenta jovens alunos excluídos da escola, para ser a base de um possível pedido de revisão e anulação da Resolução20. De modo que era imprescindível convencer muitas famílias de migrantes a autorizarem a inclusão dos seus nomes nesta lista, o que tornaria pública sua condição indocumentada. Margherita Bonassi localizou os nomes e endereços de famílias com filhos em idade escolar a partir das informações constantes no fichário dos atendimentos realizados pelo Centro Pastoral dos Migrantes e passou a procurá-las. Muitas famílias foram visitadas, mas a dificuldade de convencê-las a fazer pública sua situação irregular no Brasil era desmedida. O medo da deportação impediu muitos migrantes de autorizarem a utilização de seus nomes21. Em agosto de 1993 é noticiada a substituição de Fernando de Moraes, que passa a não ser mais o Secretário da Educação de São Paulo22. O fato, no entanto, não paralisou a elaboração do Dossiê que iria documentar a situação dos jovens migrantes excluídos do acesso à educação escolar no Estado por conta de sua situação migratória irregular. Relatos de violações do direito à educação escolar de migrantes no Estado de São Paulo, em pleno final do século XX, não paravam de surgir. O problema persistia. Em fevereiro do ano de 1994 o Dossiê-Escola logrou ser concluído pelo Centro Pastoral dos Migrantes. Os nomes de cinquenta e cinco jovens migrantes excluídos do sistema de ensino de São Paulo constavam como exemplo do desrespeito aos dispositivos constitucionais. De acordo com Margherita Bonassi, o Dossiê foi 18 BONASSI, Margherita. Prohibido ir a la escuela! Nosotros: boletín de la Pastoral de los migrantes latinoamericanos, São Paulo, ano 3, n.º 20, abr./jun. 1993. 19 SANTOS JÚNIOR, Belisário dos. Educação X Segurança Nacional. O São Paulo, São Paulo, 6 fev. 1992, Justiça e Paz, p. 5. 20 BONASSI, op. cit., 2000, p. 177. 21 BONASSI, op. cit., 2011. 22 BONASSI, op. cit., 2000, p. 177. 2608 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 apresentado ao Ministério Público, no dia 4 de fevereiro do mesmo ano, para que se revogasse a Resolução. Mais uma vez, ainda segundo a autora, não foi possível paralisar a aplicação da normativa estadual, tendo o Ministério Público justificado que se tratava de Resolução com fundamento em dispositivos federais23. Tão somente no dia 2 de fevereiro de 1995, aproximadamente cinco anos após a sua publicação, a Resolução n.º 9 (SE 09/90) teve sua revogação declarada por meio da Resolução n.º 10 (SE 10/95) da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. A Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo havia apresentado representação requerendo a sua revogação ao governador, recém-eleito, Mario Covas. O advogado Belisário dos Santos Júnior foi nomeado Secretário da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo e já na sua primeira semana de trabalho organizou a cerimonia em que por meio da nova Resolução se universalizaria, enfim, o acesso à educação escolar no Estado24. A Resolução n.º 10 (SE – 10/95), que dispõe sobre matrícula de aluno estrangeiro na Rede Estadual de Ensino fundamental e médio, agora com fundamento na Constituição Federal e no ECA e não mais no Estatuto do Estrangeiro, determina que todas as escolas estaduais que ministram o ensino fundamental e médio deverão proceder a matrícula de todos os alunos estrangeiros, estejam eles em situação migratória regular ou não25. Ao que parecia, o acesso à educação escolar de migrantes indocumentados já não seria mais um problema no Estado de São Paulo. O debate, no entanto, não estava esgotado. É importante enfatizar, ainda, a existência de posteriores Deliberações e Pareceres, tanto do Conselho Estadual de Educação de São Paulo como do Conselho Municipal de Educação de São Paulo, apresentando, novamente, questionamentos a respeito do tema da inclusão de migrantes indocumentados no sistema de ensino brasileiro26, particularmente no Estado de São Paulo27. O que indica que a publicação de uma Resolução da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo ˗ Resolução n.º 10 (SE-10/95) ˗ não preencheu a necessidade de uma discussão mais ampla, que resulte na conscientização da necessidade de garantia a todos migrantes internacionais o direito à educação escolar. 23 Ibid. p. 179. BONASSI, Margherita. Derrubada lei que proibia crianças de estudarem! Vai e Vem, São Paulo, jan./fev./mar. 1995, p. 3. 25 Cf. SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Resolução n.º 10, de 2 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre matrícula de aluno estrangeiro na rede estadual de ensino fundamental e médio. 26 O que pôde ser percebido especialmente pelo Parecer n.º 786/1995 do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, em que consta a informação de que muitas escolas privadas relutavam, à época, em contrariar o Estatuto do Estrangeiro; pelo Parecer n.º 445/1997 e pela Deliberação n.º 16/1997 deste mesmo Conselho Estadual, em que o tema da aplicação do Estatuto do Estrangeiro retorna a ser debatido; e pelos Pareceres de número 07/1998 e 17/2004 do Conselho Municipal de Educação de São Paulo. 27 MAGALHÃES, Giovanna Modé. Fronteiras do Direito Humano à Educação: um estudo sobre os imigrantes bolivianos nas escolas públicas de São Paulo. 2010. 182f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 109-110. 24 2609 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 3. A Proposição Legislativa n.º 187 e o acesso à educação escolar de migrantes indocumentados na Califórnia (EUA) Foi nesta mesma década de 1990 que na Califórnia, Estados Unidos, se submeteu a referendo a Proposição Legislativa n.º 187 – Illegal Aliens. Ineligibility for public services. Verification and Reporting. Initiative statute – lançada em plena campanha eleitoral sob o lema Save our State (SOS), em português, Salve o nosso Estado. O objetivo primeiro da Proposição era dificultar ainda mais o ingresso e permanência dos fluxos migratórios irregulares por meio da denegação de acesso a grande parte dos serviços públicos essências até então disponíveis a essa população. A Proposição foi aprovada no dia 8 de novembro de 1994, por 59% das pessoas que opinaram, e já no dia seguinte, 9 de novembro, passou a ter vigência28. No que tange a temática da educação, a Proposição declarava a exclusão de todos migrantes indocumentados dos centros públicos de ensino elementar e médio e das universidades públicas. Foi previsto um controle progressivo da regularidade migratória de todas as crianças e jovens estrangeiros matriculados, assim como um sistema de notificação dos pais ou dos próprios interessados, para o nível universitário, e também ao serviço de migração. O controle, nas situações de ensino elementar e médio, abrangia também a situação migratória dos pais ou dos responsáveis legais pelos alunos29. Embora o conteúdo da Proposição Legislativa n.º 187 se assemelhe ao da Resolução n.º 9 (SE-09/90) da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e do Estatuto do Estrangeiro brasileiro no que diz respeito a exclusão de migrantes indocumentados do direito à educação escolar, observa-se as diferentes formas de atuação e seus respectivos impactos na luta pela efetivação desse direito. Tão logo aprovada a Proposição n.º 187 na Califórnia, numerosas ações judiciais tanto na esfera estadual como na esfera federal alcançaram a suspensão temporária e, tempos depois, permanente, da sua vigência pela sua questionável constitucionalidade30. Cabe mencionar que antes da Proposição n.º 187, a Suprema Corte norte-americana já havia refletido sobre o acesso à educação de migrantes indocumentados no precedente Plyler vs. Doe, de 198231. 28 MARIN, Ruth Rubio. La protección constitucional de los extranjeros ilegales en Estados-Unidos: a propósito de la proposición 187 del Estado de California. Revista Española de Derecho Internacional, Madrid, v.16, n.46, p.107133, jan./abr. 1996. Disponível em: <http://www.cepc.gob.es/publicaciones/revistas/revistaselectronicas>. Acesso em: 04. Jul. 2012. p. 111. 29 Ibid., p. 111; 112. 30 Ibid., p. 111-113. 31 O precedente Plyler vs. Doe, de 1982, ponderou sobre a constitucionalidade do § 21.031, constante do Código de Educação do Estado do Texas. Tal dispositivo autorizava a cobrança de taxas, por parte das escolas públicas, dos jovens alunos estrangeiros em situação migratória irregular, ou mesmo a negativa de acesso ao ensino aos mesmos. O questionamento da inconstitucionalidade dos dispositivos tinha como fundamento o desrespeito a cláusula da proteção igualitária (equal protection clause) e a competência legislativa sobre o tema reservada ao âmbito federal 2610 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 É aceitável sugerir, ademais, que as diferentes formas de atuação dos movimentos sociais de migrantes diante da temática no Brasil e nos Estados Unidos podem decorrer dos diferentes percentuais e impactos da presença de migrantes residentes nos dois países. A dimensão e a força da comunidade migrante nos Estados Unidos podem ser mensuradas a partir dos números trazidos pela reportagem de capa da Revista norte-americana Times de 25 de junho de 2012: seriam 12 milhões de migrantes indocumentados nos Estados Unidos, sem contar a numerosa comunidade de migrantes em situação regular32. No Brasil, atualmente, de acordo com Mac Margolis, a presença de migrantes ainda é modesta: os estrangeiros, de acordo com o IBGE, eram 433 mil em 2010. Incluindo os migrantes indocumentados, não compreendidos nesse cálculo, não alcançam hoje 2% da população nacional33. 4. As dificuldades para acessar o Poder Judiciário: o tema do direito à educação escolar de migrantes em ações judiciais em São Paulo A partir da descrição da atuação do movimento de defesa dos direitos dos migrantes na luta pela efetivação do direito à educação escolar foi possível observar uma mobilização intensa especialmente no nível administrativo34. Cabe questionar, portanto, como se deu a utilização do Poder Judiciário como locus para o reconhecimento desse direito. O movimento se apropriou, também, desse Poder como arena de luta? Ao trabalhar o tema da proteção de um direito fundamental, particularmente o direito à educação escolar, por meio de ações judiciais, há que se ponderar as dificuldades enfrentadas por famílias de migrantes indocumentados no acesso ao Poder Judiciário, dentre outros aspectos, pela falta de informação a respeito de direitos no Brasil, pelo medo de exposição da situação migratória irregular em que se encontram, e pelas extensas jornadas de trabalho que as impedem, muitas vezes, de procurar auxílio. Sobretudo entre as duas últimas décadas do século XX (1980/1990), era generalizado, entre os migrantes, o medo de ser deportado do país. A severa legislação vigente, o Estatuto do Estrangeiro, e sua ríspida aplicação, não deixavam margem de opção para uma entrada regular (preemption). Tamanha era a polêmica suscitada com o tema, que o precedente foi decidido por um voto de diferença. Cinco magistrados votaram a favor da inconstitucionalidade dos dispositivos e quatro contra. In: Ibid., p. 123; 129. 32 VARGAS, Jose Antonio. Shadow Americans: as more of the U.S.´s 11.5 million undocumented immigrants go public with their status, their stories will change the citizenship debate. Times, vol. 179, 25 jun. 2012, p. 20-29. 33 MARGOLIS, Mac. Brasil, novo polo de imigração. O Estado de São Paulo, 8 jan. 2012. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,brasil-novo-polo-de-imigracao-,819891,0.htm>. Acesso em: 4 set. 2012. 34 Celso Fernandes Campilongo, na década de 1990, elaborou uma tipologia geral dos serviços legais, destacando dois grandes “tipos ideais”: os serviços legais tradicionais e os serviços legais inovadores. Muitas das características do segundo grupo podem ser observadas na descrição das instituições que trabalham com migrantes em São Paulo na mesma década de 1990. Um dos predicados que mais se destaca é a mobilização de recursos para além da arena judicial, especialmente no nível legislativo e administrativo, sendo o Judiciário apenas um locus de atuação desses serviços legais. In: CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 30. 2611 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 de muitos migrantes que escolhiam o Brasil como destino. Ingressavam e permaneciam no país, desse modo, em situação irregular. Belisário dos Santos Júnior afirma que no Brasil das décadas de 1980 e 1990, mas principalmente da primeira, ao estrangeiro era solicitada a apresentação da documentação a todo o momento e em qualquer lugar, o que refletiu no alto número de famílias de migrantes que foram deportadas35. Margherita Bonassi descreve histórias de migrantes indocumentados que, na década de 1990, eram abordados por agentes da Polícia Federal e notificados a deixar o país ou serem deportados, em locais públicos como praças, ou em atividades cotidianas, como em lanchonetes36. Tamanho era o medo de ter que deixar o país que grande parte dos migrantes preferia se calar diante de seus direitos desrespeitados no Brasil, a ter que expor sua situação irregular. Corroborava com o temor o fato de que muitos deles possuíam vizinhos e parentes que haviam sido deportados em abordagens realizadas pela Polícia Federal nas próprias residências37. O que dificultou a mobilização destes migrantes para demandar, especialmente na seara judiciária, seus direitos, e limitou a esfera de ação das instituições que trabalhavam na assessoria de migrantes em São Paulo. Por ser o problema da exclusão do acesso à educação escolar uma das muitas violações de direitos advindas da permanência em situação migratória irregular no país, observou-se que instituições como a Comissão Justiça e Paz e o Centro Pastoral dos Migrantes trabalhavam, principalmente, para que as famílias alcançassem a documentação no Brasil. O trabalho destas instituições diante da problemática se pautava, especialmente, em duas frentes: a regularização migratória das famílias de migrantes, que se dava principalmente em âmbito administrativo por meio de petições ao Ministério da Justiça, e uma grande mobilização a partir do diálogo com órgãos públicos e outras entidades de direitos humanos para que a Resolução n.º 9 (SE-09/90) fosse revogada. Belisário dos Santos Júnior, que trabalhava a época para a Comissão Justiça e Paz, afirma não saber se houve ações individuais, em âmbito judicial, nas décadas de 1980 e 1990, especificamente para a reinserção de migrantes indocumentados nas escolas em São Paulo, mas acredita que se existiram, foram em número bem reduzido por conta do medo da exposição da situação irregular de muitas famílias38. De fato, tornava-se arriscado pleitear a proteção do direito à educação pela via judicial, expor sua falta de documentação e seus dados pessoais, diante dos altos números de 35 SANTOS JÚNIOR, op. cit., 2012. BONASSI, op. cit., 2000. p. 151-152. 37 Ibid., p. 178. 38 SANTOS JÚNIOR, op. cit., 2012. 36 2612 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 deportações. A tentativa de garantir a permanência regular das famílias no Brasil mostrava-se mais abrangente e segura. O que proporcionaria o acesso mais amplo aos direitos fundamentais no país e que incluiria, dentre outros e para além do direito à educação escolar, também ao trabalho formal e a permanência no Brasil. Como resultado, enfrentou-se dificuldade para encontrar decisões judicias acerca do tema especialmente nas décadas de 1980/199039. Verificou-se, no entanto, na única ação que encontramos no período de vigência da Resolução n.º 9 (SE-09/90), que, quando acionado, o Judiciário posicionou-se em sentido favorável ao acesso à educação escolar dos migrantes em situação irregular, ao menos nos casos em que aguardavam a decisão do pedido de visto de residência no país pelo Ministério da Justiça40. Nas primeiras décadas do século XXI (2000-2013), a mesma severa legislação de 1980, referente aos estrangeiros no Brasil, segue vigente. Mas o cenário já não é mais o mesmo. Embora o Estatuto do Estrangeiro permaneça seletivo no que tange ao ingresso e permanência de estrangeiros no Brasil, o que acarreta um alto número de migrantes em situação irregular no país, as deportações já não são, de fato, aplicadas de maneira tão rigorosa. E certos avanços puderam ser notados, como o Acordo de Livre Residência Mercosul, Chile e Bolívia (Decreto n.º 6.975/2009), que inclui como beneficiários nacionais da Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Chile, Peru, Colômbia e Equador41. No que diz respeito ao acesso ao Poder Judiciário por parte de migrantes indocumentados, particularmente para garantir o direito à educação escolar, o cenário não se modificou de maneira expressiva. Este segue sendo dificultado pela falta de informação a respeito de direitos no Brasil. Muitos migrantes desconhecem a possibilidade de procurar por seus consulados e/ou instituições que trabalham com migrantes no país para obter informações sobre seus direitos no Brasil ou os próprios consulados quando procurados têm dificuldades em fornecer informações acerca dos mesmos e as entidades que trabalham no auxílio de migrantes são poucas e, possivelmente, não alcançam a todos. Há, ainda, desconhecimento e receio por parte de muitos de acessarem órgãos públicos como a Defensoria Pública e o Ministério Público. Ademais, as exaustivas jornadas de trabalho impedem, muitas vezes, a procura por auxílio para a garantia de um direito e, mesmo que o contexto atual enseje menos receio aos migrantes indocumentados no que tange a ocorrência de deportações, muitos ainda temem a exposição da situação irregular. 39 A pesquisa jurisprudencial sobre o tema, sem pretensão de ser exaustiva, foi realizada, especialmente, pelo acesso à jurisprudência disponibilizado no site do Tribunal de Justiça de São Paulo. 40 Cf. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível n.º 197.397-1, de Santo André, Rel. Vasconcellos Pereira, j. 19/10/1993. 41 De modo que uma expressiva parte dos sul-americanos que anteriormente não alcançavam ingressar e permanecer de maneira documentada no Brasil, devido aos requisitos seletivos constantes no Estatuto do Estrangeiro, hoje podem se beneficiar de tal Acordo. 2613 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 No que diz respeito ao rol de obstáculos ao acesso efetivo à justiça elaborado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, cabe destacar, para esse caso específico, a aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa. Essa enfrenta as dificuldades no reconhecimento da existência de um direito juridicamente exigível42, os limitados conhecimentos a respeito da maneira de ajuizar uma demanda e a disposição psicológica para ingressar com processos judiciais. Há, ainda, a desconfiança dos operadores do direito, dos procedimentos, do excessivo formalismo, que proporcionam ao litigante a sensação de insegurança43. Tais obstáculos refletiram na inserção da temática na seara judiciária. Foram poucas as decisões localizadas no Estado de São Paulo, já na primeira década do século XXI, e essas tratam, principalmente, da impossibilidade de oficialização da conclusão de curso (nível de ensino básico) por parte de estudantes estrangeiros indocumentados que frequentaram as aulas e cumpriram tarefas e avaliações com registro de frequência e aproveitamento. As decisões indicam as dificuldades do Poder Judiciário em afirmar o acesso pleno ao direito à educação escolar. Em mais de uma ocasião, o Judiciário não reconheceu o direito de obtenção do certificado de conclusão de curso por migrantes indocumentados, justificando ser imprescindível o fornecimento do número do Registro Nacional de Estrangeiro para a emissão do documento44, ocasionado o impedimento de acesso ao ensino superior de migrantes que cursaram o ensino básico no Brasil. Para além da importância da afirmação formal e definitiva da revogação dos dispositivos do Estatuto do Estrangeiro por parte do Poder Judiciário, cabendo destacar que se desconhece, até o momento, qualquer iniciativa de propositura de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)45, a questão do acesso à educação escolar de migrantes está inserida em 42 No que dia respeito às dificuldades no reconhecimento da existência de um direito juridicamente exigível, em outra ocasião, pudemos constatar, por meio de entrevistas, a percepção – juridicamente infundada - da não titularidade de direitos por parte de alguns migrantes indocumentados no âmbito do acesso aos serviços de saúde na cidade de São Paulo. O depoimento de uma das migrantes é esclarecedor: “Os médicos falam que a gente trabalha demais, e falam para a gente voltar para a nossa terra; eles não compreendem que na Bolívia está difícil; sabemos que o posto (de saúde) não é para nós (grifo nosso)”. In: WALDMAN, Tatiana Chang. Movimentos migratórios sob a perspectiva do direito à saúde: Imigrantes bolivianas em São Paulo. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 90-114, mar./jun. 2011. p. 103. 43 CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 22-24. 44 Em 2007, por exemplo, um aluno migrante indocumentado de nacionalidade coreana que teve seu pedido de matrícula em curso superior de uma universidade pública paulista indeferido por não apresentar, no prazo regulamentar, os documentos exigidos, por meio de um mandado de segurança requeria a garantia do seu direito à matrícula definitiva na Faculdade. A liminar foi concedida e o Ministério Público entendeu pela não intervenção por versar sobre direitos disponíveis e envolver maiores e capazes. Na sentença, o juiz se pronunciou pelo não reconhecimento do direito líquido e certo, já que a documentação exigida não foi apresentada no prazo de dez dias pelo impetrante que, ao se inscrever no exame do vestibular, anuiu com as suas regras que determinam este prazo regulamentar. Ademais, por não possuir o Registro Nacional do Estrangeiro, o entendimento foi de que ele não teria o direito a obtenção do Certificado de conclusão de curso. In: Mandado de Segurança n.º 0104569-49.2007.8.26.0053 (053.07.104569-2), Foro Central - Comarca de São Paulo, Juiz de Direito Marcos de Lima Porta, Sentença n.º 796/2007, registrada em 08/05/2007 no livro nº 661 às Fls. 69/71. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/cpo/pg/show.do?processo.codigo=1HZX6Z7SP0000&processo.foro=53>. Acesso em: 22 jul. 2012. 45 Tendo em vista não ser possível o ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo fato do Estatuto em questão ser anterior a Constituição Federal de 1988. A ADPF é disciplinada pela Lei n.º 9.882/99, de 3 de dezembro de 1999. 2614 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 um debate muito mais amplo, e, há que se frisar, complexo: a necessidade de substituição da atual legislação que trata da temática migratória no Brasil. A dificuldade de mudança nesta seara é manifesta: o Poder Executivo e o Legislativo, há mais de três décadas, consentem com a insistente vigência do superado Estatuto do Estrangeiro. Seria importante para o Brasil que uma nova Lei de Migrações declare, de forma explícita, o direito ao acesso à educação escolar de todos os migrantes ˗ documentados e indocumentados ˗ de modo a não deixar espaço a dúvidas ou questionamentos para a aplicação de um direito humano fundamental. O não posicionamento do Estado brasileiro e a sua conivência frente às limitações ao direito à educação escolar de migrantes é, até o presente momento, lamentável. Considerações Finais Os resultados da pesquisa referentes ao questionamento ao Poder Judiciário acerca do direito à educação escolar de migrantes indocumentados confirmaram a existência de obstáculos no acesso ao debate judicial e, também, as dificuldades do Poder Judiciário em afirmar o exercício pleno desse direito. Sendo poucos os casos encontrados em que as situações de violação do direito à educação escolar de migrantes alcançaram ser discutidas na esfera judicial, sobressai o problema de dimensionar quantos outros migrantes tiveram, e ainda têm, seus direitos desrespeitados e não se manifestaram diante das notórias dificuldades enfrentadas ˗ até mesmo pelos nacionais e quem dirá aos estrangeiros sem documentos ˗ para o acesso ao Poder Judiciário. Para além dos exemplos já ilustrados do contato entre o Poder Judiciário e o tema do impedimento ao acesso à educação escolar de estrangeiros, destaca-se o parecer, de 1º de dezembro de 2011, da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, motivado pelo pedido de providências formulado pelo Consulado Geral da Bolívia que trazia o relato de que crianças migrantes estavam sendo impedidas de frequentar escolas por conta da falta de documentação46. Ou seja, infelizmente, ainda é atual a temática dos entraves ao acesso às instituições de ensino por migrantes indocumentados no Estado. Se na década de 1990 o movimento social pela defesa dos direitos dos migrantes se manteve praticamente afastado do debate na esfera judiciária, seja pelo medo de exposição da situação indocumentada de muitos migrantes, seja pela dificuldade de sensibilizar atores importantes, como o Ministério Público, diante da temática; cabe questionar se no contexto atual a 46 Frente a este entrave ao direito à educação, foi a conclusão da Coordenadoria: “ante o exposto, sub censura, resta sugerido que seja: [...] oficiado aos Conselhos Estadual e Municipal de Educação para que seja aceita a matrícula das crianças bolivianas, chilenas e dos países do Mercosul, mesmo que não tenha sido regularizada a sua situação imigratória, ante ao tratado entre o Brasil e estes países”. 2615 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 utilização de maneira incipiente da provocação da jurisdição é a estratégia mais adequada (favorável) ao movimento. Com a temática migratória se tornando cada vez mais latente em debates públicos47 talvez seja o momento de trazer a arena judiciária o debate aprofundado sobre o tema. O movimento já se utiliza de diversas formas de protesto e pressão por garantia de direitos. Realizou a “7º Marcha dos Imigrantes” em 2013 na capital do Estado de São Paulo, dialoga com os mais diversas órgãos estatais realizando parcerias estratégicas com o Ministério da Justiça e o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), com políticos sensíveis a causa do movimento, com organizações como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Internacional das Migrações (OIM) e participa de debates em esfera regional (Cúpulas Sociais do Mercosul) e mundial (Fórum Social Mundial das Migrações) com a finalidade de monitorar e construir propostas de políticas migratórias que garantam direitos e a inclusão cidadã dos migrantes. A mobilização é realizada, para além da rede de contato das instituições de apoio aos migrantes e do contato pessoal de cada migrante, por meio de programações de rádios próprias dos grupos, além de publicações impressas próprias. Tal mobilização vem trazendo resultados. É possível notar uma crescente preocupação com o tema. Na primeira década deste século já se pode mencionar projetos que trabalham com a questão da presença de alunos migrantes nas escolas, como é o caso do Projeto de Extensão Universitária Educar para o Mundo (IRI/USP)48. Há, também, iniciativas por parte do Estado brasileiro em âmbito municipal, como a instituição, na cidade de São Paulo, do “Grupo de Educação para a Diversidade Étnico Cultural e Racial” (Portaria n.º 4.738 de 19 de outubro de 2009), composto por representantes da Secretaria Municipal de Educação, da população negra, latino-americana e indígena. E, recentemente, no primeiro semestre de 2013, a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania (SDHC) do município de São Paulo criou a “Coordenação de Para Neide Lopes Patarra “Nos últimos tempos o tema das políticas migratórias no Brasil tem se tornado imperativo. A grande imprensa, revistas, trabalhos acadêmicos, redes sociais, blogs, websites oficiais do governo, e vários outros meios de comunicação estão repletos de reportagens, comunicados, divulgações e todo tipo de documentação voltada a um dos temas mais bombásticos destes últimos anos ˗ as migrações internacionais. [...] Pode-se afirmar que o tema estará presente em quase todo o território brasileiro, tomará conta de debates nos três poderes (executivo, legislativo e judiciário) e nas instituições afins; enfrentará a pressão das demandas de grupos sociais organizados e de ONGs, nacionais e internacionais, que batalham pela abertura das portas aos imigrantes pobres e vitimas de catástrofes sociais e/ou climáticas”. In: PATARRA, Neide Lopes. O Brasil: país de imigração? Revista eletrônica e-metropolis, Rio de Janeiro, ano 3, n. 9, 2012. p. 6. 48 Criado em março de 2009, em parceria com a Escola Municipal Infante D. Henrique, o Centro de Apoio ao Imigrante e o projeto Casa da Lapa, o Projeto de Extensão Universitária Educar para o Mundo tem como proposta ser um projeto inovador de educação para a cultura latino-americana e para os direitos humanos, na perspectiva da inclusão social, compreendendo tanto a ação junto aos imigrantes latino-americanos como um trabalho junto à comunidade que os acolhe, tendo como norte a valorização e a difusão da cultura latino-americana entre os brasileiros e na própria Universidade de São Paulo. Cf. mais informações: MORAES, Ivy Mayumi de. Educar para o mundo. Extensão em relações internacionais: direitos humanos e imigração em São Paulo. Idéias, Campinas (SP), n. 5, p. 141-162, 2º semestre (2012). 47 2616 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 Políticas para Imigrantes” para garantir, por meio de políticas públicas, direitos aos estrangeiros que vivem em São Paulo. Sugere-se, no entanto, que tais resultados poderiam ser ampliados com a inclusão do Poder Judiciário como arena de debates, principalmente na temática do direito à educação escolar. Isso porque o Poder Judiciário, a partir de 1988, passou a ser utilizado, também, com a finalidade de dar visibilidade a demandas referentes aos direitos sociais. Para José Reinaldo de Lima Lopes, os titulares de direitos trazem sua demanda e provocam o Poder Judiciário a constranger uma negociação com os demais Poderes. O Judiciário converte-se, nas palavras do autor, em um espaço de discussão em que as partes podem refletir sobre os seus interesses e dialogar entre si, sendo o papel do Poder Judiciário garantir que os arranjos e disputas se realizem com fundamento na legalidade49. Celso Fernandes Campilongo destaca a contribuição dos movimentos sociais para a interpretação do direito, mesmo que as conquistas, muitas vezes, sejam graduais. Os movimentos podem expandir, nas palavras do autor, “os horizontes temáticos e interpretativos do sistema jurídico” a partir de ações com questões e atores inovadores. O Poder Judiciário se encontra à disposição dos movimentos como um interlocutor disposto a enfrentar e decidir suas demandas, o que não significa, evidentemente, o seu necessário respaldo, mas tão somente o ponto final ao conflito50. Nesse sentido, ainda de acordo com o mesmo autor, se decidir é escolher entre alternativas, a interpretação justamente as formula e é o papel dos movimentos sociais cobrar alternativas e reclamar direitos51. Ou seja, talvez o desafio do movimento social de migrantes no Estado de São Paulo, no que tange a luta pelo direito à educação, seja se apropriar também das instância judiciárias para forçar novas interpretações e trazer o tema ao debate de maneira mais ampla, facilitando as mudanças em termos de efetivação desse direito também pela via da interpretação dos Tribunais52. Ester Rizzi e Salomão Ximenes, ao discorrerem sobre a experiência da litigância estratégica53 no direito à educação infantil em São Paulo, pontuam a importância desta 49 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos Sociais: teoria e prática. São Paulo: Método, 2006. P. 120;137-138. CAMPILOGO, Celso Fernandes. Interpretação do direito a movimentos sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 100. 51 Ibid. p. 133-134. 52 De acordo com Michael W. Mccann “quando o tribunal atua em uma disputa particular, ele pode de uma só vez: aumentar a relevância da questão na agenda pública; privilegiar algumas partes que tenham demonstrado interesse na questão; criar novas oportunidades para essas partes se mobilizarem em torno da causa; e fornecer recursos simbólicos para esforços de mobilização em diversos campos”. In: MCCANN, Michael W. Poder judiciário e mobilização do direito: uma perspectiva dos “usuários”. In: DUARTE, Fernanda, KOERNER, Andrei. (Orgs.) Cadernos Temáticos: Justiça constitucional no Brasil: Política e Direito, p. 175-196. Disponível em: <http://www.trf2.gov.br/emarf/documents/revistaemarfseminario.pdf>. p.186. 53 De acordo com Barbora Bukovská “o litígio ‘estratégico’ ou ‘de impacto’ tem sido outro instrumento poderoso utilizado por defensores de direitos humanos ao abordar certos problemas. Litígio estratégico é um tipo de ação jurídica que 50 2617 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 modalidade de litigância judicial, em conjunto e articulação com as iniciativas de incidência política e mobilização social, como meio de fortalecer o direito e de dar visibilidade à temática, bem como incidir nos rumos da jurisprudência e no posicionamento dos órgãos do Sistema Judiciário, como o Ministério Público e a Defensoria Pública54. O Judiciário tem uma importância estratégica por ser o espaço em se discutem e se reconhecem direitos. Um direito reconhecido judicialmente pode ser exigido do Poder Executivo. Na opinião dos autores, a experiência demonstrou que é por meio da estratégia articulada de diferentes formas de exigibilidade que a percepção sobre a importância da garantia de um direito pode se ampliar55. Por fim, no que tange a luta do movimento pelo direito à educação escolar de migrantes em São Paulo, não pretendemos afirmar que a inclusão do tema na arena de debates do Poder Judiciário resolverá, por si, a questão. O que não se pode desconsiderar é que a apropriação também desse locus de debate amplia as alternativas e estimula novas formas de interpretação desse direito, o que pode favorecer a sua efetivação. O desafio está colocado ao movimento social. Referências bibliográficas BONASSI, Margherita. Prohibido ir a la escuela! Nosotros: boletín de la Pastoral de los migrantes latino-americanos, São Paulo, ano 3, n.º 20, abr./jun. 1993. BONASSI, Margherita. Derrubada lei que proibia crianças de estudarem! Vai e Vem, São Paulo, jan./fev./mar. 1995, p. 3. BONASSI, Margherita. Canta, América sem fronteiras: imigrantes latino-americanos no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2000. BONASSI, Margherita. O acesso à educação escolar de imigrantes nas décadas de 1980/1990 em São Paulo. [fev., 2011]. Entrevistadora: WALDMAN, Tatiana Chang. BUKOVSKÁ, Barbora. Perpetrando o bem: as consequências não desejadas da defesa dos direitos humanos. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos, ano 5, número 9, p. 7-21, 2008. possui um efeito mais amplo do que simplesmente promover uma solução a um demandante particular em um caso específico. Envolve casos em instâncias superiores [...] em que pretende-se alterar a lei ou a prática por meio de decisões judiciais. Frequentemente, busca também interpretar o direito constitucional ou internacional, particularmente em áreas onde é ‘difícil obter consenso legislativo sobre uma questão’”. BUKOVSKÁ, Barbora. Perpetrando o bem: as consequências não desejadas da defesa dos direitos humanos. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos, ano 5, número 9, p. 7-21, 2008. p.12/13 54 RIZZI, Ester. XIMENES, Salomão. Ações em defesa do direito à educação infantil em São Paulo: litigância estratégica para a promoção de políticas públicas. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org/images/stories/pdfs/artigoaj.pdf>. Acesso em: 28 jun. 2012. 55 Ibid. 2618 Anais do VIII Encontro da ANDHEP ISSN: 2317-0255 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. CAMPILOGO, Celso Fernandes. Interpretação do direito a movimentos sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. CENTRO PASTORAL DOS MIGRANTES N. SRA. DA PAZ. Dossiê escola: crianças proibidas de frequentar a escola. São Paulo, 1994. INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION. Glossary on Migration. 2. ed. Genebra: International Organization for Migration, 2011. Disponível em: < http://publications.iom.int/bookstore/free/Glossary%202nd%20ed%20web.pdf >. Acesso em: 17 fev. 2012. p. 102. JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Los abogados populares: en busca de una identidad. 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