Do abrigo a familia 26-07-06.P65

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DO ABRIGO À
Família
3
SÉRIE > EM DEFESA DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA<
DO ABRIGO À
Família
3
SÉRIE> EM DEFESA DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA<
Títulos da ABTH
em nosso catálogo:
Copyright © 2002 ABTH
Acolhimento familiar :
experiências e perspectivas
Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada
ou reproduzida, por qualquer meio ou forma,
seja digital, fotocópia, gravação, etc., nem
apropriada ou estocada em banco de dados,
sem a autorização dos editores.
Série em defesa da convivência
familiar e comunitária
Organização: TERRA DOS HOMENS
Cuidar de quem cuida
1
2
3
4
5
Trabalho social com família
Colocação familiar
Do abrigo à família
Violência intrafamiliar
Acolhimento familiar
Elaboração: Claudia Cabral, Claudia Guimarães, Fernando Freire
Eliana Olinda Alves, Aurilene Passos
Colaborador: Roberto da Silva
Agradecimentos: Queila Vasni, Marcy Gomes, Isa Maranhão,
Juaceli Silva
Revisão: José Eduardo Menescal Saraiva, Kátia Viola
e Vinícius Neder
Apoio: Fondation Terre des Hommes, Fundação AVINA,
Instituição C&A, DDC - Agência Suíça para o Desenvolvimento
e Cooperação
Capa: Rachel Braga
Foto: Ricardo Bruno
ISBN: 85-88319-34-9
homepage/e-mail da ABTH:
www.terradoshomens.org.br
[email protected]
Endereço:
Av. General Justo, 275 - gr. 518
Centro - Rio de Janeiro - RJ
CEP 20021-130
Tel.: 21 2524-1073
3ª Edição – Revisada
Direitos exclusivos desta edição:
Booklink Publicações Ltda.
Caixa postal 33014
22440 970 Rio RJ
Fone 21 2265 0748
www.booklink.com.br
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Sobre a Associação Brasileira
Terra dos Homens - ABTH
A ABTH é uma instituição independente, sem fins lucrativos,
e que promove a reintegração familiar e comunitária de crianças e
adolescentes em situações de risco, pessoal ou social. Suas atividades tiveram início como um programa filiado à Fondation Terre
des Hommes, de Lausanne, Suíça, em 1982.
Em 1997, a ABTH adquiriu autonomia jurídica, fazendo novas
parcerias e ampliando seu campo de atuação. Sem deixar de
receber apoio internacional, passou a articular-se no Brasil diretamente com as esferas governamentais e o Terceiro Setor. Desde o
começo de suas atividades, a ABTH tem dado ênfase ao atendimento de crianças e adolescentes já separados – ou em vias de se
separar – de suas famílias. São crianças e adolescentes que vivem
em instituições de abrigo, nas ruas da cidade ou em contextos de
violência doméstica e/ou quaisquer situações de risco. O
restabelecimento da convivência familiar e comunitária dessas
crianças e adolescentes é o foco central do trabalho desenvolvido.
O compromisso da ABTH se baseia na idéia de que o núcleo
familiar é o espaço adequado para o desenvolvimento físico,
psicológico e emocional da criança e do adolescente. O Estatuto
da Criança e do Adolescente, por sua vez, valoriza a família e o
investimento em promovê-la através de políticas sociais básicas,
ao viabilizar o retorno de crianças e de adolescentes aos seus lares
de origem. E, quando assim não for possível, a adaptação de
crianças e de adolescentes em famílias substitutas.
A ABTH, desde 1996, participa ativamente do programa
Família Acolhedora/RJ implementado através do CMDCA/RJ.
Sua participação se dá essencialmente na formação continuada
da equipe técnica responsável pela execução do projeto, que
desde 2000 é gerenciado pela prefeitura do Rio de Janeiro –
Secretaria Municipal de Assistência Social. 80% dos profissionais
da ABTH já atuaram diretamente no programa. Desde 2002,
a ABTH recebe demandas de capacitação para implementação
de projetos de acolhimento familiar bem como treinamento de
pessoal na metodologia aplicada em sua experiência no Rio de
Janeiro, o que resulta em uma mobilização social para difusão
deste atendimento. Em 2004, a ABTH organizou o I Colóquio
Internacional sobre Acolhimento Familiar, mantendo relações
com a Rede Latino Americana de Acolhimento Familiar (Relaf) e
a International Foster Care Organisation (IFCO),
proporcionando a participação em debates internacionais sobre o
tema.
Sumário
Introdução ................................................................................................... 6
O que é institucionalização ..................................................................... 9
Os abrigos: agentes ativos do processo de reintegração
familiar ...................................................................................................... 22
Os motivos da institucionalização ....................................................... 24
Razões para a reintegração familiar .................................................... 26
Análise dos atores: o abrigo, a família e a criança .......................... 27
O que fazer? Como fazer? .................................................................... 37
Um roteiro para o trabalho de reintegração .................................. 39
Implicação profissional ........................................................................ 47
Considerações finais ................................................................................. 53
Bibliografia ................................................................................................... 55
Introdução
A presente publicação tem como objetivo básico contribuir
para as transformações muito necessárias na sociedade brasileira,
no que se refere ao atendimento de crianças e de adolescentes
privados do seu direito fundamental: a convivência familiar e
comunitária. Pretende-se aqui reunir informações que
possibilitem ações sociais capazes de favorecer a reintegração
familiar de crianças e de adolescentes ainda “esquecidos” em
instituições, impossibilitados de integrar-se à sociedade.
Impedidos, portanto, de exercer os direitos e os deveres básicos
da cidadania.
Esta iniciativa pressupõe acreditar na possibilidade de uma
“
É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, exploração,
violência, crueldade e opressão.
”
José Luiz Mônaco da Silva,
Promotor de Justiça - São Paulo
6
transformação na esfera privada das famílias, que deixaram seus
filhos institucionalizados durante longo período, no desejo de
mudanças; na recuperação de uma responsabilidade e do direito
dos pais em ter condições básicas para educar seus filhos. Os pais
têm também o dever de oferecer proteção e afeto às suas
crianças, para que os mesmos cresçam de forma saudável.
Trabalhar pela reintegração familiar de crianças e de
adolescentes institucionalizados leva à retomada da análise crítica
do papel das instituições de acolhimento que, de recurso
excepcional e temporário, transformaram-se em lugares de
permanência excessivamente prolongada, com o inevitável
surgimento de inúmeros efeitos perversos para a criança, para a
família e para a sociedade. Acreditar na possibilidade de
reconstrução das relações familiares é colocar esse processo em
sua verdadeira dimensão, política e social, entendida e trabalhada
com a perspectiva de transformação social das instituições, nas
esferas pública e privada.
Na situação atual de crise pela qual passam as diversas
instituições da sociedade brasileira, com destaque para a situação
dramática daqueles que não possuem as condições mínimas de
manutenção de seu núcleo familiar, é prioritário o investimento
em políticas de apoio às famílias empobrecidas e marginalizadas.
Para tanto, é necessário conhecer em profundidade as razões e os
mecanismos que determinam a manutenção de uma realidade
ainda tão presente na sociedade brasileira: a de crianças que
7
crescem sem a possibilidade de formar identidades sólidas no
seio de suas famílias.
A luta contra o abandono e a institucionalização de crianças e de
adolescentes passa pela luta contra o abandono e a marginalização
de suas famílias, vitimadas, na grande maioria dos casos, pelo
desemprego, pela falta de moradia, pela inexistência de serviços de
saúde e de educação. Vítimas de frágeis e episódicas manifestações
de solidariedade e das limitações, teóricas e práticas, do trabalho
social.
Este trabalho oferece aos leitores alguns elementos de
informação que despertarão o interesse de todos para a urgência
da luta pelo direito à convivência familiar e comunitária de todas
as crianças brasileiras.
8
O que é institucionalização
Roberto da Silva*
No âmbito das discussões sobre o atendimento à criança e ao
adolescente, muito se fala contra a institucionalização, mas pouco
se compreende sobre ela. Nem mesmo em relação aos danos
advindos da institucionalização, uma vez que há quem, ainda hoje,
defenda a construção de mais abrigos, de mais internatos
e de mais prisões. É preciso, portanto, decompor o fenômeno da
institucionalização em seus múltiplos aspectos para que se tenha
uma visão mais científica, como operam os diversos mecanismos
e como o indivíduo reage a ela.
A validade de estudar os fenômenos da institucionalização
e da prisionização está em que o primeiro permite entender
como se formam as diversas facetas da identidade da criança
e do adolescente, submetido a longos períodos de internação,
e o segundo, como se dá a metamorfose destas identidades
em uma identidade criminosa.
Por institucionalização, entende-se o processo de confinamento
de crianças e de adolescentes em estabelecimentos públicos ou
* Pedagogo, mestre e doutor em educação, professor de políticas educacionais na Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo e conselheiro científico do ILANUD – Instituto
Latino-americano para a Prevenção ao Delito e Tratamento do Delinqüente. Autor do livro Os
filhos do Governo, Editora Ática.
9
privados, com características de instituição total, nos termos
definidos por Goffman na obra Manicômios, prisões e conventos
(1967). Por prisionização, entende-se o processo de incorporação,
por parte do preso adulto, da cultura e dos valores prisionais. São
fenômenos análogos, que descrevem os mesmos processos, o
primeiro em crianças e emadolescentes, e o segundo, em adultos
encarcerados.
O estudo de ambos os fenômenos mostra-se particularmente
válido em uma pesquisa longitudinal que comporte uma geração
de pessoas e mostra-se mais enfático ainda quando o universo
da pesquisa é composto por crianças órfãs e abandonadas,
internadas desde a mais tenra idade. Esta forma de delimitação
do universo da pesquisa permite excluir possíveis variáveis
intervenientes, tal como a influência da família e do meio externo
à instituição.
Alguns fatores externos, entretanto, podem e devem ser
considerados, dada a sua importância na configuração de uma
categoria sociológica que nem a sociologia nem a criminologia
têm levado em consideração, para efeito de definição das
tipologias criminológicas.
O Poder Judiciário, por suas prerrogativas legais, tem um
peso decisivo na formação da identidade da criança
institucionalizada, pois pode destituir os pais do direito de
pátrio e de mátrio poder, pode decretar o estado de abandono
de uma criança recém-nascida e determinar a adoção ou a
internação até os 18 anos, ao criar uma categoria nova de
pessoas que bem poderia chamar-se “juridicamente excluídos”.
10
Quando não há dados que permitam o registro do recémnascido, de acordo com seus referenciais familiares, um juiz
pode também lhe determinar o nome, o sobrenome, a data e o
local de nascimento e, em casos extremos, até os nomes dos
pais.
Isto significa que uma criança recém-nascida ou de tenra idade,
declarada em estado de abandono, pode ter todos os dados
constitutivos de sua identidade forjados em dissonância com a
identidade do seu “eu”. Esta dissonância constituir-se-á em uma
agravante na deformação da identidade se a criança, por menor
que seja, tiver algumas reminiscências de convivência familiar que
se constituam em “memórias”. Tais memórias tanto podem ser
constituídas durante a vida intra-uterina quanto durante os
primeiros contatos externos com a mãe e com o ambiente
doméstico, conforme mostra a ilustração a seguir:
Gestação Positiva
Aceitação da Gravidez
Memória Positiva
Período de Institucionalização
1
2 3 4 5 6 7 8 anos
Memórias
Intra-uterinas
Memórias externas
Gestação Negativa
Rejeição da Gravidez
Memória Negativa
11
Se a gravidez foi plenamente aceita pela mãe, pode-se
afirmar que ela transferirá bons sentimentos para o feto e,
com isso, contribuirá para a formação de uma memória intrauterina positiva, que forjará a estrutura mental da criança ao
nascer e que dará os arquétipos sobre os quais desenvolverse-ão os mecanismos da afetividade, da auto-imagem, da
cognição e do controle emocional.
Tais arquétipos e as mesmas estruturas poderão desenvolver-se
de forma negativa se a mãe rejeitar a gravidez e, pior ainda, se
houver tentativas mal sucedidas de aborto. Os sentimentos de
rejeição da mãe em relação ao seu feto se configurarão na primeira
experiência de rejeição da futura criança e sobre essa experiência da
rejeição formar-se-ão os mecanismos da afetividade, da autoimagem, da cognição e do controle emocional.
A experiência da rejeição pode ser agravada com o
abandono de fato. A intersecção entre as linhas horizontal e a
vertical, no diagrama anterior, indica o momento do corte do
cordão umbilical, em que a criança torna-se independente do
organismo materno e começa a construir suas próprias
experiências.
Nesse momento, começam a formar-se as memórias externas,
que possuem diversas dimensões: a memória espacial, com a
percepção da mudança de ambiente; a memória cinestésica, pela
proximidade com o corpo da mãe; a memória gustativa e a
memória olfativa, pelo ato da amamentação. Se essa criança
12
vivesse em um ambiente doméstico e familiar, a constituição
dessas memórias externas dar-se-ia de forma positiva e a ela
acrescentar-se-iam outras expressões dessa memória à medida
em que se intensificasse a relação com o meio e a interação com
o espaço, com o tempo e com outras pessoas e coisas.
Se a mãe já tiver atribuído um nome à criança, provavelmente ela
terá formado os rudimentos de uma “memória auditiva” que lhe
permitirá tanto reconhecer a voz característica da mãe, quanto o
timbre e a entonação com que é pronunciado o seu nome.
Se a criança chegou a ser amamentada, provavelmente terá
constituído uma “memória olfativa” e uma “memória gustativa”
que são expressões da relação orgânica que a liga à mãe.
Se a criança chegou a permanecer algum tempo em casa, por
qualquer tempo que seja, é provável que tenha constituído uma
“memória espacial”, que é a sua forma característica de perceber
o ambiente, a sua relação com ele e que pode estar relacionada à
sua percepção de limites.
A escala progressiva indica que quanto mais cedo a criança
for institucionalizada, mais essas memórias externas estarão
sendo formadas em ambientes hostis. Dado o caráter impessoal
do atendimento nessas instituições, desde cedo a criança
adaptar-se-á organicamente a essa especificidade, ao atribuir
outros sentidos ao choro, por exemplo, e resistirá ao toque
e às carícias de tantas pessoas diferentes, ao mesmo tempo
em que interiorizará a lógica que orienta a vida e o cotidiano
13
institucional.
Quanto mais tempo durar a institucionalização, mais estarão
arraigadas essas memórias externas e mais fortemente a criança
internalizará a lógica institucional, a ponto de se tornarem o único
referencial para ela. Isso é o que se chama de “dependência
orgânica em relação à instituição”, que é, analogamente, do
mesmo gênero das fortes ligações que a pessoa desenvolve para
com sua terra natal, com o ambiente doméstico, com a mãe e
com os objetos.
Essa dinâmica do processo de institucionalização redundará em
graves conseqüências se, por exemplo, essa criança for
encaminhada para a adoção ou colocada em família substituta.
Nos primeiros meses, a criança será o objeto da atenção e da
curiosidade de todos, mas passado o período da novidade, logo os
pais, os irmãos e até outros parentes, amigos e vizinhos perceberão
que ela é uma criança diferente. Diferente no exercício da
sociabilidade, diferente na expressão da afetividade, diferente no
rendimento escolar e diferente nos hábitos e nos costumes
também. Tais diferenças expressam-se da forma mais comum
como um deficit geral de desenvolvimento.
Sem acompanhamento e sem orientação adequadas, a
família deparar-se-á com situações que não precisou enfrentar
com seus filhos biológicos e pode sentir-se incapaz de lidar
com tal problemática. Esse é um dos principais fatores que
resultam na devolução de crianças encaminhadas para adoção.
14
A experiência da devolução de uma criança colocada sob
adoção pode ser tão ou mais forte do que a primeira
experiência de abandono, uma vez que os mecanismos que
compõem a subjetividade da criança já estarão em vias de
estruturação ou, a depender da idade, até mesmo já
estruturados os mecanismos da cognição, da afetividade, da
auto-identificação e da emotividade.
No ato da internação, o processo de institucionalização dar-seá, portanto, em substituição aos rudimentos de uma identidade,
incipiente sim, mas que começava a dar os primeiros contornos
à subjetividade da criança e que, com certeza, comporia a marca
de sua individualidade.
A dinâmica da institucionalização é a supressão da intimidade,
da individualidade e das características individuais, ao introduzir
a criança em um meio onde ela nunca será sujeito e onde todas
as dimensões de sua vida passarão a ser administradas do ponto
de vista da conveniência da instituição, sobretudo de suas regras
funcionais e disciplinares.
Entre meninos ou meninas com as mesmas perdas, com as
mesmas carências e as mesmas necessidades, que estão
desprovidos de um referencial que substitua à altura aquilo que
perderam, é natural que novas regras e novos referenciais passem
a ser construídos, agora em função da dinâmica do próprio
grupo onde o menino ou a menina estejam inseridos.
Ser visto, percebido, querido e valorizado é uma necessidade
15
geral, da mesma forma que a busca pela auto-afirmação, a defesa
da integridade física e moral e a afirmação da identidade sexual.
Todas estas necessidades precisam ser satisfeitas dentro do grupo
e dos subgrupos institucionalizados e isto leva à segunda ordem de
fatores que não pode deixar de ser considerada: a relação interpares dentro da instituição.
Uma terceira ordem de fatores é dada pela própria instituição.
A instituição e seus agentes não participam diretamente da
privacidade e da intimidade de seus internos, por isto não pode
ser imputada a eles a responsabilidade pela formação das
filigranas de que ambas são compostas; isto é uma prerrogativa
do modo de socialização dos internos e das relações inter-pares.
O que a instituição faz, e esmera-se em fazer, é manipular as
condições externas em que se dá este processo de socialização
dos internos.
Por territorialização e desterritorialização, pode-se entender,
por exemplo, a forma como a instituição dispõe do espaço físico,
a distribuição dos internos neste espaço e a concessão do direito
de uso que, à guisa de prêmio e de castigo, ela permite que seja
usufruído por uns e obstruído a outros. Isto significa que a
instituição e seus agentes permitem que determinados internos
constituam territórios dentro da instituição e tais territórios de
domínio passam a ser uma forma de conceder, atribuir ou legitimar
liderança e poder a quem, de outra forma, nenhum instrumento
teria para exercitá-los.
16
O domínio territorial dentro da instituição passa a ser,
portanto, um fator de aglutinação, em torno do qual se
constituirá um amplo espectro de indivíduos e de interesses.
O uso da força ou a disposição para usá-la é outro fator de
aglutinação de indivíduos e de interesses. A ameaça do uso da força,
seu uso efetivo ou a disposição para usá-la é o pretexto tanto para a
busca da auto-afirmação quanto para a defesa da integridade física e
moral. Por defesa da integridade moral deve-se entender, no âmbito
das instituições totais, a defesa da integridade sexual.
Em universos estritamente masculino ou feminino, a descoberta
do corpo, a puberdade, a menarca, a erotização e os demais
processos que compõem a identidade sexual de meninos e de
meninas se dão dentro dos próprios grupos e subgrupos e raramente
de maneira pacífica.
É neste processo de múltiplas facetas que se formará a
representação social que cada interno(a) passará a ter dentro
dos grupos e subgrupos. Pelos diversos mecanismos de pressão
e de cobrança, próprios do meio institucional, tais
representações acabam por consolidar-se e cristalizar-se na
forma de uma “identidade institucional”. Identidade esta que é
referenciada por todos os fatores antes elencados: um apelido,
uma forma específica de relacionar-se com os agentes
institucionais e com os seus pares, a disposição que tem para
usar a violência ou para delinqüir e a identidade sexual pela qual
é reconhecido.
17
É importante notar que esta identidade institucional vem
sobrepor-se a uma identidade documental, que por sua vez, no
caso da criança já exemplificada, foi sobreposta à identidade do
“eu” do próprio interno.
Ninguém escolhe o apelido que tem. Ele é atribuído em função de
diversos fatores que somente são do conhecimento do grupo onde
acontece a socialização. Assim como não é possível livrar-se de um
apelido, também não é possível livrar-se da identidade institucional,
em especial se o indivíduo não se afastar desse meio.
Para efeito das relações inter-pares e intra-institucionais, a
identidade institucional, uma vez constituída, passa a ser a
referência tanto para os outros internos quanto para os
funcionários. Sem esta identidade, seja ela positiva ou negativa, o
indivíduo não será reconhecido no meio institucional e isto faz
com que, pela submissão voluntária ou pelo usufruto do status
adquirido, o interno introjete os estereótipos próprios da
representação social que o grupo e a instituição fazem dele.
Neste estudo longitudinal, por exemplo, a desinternação, seja
por fuga ou por maioridade, não significa o fim da identidade
institucional nem dos estereótipos adquiridos em função do
processo de institucionalização.
A impermeabilidade entre universos com código lingüístico,
símbolos e valores tão distintos é o principal obstáculo ao que
costuma chamar de “(re)integração social”. A desinternação
coloca o(a) interno(a) diante de um mundo para o qual ele(a) não
18
foi preparado(a) para enfrentar. A pessoa institucionalizada
conhece a violência bruta, iminente, sempre pronta a reduzi-la à
obediência, a ceder ou a colocar-se no seu lugar. É uma violência
sem subterfúgios, mas que a pessoa consegue bem avaliar porque
conhece o meio e sabe da disposição do outro em efetivá-la.
A desinternação coloca o(a) menino(a) diante de uma
expressão de violência que não lhe é familiar e para a qual ele não
está preparado: a violência simbólica. É a discriminação pela
origem, pela constituição física, pela cor, pela baixa escolarização,
pela falta de profissionalização, pelos antecedentes de
institucionalização etc.
O sentimento de inferioridade diante de uma pessoa fora
do meio institucional, a auto-estima reduzida, a pobreza de
vocabulário e a falta de um aparato conceitual para lidar
diplomaticamente com situações adversas, como a recusa de um
emprego, negociações de moradia ou relações afetivas, expõem
a criança e o adolescente a constrangimentos que acabam por
revelar a sua completa impotência diante deste novo universo.
A institucionalização total e prolongada cria, para a criança
e para o adolescente, um quadro de referências que permeia toda
a sua vida cognitiva, afetiva e emocional, que norteia todas as
suas relações e que dita as suas respostas comportamentais.
Enquanto interna, toda a busca da pessoa por aprovação,
valorização e reconhecimento se dá dentro deste quadro de
referências que é a antítese da vida, pois valoriza atitudes,
19
comportamentos e coisas que fora da instituição são rejeitadas
e estigmatizadas.
A percepção do deslocamento provocado pela cultura
institucional acontece, via de regra, quando a pessoa é colocada
frente a frente com um universo distinto, cujos códigos, símbolos
e valores ela não domina. Esta percepção, se não trabalhada de
forma adequada, resulta em uma maior inclusão nos grupos
e subgrupos de origem, o que, na verdade, significará a autoexclusão.
Se a pessoa, no momento de defrontar-se com tais conflitos,
já tiver delinqüido, já tiver se enturmada na rua ou estiver
vivendo solitariamente, enfim, se estiver em situações onde os
reforços negativos sejam mais prováveis, a sua sensação de
deslocamento pode inseri-la em uma cultura de auto-exclusão,
em que ela recusa a (re)integração nos grupos socialmente
aceitos.
A consciência das próprias limitações coaduna-se com a
exclusão do mercado de trabalho, com a limitação das
possibilidades de consumo, com a exclusão escolar, com a falta de
participação política e com a ausência de perspectivas em relação
ao futuro. A sua única gratificação imediata advém do
reconhecimento, da valorização e do espaço que sabe que pode
ocupar dentro dos grupos marginalizados e dos círculos
institucionais.
Voltar à vida institucional, portanto, seja pela reinternação ou
20
pelo aprisionamento, não tem para ela o peso de uma ruptura
nem a conotação de restrição de direitos, dada à relação orgânica
que ela possui com a instituição e sua inadequação para viver em
liberdade.
É neste sentido que o estudo da reincidência deve merecer
alguns cuidados, quase sempre ausente nos estudos tradicionais,
razão porque é pertinente chamar a atenção para as diferentes e
possíveis modalidades de reincidência, a partir deste exemplo.
21
Os abrigos: agentes ativos do
processo de reintegração familiar
As mudanças necessárias
É papel do abrigo reintegrar crianças e adolescentes
institucionalizados a suas famílias, além de atuar visando à
transformação da realidade vivida pela maioria das famílias que
recorrem aos seus serviços. Dessa forma, os abrigos, suas
diretorias, seus técnicos e funcionários atuarão de forma
construtiva nas diversas etapas da reintegração, processo esse
que sempre envolve a recuperação da auto-estima, do valor
e da dignidade da família.
Conhecer a dinâmica do abrigo, e identificar os vários níveis
de relação entre os profissionais e os recursos de que dispõem
“
Temos hoje no país uma consciência jurídica
e humana suficientemente formada para fazer
frente a qualquer violação de direitos da pessoa
humana; o direito da criança e o direito à dignidade e à convivência familiar se inscrevem entre
as prioridades que devem ser perseguidas incessantemente.
”
Roberto da Silva
22
para investir efetivamente na reintegração familiar, provoca a
discussão a respeito dos efeitos perversos da institucionalização
prolongada no desenvolvimento da criança e do adolescente.
Nessa etapa, é muito importante que todos os responsáveis pelo
abrigo possam tomar consciência da forma com que se
relacionam com a criança e com a sua família, ao identificar as
imagens que têm a respeito de suas condições de vida e das
razões que determinaram a institucionalização. É preciso que
estejam convencidos das chances de êxito da reintegração.
Dessa forma, poderão superar estigmas e preconceitos que
ainda marcam a criança institucionalizada e seus responsáveis.
Destaca-se então a importância fundamental do apoio daqueles
que, durante um determinado período de tempo, foram as figuras
de referência, afetiva e material, para a criança. É preciso envolver
nesse processo, os responsáveis pelo atendimento às crianças
abrigadas e estimular a sua participação.
O diálogo deve ser permanente na procura de soluções para os
casos concretos, sempre difíceis, das crianças institucionalizadas e
suas famílias, principalmente porque sabemos das limitações de
recursos, humanos e materiais, que dificultam a melhoria das
condições de atendimento.
23
Os motivos da institucionalização
Os motivos que levam à institucionalização de crianças e
adolescentes são:
•
•
•
•
•
Abandono físico, afetivo e/ou moral;
Violência doméstica (vitimização física, psicológica, sexual e
negligência);
Violência estrutural (desemprego, falta de moradia, entre
outros);
Orfandade;
Catástrofes (enchentes, desabamentos etc.).
Surge então a instituição – destino social dado a crianças
e adolescentes que perderam, provisória ou definitivamente,
“
Aquele que vigia modestamente algumas ovelhas sob as estrelas, se tem consciência de seu
papel, descobre que não é apenas um servidor. É
uma sentinela. E cada sentinela é responsável
por todo o império.
”
Antoine de Saint-Exupéry, in Terra dos Homens
24
a proteção de seus pais. Se, de início, esse recurso cumpre um
papel social relevante, seu prolongamento indeterminado leva a
conseqüências perversas para a criança, para a família e para a
sociedade. Para a criança, a institucionalização prolongada leva ao
empobrecimento de sua subjetividade, pela perda de
relacionamentos humanos individualizados, contínuos e
afetuosos. Esse processo pode deixar seqüelas graves, como a
incapacidade de se auto-gerenciar, o que costuma dificultar as
chances de uma inserção social adequada. Pode também
determinar a ruptura dos vínculos afetivos com a família de
origem e levar a sérias dificuldades na construção de novas
relações sociais.
Para a família, a institucionalização pode representar o
progressivo não-investimento no filho, a omissão, a construção
de novos projetos familiares que excluem a criança e também a
desvalorização perante a sua própria imagem (auto-estima) e
perante a sociedade. Em alguns casos, a permanência da criança
na instituição atende apenas às necessidades dos pais e
representa verdadeira condenação para a criança.
No âmbito social, o comprometimento mais significativo está
na perda de referências afetivas e sociais básicas, o que poderá
dificultar, para a criança apartada de seu meio de origem, suas
chances futuras de integração social.
25
Razões para a reintegração familiar
Existem duas razões fundamentais que justificam a
reintegração familiar. A primeira, de ordem legal: “toda criança
tem direito à convivência familiar e comunitária” (art. 227 –
Constituição Federal). A segunda, de ordem psicossocial, referese ao trabalho feito com a família no sentido de um
reinvestimento na criança. A intenção é fazer com que a família
volte a assumir seus deveres, ao oferecer à criança um ambiente
acolhedor ao desenvolvimento de suas potencialidades.
“
...É preciso antes de mais nada que cada cidadão resgate a
primeira palavra que lhe é dada ao nascer. É preciso que cada
cidadão tenha um nome, um nome que lhe reconheça pertinência
genealógica, um lugar no mundo a partir da família e progressivamente o insira na escola e na sociedade. Não basta um endereço na virtualidade do universo do consumo, uma referência de
acesso aos tráfegos simbólicos e econômicos da mística do mercado. É preciso resgatar o papel da família, e com ela a atribuição a cada cidadão de um nome e de uma tábua de valores que
assegure uma raiz e lhe atribua um sentido. Um nome que respeite, preserve e faça respeitar. Uma identidade que construa e exercite, portanto, a partir daquilo que possa herdar com o nome do
pai. Sob pena de estar-se construindo mais e mais cidadãos sem
nome, que inevitavelmente habitarão cidades sem lei.
Leoberto Brancher, Juiz de Direito
26
”
Análise dos atores: o abrigo,
a família e a criança
No desenvolvimento desse diálogo, precisaremos analisar:
Como os responsáveis pelo abrigo vêem:
I - A família
Quais as representações predominantes, entre os que
trabalham no abrigo, com relação à família da criança?
•
•
•
•
•
Família incapaz?
Impotente?
Demonstra desinteresse pela criança?
Irresponsável?
Expressa uma espécie de preconceito, que determina o
afastamento da criança de seu núcleo familiar?
“
Reintegrar – ser novamente investido.
Dicionário Aurélio
”
27
Ainda que os fatos que levaram à institucionalização revelem a
desagregação familiar (o possível desinteresse da família pela
criança, aliado ou não a fatores como violência doméstica), é
preciso considerar a possibilidade de redefinição e de mudanças
nas relações interpessoais, familiares e sociais, visando à
reconstrução dos vínculos.
As diversas etapas do processo de reintegração da criança
devem ter por base o reconhecimento de sua viabilidade, e pode
corresponder a um desejo da família e da criança. Um desejo que
muitas vezes precisará ser despertado, orientado e apoiado.
A institucionalização da criança ou do adolescente pode ter
sido ocasionada pela falta de apoio da comunidade, dos serviços
sociais, de uma ajuda especializada ou pela própria dificuldade da
família em procurar esses recursos. Dificuldade associada à falta
de informação, o que na maioria das vezes agrava a problemática.
Para tanto, reintegrar em uma rede de apoio é de fundamental
importância. Antes, é preciso construir essa trajetória, a fim de
contribuir para que a família possa iniciar sua nova caminhada em
outras bases, ao apoiar-se no auto-gerenciamento e ao acreditar
que a mudança é possível e necessária.
II - A criança
Ao reconhecer em cada criança um ser único em suas
características, em sua história pessoal, em seu desenvolvimento e
em suas potencialidades, como essa realidade é aceita e integrada
28
à dinâmica de funcionamento do abrigo? As diferenças entre as
crianças são reconhecidas e respeitadas? Ou o atendimento é
massificado e a todas as crianças é dado um mesmo tratamento,
um mesmo e impessoal enquadramento na rotina cotidiana?
É muito importante que o abrigo questione, reflita sobre seus
métodos de atendimento, e torná-los adequados às necessidades
de cada criança em particular, do que decorrerá a plena expressão
de sua individualidade. Toda criança traz as marcas de sua família,
que continua “vivendo nela”: são vivências únicas, que precisarão
ser consideradas por todos os responsáveis pelos serviços de
atendimento.
III - O abrigo
Como se pode pensá-lo?
•
•
•
•
Potente, lugar adequado para a criança, provedor de tudo o
que a criança necessita?
O “dono” da criança?
Ou impotente, envolto em diversas limitações, com falta
crônica de recursos humanos e materiais, esquecido pela
comunidade e pelos serviços públicos, mero “depósito de
crianças abandonadas”?
Ou promotor do processo de proteção e de socialização de
crianças que perderam a proteção de seus pais?
29
Trabalhar a auto-imagem institucional, enfrentar os problemas
existentes e estabelecer estratégias de integração do abrigo à rede
social de serviços, permitirá a construção de uma nova imagem
desse abrigo, diferente daquela que o aproxima do confinamento e
semelhante à idéia de um espaço transitório, admissível apenas de
forma provisória para proteger crianças em situações de risco, até
que seja possível a sua reintegração familiar.
Como a família sente:
I - O abrigo
Para muitas famílias, o abrigo surge como uma solução para as
graves dificuldades enfrentadas, um lugar onde seus filhos
encontrarão proteção, alimentação e educação, capaz de
proporcionar um ambiente superior, “melhor” do que o seu meio
de origem. Para outras famílias, o abrigo pode surgir também
como punição pelos procedimentos inaceitáveis em relação à
criança, como violência e abusos de outras naturezas. Em alguns
casos, os abrigos são vistos pelas famílias como tendo certo
“poder”, frente ao qual se sentem inferiores.
Esse sentimento pode determinar o progressivo afastamento
das famílias, com a diminuição gradual do número de visitas,
decorrência dos constrangimentos gerados pela discrepância
sentida entre a infra-estrutura que o abrigo oferece à criança e a
falta de recursos no âmbito familiar.
30
É preciso trabalhar para que as famílias sintam que são elas as
responsáveis pela criança institucionalizada, que a situação é
temporária e que o abrigo assume, apenas de forma provisória,
algumas responsabilidades com relação à criança. Reinvestir a
família da responsabilidade pela educação de seus filhos, ajudá-la a
desmitificar imagens idealizadas a respeito do papel das
instituições (superando a idéia de que “lá a criança está melhor”),
leva a uma modificação da atitude familiar passiva frente a essa
realidade. Para isso, aqueles que promovem a reintegração familiar
deverão estar atentos para transmitir – de forma compreensível a
essas famílias – as razões pelas quais é o meio familiar o ambiente
mais adequado ao desenvolvimento saudável de seus filhos.
II - A criança
Para algumas famílias, em decorrência de diversos fatores, a
criança pode exigir cuidados que elas se sentem incapazes de
assumir. Para outras, fragilizadas, marginalizadas e com inúmeras
questões a resolver, a criança pode representar um peso, um
custo elevado, que não têm efetivamente condições de assumir.
A criança exige cuidados, atenção, investimento de tempo,
preocupações inerentes às características de seu desenvolvimento,
bem como necessidades materiais e de afeto. Deixar a criança em
uma instituição alivia a rotina familiar, dá aos pais tempo e energia
que seriam então empregados na atenção a outros filhos ou na luta
diária pela sobrevivência.
31
É importante focalizar as dificuldades que afligem milhares de
famílias que se sentem sem as condições mínimas para fazer
frente às necessidades de um filho. O recurso à instituição, na
lógica dessas famílias multiproblemáticas, não é, portanto,
desprovido de fundamento. Por isso, é mais importante trabalhar
para que, paralelamente à valorização dos vínculos afetivos que
unem os membros de uma família, sejam criadas condições
materiais (rede de apoio sócio-familiar) para que os pais adquiram
condições mínimas de oferecer a seus filhos os cuidados e a
atenção de que necessitam os seus filhos.
III - A família
Em muitos casos, as famílias com filhos colocados em abrigos
vêem-se incapazes de assumir suas responsabilidades.
Abandonadas elas próprias, com a freqüente ausência da figura
masculina e sem o conhecimento dos recursos eventualmente
existentes em suas comunidades, essas famílias, que acumulam
muitos problemas, sentem-se fora dos padrões habitualmente
aceitos pela sociedade.
Percebem-se sem a energia necessária para lutar pela proteção,
pela alimentação, pela educação e pela moradia de seus filhos.
Vêem-se longe daquilo que acreditam ser a família ideal, forte,
íntegra, afetuosa. Muitas vezes, apenas atribuem a si a
responsabilidade pelo fracasso e pela marginalidade em que
vivem.
É muito importante trabalhar pela autonomia dessas famílias,
32
ao favorecer uma maior compreensão dos fatores sociais e
políticos que determinam a pobreza, a marginalidade, a falta de
recursos sócio-comunitários, a pouca informação e a débil
expressão de solidariedade.
É preciso que compreendam, sem que isso as isente de sua
responsabilidade, as razões pelas quais chegaram ao ponto
extremo de aceitar a institucionalização de seus filhos. Esse é o
início do caminho que deverão percorrer no sentido de recuperar
o seu papel de pais e/ou responsáveis pela construção de um
projeto de vida para seus filhos.
Como a criança sente:
I - O abrigo
Independentemente das variadas circunstâncias que
determinam a institucionalização, a entrada de uma criança em
um abrigo será sempre vivida como a concretização de uma
ruptura, seja do ambiente familiar ou comunitário. A criança
viverá essa experiência com a insegurança de quem entra em um
universo que lhe é totalmente estranho. Em determinadas
situações, o abrigo poderá representar uma proteção com relação
ao ambiente familiar hostil. Nele, a criança poderá mesmo
vivenciar experiências de afeto até então desconhecidas. Em
outras circunstâncias, o abrigo pode representar uma violência, a
destruição de vínculos que para a criança eram vitais. Um
33
exemplo, não incomum, é aquele em que ocorreu a separação de
irmãos, determinada pela lógica do atendimento institucional.
Passado o impacto da chegada e da tomada de consciência de
que aquela situação se prolongará no tempo, a criança passa a
assimilar as regras próprias da dinâmica da instituição, em sua
rotina cotidiana e inicia a construção de referências afetivas com
seus companheiros e responsáveis. Pouco a pouco, a instituição é
sentida pela criança como o seu universo, o meio ao qual ela
pertence, o que leva a um afastamento progressivo da lembrança
de sua família.
II - A família
Para a criança, a ruptura com o seu meio familiar leva a
sentimentos de auto-depreciação e de profunda incompreensão.
O sentimento de abandono é predominante. Por que seus pais a
rejeitaram? Por que ela foi deixada lá? Ela é problemática? Não
era merecedora do carinho e da proteção de seus pais? Eles não
tiveram efetivamente nenhuma outra alternativa?
Nas diferentes idades e circunstâncias determinantes da
institucionalização, tais questionamentos contribuem para que a
criança forme uma imagem negativa de sua família e de si
própria. Nas situações extremas de violência física e de abusos
sexuais, por exemplo, a criança guardará sentimentos que a farão
ver sua família com profundo temor e desconfiança. Redefinir a
imagem da família para a criança será uma das tarefas mais
34
delicadas de um projeto de reintegração.
Em outras situações, os motivos da ruptura decorrem,
basicamente, da falta de recursos. Nesses casos, a criança poderá
guardar sentimentos positivos de sua família, o que favorecerá
o restabelecimento das vinculações familiares. Para tanto, os
profissionais que atendem o caso devem com agilidade buscar
apoio sócio-familiar na rede de serviços e evitar que se prolongue a
permanência da criança na instituição.
III - A si própria
Em seu processo de crescimento, a criança se percebe pelo
olhar, pelos gestos e pelas atitudes das figuras que lhe são mais
próximas, que lhe oferecem afeto e proteção, que a nutrem
espiritual e materialmente. Ela vivencia o sentimento de “ter
valor”, de representar algo de valioso para alguém, geralmente
seus pais ou seus familiares mais próximos. A sensação de “ser
importante para alguém” é um dos pilares na formação de uma
personalidade integrada. Ao perder essa referência fundamental, a
criança passa a se ver como um ser desprovido de interesse,
incapaz de despertar o afeto daqueles que a cercam. O
sofrimento maior da criança institucionalizada é o de não ser
importante para ninguém, não pertencer a ninguém, mas estar
nas mãos de todos.
A psicologia, ao tratar do desenvolvimento infantil,
apresenta de forma clara os efeitos devastadores, para a
35
personalidade de um ser em desenvolvimento, da ausência de
figuras próximas que permitam a formação de sua identidade. É
muito importante trabalhar para que a criança institucionalizada
perceba o seu valor, a sua importância para aqueles que
provisoriamente se ocupam dela e assumem responsabilidades
em sua formação. Dessa forma, ela terá, quando as circunstâncias
assim a permitam, condições afetivas essenciais de ser
novamente investida pelo afeto familiar.
36
O que fazer? Como fazer?
O trabalho de reintegração é marcado por ações importantes,
que exigem a participação de diversos atores sociais: a criança, a
família, a comunidade, o abrigo, o Conselho Tutelar, o poder
judiciário, os conselhos de direitos e as instituições da sociedade
civil, dentre outros. Essas ações envolvem:
•
•
Estudo do caso, em equipe, para a obtenção de dados
familiares: situação social, psicológica e jurídica. Avaliação
psicológica da criança e/ou do adolescente;
Visitas domiciliares, com o objetivo de conhecer melhor o
espaço e a dinâmica familiar, bem como a família extensa e a
comunidade onde a família está inserida;
“
Enquanto houver uma criança ou adolescente
sem as condições mínimas básicas de existência, não teremos condições de nos encarar uns
aos outros com a tranqüilidade dos que estão
em paz com sua consciência. Vivemos hoje a
situação de escândalo de negar condições de
humanidade àqueles que só podem existir com
o nosso amor.
”
Herbert de Souza
37
•
•
•
Formação de grupos de pais, propiciando a troca de
experiências e favorecendo uma interação solidária;
Encaminhamentos a programas da comunidade
(levantamento das demandas familiares e dos serviços
oferecidos);
Acompanhamento após a reintegração (apoio técnico e
terapêutico, subsídios, bolsa de estudos etc.).
O trabalho visa ao re-investimento da família na criança. Para
tanto, é preciso que os esforços se direcionem à família,
potencializando-a para receber a criança. Procura-se reconstruir
os vínculos afetivos entre a criança e sua família, numa ação de
reaproximação e acompanhamento. Nesse processo, a família terá
aumentado o seu potencial educativo, sua autonomia (renda
própria, por exemplo) e sua possibilidade de exercer a cidadania
(utilização dos recursos disponíveis em sua comunidade: creches,
centros médicos e de lazer etc.).
38
Um roteiro para o trabalho
de reintegração
No trabalho de reintegração familiar, o papel do profissional não é
somente o de acatar uma determinação judicial, mas é, também, o de
analisar e avaliar os meios mais adequados para alcançar os objetivos
desejados. Nesse processo, é muito importante analisar o desejo da
criança e da família e avaliar em que medida os sofrimentos poderão
ser amenizados para ambos. A atitude do técnico deverá ser então a
de escuta, atenta e compreensiva, analítica e avaliativa.
O técnico, diante da possibilidade de uma reintegração, precisará
estar atento a questões de valor que lhe são próprias, compreender
as diferenças e relacioná-las aos diversos conceitos de família e de
suas transformações na sociedade moderna. Inúmeros fatores
interagem nesse momento. Alguns de ordem prática, como a
“
A família, enquanto elemento básico da sociedade, é o meio natural para o crescimento e bemestar de todos os seus membros, em particular
das crianças e jovens. Deve ser promovida, ajudada e protegida, a fim de que possa assumir
plenamente suas responsabilidades no seio da
comunidade.
”
(Resolução 2542 da Assembléia Geral da ONU)
39
possibilidade de retorno da criança ao lar, que onera o orçamento
familiar. Outros de ordem subjetiva, como a relação da criança com
sua família, com a necessidade de reconstruir em alguns casos os
vários papéis exercidos na dinâmica familiar. Essa atitude favorece
os encaminhamentos e determina a qualidade das intervenções
profissionais.
I - A “pré” reintegração
A motivação da família para a desinstitucionalização:
Perceber de onde partiu a iniciativa do desligamento da
criança, se da família, do abrigo, do Juizado ou de uma ONG.
É comum o surgimento de algumas dificuldades quando esse
movimento não parte da família, o que requer um trabalho
sistemático de apoio a médio e longo prazos.
A família e a proposta de reintegração
40
•
Procurar conhecer a história de vida da família (constituição,
rede social intra e extrafamiliar, dinâmica/interação) e as razões
da institucionalização do ponto de vista da família e evitar
julgamentos. Estar aberto a compreender o tipo de organização
e de dinâmica familiares é essencial.
•
Identificar, na história familiar, os fatores significativos –
violência doméstica, rejeição mútua ou unilateral, doença
mental, drogadição, desemprego e outros – que possam
sinalizar a pertinência ou a contra-indicação da reintegração
naquele momento. Observadas e confirmadas algumas
hipóteses, encontrar junto à família outros significados e
ajudá-la a mudar padrões de comportamento que a fazem
repassar às outras gerações modos rígidos de pensar e de agir.
•
Verificar os aspectos sócio-psicológicos e jurídicos que
dificultam o acolhimento familiar.
Se houver a negativa da família para a proposta de
reintegração, buscar alternativas junto a parentes com os quais
exista afinidade. Muitas vezes, a família verbaliza que deseja o
retorno da criança, mas não se mobiliza para efetivar sua saída do
abrigo. Nesses casos, é importante avaliar que medida poderá
favorecer a convivência familiar da criança e evitar que ela
permaneça definitivamente institucionalizada.
Em outros casos, a resistência em voltar para casa é da
criança, o que pode sinalizar a existência de algum tipo de
violência, fator geralmente ligado ao motivo do abrigamento e
que precedeu ao encaminhamento efetuado pelo Conselho
Tutelar, pelo Juizado da Infância e da Juventude ou por
familiares. Se a iniciativa de abrigar partiu de algum membro da
família, poderá ter ocorrido uma situação de violência doméstica
camuflada, o que torna importante averiguar, junto à criança,
que sentimentos ela tem a respeito de sua família.
41
Os vínculos entre a criança, a família e a instituição
•
Avaliar, junto à criança, qual vínculo é mais significativo, e
por quê.
•
Analisar quais os fatores que dificultaram a manutenção dos
vínculos entre ela e sua família (visitas esporádicas ou
inexistentes, embargo jurídico ou outros). Isso significa
conhecer a dinâmica institucional e procurar detectar os
indícios de interferência na manutenção dos vínculos
familiares (pouca flexibilidade nos horários reservados para
as visitas, por exemplo). Cabe observar a relação existente
entre a criança e os funcionários, se existe uma figura de
apego que proporcione para a criança afeto, atenção e
represente a lei. Caso não exista esse profissional, questionar
o que acontece na dinâmica do abrigo que não permite tal
possibilidade.
O abrigo tem a tarefa de propiciar o máximo de bem-estar e
proteção, ajudar a criança a elaborar suas perdas para que a
mesma possa simbolizá-las e resguardar sua saúde mental.
Conhecer a criança
•
42
Conhecer suas idealizações e referências de família, de abrigo e
da perspectiva de futuro para a sua vida, além dos seus
sentimentos em relação ao abandono: como o vivenciou e
como o vê no momento.
•
Desenvolver um trabalho de preparação gradativa para a
saída do abrigo (desligamento), visando a tornar essa
passagem o menos traumática possível.
II - A “pós” reintegração
A Integração familiar
Observar e avaliar a adaptação da criança à nova realidade,
além da aceitação da família à reintegração; identificar os
mecanismos de “reorganização” colocados em prática para o
acolhimento efetivo, além das mudanças na dinâmica familiar
responsáveis pela permanência da criança no lar: eis os pontos
culminantes do trabalho.
Suportes sócio-econômicos
Em cada caso específico, realizar o apoio à família e utilizar os
recursos da rede social (rede de serviços). O abrigo deve ter o
cuidado no estabelecimento de critérios para não caracterizar o
apoio sócio-familiar como uma alternativa apenas assistencialista.
III - O trabalho com o abrigo
Levantamento dos dados objetivos
•
história do abrigo;
43
•
•
•
•
•
•
número de crianças atendidas e número de funcionários por
criança;
características das crianças (idade, sexo, procedência etc.);
relação do abrigo com a família (freqüência das visitas,
flexibilidade etc.);
relação do abrigo com a comunidade (utilização da rede de
serviços);
número de profissionais (educadores, psicólogos, assistentes
sociais, entre outros) e sistema de trabalho;
rotina de chegada e integração da criança ao abrigo.
Adequação ao Estatuto da Criança e do Adolescente
•
•
•
•
•
•
atendimento personalizado e em pequenos grupos;
desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;
verificar se há desmembramento de grupos de irmãos;
evitar a transferência, sempre que possível;
participação na vida da comunidade;
participação da comunidade no processo educativo.
Perguntas norteadoras do processo de trabalho
•
•
•
44
como o abrigo se posiciona frente à questão do retorno da
criança à sua família de origem?
como a criança vê a possibilidade de seu retorno ao lar de
origem?
como a família vê o abrigo?
•
•
•
como a criança vê o abrigo?
quais os valores cultivados e difundidos dentro do abrigo?
como o abrigo estabelece parcerias?
IV - O trabalho com as famílias
Identificação da dinâmica familiar
a) Contatos Estratégicos:
• visitas domiciliares - VD - (espaço da família);
• grupo de pais;
• rede social e de serviços.
b) Técnicas:
• Genograma;
• Ecomapa;
• entrevistas: biográficas, individuais, com toda a família;
c) Enfoques:
• investigação da dinâmica familiar e das possibilidades da
criança ser reintegrada (levantar hipóteses, solicitar
informações, manter a curiosidade);
• ênfase nos detalhes sobre a história do afastamento da
criança (questionar os fatos ocorridos);
• análise do ciclo de vida da família;
• investigação da rede social da família;
• investigação do contexto cultural.
45
Acompanhamento e elaboração do plano estratégico
•
•
•
•
46
estabelecimento do contrato (consenso quanto aos objetivos
da reintegração);
estabelecimento das tarefas prioritárias;
ampliação da rede social e de apoio sócio-familiar;
suporte sócio-econômico (projetos em parcerias com outras
instituições: geração de renda, subsídio financeiro, bolsa
alimentação ou de estudo, entre outros).
Implicação profissional
Trocando as lentes para trabalhar
com a desinstitucionalização
Na visão sistêmica, baseada na Teoria Geral dos Sistemas (TGS),
todos os elementos de um determinado contexto estão relacionados
entre si, afetam e são afetados mutuamente, visto que as relações são
sempre interdependentes. A mudança de um membro dentro do
sistema afetará os demais e vice-versa. Na concepção sistêmica, o
todo se expressa maior que a simples soma das partes. Esta forma de
olhar para a temática da infância, adolescência e família, substitui o
pensamento linear, que estabelece uma relação de causa e efeito, pela
circularidade que, ao contrário, percebe as situações como resultado
de uma mútua influência das partes envolvidas no todo. Esta
perspectiva inclui não só a criança, o adolescente e a família como
também os profissionais que trabalham nos abrigos e leva em
consideração todos os atores que interagem no processo de
desinstitucionalização. Ressalta-se aqui a importância de trabalhar os
profissionais que conduzem as ações no contexto institucional.
Por volta da década de 30, o profissional era visto como um mero
observador externo que acreditava atuar com isenção de suas
crenças, valores e trajetória de vida no sistema de comunicação e de
47
relação. Esta é considerada como a Primeira Cibernética1 . Após a
década de 50, surge uma forma diferenciada de pensar a observação
de um sistema – a Segunda Cibernética. Nesta visão, o profissional
não está isento, nem se coloca fora do contexto, mas implicado e
imerso no processo de relação. O observador não existe,
independentemente do que observa. O interventor sistêmico e/ou
profissional atuante emerge no interior das práticas humanas e
sociais.
Na situação de desinstitucionalização, no que concerne ao
atendimento à criança, ao adolescente e à família, o profissional é
reconhecido como instrumento fundamental a ser trabalhado neste
processo, tendo em vista que a forma como ele percebe e atua
frente a um determinado fenômeno influencia todo o contexto a
ser trabalhado. Quanto menos o profissional se vê implicado,
maiores riscos ele corre em comprometer o contexto, a impor os
seus valores e a colocar sem perceber os seus julgamentos. Já na
admissão dessa interferência inevitável, ele se torna mais aberto a
rever as suas crenças, a participar de supervisões, intervisões,
trabalhar em cooperação de equipe com o objetivo de ampliar o seu
olhar para a criança, o adolescente e a família e a minimizar os riscos
de uma intervenção auto-referenciada.
Os profissionais colocam seus valores na história, são
atravessados pela trajetória, atravessam-na e a realidade familiar das
1
Estudo do controle e da comunicação nos homens, nos animais e nas máquinas, neste caso específico estamos
nos referindo aos homens.
48
crianças e adolescentes. Deste modo, os paradigmas do
profissional, seus conceitos e preconceitos influenciam como ele
faz e o que ele faz no seu trabalho. O reconhecimento desta
implicação é um fator preponderante para o sucesso do trabalho
de reintegração familiar, seja qual for a metodologia por ele
utilizada.
Revisão dos paradigmas – um novo olhar para a família
O que desafia o profissional na sua prática é o impacto das
ressonâncias. Isto pode ser traduzido como a forma que um
determinado fenômeno faz repercutir as questões pessoais do
profissional no atendimento. A intervenção dependerá do lugar onde
a pessoa que intervém se situa, quais as suas crenças, os seus valores e
as suas implicações. Para ilustrar, convém refletir sobre o depoimento
de um profissional sobre a família que atende: “esta família não tem
condições de ficar com o filho, é desestruturada, a criança vai ficar
muito melhor no abrigo do que na família”. Este exemplo suscita um
questionamento: Qual o nível de investimento do profissional nesta
família, visando à alternativa da reintegração familiar?
No que diz respeito à mudança, o que decide o rumo de um
sistema está vinculado à maneira pela qual aquele que intervem vai
se implicar para fazer com que os diversos elementos do sistema
possam se agenciar. Isto depende do papel que o profissional vai
desempenhar, o seu modo de intervir, a fim de criar um contexto
para que a inter-relação entre as pessoas/sistemas possam se
modificar, ou seja, ativar o processo de relação e de comunicação
49
entre a criança e o adolescente e a família e entre a família com o
sistema extrafamiliar: o abrigo, as redes comunitárias formal e
informal.
O trabalho do interventor consiste de preferência em estimular
os membros da família a que não empreguem os circuitos de
relações que impõem a manutenção do problema apresentado, a
fim de abrir-lhes outras possibilidades. O papel do interventor
expressa-se na co-construção de um trabalho junto às famílias, às
crianças e aos adolescentes.
Como co-construtor, a participação do profissional não é
passiva, mas ativa. Desta forma, os elementos da história do
profissional devem ser constantemente revistos: O que o move?
Como os desafios concretos atravessam a sua prática de
intervenção? Como aparecem os seus sentimentos e seus
pensamentos? Que liberdade de ação ou grau de influência tem
ele no sistema atuante e no qual ele atua também? Como surge o
novo nessa relação?
É interessante perceber que as descrições do interventor, neste
caso sobre a família, a criança e o adolescente, parecem revelar mais a
respeito do seu próprio lugar do que da constituição do mundo que
descreve.
Implicado no processo, ao invés de um observador externo, o
profissional precisa rever os seus paradigmas. Alguns aparecem
com freqüência e impacto negativo, especialmente no trabalho de
reintegração familiar (vide quadro a seguir).
Enfim, é preciso ver a família de maneira diferente e acreditar
50
O profissional
O paradigma que aprisiona
O paradigma que transcende
Onipotência
Sentimento de “pode tudo”, vai fazer tudo
para “salvar a família”. Auto-referenciado
apenas nos seus mapas teóricos.
Co-construção
Participar com o outro, partilhar a responsabilidade.
Permitir a expressão da criatividade da família.
Linearidade
A família como produto do sistema. O
problema da família foi causado por outrem.
Circularidade
A família é influenciada e influencia o contexto.
Assistencialismo
A família como dependente de ações sociais,
precisa ser suprida por forças externas e
atitudes paternalistas.
“Empoderamento”
Devolver o poder da família para o desenvolvimento
da sua autonomia.
Disfuncionalidade
A família é vista como algo que não funciona
ou, quando funciona, não o faz bem, precisa
de “ajustes”. Este paradigma reflete um
julgamento negativo acerca da forma que a
família resolve as suas problemáticas
relacionais e/ou de subsistência
Estratégia de sobrevivência
A família se encontra em pleno funcionamento. O que
a família faz para resolver as suas questões em nível
relacional não deve ser considerada disfuncional, mas
deve ser redefinido através de suas competências, assim
como a sua sobrevivência frente à violência estrutural
que a acomete. O tipo de funcionamento que se apresenta é, na maioria das vezes, uma forma de exercer a
função de proteção. Atende antes de tudo a um fim
prático, de subsistência. Por exemplo, a família que vive
através das ruas, trabalha para o tráfico, recebe ajuda de
terceiros etc.
Incapacidade
Olhar a família pelo que falta, pela
inabilidade.
Competência
Reconhecer a capacidade da família para encontrar as
suas auto-soluções.
Desestruturada
Família sem estrutura?
Reconhecimento da estrutura
Não há família sem estrutura. É importante a
valorização da disposição das partes do todo familiar.
51
na sua competência para mudar a realidade contextual. É preciso
“empoderá-la” com suas próprias conquistas, apesar de muitos
pesares. O filósofo existencialista Jean-Paul Sartre diz que:
“O importante não é o que fizeram de mim, mas aquilo que
faço do que fizeram de mim.”
O maior desafio é deixar de ver a família apenas como parte
do problema e ajudá-la a se imbuir da responsabilidade de ser
também parte da solução.
52
Considerações finais
No trabalho de reintegração, é importante refletir com a família
diferentes aspectos de sua dinâmica e sua problemática e que
digam respeito à sua história. Em primeiro lugar, os vários
sentimentos que perpassam a família: sentimentos de
incompetência, incapacidade e impotência para resolver sua
problemática, bem como outros de natureza social. As
representações que guarda a respeito de si mesma como uma
unidade familiar que não corresponde ao esperado socialmente e
a estranheza de não parecer com os agrupamentos familiares
identificados com o padrão socialmente aceito. Num segundo
momento, refletir sobre a dicotomia família-abrigo, no sentido de
prepará-la para eventuais exigências da criança ou do adolescente,
bem como fortalecê-la para enfrentar as dificuldades que poderão
advir da adaptação da criança ou do adolescente ao novo
contexto familiar e trabalhar suas idealizações e expectativas
diante da mudança de realidade.
Esses são alguns aspectos, entre muitos outros, que precisam
ser explorados junto com a família, uma vez que, pelo fato de
cultivar uma imagem negativa de si, a família descarta suas reais
condições de descobrir alternativas dentro de sua própria
realidade. Dessa forma, se mantém paralisada numa situação ideal
53
e mítica, impossibilitada de lidar com a realidade e de refletir
sobre o vivenciado, a reconstruir-se a partir de seus sofrimentos e
conquistas. Superar a distância existente entre a família idealizada
e a família verdadeira ajuda o grupo familiar a romper com mitos,
crenças e valores forjados e sustentados ao longo do tempo.
Trata-se inclusive de romper com a idéia de família
“desestruturada”, preconceito ainda comum em quem presta
atendimento. Nessa perspectiva, a postura crítica do profissional
em relação a seus valores, crenças, mitos familiares e postulados
teóricos deve ser um exercício sistemático, necessário ao bom
andamento de sua prática.
É preciso lembrar que, quanto maior a permanência da criança
ou do adolescente no abrigo, maior será o desapego em relação à
família (principalmente quando a instituição não favorece esse
contato), o que tornará mais difícil o reatamento dos vínculos. A
todos os profissionais que se dispõem à tarefa tão complexa e
delicada, fica mais um desafio: a organização de um trabalho em
parceria, com a clareza de que cada instrumental utilizado, por si
só, não é o bastante, o que revela a pertinência da troca, uma
interação constante entre todos os envolvidos a buscar nas
famílias um retorno que realimente a intervenção e proporcione
visão mais depurada do processo, além da sensibilidade para
entender e construir essa equação de co-responsabilidade entre
sociedade e família.
54
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57
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