Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 1, Marco, 1999 122 Espalhamento : Observando o Desconhecido Indiretamente A. A. Ferreira, M. F. Lourenco, L. G. Marcassa e V. S. Bagnato Instituto de F sica de S~ ao Carlos - USP Caixa Postal 369, 13560-970 S~ ao Carlos/SP Recebido em 27 de Agosto, 1996 Atraves do espalhamento elastico de um projetil por um alvo plano podemos determinar a forma e orientac~ao do alvo. Esta e uma forma didatica de introduzir, a utilidade da tecnica de espalhamento para estudar o desconhecido. Usando isto na pratica os conceitos podem ser ainda melhor estabelecidos. Em fsica, mais do que em outras ci^encias, e importante investigarmos o desconhecido atraves de medidas indiretas. Assim, por exemplo, todo conhecimento que temos a respeito da natureza at^omica da materia, advem da observac~ao indireta do espalhamento de como eletrons, fotons, partculas alfa, etc. O proprio desenvolvimento de como os constituintes at^omicos est~ao arranjados, estabelecendo o chamado `atomo nucleado', foi obtido atraves de espalhamento de partculas por folhas metalicas nas, feito por Rutherford [1]. A propriedade comum em quase todo espalhamento, e que desconhecemos o alvo, mas conhecemos as propriedades dos projeteis lancados (que podem ser fotons, eletrons, etc) e medimos o resultado do espalhamento que, em geral, e caracterizado por um desvio nas trajetorias iniciais dos projeteis. A analise do que acontece aos projeteis apos interagirem com o alvo e a parte mais importante do espalhamento, permitindo obter informac~oes precisas da constituic~ao do alvo, sua distribuic~ao espacial e varias outras informaco~es. Apesar de ser uma ferramenta de extrema import^ancia em fsica, a vis~ao do espalhamento normalmente n~ao esta bem clara para o estudante do segundo grau ou dos do ciclo basico dos cursos universitarios. O estudante pode ate saber que para determinar a forma de certos objetos ele precisa, por exemplo, apenas ver a sombra deste quando iluminado (o que constitui um experimento simples de espalhamento de luz), mas o con Alunos de graduac~ao do IFSC ceito global do fen^omeno n~ao lhe esta evidente. Existem varias maneiras distintas de se introduzir os conceitos de espalhamento e de como a analise dos resultados nos permite obter informac~oes precisas sobre o alvo. Aqui estamos propondo mais uma maneira atraves da qual e possvel a determinac~ao de formas geometricas, atraves do espalhamento elastico de corpusculo massivo. O entendimento da simples situac~ao mec^anica exposta neste trabalho podera proporcionar, ao estudante iniciante, um conceito mais ntimo com o espalhamento e com as ideias gerais por tras deste efeito. Este experimento pode ser repetido em cursos do segundo grau ou em cursos basicos universitarios. Para iniciarmos nossa discuss~ao, imagine a situaca~o ilustrada na gura 1, onde um dos mais simples experimentos de espalhamento sera descrito. A.A. Ferreira et al. Numa mesa vertical coloca-se, em sua parte superior, uma sequ^encia de bolinhas massivas que poder~ao ser liberadas por queda livre simultaneamente. No caminho de descida elas encontrar~ao um objeto desconhecido. A regi~ao de aus^encia de bolinhas determina seu tamanho. Se tivermos mais bolinhas atingindo o anteparo de um lado do que de outro, podemos imaginar qual a inclinac~ao referencial do objeto, etc. E possvel determinar informac~oes mais precisas, de forma mais quantitativa, medindo quantas bolinhas atingem cada ponto do anteparo e compararmos com a medida feita na aus^encia do alvo (que deve nos fornecer uma distribuic~ao uniforme de partculas). Neste trabalho queremos realizar um experimento simples de espalhamento mec^anico para investigar a forma de guras planas desconhecidas. O experimento sera um pouco mais elaborado do que o descrito acima, mas tem o mesmo princpio. Por se tratar de colis~oes elasticas, as leis da fsica utilizadas para descrever a interaca~o dos projeteis com o alvo s~ao bastante simples, permitindo a todos os estudantes do segundo grau e/ou do ciclo basico do nvel superior entenderem a algebra aqui utilizadas. 123 Figura 2. Sistema experimental completo para o experimento de espalhamento elastico de projeteis. Nosso sistema experimental esta mostrado na gura 2. Numa mesa de dimens~oes 65.5 cm por 45.5 cm xamos suportes laterais de 5 cm de altura restringindo o espaco disponvel aos projeteis a serem utilizados. A superfcie da mesa e lisa, podendo ser de cartolina ou formica. Uma das extremidades da mesa (com dimens~ao 45.5 cm) e modicada adaptando-se um trilho de alumnio no qual e montado um \canh~ao", o qual esta esquematizado na gura 3. O canh~ao e feito de modo a atirar bolinhas sempre com a mesma velocidade. O trilho de alumnio e feito com cantoneiras, apresentando encaixes com a mesa, permitindo deslizamento de todo o sistema por toda a lateral. 1 - Puxador de alumnio; 2 - Bucha de aco soldada; 3 - Mola exvel; 4 - Bucha movel de PVC; 5 - Esfera de aco (di^ametro de 1.2 cm); 6 - Cilindro de aco (comprimento de 20.0 cm). Figura 3: Detalhes do canh~ao para lancamento dos projeteis. Como projetil utilizamos uma bolinha de aco de di^ametro 1.2 cm, que apos ser colocada no canh~ao e a mola comprimida, emerge deste sempre com a mesma velocidade. O canh~ao pode disparar o projetil de qualquer posic~ao da lateral, que denominaremos de eixo X. O lancamento ocorre sempre perpendicular a direc~ao X, isto e, ao longo da direc~ao Y. Localizado quase que na outra extremidade da mesa e centrado em X=0, xamos objetos planos (quadrados, crculos, tri^angulos e outros). Estes objetos funcionar~ao como alvo de espalhamento. Procuraremos determinar a forma do alvo, suas dimens~oes e orientac~ao, atraves da observac~ao do espalhamento elastico do projetil com o alvo. Os objetos que servir~ao como alvo t^em sua superfcie coberta por borracha, isto para aproximar mais a colis~ao de ser perfeitamente elastica. Uma vez determinada o tipo de superfcie do alvo, via espalhamento das bolinhas lancadas, compararemos o resultado com a forma verdadeira podendo, assim, avaliar qu~ao preciso 124 Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 1, Marco, 1999 e dedigno foi o experimento. Todas as partes do sistema experimental, bem como a montagem completa tendo como alvo um crculo ou um tri^angulo, est~ao mostradas nas guras 4a, 4b a 4c. mesmo se a bolinha passou sem ser deetida ou qual a deex~ao X sofrida. Uma analise da posic~ao Y, da lateral atingida pelo projetil, como func~ao da posica~o X de disparo, permitira determinarmos a forma e a orientac~ao do alvo. Para auxiliar o leitor, a gura 5 resume a situac~ao, mostrando a denic~ao das coordenadas X e Y a serem medidas. O alvo esta sempre centrado em X=0. Figura 5. Resumo da situac~ao. Projetil sera disparado da posica~o X e o observaremos a posic~ao Y que ele alcancara devido a sua interac~ao com o alvo via colis~ao elastica. Figura 4. (a) Sistema montado tendo como alvo um tri^angulo. (b) Tendo como alvo um crculo. O centro geometrico do alvo sempre coincide com X = 0 e (c) todas as partes do sistema. O experimento de espalhamento e feito da seguinte maneira: para um determinado alvo xo, realizamos uma serie de disparos variando a posic~ao X do canh~ao, ou seja, variamos o chamado par^ametro de impacto em relac~ao ao alvo. Para cada disparo, vericamos para onde a partcula e desviada, isto e, em que posic~ao das laterais da mesa o projetil atingira apos a colis~ao ou Imaginemos que o alvo apresenta uma determinada superfcie plana de orientac~ao , localizada entre os pontos X1 e X2, como mostra a gura 6. O ^angulo e medido pela normal a superfcie com o eixo Y. Facamos uma colis~ao com projetil lancado entre X1 e X2. Neste caso de superfcie plana, o ^angulo de incid^encia e de espalhamento, em relac~ao a normal ao alvo, s~ao iguais e s~ao tambem iguais a . Supondo agora que a posic~ao de lancamento e deslocada de uma quantidade X, isto correspondera a uma variac~ao Y na posica~o de espalhamento, como pode ser visto. Assim, variando a posic~ao de incid^encia (X), observamos como varia a posic~ao de espalhamento (Y). Atraves do comportamento Y(X) esperamos encontrar informac~oes sobre a orientac~ao com a superfcie. No caso mostrado na gura 6 (secc~ao plana do alvo) a variac~ao X, Y e o a^ngulo de orientac~ao podem ser facilmente encontrados atraves de argumentos geometricos, como sendo: Y = 1 X sen(2) (1) Para = 0o e = 90o , Y=X diverge, mas para = 45o, Y=X = 1, como era esperado pela geometria da gura 6. A.A. Ferreira et al. 125 Figura 6. Espalhamento por uma secc~ao plana do objeto. Trajetorias de incid^encia paralelas levaram a trajetorias de espalhamento paralela. Assim, uma secc~ao plana do alvo de orientac~ao , tera um graco de espalhamento (Y = Y (x)) na forma de uma reta com inclinac~ao 1=sen(2) entre os pontos de fronteira do plano (X1 e X2). ESte comportamento persiste entre as partes X1 e X2 sendo, portanto, facil sua identicac~ao. Caso o alvo seja um solido geometrico, composto por arestas planas, a curva de espalhamento [Y(x)] apresentara uma sequ^encia de retas de inclinac~oes distintas. Atraves da analise destas retas podemos recuperar a forma geometrica do alvo. Isto e exatamente o que muitos cientistas fazem para descobrir informac~oes especcas do alvo estudado. Caso a superfcie do alvo seja um crculo centrado em x = 0 e de raio R, pode-se desenvolver geometricaY (x) e uma funca~o decresmente para mostrar que X cente com X e que depende de R. Assim, se no alvo entre os pontos x1 a x2 ha um crculo de raio R centrado em x = 0, a curva de espalhamento Y (x) mostrara entre estes dois pontos uma curva de inclinac~ao decrescente com x. A deduca~o desta express~ao ca como exerccio ao leitor. Em resumo, podemos dizer que se o alvo tem face plana de orientac~ao , a func~ao de espalhamento sera Y (X ) = e sua inclinaca~o 1 sen(2) Ja para superfcie circular de raio R, centrada na origem, a curva Y(X) e mais complexa, porem mostra uma inclinaca~o variavel iniciando com grande valor e diminuindo. Na pratica nunca temos exatamente X = R, devido ao tamanho nito do projetil. Para demonstrarmos as ideias aqui apresentadas, vamos mostrar os resultados experimentais obtidos para varios alvos. A gura 7 mostra a curva de espalhamento para um solido constitudo somente de faces planas. Como podemos observar y(x) e constitudo somente de secc~oes retas de inclinac~oes distintas. Os limites destas regi~oes denotam tambem o limite das regi~oes planas do alvo. Medindo Y=X para cada regi~ao, podemos saber a orientaca~o da face. Conectando os pontos com retas seguindo esta orientac~ao recuperamos a forma do alvo. (3:1) Y 1 (3:2) X = sen(2) mostrando todas as caractersticas da func~ao espalhamento Y(x). Na gura 8 mostramos a forma do alvo real (I) e seu formato obtido pela funca~o de espalhamento (II). Este resultado mostra que pudemos obter a forma do alvo sem \praticamente" v^e-lo, somente atraves de informac~oes indiretas obtidas pela resposta ao espalhamento. 126 Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 21, no. 1, Marco, 1999 Um segundo exemplo e um tri^angulo orientado ao acaso. E mostrado na gura 9 a resposta do espalhamento. Na gura 10 s~ao mostradas a forma real (I) e a obtida pelo espalhamento (II). No caso do alvo ser um crculo, o resultado obtido para a func~ao espalhamento s~ao mostrados nas curvas da gura 11. As duas curvas mostradas representam crculos de raios diferentes, cujos valores est~ao indicados. E observado o comportamento como discutido no texto e os raios obtidos a partir da func~ao de espalhamento s~ao proximos dos verdadeiros. Em conclus~ao, o objetivo principal deste trabalho e o de transmitir ao estudante a ideia de que muitos dos conhecimentos em fsica e qumica sobre a constituic~ao do micromundo ao nosso redor s~ao adquiridos atraves de observac~oes indiretas do sistema em quest~ao. Em especial, o chamado espalhamento tem sido uma das tecnicas mais bem aproveitadas neste sentido. Nunca vimos um atomo isolado mostrando sua estrutura interna. No entanto n~ao temos duvida de que ele existe, tem a dimens~ao anunciada e esta disposto na forma de um nucleo rodeado por uma nuvem eletr^onica. Todo este conhecimento advem de observac~oes feitas atraves do espalhamento de partculas e campos pelo atomo. O sistema experimental e exemplos apresentados devem permitir a qualquer estudante absorver facilmente estes conceitos fundamentais e entender de uma forma simples o fascinante mundo de observar o desconhecido indiretamente. Refer^encias [1.] O espalhamento de Rutherford e tratado em quase todos os livros texto de Fsica Moderna ou Introduc~ao a Mec^anica Qu^antica.