a coragem da verdade no olhar para o outro e nossas multiplicidades

Propaganda
A CORAGEM DA VERDADE NO OLHAR PARA O OUTRO E NOSSAS
MULTIPLICIDADES
Nadia Regina Baccan Cavamura 1
Este texto tem como objetivos estabelecer discussões sobre a importância de considerar
as Multiplicidades e a Filosofia da Diferença na sociedade atual, inclusive na Educação, tendo
como referencial o pensamento de Gilles Deleuze e Michel Foucault, bem como refletir sobre
a coragem da verdade, não a verdade possibilitada pela lógica, mas pautada na ética, e as suas
consequências para a Educação.
Quando nos deparamos com o diferente que chamamos assim já considerando o
contexto em que são “lidos”, é preciso termos um pouco de cuidado para que não nos
coloquemos logo de início dentro de uma “filosofia de manada”, ou seja, para que não
sejamos guiados pela massa, sem aprofundamento pessoal e sem um entendimento mais
amplo das forças que os afetam.
Primeiramente, quando tentamos entender o mundo pela nossa visão, pela nossa ética,
que é singular, tendemos a julgá-lo errado, esquisito, injusto, etc. Queremos classificar e
julgar o mundo através da “Igualdade”. Zourabichvili (1994, p.59) nos mostra que o
movimento não é esse, mas “o ser é o que se diz de suas diferenças e não o inverso”. A
unidade, segundo Deleuze (1976, p.97) “é a do múltiplo e só se diz do múltiplo".
Dessa forma, é interessante que nos enxerguemos através do outro, do “não-eu”, como
na filosofia da Diferença, onde nós nos constituímos como pessoas únicas pela diferença e
não pela igualdade. Eu só posso me enxergar como pessoa, constituir minha identidade
através do outro. As identidades, para Deleuze, são a delimitação estanque das formas e das
individualidades, são simulacros, pois estamos em constante devir.
Quando nos deparamos com temas “polêmicos” ou nos encontramos em situações que
nos desterritorializam, os vemos/lemos imersos numa moral ocidental atual, ou seja, através
das relações de forças que nos afetam hoje e que produzem o saber do presente, neste espaço,
e que são diferentes das forças que atingem outros lugares, bem como em outras épocas. É
preciso considerar isso.
É nesse ponto que eu penso ser importante olhar para a Educação e suas implicações.
Trabalhamos com pessoas, nossos alunos, e estes já possuem seus círculos de convivência e
se tornarão profissionais, o que os levará a relacionar-se com grupos outros que não os seus
de costume. É preciso aprender a conhecer práticas, pensamentos, ética de diversos grupos,
mas sem julgá-los através do “Eu-mesmo”. Devemos olhá-los com o olhar do “não-eu”, do
outro. Somente assim conseguiremos mergulhar em algo do qual não fazemos parte, mas que,
ainda assim, existe. E entender como se dá o diferente, quais as forças que os afetam, qual o
saber produzido e qual o papel do sujeito nessa construção/desconstrução. Isso faz parte do
território Educação.
Foucault escreve no livro “Anti-édipo” um prefácio intitulado “Introdução à vida nãofascista” (1977, p. XI – XIV). Relendo-o, notei em uma das suas frases um pensamento de
sua filosofia que ilustra algumas das ideias que gostaria de abordar. Ao comentar como seria
viver contrariando as formas de fascismo, ele sugere algumas regras que diz ser como manual.
Uma delas eu gostaria de destacar:
1
Aluna de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP – Rio Claro
(PPGEM), sob orientação do Prof. Dr. Antonio Carlos Carrera de Souza. Integrante do Grupo de Estudos
Múltiplos Um - UNS/PPGEM/RC que pesquisa temas em Educação Matemática, apoiadas na literatura da
Filosofia da Diferença. Contato: [email protected]
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
220
A CORAGEM DA VERDADE NO OLHAR PARA O OUTRO E NOSSAS MULTIPLICIDADES
Libere-se das velhas categorias do negativo (a lei, o limite, a castração, a
falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou
como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo
e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades (FOUCAULT,
1977, p. XIII).
No texto de Gilles Deleuze “O que é um dispositivo?” (1990) ele coloca um trecho que
faz todo o sentido quando queremos pensar no “Outro” e suas multiplicidades. Ao discorrer
sobre o Saber em Foucault ele coloca:
O diagnóstico assim entendido não estabelece a autenticação de nossa
identidade pelo jogo das distinções. Ele estabelece que somos diferença, que
nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história a diferença dos
tempos, nosso eu a diferença das máscaras. (DELEUZE, 1990, p.160)
Dessa forma, algo que Foucault e Deleuze nos apresentam neste mundo tão disforme é a
Filosofia da diferença, e não da identidade, a filosofia da conjunção e não da definição, onde o
mais importante são os acréscimos, a complementaridade e não as rotulações.
A identidade nos leva à normalidade. Mas o que é normal? Normal perante o que? Isso
não faz sentido. A identidade deve ser constituída através das nossas diferenças e não das
diferenças dos outros. A nossa diferença nos distingue. Apresentamo-nos como um eu
diferente a cada momento. E nós somos responsáveis por essa construção. Deleuze nos faz
olhar as diferenças:
O esforço em negar as diferenças faz parte desse empreendimento mais geral
que consiste em negar a vida, em depreciar a existência, em prometer-lhe
uma morte (calorífica ou outra), em que o universo precipita-se no
indiferenciado. (DELEUZE apud PELBART, 2010, p.33)
O interessante é que discussões como essas surgem em nossos contextos de vida por
pertencermos a uma sociedade. O outro aparece às vezes como “ser estranho”, como
“diferente”, como “normal” ou “anormal”. E nós, será que pensamos a Educação como
“molde” de pessoas? Queremos ser moldados? Será que queremos classificá-las com uma
média? Temos que ser uma nota? Somos notas? Damos notas? Classificamos e adjetivamos
pessoas pensando em que? Pensamos e lembramos de que se tratam de pessoas? É possível
classificar pessoas?
Quando falamos de Educação falamos de diferenças, falamos da relação poder-saber da
qual fazemos parte, dessa forma, há possibilidades diversas de se viver/entender/pensar.
Inicialmente temos que nos questionar se o que ensinamos e queremos ensinar é realmente
importante para nossos alunos e como se dá essa importância. Não há como não ser
importante uma vez que estamos inseridos num mundo já posto e com uma dinâmica em
andamento. Note que não estou aqui discutindo se essa dinâmica é ou não boa, coerente ou
justa. A realidade está aqui. Claro que pode ser mudada, renovada, aperfeiçoada. Buscamos
constantemente a atualização das nossas virtualidades:
O virtual é a insistência do que não é dado. Apenas o atual é dado, inclusive
sob a forma do possível, isto é, da alternativa como lei de divisão do real que
atribui de imediato minha experiência a certo campo de possíveis.
(ZOURABICHVILI, 1994, p.62-63)
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
221
A CORAGEM DA VERDADE NO OLHAR PARA O OUTRO E NOSSAS MULTIPLICIDADES
Esse é o nosso papel na Educação, mostrar a potência da vida. Mas para isso precisamos
estar preparados e com as mesmas ferramentas dos que estão exercendo o poder naquele
momento, para que possamos exercer nossa resistência com a mesma intensidade.
Dessa forma, podemos discutir se/como a Educação produz ‘marginalizados’.
Primeiramente, quem cria ‘marginalizados’ é a sociedade que nos divide em
dominantes/dominados. A Educação marginaliza? Depende. E nessa questão podemos
interferir positivamente ou negativamente uma vez que somos educadores. Como o educador
pode estabelecer esse ambiente de libertação? Tendo em sua prática uma atitude temperante e
de coragem da verdade, pois o professor é quem medeia, quem cria condições, quem avalia,
quem legitima o saber produzido e construído.
Na coragem da verdade não há separação entre teoria e prática, elas são uma só força,
uma mesma natureza. E a coragem da verdade que pensamos em um educador matemático é a
vivência da verdade, a liberdade de falar francamente, segundo Gros (2004, p.11) a “verdade
cuja condição de possibilidade não é lógica, mas ética”.
Essa opção não é fácil, pois a coragem da verdade às vezes “assume o risco de uma
reação negativa” (GROS, 2004, p.157) do outro, por isso dizemos que se trata de uma “fala
verdadeira, engajada e perigosa” (GROS, 2004, p.157). E é disso que deveria tratar a
Educação. Falarmos a nossos alunos de maneira direta e clara, sem rodeios. E que nossa fala
se espelhe na nossa conduta.
Outras atitudes também possibilitam fazer da Educação instrumento de poder e não de
dominação, tal como cultivar um ambiente de respeito, diálogo e tolerância, deixando-nos
envolver pela construção do conhecimento, sem receio de entrar em um território
desconhecido e possibilitar a desnaturalização do normal, a desterritorialização e a
constituição de territórios outros, pois as multiplicidades são rizomas e
todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é
estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas
compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem
parar. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.18)
É preciso que haja coragem da verdade nessa questão. Nós somos os responsáveis pelas
nossas escolhas. Precisamos assumi-las e exercê-las. Nós somos um novo sujeito a cada
momento. Somos um constante devir. E precisamos estar cientes disso.
Pelbart (2010, p.37), se referindo à vida que se liberta do que a aprisiona, coloca que
para que a vida apareça na sua imanência e afirmatividade é preciso que ela se liberte do que a
representa, a contém, a prenda, a formate:
Só a força ativa se afirma, ela afirma sua diferença, faz de sua diferença um
objeto de gozo e de afirmação. (DELEUZE apud PELBART, 2010, p.33)
Acredito que ser marginalizado, produzir marginalizados, ou marginalizar é uma
maneira de olhar para a realidade. Essa dinâmica é a proposta pela sociedade cultural em que
pertencemos. Ela nos faz sentir assim. Ela nos classifica assim. Essa é uma das forças de
subjetivação, ou seja, uma força que nos afeta, tenta nos assujeitar. Há como escapar, nos
proteger dessas forças? Sim, há escapes do círculo poder-saber na medida em que nos
percebemos imersos dentro destas linhas de força. É conforme coloca Levy (2011, p.130),
sermos capazes de “nos colocar diante do mundo sob a perspectiva da resistência”.
Segundo Pelbart (2010, p.26), a força social é um campo de “positividade imanente e
expansiva” que o poder tenta controlar, modular ou regular. A Educação e os educadores
matemáticos devem ser uma ferramenta para a transformação dessa realidade e sociedade que
não queremos, pois temos como potencialidade pensar e fazer pensar, e pensar segundo Levy
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
222
A CORAGEM DA VERDADE NO OLHAR PARA O OUTRO E NOSSAS MULTIPLICIDADES
(2011, p. 128-129) é produzir a verdade e não conhecê-la. É criar o novo, é produzir
diferença. É resistir, é combater e criar novos modos de existência.
Devemos olhar a todo o momento para nós mesmos para que, nos conhecendo,
possamos estar atentos às forças que nos atingem e não nos deixemos atingir por elas caso ela
não nos beneficie. É poder exercer nosso desejo de aceitar ou não a situação vigente. Tendo
essa dimensão do controle conquistamos a autonomia de nos deixarmos atingir apenas pelas
forças que nos interessam de uma forma muito mais ativa e conseguimos desenvolver nosso
papel de educadores com muito mais segurança e com mais certeza que não estamos
conduzindo nossos alunos ou nos conduzindo a caminhos de meros seguidores.
Considerações finais
É preciso, com coragem da verdade, criar condições de ver e fazer ver realmente o
mundo, tirando nossas vendas para que possamos olhá-lo, pensá-lo, discuti-lo, desnaturalizálo e reconstruí-lo. Somente assim a educação deixará de produzir/manter uma realidade baseada em dominantes e dominados – iniciando o desenvolvimento de uma relação de poder
e resistência consciente e corajosa, onde cada um de nós é importante e tem o seu papel nessa
construção.
Os saberes são produzidos através dos poderes que nos afetam em determinada época.
Em cada momento somos afetados por forças. Essas forças são ações, mas os conhecimentos,
os saberes são históricos, talvez por isso a dificuldade em nos libertarmos de algumas de
nossas amarras. A pós-modernidade insere especificamente a questão do sujeito, da
subjetividade nesta relação poder-saber, trazendo o indivíduo para dentro deste diagrama de
forças. Somos “capazes” de nos colocar dentro desta construção, podemos “aprender” a
reconhecer as forças que nos atingem e aceitá-las ou não. Dessa forma, a ciência, o
conhecimento e a Educação passa a aceitar o múltiplo, o diverso e a ser
invenção/inventividade. Nossa vida, da mesma forma, nos traz experiências cotidianamente
que nos faz enfrentar o desafio de potencializar os movimentos inventivos, as singularidades
que permanecem invisíveis, anuladas, em rotinas avassaladoras dos espaços e tempos.
Passamos a abrir espaço para olhar para o conhecimento como desestabilização ao invés de
segurança. É a coragem de abrir-se para o novo constantemente e não para certezas, pois essas
deixam de existir. Existem são maneiras de ver, de olhar e de pensar, problematizar sobre
elas. Isso nos leva a Sócrates que nos faz perceber que “nada sabemos”, somos ignorantes.
Apenas não devemos achar que sabemos algo, pois assim seremos além de tudo ignorantes de
nós mesmos.
Pensar sobre as multiplicidades com coragem da verdade é abrir espaço para olhares e
não para certezas, para conhecimento e não para re-conhecimentos. Abrir possibilidades para
o novo, para o diferente, e não para verdades que podem não ser as nossas. É a busca da ética
que “persegue a verdade e denuncia a mentira” (GROS, 2004, p.166). É o devir.
Referências
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
________. O que é um dispositivo? In: ________. Michel Foucault, filósofo. Barcelona:
Gedisa, 1990. p. 155-161.
________. Nietzsche e a filosofia. Rio de janeiro: Editora Rio, 1976.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
223
A CORAGEM DA VERDADE NO OLHAR PARA O OUTRO E NOSSAS MULTIPLICIDADES
DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. 1ª Ed. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1995. (Vol.1). 5ª Reimpressão - 2007.
FOUCAULT, M. Introdução à vida não-fascista. In DELEUZE , G. O anti-Édipo:
Capitalismo e esquisofrenia. São Paulo: Editora 34, 2012 - 2ª Edição. (Vol. 1). (1977, p. XI
– XIV).
GRÓS, F. Introdução: a coragem da verdade. In: _____(org). Foucault: a coragem da
verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p.11-12.
_______. A parrhesia em Foucault (1982-1984). In: _____(org). Foucault: a coragem da
verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p.155-166.
LEVY, T. S. A experiência do fora – Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011.
PELBART, P. P. Do niilismo à Biopolítica. In: LIMA, E. A.; NETO, J. L. F; ARAGON, L. E.
(org.). Subjetividade Contemporânea: desafios teóricos e metodológicos. Curitiba: Editora
CRV, 2010. Cap. 2, p. 25-40.
ZOURABICHVILI, F. O Vocabulário De Deleuze. Tradução André Telles. Rio de Janeiro:
2004. Disponível em http://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/obra/voca.prn.pdf. Acesso em: 10
set 2012.
LINHA MESTRA, N.23, AGO.DEZ.2013
224
Download