Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito O USO DO ARGUMENTO CONSEQUENCIALISTA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA: LIMITES ÉTICOS E JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS. Aluno: Plínio Valente Ramos Neto Orientador: Prof.Dr. Antônio de Moura Borges Brasília - DF 2013 PLINIO VALENTE RAMOS NETO O USO DO ARGUMENTO CONSEQUENCIALISTA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA: LIMITES ÉTICOS E JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em nome do Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito para obtenção de título de Mestre em Direito. Orientador: Prof.Dr. Antônio de Moura Borges Brasília 2013 R175u Ramos Neto, Plinio Valente. O uso do argumento consequencialista em matéria tributária: limites éticos e jurídico-constitucionais. / Plinio Valente Ramos Neto – 2013. 84f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2013. Orientação: Prof. Dr. Antonio de Moura Borges 1. Teoria do conhecimento. 2. Direito e economia. 3. Processo judicial. 4. Direitos civis. I. Borges, Antonio de Moura, orient. II. Título. CDU 347.9 Ficha elaborada pela Biblioteca Pós-Graduação da UCB. Dedico este trabalho ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria. Dedico, também, à minha mãe, Francisca Célia. AGRADECIMENTO Agradeço a Deus, por ter permitido concluir mais uma etapa profissional na minha vida; Agradeço à minha mãe, Célia, por sua presença amorosa em todos os momentos de minha vida; Agradeço à Universidade Católica de Brasília e aos seus professores, em especial, aos professores Dr. Antônio de Moura Borges e Dr. João Rezende Almeida Oliveira, pela oportunidade de aprender conhecimentos valiosos para minha vida profissional; Agradeço ao Tribunal de Contas do Estado do Piauí e àqueles que trabalham na instituição, os quais, direta ou indiretamente, contribuíram para este trabalho; Agradeço ao colega professor Alexandre Veloso, pelo incentivo feito para participar do curso de mestrado em direito na Universidade Católica de Brasília; Agradeço ao professor Dr. Gerson Albuquerque de Araújo Neto e a todos os professores do curso de filosofia da Universidade Federal do Piauí, que inspiraram boa parte deste trabalho. RESUMO Referência: RAMOS NETO, Plínio Valente. O uso do argumento consequencialista em matéria tributária: limites éticos e jurídico-constitucionais. 84f. Mestrado em Direito - Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2013. Em razão do aumento da atividade criativa do juiz quando interpreta e aplica o direito, verificou-se o uso de argumentos de ordem econômica, axiológica e prática, fugindo ao puro raciocínio do silogismo jurídico. Essa tendência não ocorre de forma isolada do atual estado da ciência.No âmbito da teoria do conhecimento, o pragmatismo questiona a existência de uma verdade objetiva e absoluta, redirecionando o eixo do conhecimento da verdade para a utilidade. A teoria ética utilitarista, por sua vez, propõe uma justificação da ação, prática a partir das consequências, distanciando-se de concepções normativistas ou motivacionais. A teoria do direito, em especial, na seara constitucional, propõe, outrossim, uma articulação entre direito, moral e política. Além disso, evidenciando o diálogo entre o direito e economia, a análise econômica do direito revela o papel que o direito pode alcançar na indução de comportamentos humanos desejáveis. Atualmente, verificase em julgados da Suprema Corte brasileira a incidência de argumentos consequencialistas em matéria tributária, utilizadas em sede de controle de constitucionalidade concentrado, sustentados a título de proteção ao princípio da segurança jurídica, quando se discute a possibilidade da modulação de efeitos da decisão judicial.Entretanto, percebe-se que tais argumentos são levantados a esmo, sem análise de sua validade, solidez e dos limites do seu uso diante da teoria ética, da teoria da justiça e da ordem constitucional brasileira, notadamente em confronto com a teoria dos direitos fundamentais.Nesse sentido, o presente trabalho visa suprir essa lacuna, buscando construir um diálogo entre a ética e o direito com o objetivo de solucionar o problema proposto. Palavras-chave: Verdade. Valor. Paradigma. Pragmatismo jurídico. Argumento. Consequencialismo. Utilitarismo. Direitos fundamentais. ABSTRACT Because judge's increased creative activity when he judges and interprets and applies the law, it was verified the use of arguments of economic, axiological and practical, fleeing to pure thoughts of the legal syllogism. This trend doesn't happened in isolation way of the current state of science.Under the theory of knowledge, pragmatism, questions the existence of objective truth and absolute, redirecting the main point of view of the knowledge of the truth for the utility. The utilitarian ethical theory, in its turn, provides a justification of the action, from the practical consequences, distancing themselves from normative conceptions or motivational. The theory of law, especially in harvest constitutional proposes, instead, a link between law, morality and politics. Moreover, showing the dialogue between law and economics, the economic analysis of law shows the objective that law can range in the induction of the desirable human behaviors. Nowadays, there is judged in the Brazilian Supreme Court the incidence of consequentialist arguments on tax matters, it's used in a greed for judicial concentrated, based protection under the principle of legal certainty, when it discusses in the possibility of modulating effects of the judicial decision. However, it is clear that such arguments are raised haphazardly, without examining their validity, power and limits on their use of ethical theory, the theory of justice and constitutional order in Brazil, especially in comparison to the theory of fundamental rights. For this reason, the present study aims to fill this gap, aiming to build a dialogue between ethics and law in order to solve this problem. Keywords: True. Value. Paradigm. Legal pragmatism. Argument. Consequentialism. Utilitarism. Fundamental rights. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9 2 TEORIA DA CIÊNCIA: UMA APLICAÇÃO AOS PARADIGMAS DO DIREITO ... 12 3 TEORIA DO CONHECIMENTO E AXIOLOGIA: A VERDADE E O VALOR NO PRAGMATISMO ....................................................................................................... 22 4 TEORIA DO DIREITO ............................................................................................ 29 4.1 O PRAGMATISMO E RETORNO AOS FATOS ..................................................... 31 4.2 O PRAGMATISMO E A REJEIÇÃO AO ESSENCIALISMO ............................ 35 4.3 O PRAGMATISMO E O UTILITARISMO: UM PONTO DE ENCONTRO PARA A ÉTICA E O DIREITO .......................................................................................... 41 5 TEORIA DO ARGUMENTO ................................................................................... 51 5.1 ARGUMENTO NA LÓGICA INFORMAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO .... 51 5.2 A CONSEQUÊNCIA EXAMINADA A PARTIR DA CAUSA .................................. 65 5.3 O ARGUMENTO CONSEQUENCIALISTA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA ........... 71 6 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 77 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 79 9 1 INTRODUÇÃO O senso comum, não raro, confunde verdade com certeza. Porém são termos distintos: a verdade busca uma correspondência com a realidade, enquanto a certeza assenta-se em um estado de espírito do sujeito cognoscente1. Alguém pode ter certeza sobre uma afirmação falsa. Por outro lado, há quem tenha dúvida sobre verdades proclamadas. Para Popper, a verdade é um conceito que não pode faltar como parâmetro para a ciência, porém, crítica à pretensão à posse da verdade: O conceito de verdade é indispensável para a abordagem crítica aqui desenvolvida. O que criticamos é, precisamente, a pretensão de que uma teoria é verdadeira. O que tentamos demonstrar como crítica de uma teoria é, claramente, que essa pretensão é fundada, que ela é falsa. A importante ideia de metodologia que podemos aprender de nossos erros não pode ser entendida sem a ideia reguladora da verdade; qualquer erro simplesmente consiste em um fracasso em viver de acordo com o padrão de verdade objetiva que é uma ideia reguladora. Denominamos “verdadeira” uma proposição, se ela corresponde aos fatos, ou se as coisas são como as descritas pela proposição. Isto é, o que é chamado de conceito absoluto ou objetivo da verdade que cada uma de nós usa constantemente. A reabilitação bem sucedida deste conceito absoluto da verdade é um dos 2 resultados mais importantes da lógica moderna. No âmbito da teoria do conhecimento, há uma discussão sobre a possibilidade de alcançar a verdade, que vai desde o extremo dogmatismo até o radical ceticismo. Este debate revela-se importante quando demonstra que a verdade que a ciência busca não é verdade absoluta e que alguns ramos da ciência contentam-se com algo menos que a verdade, como a probabilidade, plausibilidade ou verossimilhança. Em uma tomada de decisão em sede jurídica, por exemplo, além do elemento objetivo da verdade (ou verossimilhança), é relevante o elemento subjetivo relativo a certeza, tanto de quem julga como aquela dos destinatários do julgamento. Nesse sentido, ressalta-se o interesse nos argumentos usados como justificação da decisão e o objetivo da persuasão da audiência. A ideia de paradigma nos sugere que há várias visões de mundo, dependendo da teoria explicativa dos fenômenos que a comunidade científica adota 1 CASAUBON, Juan Alfredo. Nociones generalis de lógica e filosofia. Buenos Aires: Educa, 2000.p.323. 2 POPPER, Karl Raymund. Lógica das ciências sociais. 3.ed. Tradução Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2004.p. 27-28. 10 em determinada época, por consenso3. Dessa forma, a concepção de que determinada teoria tem a propriedade absoluta da verdade torna-se insustentável. Isso é, a fortiori, patente no direito, uma ciência que muitas vezes precisa utilizar ficções, elaborações sabidamente falsas, para que tenha operacionalidade. Por muito tempo, em razão da influência do paradigma do positivismo jurídico, houve a defesa do raciocínio puramente silogístico-formal como o método por excelência a ser utilizado pelos juízes, desprezando as considerações extrajurídicas, tais como as relativas à ética, política e econômica. Atualmente, não é difícil perceber a insuficiência do método da razão especulativa (o silogismo) aplicado ao direito. Nesse, caso, é útil a contribuição da razão prática, como disserta Alves: O raciocínio prático está longe de ser silogístico-demonstrativo, puramente racional e dedutivo, fundado apenas em premissas verdadeiras ou falsas. Sendo um raciocínio da motivação, a argumentação é a expressão da razão prática que pretende justificar uma decisão e oferecer as razões de uma determinada escolha. Nesse sentido, a razão prática não é aleatória ou arbitrária; ela supõe certa regularidade, embora não exatamente compulsiva e inexorável, absolutamente demonstrável. A justificação dos argumentos supões, portanto, uma vontade controlável e previsível dentro da lógica do razoável. Isto significa que existe um campo não apenas racional-formal, mas racional-material, em que os respectivos conteúdos ainda compõem uma racionalidade, a racionalidade do razoável, do valor, do provável, do 4 verossímil. O pragmatismo jurídico é um dos vários paradigmas, que, a seu tempo, tem a contribuição de revelar a importância dos fatos e das consequências para o direito. Além disso, suscita uma indagação: se as consequências das decisões judiciais podem ser consideradas no processo de justificação.5 É importante ressaltar que o uso utilitarista das consequências para afastar direitos é questionável do ponto de vista ético e diante de uma concepção substancialista dos direitos, pois o ponto de partida da análise é o das consequências de um ato exterior aos direitos (ato de decisão), olvidando que estes já preexistem à intervenção jurisdicional. No recurso extraordinário nº 363.852/MG, tanto a Fazenda Pública como os ministros do STF fizeram uso de argumentos consequencialistas para sustentar suas posições. A presente dissertação tem por objetivo discutir a possibilidade de 3 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009. p 3. ALVES, Alaôr Caffé. Lógica: pensamento formal e argumentação: elementos para discurso jurídico. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p 371. 5 POSNER, Richard A. Para além do direito. Tradução Evandro Ferreira Silva. São Paulo. WMF Martins Fontes, 2009. p 5. 4 11 utilização do argumento consequencialista como justificação da decisão judicial, sob o ponto de vista ético e jurídico. 12 2 TEORIA DA CIÊNCIA: UMA APLICAÇÃO AOS PARADIGMAS JURÍDICOS Já no prefácio da obra “Para além do Direito”, Posner apresenta três chaves para uma abordagem crítica do direito: a economia, o pragmatismo e o liberalismo.6Ao tratar da economia, afirma seu caráter instrumental quando elabora uma teoria baseada em modelos de comportamento humano “com o objetivos de prever e controlar esse comportamento”.7 De acordo com Jasper, Posner é um dos expoentes de um movimento jurídico chamado AED (Análise Econômica do Direito), que pretende aplicar princípios da teoria econômica a todas as áreas do direito conforme a seguir: Em alguns ramos do direito nos Estados Unidos da américa, a AED é dominante (como direito societário e comercial), em outros é a principal corrente de pensamento (como responsabilidade civil, contratos e direito das coisas) e seus expoentes foram até mesmo nomeados Juízes Federais (é o caso dos professores Richard Posner, Frank Easterbrook, Ralph Winter e Robert Bork). Entretanto, a AED não se restringe àquelas regras jurídicas com ligação óbvia com a ciência econômica, pois tem a pretensão de ser aplicável a todas as áreas do direito e de políticas públicas, inclusive o 8 direito penal, civil e de família. E em outra passagem sintetiza o objetivo da Análise Econômica do Direito: Sinteticamente, a AED pode ser definida como uma escola de pensamento metajurídico que utiliza princípios da teoria econômica para examinar, avaliar e guiar a formação, estrutura, processo e impacto do direito, das instituições legais e das políticas públicas na sociedade. Neste sentido, a AED toma emprestadas as ferramentas e, principalmente, os pressupostos econômicos para avaliar e prever os efeitos que mudanças legais e em 9 políticas públicas podem ter no bem-estar da população. Assim, a pretensão da Análise Econômica do Direito é aplicar resultados da teoria econômica, que possuem base empírica, e, segundo os defensores do movimento, teriam a objetividade e neutralidade necessárias à ciência do direito, o qual seria muito suscetível ao subjetivismo de interesses ocasionais. Nos parágrafos seguintes, abordar-se-á a contribuição que a filosofia da ciência elaborou com relação ao indutivismo presente nas ciências empíricas, a questão do falsificacionismo de Popper e a desmitificação da neutralidade e verdade nas ciências. 6 POSNER, Richard A. Para além do direito. Tradução Evandro Ferreira Silva. São Paulo. WMF Martins Fontes, 2009. p. 16. 7 POSNER, Richard A., loc.cit. 8 JASPER, Eric Hadmann. A filosofia da análise econômica do direito-EAD. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo, n. 92, p. 98-128, maio/jun. 2010. 9 JASPER, Eric Hadmann., loc. cit. 13 O senso comum concebe a ciência como o conhecimento que pode ser provado através da experiência. Essa visão tem origem a partir de Galileu, que toma uma nova atitude diante dos dados, elaborando uma teoria adequada aos mesmos.10 O que justifica extrair de afirmações singulares as afirmações universais? Para o indutivista, um grande número de observações num mesmo sentido justificaria este raciocínio indutivo. Além disso, essas observações devem ser submetidas a uma variedade de condições e nenhuma proposição de observação deve conflitar com a lei universal extraída.11 A partir das leis universais podemos derivar outras afirmações universais através do processo dedutivo. Entretanto, a dedução, por si só, não garante a verdade das proposições porque a dedução é formal. Esta apenas garante que se as premissas são verdadeiras, então a conclusão será verdadeira.12 As leis e teorias induzidas da observação dos fatos tornam-se dispositivos de previsão e explicação na ciência, num contínuo processo indutivo e dedutivo. 13 O indutivismo atrai confiança para si em razão de sua objetividade, tanto na observação quanto no raciocínio indutivo, que não dependem de opiniões pessoais, podendo suas afirmações universais e singulares sofrerem repetição por qualquer observador.14 Há duas linhas para tentar justificar o princípio indutivo: a lógica e a experiência. A via da lógica não se apresenta suficiente, pois os argumentos indutivos não são logicamente válidos, já que a verdade das premissas não garante a verdade da conclusão. A via da experiência, por sua vez, também padece de insuficiência. O fato de dizer que o processo de indução é válido porque funiona em um grande número de ocasiões é um argumento circular, pois se usa a indução para justificar a própria indução. Este é o chamado “problema da indução”. Além disso, grande número de observações de ampla variedade de condições são termos vagos e dúbios.15 10 CHALMERS, A. F.O que é ciência afinal? Tradução Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993.p. 22-34. 11 CHALMERS, A. F., loc. cit. 12 CHALMERS, A. F., loc. cit. 13 CHALMERS, A. F., loc. cit. 14 CHALMERS, A. F., loc. cit. 15 CHALMERS, A. F., loc. cit. 14 Uma outra forma de justificar o indutivismo é deixar de considerar as afirmações como verdadeiras, mas apenas como prováveis. Entretanto, esta posição enfrenta os mesmos problemas do indutivismo mais extremo.16 Uma primeira resposta ao problema do indutivismo é a cética, que conclui que a ciência não pode ser justificada racionalmente. A segunda resposta propõe a base do indutivismo na obviedade e razoabilidade de seus resultados. A última resposta, por fim, nega que a ciência tenha por fundamento a indução.17 O indutivista sustenta duas afirmações: que a ciência começa com a observação e que a observação produz uma base segura. Entretanto, o papel da observação pode ser criticado.18 A visão é o sentido mais utilizado na observação, pois através desse sentido o observador tem acesso a algumas propriedades do mundo.19 A experiência que um observador tem não é determinada apenas pelas imagens, mas depende também da experiência passada, do conhecimento e das expectativas de quem observa.20 Ao elaborar uma proposição de observação, o cientista parte de uma teoria. Assim, algum tipo de teoria precede todas as proposições. Isso contraria a tese indutivista de que os significados dos conceitos são adquiridos por meio de observação exclusivamente. Diante disso, é falso afirmar que a ciência começa pela observação. Outro ponto situa-se na afirmação indutivista de que as proposições de observação são uma base firme para o conhecimento científico. Isso não é verdade, porque muitos erros científicos foram baseados em proposições de observação.21 Popper é bem claro quando afirma: As teorias são invenções nossas, são ideias nossas. Não nos são impostas de fora – são antes os instrumentos autofabricados do nosso pensamento. Este aspecto foi claramente visto pelo idealista. Mas algumas dessas nossas teorias podem entrar em choque com a realidade. E, quando tal acontece, sabemos que há uma realidade; sabemos que existe algo para nos recordar o facto de que as nossas ideias podem estar erradas. E é por esse motivo que o realista tem razão. Estou persuadido de que nossas descobertas são guiadas pela teoria, nestes como em muitos outros casos, e não de que as teorias sejam o 16 CHALMERS, A. F.O que é ciência afinal? Tradução Raul Fiker . São Paulo: Brasiliense, 1993.p.35-44. 17 CHALMERS, A. F., loc. cit. 18 Ibidem, p. 45-62. 19 CHALMERS, A. F., loc. cit. 20 CHALMERS, A. F., loc. cit. 21 CHALMERS, A. F., loc. cit. 15 resultado de descobertas “devidas à observação” – uma vez que a própria 22 observação tende a ser guiada pela teoria. O observador indutivista não é totalmente imparcial, por que muitas observações são realizadas exatamente para testar ou esclarecer uma teoria, e seus registros são feitos com base na relevância dos dados para uma teoria. 23 O falsificacionismo de Popper, por sua vez, entende que a observação depende da teoria. Além disso, sustenta que a teoria não se torna verdadeira por encontrar uma confirmação na observação, mas que a observação serve como meio para testar as teorias, tentativa de falsificá-los. Em não sendo falsificada, a teoria é considerada como a melhor disponível.24 Segundo Popper, o critério para avaliar uma teoria deve ser modificado da verificabilidade para a falseabilidade: Contudo, só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado um critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema. Em outas palavras, não exigirei que um sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, sem sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema 25 científico empírico. Uma particularidade lógica do falsificacionismo é a de que a falsidade de afirmações universais pode ser deduzida de afirmações singulares disponíveis. 26 Para o falsificacionismo, a ciência é conjunto de hipóteses sobre um aspecto do mundo que pode ser falsificado. Uma hipótese é falsificável quando seja logicamente possível uma proposição de observação inconsistente com a hipótese. O fato de exigir que as hipóteses científicas sejam falsificáveis, implica em excluir um conjunto possível de proposições de observação inconsistente tomando aquela hipótese informativa.27 22 POPPER, Karl Raymund. Conjecturas e refutações. Tradução Benedita Bettencourt.Coimbra: Almedina, 2006. p.165-166. 23 CHALMERS, A. F.O que é ciência afinal? Tradução Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 45-62. 24 Ibidem, p. 63-76. 25 POPPER, Karl Raymund. A lógica da pesquisa científica. Tradução Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mata. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 42. 26 CHALMERS, A. F., op.cit., p. 63-76. 27 CHALMERS, A. F., loc. cit. 16 A ciência deve propor hipóteses altamente falsificáveis, conforme os seguidores do falsificacionismo. O grau de falsificabilidade será, então, diretamente proporcional à certeza e precisão das teorias.28 Popper centraliza em sua teoria a importância do problema: Se é possível dizer a ciência, ou o conhecimento “começa” por algo, poderse-ia dizer o seguinte: o conhecimento não começa de percepções ou observações ou de coleção de fatos ou números, porém, começa, mais 29 propriamente, de problemas. Dessa forma, o progresso da ciência se daria a partir de problemas, que demandariam hipóteses falsificáveis, que por sua vez, seriam submetidos a testes rigorosos, que podem levar a uma falsificação ou a uma manutenção da teoria proposta. Se for falsificada uma teoria já consolidada, então teremos um novo problema.30, Não basta para o progresso da ciência que uma teoria seja altamente falsificável, mas é necessário que ela seja mais falsificável que aquela a qual pretende substituir, acrescentando um novo tipo de fenômeno não relevado pela anterior.31 Além disso, a ciência deve evitar as modificações ad hoc, que são aqueles acréscimos em teorias anteriores para contornar a falsificação evidente.32 Entretanto, há um problema nas falsificações já que para falsificar uma teoria utiliza-se de proposições de observações inconsistentes com a mesma. Não obstante, estas mesmas proposições de observação são passíveis de falsidade, pois são dependentes também de uma teoria.33 Uma teoria é formada por um complexo de afirmações universais, além de suposições auxiliares e os testes são feitos baseados em condições iniciais previstas. O fato de uma observação contrariar um previsão da teorias não a falsifica imediatamente, pois não se pode afirmar desde logo onde se localiza a falsidade: se 28 CHALMERS, A. F.O que é ciência afinal? Tradução Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 63-76. 29 POPPER, Karl Raymund. Lógica das ciências sociais. 3. ed.Tradução Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2004, p.14. 30 CHALMERS, A. F., op. cit. p. 63-76. 31 CHALMERS, A. F., loc. cit. 32 CHALMERS, A. F., loc. cit. 33 Ibidem, p. 89-107. 17 nas afirmações universais, se nas suposições auxiliares ou nas condições iniciais dos testes.34 A respeito da aplicação de sua teoria as ciências sociais, Popper assim resume suas orientações: a) O método das ciências sociais, como aquele das ciências naturais, consiste em experimentar possíveis soluções para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se nossas investigações e aqueles que surgem durante a investigação. As soluções são propostas e criticadas. Se uma solução proposta não está aberta a uma crítica pertinente, então e excluída como não científica, embora, talvez, apenas temporariamente. b) Se a solução tentada está aberta a críticas pertinentes, então tentamos refutá-la; pois toda crítica consiste em tentativas de refutação. c) Se uma solução tentada é refutada através do nosso criticismo, fazemos outra tentativa. d) Se ela resiste à crítica, aceitamo-la temporariamente; e a aceitamos, acima de tudo, como digna de ser discutida e criticada mais além. e) Portanto, o método da ciência consiste em tentativas experimentais para resolver nossos problemas por conjecturas que são controladas por severa crítica. É um desenvolvimento crítico consciente do método de “ensaio e erro”. f) A assim chamada objetividade da ciência repousa na objetividade do método crítico. Isto significa, acima de tudo, que nenhuma teoria está isenta do ataque da crítica; e mais ainda, que o instrumento principal da crítica 35 lógica - a contratação lógica – é objetivo. Ainda, segundo Popper, os problemas práticos nas ciências sociais podem suscitar problemas teóricos: Sérios problemas práticos, como os problemas de pobreza, de analfabetismo, de supressão política ou de incerteza concorrente a direitos legais são importantes pontos de partida para pesquisa nas ciências sociais. Contudo, estes problemas práticos conduzem à especulação, à teorização, e, portanto, a problemas teóricos. Em todos os casos, sem exceção, é o caráter e a qualidade do problema e também, é claro, a audácia e a originalidade da solução sugerida, que determinam o valor ou a ausência do 36 valor de uma empresa científica. Lakatos propõe que as teorias científicas devem ser consideradas como estruturas organizadas, denominando-as programas de pesquisa. Um programa de pesquisa possui uma heurística positiva e outra negativa. A heurística negativa representa o núcleo irredutível do programa, formado por uma hipótese teórica muito geral e considerada infalsificável por uma decisão metodológica central. A heurística positiva, por sua vez, compõe as diretrizes de como o núcleo deve ser suplementado, formado por hipóteses auxiliares refutáveis. Para que um programa 34 CHALMERS, A. F.O que é ciência afinal? Tradução Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 89-107 35 POPPER, Karl Raymund. Lógica das ciências sociais. 3. ed. Tradução Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2004. p. 16. 36 Ibidem, p. 15. 18 de pesquisa tenha mérito, deve possuir um grau de coerência para a definição de pesquisa futura e deve possibilitar a descoberta de fenômenos novos. 37 A metodologia científica proposta por Lakatos consiste num trabalho realizado dentro de um único programa de pesquisa. Esse trabalho promove a expansão e modificação do cinturão protetor, que é formado por hipóteses auxiliares refutáveis. A atividade de expansão e modificação do cinturão protetor deve obedecer às seguintes condições: inadmissibilidade de hipóteses ad hoc e de hipóteses que não sejam testáveis independentemente. Além disso, estão proibidas aquelas que violem o núcleo irredutível do programa. Assim, o programa de pesquisa de Lakatos resolve o programa do falsificacionismo, que baseado em um método de conjecturas e refutações, não permite a estabilidade de teorias falsificadas.38 Thomas Kuhn entende a teoria científica como uma estrutura complexa. Esta posição tem duas características principais: caráter revolucionário do progresso científico e a influência dos fatores sociológicos na ciência. Kuhn e Lakatos possuem em comum o fato de submeterem suas posições à crítica da história da ciência. A diferença entre Kuhn e os outros é sua ênfase na interferência de fatores sociológicos que resultam em relativismo. O conceito básico de Kuhn é o de paradigma, que se compõe das teorias, leis e técnicas adotadas por uma comunidade científica. O paradigma é a primeira fase do progresso da ciência depois da fase desorganizada da pré-ciência. A ciência normal esta assentada em firme paradigma. Quando surge uma crise não resolvida pelo paradigma vigente, ocorre uma revolução científica, com a imposição de um novo paradigma.39 O que caracteriza uma ciência a distingue da não-ciência é a existência de um paradigma. O paradigma se compõe de leis, suposições teóricas, métodos para aplicar as leis a vários tipos de situação e princípios metafísicos. A ciência normal, por sua vez, é uma atividade de resolução de problemas segundo as regras de um paradigma. A não resolução dos problemas não é vista por Kuhn como falsificação, mas como anomalia que não prejudica a validade do paradigma. Na ciência normal há um acordo com relação aos fundamentos, que não existe na pré-ciência. Esse acordo possibilita que o paradigma funcione como fonte de orientação e interpretação dos fenômenos, caracterizando que a observação depende da teoria. 37 CHALMERS, A. F.O que é ciência afinal? Tradução Raul Fiker . São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 109-121. 38 CHALMERS, A. F., loc. cit. 39 Ibidem, p. 122- 135. 19 Os cientistas que trabalham dentro de um paradigma resolvem problemas-padrão utilizando-se de experiências-padrão, instruídos pela educação científica que receberam. No entanto, grande parte do conhecimento que possui o próprio cientista não possui consciência.40 A simples existência de problemas não resolvidos não constitui uma crise. A anomalia ocorrerá se se questionar os próprios fundamentos do paradigma, se tiver como referência uma necessidade social urgente, se durar um certo período de tempo e se o número de anomalias for considerável. O momento de crise na ciência propicia o surgimento de um paradigma rival, que abordará diferentes tipos de questões, com padrões diferentes e incompatíveis com o paradigma anterior. A mudança dos cientistas para outro paradigma não segue um critério de superioridade de um paradigma em relação ao outro. Fatores como simplicidade, necessidade social ou habilidade para resolver problemas específicos podem influenciar na mudança. Assim, Kuhn considera os paradigmas rivais como incomensuráveis, pois os diferentes padrões, as diferentes interpretações do mundo e a diversidade de linguagem não permitem a fixação de um critério para avaliar se um paradigma supera o outro. A revolução ocorre quando a maioria da comunidade científica adere a um novo paradigma. 41 A teoria de Kuhn não é meramente descritiva, mas explica as funções de ciência e da revolução científica. A função da ciência normal é possibilitar o desenvolvimento interno de um paradigma, já que os cientistas normais não têm uma posição crítica em relação ao paradigma no qual trabalham. Ao lado disso, a função da revolução é viabilizar o progresso da ciência a partir de um novo paradigma com a formação de novos conceitos, refinamento dos velhos conceitos e a descoberta de novas relações lícitas entre eles. É importante ressaltar que a existência de um paradigma não impede que entre diferentes cientistas haja divergência quanto à aplicação e interpretação de um mesmo paradigma.42 Feyerabend rejeita as explicações indutivistas e falsificacionistas por entender não-realistas e prejudiciais à ciência, porque não tem atenção para as complexas condições que interferem na mudança científica. 40 CHALMERS, A. F.O que é ciência afinal? Tradução Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 122-135. 41 CHALMERS, A. F., loc. cit. 42 CHALMERS, A. F., loc. cit. 20 Assim, Feyerabend propõe que não há regras fixas e universais na metodologia da ciência, pois nesse tema vale tudo.43 No ponto referente à incomensurabilidade, Feyerabend aproxima-se de Kuhn. Aquele entende que não é possível comparar logicamente teorias rivais, pois o contexto teórico, os conceitos básicos e os princípios fundamentais são totalmente diversos. Apesar disso, é possível alguma comparação quando confronta-se cada teoria diante das demais situações observáveis e verifica-se o grau de compatibilidade das teorias com aquelas situações. Outros critérios de comparação residem na consideração de linearidade ou não, da coerência ou não, se as aproximações são ousadas ou são seguras. Diante da incomensurabilidade entre as teorias rivais, Feyerabend entende que a escolha entre teorias tem aspecto necessariamente subjetivo. Esse aspecto subjetivo não significa dizer que não se possa criticar as escolhas, que por não terem sido previstas, o próprio cientistas não concordariam se as conhecessem. Outro ponto objetivo que estimula a opção por uma teoria é que algumas teorias têm mais oportunidades de desenvolvimento que outras.44 Além da incomensurabilidade de teorias rivais, Feyerabend pontifica que são também incomensuráveis a ciência e outras formas de conhecimento, daí que não posso afirmar que a ciência seja superior a outras áreas do conhecimento.45 Feyerabend defende, outrossim, que o indivíduo deve ser livre para escolher entre a ciência e outras formas de conhecimento. Uma objeção a essa tese é que essa liberdade é utópica já que o indivíduo já nasce em uma dada sociedade não escolhida por ele livremente, e sua liberdade dependerá da posição que ocupa na estrutura social.46 Diante dessa exposição, pode-se concluir que as ciências empíricas (p.ex.: a economia) não têm base segura como aparentam ter e que não há uma neutralidade absoluta, pois, como afirma o falsificacionismo de Popper, a observação dos fatos depende de uma teoria estabelecida previamente. Além disso, verifica-se, como demonstrado por Kuhn, a influência de fatores sociológicos para que a comunidade científica chegue a um consenso, incidindo, uma vez mais, sobre a questão da 43 CHALMERS, A. F.O que é ciência afinal? Tradução Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 173-186. 44 CHALMERS, A. F., loc. cit. 45 CHALMERS, A. F., loc. cit. 46 CHALMERS, A. F., loc. cit. 21 neutralidade e solapando a pretensa posse da verdade de que a ciência se vangloria. Outra contribuição importante de Kuhn para a discussão sobre a rivalidade entre o positivismo jurídico formalista e o pragmatismo jurídico, é a afirmação de que a não resolução de problemas não é tomado como falsificação de uma teoria. Então, o fato de o positivismo jurídico não possuir solução para os hard cases (casos difíceis) não prejudica o paradigma por ele proposto. Ademais, entre o pragmatismo jurídico baseado na análise econômica do direito e o positivismo jurídico há uma incomensurabilidade, dado que os métodos, pressupostos e princípios fundamentais são diferentes. 22 3 TEORIA DO CONHECIMENTO E AXIOLOGIA: A VERDADE E O VALOR NO PRAGMATISMO O ato de conhecer algo é imanente ao ser humano, consistindo na reflexão racional sobre si mesmo ou sobre o mundo. O conhecimento não é a mesma coisa que crença ou opinião47. Quando se trata de conhecimento científico, isto refere-se ao conhecimento proposicional, que indica que algo é assim. A opinião tradicional (sugerida por Platão e Kant) é a de que o conhecimento proposicional possui três componentes: a justificação, a verdade e a crença. Assim, pode-se definir conhecimento como uma crença verdadeira justificada48. As crenças, per si, são apenas estados de representação do mundo, que se representam mal, são falsas, ou, se representam o mundo corretamente, são verdadeiras49. Não há uma única maneira de conhecer, assim como, o próprio conhecimento tem suas possibilidades e pode ter origens diversas. No que se refere à possibilidade do conhecimento, ou seja, à discussão sobre os limites do ato de conhecer, as teorias mais conhecidas são: dogmatismo, ceticismo, subjetivismo, pragmatismo e criticismo. O dogmatismo é uma atitude de confiança na capacidade de conhecer da razão humana, onde essa capacidade de conhecer não precisaria ser demonstrada, nem discutida, sendo, portanto, auto-evidente50. Decerto, o dogmatismo não se coaduna com a ciência atual, que busca de forma ciosa delimitar o seu objeto e as possibilidades de conhecer o mesmo. A grande empreitada de estabelecer limites à razão humana tem seu marco na obra Crítica da Razão Pura de Kant. No outro extremo, temos a posição do ceticismo que afirma que não é possível conhecer nada, isso em sua modalidade mais radical, ou então que o conhecimento que possuímos não encontra justificativa racional para manter-se. Por 47 CONHECER. In: MAUTNER, Thomas. Dicionário de filosofia. Tradução Victor Guerreiro, Sérgio Miranda e Desidério Murcho. Lisboa: Edições 70, 2011.p. 161. 48 EPISTEMOLOGIA. In: AUDI, Robert. Dicionário de filosofia de Cambridge. Tradução Edwino Aloysius Royer et al.São Paulo: Paulus, 2006.p. 270. 49 MOSER. Paul K. et al. A teoria do conhecimento: uma introdução temática. Tradução Marcelo Brandão Cipallo.São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 50. 50 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução João Vergílio Gallerani Cuter. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p. 29. 23 conseguinte, o conhecimento humano se reduz a uma mera experiência individual, não podendo ser denominado propriamente de conhecimento, mas apenas crença. 51 Por sua vez, o subjetivismo também nega a possibilidade de que o homem alcance uma verdade universal, recaindo em uma espécie de ceticismo. Para o subjetivismo, a validade da verdade residiria no próprio sujeito, que julgaria a partir de suas concepções individuais. Dessa forma, a verdade para um sujeito não seria a mesma verdade para um outro. Uma outra espécie de subjetivismo é o genérico, que proclama que “há certamente verdades supra-individuais, mas nenhuma que tenha validade geral”52. O subjetivismo não se confunde com o relativismo, pois o primeiro faz a verdade depender de fatores internos, enquanto que o relativismo estabelece uma dependência com fatores externos.53 Da mesma forma que o subjetivismo, o pragmatismo também pode ser considerado uma espécie de ceticismo. O ponto de partida do pragmatismo é que o homem é um ser essencialmente prático, fundando seu comportamento na vontade, que se torna uma categoria central para essa teoria. Assim, a vontade prevalece sobre a razão, fazendo com que o conceito de verdade seja reduzido ao conceito de útil. Para essa doutrina o importante não é encontrar uma verdade universal, pois o próprio homem trabalha com proposições sabidamente falsas, enfatizando, por outro lado, o conceito de utilidade como fundamento para o julgamento das proposições. Apesar do erro de comparar os conceitos de verdade e utilidade, a valia dessa doutrina consiste em mostrar que o conhecimento humano está intimamente conectado com o aspecto prático da vida.54 Por fim, o criticismo, é uma busca de conciliação entre o dogmatismo e o ceticismo, no sentido de que não deve haver tanta confiança na razão humana em relação as suas possibilidades, nem também tanto pessimismo a ponto de afirmar que nada se conhece ou que nenhum conhecimento se justifique. O criticismo propõe, assim, que todo conhecimento humano deve ser posto à prova para se tornar digno de um status de verdade universal.55 51 MOSER. Paul K. et al. A teoria do conhecimento: uma introdução temática. Tradução Marcelo Brandão Cipallo.São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 50. 52 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução João Vergílio Gallerani Cuter São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 36. 53 Ibidem, p. 37. 54 Ibidem, p. 42. 55 Ibidem, p. 43. 24 O ato de conhecimento tem por objetivo alcançar a verdade. Toda a discussão a respeito da possibilidade do conhecimento, envolvendo o dogmatismo, o ceticismo, o subjetivismo, o relativismo e o criticismo, de fato, gira em torno da possibilidade da verdade universal (se ela existe e se a razão é capaz de alcançála). No direito, o paradigma atual ainda é centrado na norma jurídica, não obstante as considerações sobre ordenamento jurídico e sistema jurídico. Apesar das contribuições da teoria da instituição e da teoria da relação jurídica para a teoria geral do direito, a teoria normativa, onde a norma jurídica é considerada como a essência do direito, é a que possui maior valor explicativo, sendo considerada, inclusive, pressuposto para a dedução da teoria da instituição e da teoria da relação56. A norma jurídica tem por conteúdo formal um comando a um destinatário para adoção de certo comportamento. Em uma linguagem própria da lógica formal, a norma jurídica é uma proposição prescritiva (uma unidade de significado que revela uma prescrição). Diversamente, as proposições científicas são descritivas, pois buscam dizer como a realidade é. Bobbio, baseado na lição de R.M. Hare, afirma que “sobre as proposições descritivas, pode-se dizer que são verdadeiras ou falsas; sobre as prescritivas, não”.57 Dessa forma, a respeito da norma jurídica diz-se que é válida ou inválida, justa ou injusta, excluindo daí o valor verdade.58 Então, se não se pode verificar a verdade de uma proposição normativa, o conhecimento no direito resta impossível? Não é assim. É correto dizer que não se pode atribuir o valor verdade a uma norma jurídica, entretanto, é possível fazer asserção sobre a norma jurídica, como por exemplo, que norma jurídica X é válida. Dessa asserção, sem dúvida, pode-se avaliar sua verdade ou falsidade. Da mesma forma, o juiz, na justificação da tomada de decisão, realiza várias asserções conectadas uma a outra, ora relacionadas à validade ou aplicabilidade da norma jurídica, ora relacionadas aos fatos postos no processo. Assim, pode-se construir um sistema de asserções a respeito das normas jurídicas que formam, em seu conjunto, o conhecimento jurídico (dogmática jurídica). 56 BOBBIO, Noberto. Teoria da norma jurídica. 2.ed. Tradução Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. rev. Bauru, São Paulo: Edipro, 2003, p.44. 57 Ibidem, p.81. 58 BOBBIO, Noberto, loc. cit. 25 De fato, a atividade do juiz quando fundamenta uma decisão judicial assemelha-se à do doutrinador quando sustenta seu ponto de vista. Tanto o juiz quanto o doutrinador elaboram proposições descritivas sobre as normas jurídicas, que devem estar em conformidade, em primeiro lugar, com o princípio lógico da coerência. A exigência de coerência é derivada, por sua vez, de um outro princípio: não-contradição. Entretanto, a coerência não é um requisito suficiente (apesar de necessário) para garantir uma argumentação bem formada, que se aproxima da verdade. A coerência, por si só, é por demais formal, lembrando a atividade do jurista que se contenta com a técnica da subsunção normativa na aplicação do direito. Nesse ponto, o pragmatismo tem uma importante contribuição em insistir que a ciência deve aproximar-se da vida em seu aspecto prático. À medida que o direito atende a essa aproximação, torna-se mais legítimo, garantindo a eficácia social da norma jurídica. Heidegger, ao tratar do mundo como “jogo da vida”, afirma: “a expressão ‘jogo da vida’ surgiu certamente a partir do fato de a convivência histórica dos homens oferecer o aspecto de uma multiplicidade colorida assim como de uma mutabilidade e de uma acidentalidade”.59 É exatamente a mutabilidade e acidentalidade do mundo que não autoriza o jurista a atuar tão-somente no âmbito formal-normativo, requerendo uma habilidade especial para tratar com o aspecto prático da vida. Então, qual seria a porta desse aspecto prático da vida na ciência? O valor. É um lugar-comum na doutrina que o direito possui uma dimensão axiológica. Além disso, afirma-se que as regras e, em especial, os princípios possuem uma carga valorativa. Qual o sentido dessas expressões? O que significa valor e qual a sua articulação com a norma jurídica? O conceito de valor possui uma forte aproximação com o conceito de bem, daí o seu fundamento moral. Aristóteles entende que o bem supremo é a felicidade, onde residiria o fim último de toda a atividade prática do homem, ou seja, apesar da multiplicidade de fins da ação humana, há um único fim que é o mais completo e procurado por si próprio: a felicidade.60 59 HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. Tradução Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.329. 60 ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. Tradução António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, p.26. 26 Por conseguinte, tudo aquilo que tende à felicidade, é desejado e estimado, possuindo valor. Diferentemente da norma jurídica, o valor não é um objeto, mas um “critério que mede a estima e o apreço com que recebemos e olhamos todas as coisas. O valor destaca-se, assim, de um fundo de neutralidade e indiferença que ele rompe, introduzindo, entre todos os seres, gestos e atitudes profundas diferenças de significação e interesse”.61 O valor tem por característica a bipolaridade. Quando se trata de valores em sentido positivo, tem-se a utilidade, a bondade, a beleza e a justiça, entre outros. No pólo negativo, aponta-se a inutilidade, a maldade, a fealdade e a injustiça.62 Ademais, diante da multiplicidade e heterogeneidade de valores, é possível submetê-los a uma ordenação hierárquica, em especial “nas grandes classes em que habitualmente se dividem os valores: valores biológicos, valores econômicos, valores espirituais, valores morais e religiosos”.63 Os filósofos não estão em consenso quanto à escala de valores, havendo grandes diferenças entre as posições de Nietzsche, Scheler, Marx e Lavelle, o que não impede o denominador comum entre esses filósofos, o valor-homem, que se torna o fundamento da hierarquia de valores, onde ocupa o mais alto degrau aquilo que mais contribui para o projeto-homem.64 E a origem dos valores? Eles teriam origem na própria subjetividade do homem ou possuem realidade objetiva? O Pragmatismo supõe que o conhecimento humano tem seu ponto de partida no aspecto prático da vida, centralizando o seu eixo mais na vontade que na razão. No espaço ético, a vontade humana é também um ponto central, pois somente é possível falar de ética diante de uma vontade humana livre. Diante da possibilidade de escolha entre vários comportamentos, o homem orienta a sua ação ora conforme seu desejo, ora segundo uma regra moral. A noção de desejo, assim como a noção de regra, formam os extremos de um pêndulo teórico que oscila entre o subjetivismo axiológico e o objetivismo axiológico. 61 VALOR. In: DICIONÁRIO PÓLIS. Enciclopédia verbo da sociedade e do estado. 2. ed. rev. e atual. Lisboa/ São Paulo: Verbo, 2005. p. 1617. v.5. 62 VÁZQUEZ, Adolfo Sánches. Ética. 23. ed. Tradução João Dell’ Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 2002, p. 136 63 VALOR. In: DICIONÁRIO PÓLIS, op. cit. p. 1615. 64 MONDIN, Battista. Os valores fundamentais. Tradução Ir. Jacinta Turolo Garcia. Bauru: Edusc, 2005, p. 34. 27 A premissa básica do subjetivismo axiológico é que as coisas valem porque as desejo, concentrando no termo desejo o fundamento do valor. R.B. Perry, I. A. Richards, Charles Stevenson e Alfred Ayer são nomes ligados a essa linha de pensamento, que tem seu ponto forte quando afirma que as coisa não têm valor em si.65 Por outro lado, Platão, Max Scheler e Nicolai Hartmann sustentam que os valores subsistem por si, prescindindo do objeto, e que são imutáveis e têm existência ideal. 66 De fato, reduzir os valores a mera subjetividade seria desconhecer que existe uma certa objetividade social dos valores permitida pelo consenso. O debate entre o subjetivismo e o objetivismo axiológico nos remete à discussão filosófico-jurídica sobre a universalidade ou relatividade dos direitos humanos. O objetivismo axiológico, em razão de sustentar a existência ideal e objetiva dos valores, autoriza a assertiva da universalidade dos direitos humanos fundada na natureza humana. Todavia, como sustenta Donnelly, “se a natureza humana é infinitamente variável ou se todos os valores morais são determinados somente pela cultura, tal como defende o relativismo cultural radical, não é cabível falar em ‘direitos humanos’[...]”67 Nesse sentido, os comunitaristas Alasdair MacIntyre, Michael Walzer, Charles Taylor e Michael Sandel questionam qualquer racionalidade abstrata que “abra mão de sua inscrição na história, nos costumes institucionais e nas diversas formas de vida.”68 Na própria teoria do direito, a tendência de universalizar quando da interpretação e aplicação da lei vem sendo mitigada por uma nova hermenêutica que tem em conta a realidade mutável de vida. Jean-Paul Resweber entende que os valores são ao mesmo tempo modelos e referenciais. O modelo é um arquétipo abstrato formado pela razão, enquanto que o referencial permite um confronto com a situação concreta, servindo como orientação para a ação livre. Em seguida, faz a distinção entre o juízo moral e o juízo ético, onde o primeiro é universal e baseado nos ditames da razão, diferentemente do juízo ético, que orientado pelo razoável, 65 VÁZQUEZ, Adolfo Sánches. Ética. 23. ed. Tradução João Dell’ Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 2002,p. 142. 66 Ibidem, p. 143. 67 DONNELLY (2003) apud OLIVEIRA Aline Albuquerque S. de. Bioética e direitos humanos. São Paulo: Loyola, 2011, p. 58. 68 COMUNITARISMO. In: BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 136. 28 possibilita a interpretação da norma à luz dos fatos e a dos fatos à luz da norma, realizando um reajustamento contínuo das regras à prática da vida.69 69 RESWEBER, Jean-Paul. A filosofia dos valores. Coimbra: Almedina, 2002, p.94. 29 4 TEORIA DO DIREITO Na ciência jurídica, o paradigma da teoria normativa ainda é prevalente em nossos dias. Toda ciência explica a realidade a partir de um modelo pré-organizado, que possui suposições teóricas, métodos, conceitos e princípios metafísicos, formando um paradigma. Segundo Thomas Kuhn, a ciência normal é uma atividade de resolução de problemas segundo as regras de um paradigma. Assim, os cientistas que trabalham dentro de um paradigma resolvem problemas-padrão utilizando-se de experiências-padrão, instruídos pela educação científica que receberam.70 Quando um jurista se depara com um problema jurídico, vem, ao menos hipoteticamente, a questão se existe uma lei que regule o caso a ele apresentado. Dessa forma, pode-se afirmar com Norberto Bobbio que “a experiência jurídica é uma experiência normativa”.71 Não há que se confundir dispositivo legal com norma jurídica, porém, é interessante recuar um pouco para examinar a natureza da lei. Em Platão, a lei deveria corresponder à ideia de justo, que existe a priori e corresponde à ordem racional das coisas. A lei seria, então, natural, imutável e expressão da razão humana. 72 Seguindo ainda a linha racionalista, em São Tomás de Aquino, a lei é reflexo da ordem cosmológica, tanto mais perfeita quanto mais próxima da lei divina.73Duns Escoto, por sua vez, abandona o vínculo da lei a uma ordem natural, fundando-se na vontade humana que busca a vontade de Deus, que não é acessível pela razão.74 Guilherme de Ockham radicaliza a concepção de Escoto no sentido de que os conceitos (universalismo) não têm existência real, apenas os indivíduos (nominalismo) existem e são guiados pela vontade, que deve ser orientada para o bem comum (ou melhor, para a utilidade geral).75 A modernidade continua fiel ao fundamento voluntarista, e a lei, agora, tem legitimidade na vontade da maioria, não abandonando de todo a concepção 70 CHALMERS,A.F.O que é ciência afinal? Tradução Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993, p.127. 71 BOBBIO, Noberto. Teoria da norma jurídica. Tradução Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 2.ed. rev. Bauru, São Paulo: Edipro, 2003. p.23. 72 MONCADA, Luís. S. Cabral. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 8. 73 Ibidem, p.12. 74 Ibidem, p.16. 75 Ibidem, p.21. 30 racionalista, não mais vinculada a uma ordem natural ou divina das coisas. Por um lado, a lei deve representar a vontade geral e por outro, constituir uma ordem jurídica una, coerente e sem lacunas.76Esse paradigma da modernidade não é despido de valor, ao contrário, o valor central é o da obediência à lei, conforme pode ser visto através do próprio conteúdo da norma jurídica fundamental formulada por Kelsen. Por isso, diante de um problema a solucionar o jurista indaga, antes de tudo, se há algum dispositivo legal que regulamente a matéria em questão. Essa concepção expressa a necessidade que há da vontade individual subsumir-se à vontade geral, uma subsunção lógica e imperativa, desconhecendo as contingências que os fatos, não raro, apresentam. Assim, no século XX, houve o predomínio metodológico do formalismo e do positivismo a partir de estruturas gnoseológicas neo-kantianas, especialmente a separação radical entre o “ser” e o “dever ser”.77 Essa concepção metodológica vem sofrendo, atualmente, fortes críticas em razão de sua insuficiência diante da natureza histórico-cultural do Direito.78 Ademais, a configuração lógica, racional e abstrata não consegue judicializar a riqueza dos casos concretos, apontando soluções diferenciadas.79Paulatinamente, a lógica da subsunção cede espaço ao critério da razoabilidade, que busca evitar a arbitrariedade e alcançar a decisão que seja correta.80A própria ideia de correção da decisão abre uma larga porta para a teoria dos valores na ciência jurídica. Aulis Aarnio, em sua teoria da razoabilidade, procura dialogar com o conceito habermasiano de Lebenswelt (vida real do ser humano) no sentido de que um sistema racional de leis prejudica a interação natural entre a as pessoas.81 Ainda na mesma linha de pensamento, Aarnio, usando a noção de jogo de linguagem de Wittgenstein, afirma que a expressão jurídica não tem significado em si mesma, adquirindo conteúdo somente quando em conexão como o jogo de linguagem em forma de vida determinada. 76 82 De fato, não é MONCADA, Luís. S. Cabral. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra, 2002. p.70. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Tradução A. Menezes Cordeiro. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 14. 78 Ibidem, p.18. 79 Ibidem, p.20. 80 DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do discurso e correção normativa do direito. 2. ed. rev. São Paulo: Landy Editora, 2004, p. 104. 81 AARNIO, Aulis (1991) apud DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do discurso e correção normativa do direito. 2. ed. rev. São Paulo: Landy Editora, 2004, p. 106. 82 Ibidem, p. 108. 77 31 suficiente a interpretação da lei sem a interpretação dos fatos, pois as decisões devem ser justificadas internamente e externamente. Uma importância maior aos fatos na seara jurídica vem sendo levantada pelo pragmatismo norte-americano. O pragmatismo tem origem no clube metafísico liderado por Charles Sanders Peirce, na década de 70 do século XIX, tendo como ponto principal a rejeição de fundamentos ontológicos a priori para a filosofia, buscando o uso da razão prática e soluções adequadas ao contexto e às consequências desejadas.83 No âmbito jurídico, o pragmatismo iniciou com Oliver Holmes, Roscoe Pound e Benjamin Cardozo, tendo continuidade com Richard Posner, Thomas Grey, Daniel Farber, Philip Frickey e Martha Minow. 84 Segundo Posner, o pragmatismo jurídico possui três eixos principais: “a) A desconfiança de instrumento metafísicos de justificação ética; b) a insistência de que a validade das proposições seja testada pelas suas consequências, e c) a insistência para que projetos éticos, políticos e jurídicos sejam julgados e avaliados por sua conformidade com as necessidades humanas e sociais, e não por critérios supostamente objetivos ou impessoais.”85 E, especialmente, em relação à validade das proposições submetidas ao teste de suas consequências, é que a análise econômica do direito é inserida como instrumento de orientação para tomada de decisão. Construir modelos de comportamentos humanos, testados e, a partir daí, controlar esses comportamentos é objetivos da economia, pressupondo que o ser humana faz escolhas racionais baseadas em relações entre meio e enfim.86 4.1 O PRAGMATISMO E O RETORNO AOS FATOS O pragmatismo de Posner tem em mira “os fatos”, marginalizando a questão conceitual, que é colocada em plano inferior, e, busca desses fatos, verificar suas possíveis consequências, como nos revela esta passagem: Ao enfatizar a prática, o olhar adiante e as consequências, o pragmatista, ou ao menos o meu tipo de pragmatismo (pois veremos que o pragmatismo também tem uma versão antiempírica e anticientífica), é o empírico. 83 PRAGMATISMO JURÍDICO. In: BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.656. 84 PRAGMATISMO JURÍDICO. In: BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.), loc. cit. 85 PRAGMATISMO JURÍDICO. In: BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.), loc. cit. 86 POSNER, Richard A. Para além do direito. Tradução Evandro Ferreira Silva. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p.17. 32 Interessa-se pelos ‘fatos’ e, portanto, deseja estar bem informado sobre o funcionamento, as propriedades e os efeitos prováveis de diferentes planos 87 de ação. Quando Posner afirma seu interesse por “fatos”, o que realmente ele quer dizer? Será, então, que as normas jurídicas não merecem interesse? Quem determina os fatos são as normas, ou, ao invés, são as normas determinadas pelos fatos? Ao tratar da posição da norma jurídica oriunda dos precedentes judiciais, Posner relativiza seu peso (cogência), como se percebe nesse trecho: “aplicado ao direito, o pragmatismo trata da decisão segundo os precedentes (a doutrina conhecida como ‘stare decisis’), como uma diretriz e não como um dever”. 88 Nessa linha, a norma jurídica extraída de várias decisões jurídicas no mesmo sentido seria apenas uma orientação para o juiz e não teria força suficiente para obrigá-lo a decidir em conformidade com o comando normativo. Dessa forma, haveria então uma precedência do fato sobre a norma. Sem aprofundar a relação entre a norma e o fato, é interessante observar que o estudo sobre a norma jurídica, sua estrutura e a função, desenvolveu-se com maior profundidade do que o estudo sobre o fato jurídico, em decorrência do paradigma do positivismo jurídico. O instituto da lei é relevantemente recente na história do direito pois coincide com a criação dos Estados. Antes disso, a atenção dos juristas estava voltado aos fatos concretos. Por essa razão, é cabível dissertar sobre o conceito de fato, classificação e estrutura, no sentido de aprofundar os pressupostos epistemológicos do pragmatismo jurídico. Uma das principais tarefas da ciência é oferecer uma explicação sobre a realidade que nos cerca, indo além da mera opinião elaborada pelo senso comum, pois funda-se em uma justificação racional. A explicação que o cientista elabora consiste em uma teoria. Porém, para alcançar o nível teórico, são necessários dois níveis anteriores: o do fato, depois, o da generalização. 89 O ponto de partida é o nível dos fatos observáveis, onde o cientista destaca da realidade aqueles que serão objeto de estudo pelo critério da relevância. Mas, o que é um fato? 87 POSNER, Richard A. Para além do direito. Tradução Evandro Ferreira Silva. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p.5. 88 Ibidem, p.4. 89 FREIRE – MAIA, Newton. A ciência por dentro. 7.ed. Petrópolis, RJ: vozes, 2007. p 56. 33 Fato designa, em geral, aquilo que está feito (factum) ou realizado, não sendo permitido negar sua realidade, ora destacando-se o aspecto hic et nunc do fato, ora revela-se sua dimensão de processo, em especial, temporal90. Os autores divergem quanto ao uso e significado do termo “fato”. Leibniz os considera como realidades contingentes, inserindo dentro do contexto da distinção entre verdades de fato e verdades da razão. Hume contrapõe proposições sobre fatos e proposições sobre ideias91. Para Jonh R. Searle, há uma diferença entre fatos brutos e fatos institucionais, descritos por meio de enunciados que não distinguem por sua forma gramatical, nem por sua forma lógica. Os fatos brutos expressam a localização de objetos, uma lei científica ou um sentimento pessoal. Por outro lado, os fatos institucionais têm por pressuposto a existência de uma instituição humana, como em um enunciado no qual se afirma que João se casou como Maria. Searle exemplifica sua distinção no futebol: alguém pode narrar fatos brutos, desenvolvendo estatisticamente os chutes, as corridas, etc., sem considerar as regras do jogo, não enunciando, dessa forma, fatos institucionais. Dilthey, em uma posição de conteúdo semelhante, separa o conceito de explicação causal da compreensão, onde o primeiro descreve o que ocorre e o segundo, entende do que se trata. Há ainda a questão dos fatos carregados de teoria, exprimindo o efeito que a teoria tem na determinação dos fatos.92 Em Wittigenstein, fato é a chave de leitura para o mundo, concebendo o mundo como a totalidade dos fatos e não das coisas, como demonstra a seguinte passagem: 1. O mundo é tudo que é o caso. 1.1. O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas. 1.1.1. O mundo é determinado pelos fatos, e por serem todos os fatos. 1.1.2. Pois a totalidade dos fatos determina o que é o caso e também tudo o que não é o caso. 1.1.3. Os fatos no espaço lógico são o mundo. 1.2. O mundo resolve-se em fatos. 1.2.1. Algo pode ser o caso ou não ser o caso e tudo o mais permanece na mesma. 2. O que é o caso, o fato e a existência de estados de coisas. 93 2.1. O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas). A obra Tratactus Logico – Philosophicus foi escrita utilizando-se de aforismo, que é um “texto curto e sucinto, fundamento de um estilo fragmentário e 90 FATO. In: MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. 2 .ed. Tradução Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2005. p. 1000 -1004.v.2. 91 FATO. In: MORA, J. Ferrater, loc. cit. 92 FATO. In: MORA, J. Ferrater, loc. cit. 93 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratactus logico-philosophicus. Tradução Luiz Henrique Lopes dos Santos.3. ed. 1. reimp. São Paulo: Edusp, 2008. p. 135. 34 assistemático na escrita filosófica, ger. relacionado a uma reflexão de natureza prática ou moral.”94 Não obstante o estilo utilizado, a obra de Wittigenstein é profunda e trata de problemas atuais envolvendo epistemologia e linguagem, como disserta Condé: Sem dúvida, Tratactus Logico- Philosophicus é uma obra bastante singular na história da filosofia ocidental, e isto não se deve apenas às circunstâncias em que foi escrito. Esse pequeno livro de aproximadamente oitenta páginas, constituído de aforismos nem sempre inteligíveis, é uma obra filosófica por excelência. Ele contém de modo compacto, direta ou indiretamente, uma parte considerável dos atuais problemas filosóficos, isto é, problemas relativos à lógica, linguagem, ontologia, teoria do 95 conhecimento, epistemologia, ética, metafísica [...] O ponto principal desse pensamento filosófico é estabelecer as bases da relação entre a linguagem e o mundo. A história do pensamento humano pode ser sintetizada a partir de sua principal preocupação ontológica. A filosofia antiga centraliza seu cuidado sobre o mundo (as coisas). Na sequência, Deus ocupa o lugar principal na filosofia medieval. Na modernidade, volve-se a atenção para o homem, em especial, em seu aspecto racional. A filosofia contemporânea, por sua vez, faz a denominada reviravolta linguístico – pragmática, ocupando-se de forma nuclear com os estudos sobre a linguagem. Para Wittgenstein, há uma correspondência entre a estrutura lógica da linguagem e a estrutura lógica do mundo, de maneira que a forma da realidade reflete-se na forma lógica da linguagem.96 Essa posição teórica é conhecida como teoria da figuração, na qual, “a tese fundamental de Wittgenstein é que a linguagem figura o mundo sobre o qual ela fala e a respeito do qual nos informa.” 97 Mas qual seria a estrutura do mundo figurado pela linguagem? Segundo Oliveira, “a resposta a respeito da estrutura do mundo está no início do Tratactus. Uma tese fundamental é: ‘o mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas.’ A categoria usada para a compreensão do mundo é a dos fatos em contraposição à das coisas. 98 Diante disso, qual seria a importância dessa mudança de perspectiva da coisa para o fato? Em primeiro lugar, quando consideramos o fato 94 AFORISMO. In: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p 63. 95 CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Wittgenstein: linguagem e mundo. São Paulo: Annablume, 1998. p.66-69. 96 CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão, loc. cit. 97 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmático na filosofia contemporânea. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2006. p.96. 98 Ibidem, p.96. 35 como unidade ontológica do conhecimento, permitimos que surja a partir dele uma proposição, que terá o valor de verdade ou falsidade. Em sede de metodologia científica, essas proposições são conhecidas como hipóteses, que se comprovadas, transformam-se em premissas de sustentação de uma teoria. Além disso, o conceito que é utilizado na proposição é, assim, algo que necessita de complementação, e sua expressão linguística, o predicado, só tem significação no contexto, ou seja, na frase.’”99 Complementação e contexto são duas expressões-chave para o entendimento da teoria da figuração, pois complementação traz a ideia de algo inacabado, que é um ponto de partida para uma compreensão prática posterior. 4.2 O PRAGMATISMO E A REJEIÇÃO AO ESSENCIALISMO Um dos eixos principais do pragmatismo jurídico é a desconfiança em relação aos instrumentos metafísicos de justificação ética. A metafísica parte de um pressuposto essencialista que consiste em afirmar a existência de uma essência ontológica no mundo exterior. A linguagem, em sua função instrumental, deveria espelhar a ordem objetiva do mundo, segundo a ótica essencialista. Demonstra-se assim, necessário esclarecer como ocorreu a rejeição do essencialismo a partir do estudo de Wittgenstein sobre a relação entre a linguagem e o mundo. A discussão crítica sobre a linguagem e suas relações com o mundo remonta a Platão, em sua obra Crátilo, escrito no ano de 388 a.C, aproximadamente. 100 Até hoje, a concepção platônica exerce influência na resposta que se dá à questão da essência da linguagem e sua forma de representação do mundo. Há dois extremos que concorrem para solucionar esse problema: o naturalismo, que sustenta que cada coisa tem um nome por natureza, e o convencionalismo, que propõe que a linguagem é construída a partir de uma convenção entre aqueles que se comunicam. Platão reconhece que há palavras que imitam os sons das coisas que representam (palavras onomatopaicas) favorecendo à concepção naturalista, porém, essa não é a regra. Daí, o autor grego sustenta que “as palavras não imitam 99 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmático na filosofia contemporânea. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 97. 100 Ibidem, p. 17. 36 propriamente os sons, mas apresentam a essência das coisas”101. Não se deve olvidar, nesse ponto, o pensamento clássico grego que afirma que as coisas possuem essências objetivas e caberia ao homem desvelar a ordem objetiva que está oculta nas próprias coisas, utilizando-se, para isso, da linguagem, a qual deve representar de forma adequada a ordem objetiva das coisas 102 . Assim, a linguagem seria um sistema organizado e regulado através de uma gramática, e “na perspectiva de Platão há uma correspondência fundamental, uma isomorfia entre a estrutura gramatical e a estrutura ontológica, isto é, a construção de uma língua não é arbitrária.”103 A negação da arbitragem da linguagem advém do paradigma platônico das ideias imutáveis que constituem seres exemplares, pois como a linguagem exprime a essência das coisas, não poderiam os homens modificarem por acordo as palavras que designam coisas, em razão da própria imutabilidade das essências. A identificação entre linguagem e ser é de tal monta que Crátilo (quer dizer, Platão) defende a tese de que quem tem o conhecimento dos nomes, ipso facto, tem o conhecimento das coisas, contudo, isso não significa dizer que não podemos conhecer as coisas sem os nomes, ao contrário, Platão afirma que é possível o conhecimento da realidade através da contemplação das ideias, sem a utilização da mediação linguística.104 Portanto, à linguagem é dada uma função designativa e instrumental, situando-se em uma posição secundária em relação ao ser, pois apenas o revela e expõe. A concepção de que a linguagem é um sistema de sinais que permitiria o domínio do homem sobre o mundo objetivo alcança o cume em Leibniz, o qual almeja com a matemática uma linguagem universal, que representaria da forma mais perfeita possível o mundo exterior, desvencilhando-se o homem das imperfeições da linguagem natural.105 Essa posição de Platão representa a semântica tradicional, impregnando todas as áreas do conhecimento humano, além do próprio senso comum, no sentido que há um ponto fixo e imutável na própria realidade que pode ser designado por um 101 SCHONRICH, G. (1992) apud OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguísticapragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 2006. p. 19 102 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmático na filosofia contemporânea. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2006.p. 19. 103 Ibidem, p. 20. 104 Ibidem, p. 22. 105 Ibidem, p. 22-23. 37 nome (conceito). A fixidez conceitual, decorre, assim, da própria fixidez da essência da realidade. Apesar da problemática fundamental da linguagem permanecer a mesma, a perspectiva da segunda fase do pensamento de Wittgenstein é diferente, porque enquanto o tratactus é elaborado de forma ordenada e lógica, as investigações filosóficas são expostas de forma desordenada, aparentando “não ter um fio condutor”106. A concepção instrumentalista da linguagem, a partir de Platão, consiste em reduzir sua função à mera designação das coisas, sendo a linguagem considerada como condição de possibilidade da comunicação, e não como condição de possibilidade de conhecimento humano.107 Assim, conforme a tradição, a linguagem serve para designar as coisas, pressupondo uma isomorfia entre a realidade e a linguagem, a tal ponto, que Wittegenstein, em sua primeira fase afirma, que há uma correspondência estrutural entre uma frase e o estado de coisas.108 A teoria designativa da linguagem possui duas correntes: uma defende que as palavras designam tão somente coisas singulares, já que não existe uma essência das coisas; a outra propugna pela capacidade que as palavras têm para designar a essência comum a muitas coisas.109 Esta última corrente tem forte ligação com a metafísica clássica, que pressupõe que existe um mundo em si, que possui uma estrutura ontológica, cabendo à linguagem expor da forma mais perfeita possível a ordem do mundo.110Então, como bem exprime Heintel: “A diferença entre sensibilidade (aisthesis) para o entendimento (dianoia) e a razão (nous) consiste na passagem do mutável e transitório para o permanente, imutável, ou seja, aquilo constitui as coisas em seu ser próprio: a essência.”111 A concepção tradicional da linguagem está vinculada à linha antropológica que caracteriza a linguagem humana como um ato espiritual, distinto da linguagem 106 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmático na filosofia contemporânea. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 118. 107 Ibidem, p. 119. 108 Ibidem, p. 120-121. 109 Ibidem, p. 120. 110 Ibidem, p. 121. 111 HEINTEL, E. (1968) apud OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguística-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 2006. p. 121. 38 dos animais, a qual está restringida meramente aos sons.112 Wittgenstein refere-se ao ato espiritual do ter-em-mente, através do qual os sons acústicos fazem sentido, assim como o compreender, ato do espírito que se apropria do sentido e da essência de algo, permitindo ao homem utilizar as palavras “de modo justo, se elas se adaptam às diversas circunstâncias em questão.113 O problema dessa concepção é que entende a linguagem sob aspecto subjetivista (ato espiritual), já que o processo de comunicação tem como ponto de partida o próprio indivíduo, acessando o conhecimento como ato privado, e depois, comunicando aos outros, postura que foi denominada por Karl Otto Apel de solipsismo epistemológico.114 A filosofia do segundo Wittgenstein critica essa filosofia da subjetividade, onde o dualismo epistemológico e antropológico encontra lugar, pugnando por uma modificação da relação entre “conhecimento e ação, linguagem e práxis humana” 115 A obra Investigações Filosóficas de Wittgenstein combate de forma crítica a teoria objetivista da linguagem, pois haveria uma parcialidade quando reduz a função da linguagem a um mero instrumento para designar as coisas exibindo, pois, um caráter reducionista, que não condiz com a amplitude de atos que podemos praticar com a linguagem (Wittgenstein cita no número vinte e três de suas Investigações Filosóficas uma lista de coisas que podemos fazer usando a linguagem)116. Wittgenstein põe em xeque a concepção tradicional da existência de um mundo em si mesmo, no qual a linguagem tentaria espelhá-lo, com o objetivo de alcançar uma verdadeira isomorfia entre realidade e linguagem.117 O essencialismo, dessa forma, seria uma fonte de erros ao pressupor que há uma essência das coisas, que os nomes designam as essências de uma forma definitiva, em um quase-batismo e que as palavras teriam fronteiras fixas em sua utilização, como demonstra Oliveira: Já dissemos que, para a tradição do Ocidente, definir algo significa delimitar-lhe o lugar no todo do real, estabelecer seus fins, suas fronteiras, seus limites, e isso de modo definitivo. Ora, a crítica da teoria tradicional mostra que a significação dos conceitos universais não é unitária. Ela não permanece necessariamente onde está hoje; é possível haver novos casos de sua aplicação que manifeste novas diferenças. A significação das palavras não está estabelecida de modo definitivo (IF 79, 80). O fato de não 112 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmático na filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 122. 113 Ibidem, p. 123. 114 Ibidem, p. 124. 115 Ibidem, p. 126. 116 Ibidem, p. 127. 117 Ibidem, p. 128. 39 ser possível conhecer de modo definitivo, todos os casos de aplicação de 118 uma palavra não significa que ela não tenha sentido. Tratando do essencialismo, Popper defende a necessidade do abandono dessa concepção: O essencialismo olha para o nosso mundo quotidiano como uma mera aparência, por detrás da qual descobre o mundo real. Esta perspectiva tem de ser abandonada assim que tomamos consciência do facto de que o mundo de cada uma das teorias pode ser, por seu turno, explicado por outros mundos, que são descritos por outras teorias – teorias de um mais elevado nível de abstração, universalidade e testabilidade. A doutrina de uma realidade essencial ou última desmorona-se juntamente com a doutrina 119 da explicação última. Wittgenstein abandona o ideal de uma linguagem perfeita exposta no Tratactus, sustentando que não há como desligar as palavras das situações concretas e do contexto sócio-prático em que são usadas, onde é possível encontrar não uma significação definitiva, nem tampouco convencionada, mas por intermédio de semelhanças e parentescos.120 É por isso que uma ambigüidade e vaguidade no significado das expressões, denominada por Stegmüller de “abertura de conceitos”, que é impossível de ser afastada totalmente da linguagem, já que “nossos conceitos são abertos por admitirem a possibilidade de aplicação a casos não previstos.” 121 Em outra passagem esclarecedora, Oliveira explica a linguagem como expressão de forma de vida: Jogada a linguagem dentro da situação, Wittgenstein percebe que a diferente linguagem faz parte da totalidade dessa situação de vida humana, ou, em sua expressão, uma ‘forma de vida’ do homem (IF 23). É por essa razão que a significação das palavras só pode ser esclarecida por meio do exame das formas de vida, dos contextos em que essas palavras ocorrem, pois é o uso que decide sobre a significação das expressões linguísticas (IF 23). ‘A significação de uma palavra’, diz Wittgenstein no número 43 de suas Investigações Filosóficas, ‘é seu uso na linguagem.’ Só se pode entender a linguagem humana a partir do contexto em que os homens se comunicam 122 entre si. 118 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmático na filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 130. 119 POPPER, Karl Raymund. Conjecturas e refutações. Tradução Benedita Bettencourt.Coimbra: Almedina, 2006. p. 162. 120 Ibidem, p. 131. 121 STEGMÜLLER, W. (1977) apud OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguísticapragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 2006. p. 131. 122 OLIVEIRA, Manfredo A. de. op. cit., p. 132. 40 Nessa linha, a compreensão de uma frase vai depender de sua situação histórica de seu uso, e não do ato intencional privado de quem enuncia, pois quem dá o sentido de uma expressão é o uso real em que ela é posta.123 Portanto, não se deve especular sobre a linguagem, mas observar o seu funcionamento como atividade humana, tal qual andar e passear, inserido em um contexto de ação (o que Wittgenstein chama de forma de vida).124Logo, haveria diferentes formas de vida dando origem a diversos contextos pragmáticos, nos quais haveriam regras adequadas para o uso da linguagem, sedimentadas em uma gramática profunda (em contraposição à gramática superficial que consistiria apenas nas regras para a construção de frases), representando o salto da semântica para a pragmática.125 Uma consequência relevante para a ciência é que a doutrina dos jogos de linguagem afasta totalmente o sentido metafísico das palavras e a forma de construção do conhecimento, já que as regras do jogo não são fixadas ordenadamente, nem através de um ato de um indivíduo, mas por “acordo com regras e normas que ele juntamente com outros indivíduos estabeleceu.”126 É no jogo de linguagem que as palavras (pelo uso) ganham o sentido verdadeiro, o qual não possui fronteiras fixas e, outrossim, independe da intenção do falante em atingir algum fim.127 É por isso que Wittgenstein assevera que os problemas de semântica (de significação) somente serão resolvidos a partir da pragmática.128 Wittigenstein é um filósofo que pertence a uma linha pragmatista filosófica. Há outros filósofos que defendem a extensão do pragmatismo filosófico ao direito, como assevera Posner: Mas Dewey acreditava e Rorty acredita que o estilo de pensamento que as versões de pragmatismo deles encorajam podem se derramar para campos não filosóficos, e até para a atividade de julgar, com bons resultados. Dewey escreveu, em nada menos do que uma publicação jurídica, portanto estava tentando atingir - e ensinar – profissionais do direito, que o que o direito precisava era de “uma lógica relativa a consequências e não 129 antecedentes. 123 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta linguístico-pragmático na filosofia contemporânea. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 135. 124 Ibidem, p. 138. 125 Ibidem, p. 139. 126 Ibidem, p. 143. 127 Ibidem, p. 145-146. 128 Ibidem, p. 147. 129 POSNER, Richard A. Direito, pragmatismo e democracia. Tradução Teresa Carneiro. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 33. 41 No direito, as noções de ilicitude e de reponsabilidade demonstram bem a inadequação de conceitos essencialistas, em razão de sua variabilidade no tempo e no espaço. Apesar disso, a doutrina dos direitos humanos tem buscado estabelecer núcleos referentes a certos direitos que não seriam suscetíveis a determinadas modificações em razão do tempo e do espaço em que são aplicados. Para o pragmatismo jurídico, a doutrina da rejeição de conceitos essencialistas metafísicos permite ao juiz uma flexibilidade maior em relação à interpretação dos fatos e das leis, contribuindo para um desapego em relação às determinações e limites que a doutrina jurídica faz quando trata de conceitos como ilicitude, responsabilidade e direitos humanos. O pragmatismo jurídico alega a racionalidade de seus enunciados fundados na teoria econômica. Porém, não se pode confundir racionalidade com a razoabilidade. A racionalidade lida com as ideias de verdade, coerência e eficácia; por outro lado, a razoabilidade refere-se a temas como equidade, abuso de direito e de poder, consistindo na delimitação daquilo que é aceitável ou inaceitável socialmente.130 4.3 PRAGMATISMO E O UTILITARISMO: UM PONTO DE ENCONTRO PARA A ÉTICA E O DIREITO O movimento do pragmatismo filosófico surgiu a partir de experiência norteamericana, no final do século XIX, tendo em seu programa três vertentes básicas: o antifundacionismo, o consequencialismo e o contextualismo; tendo por seus principais defensores Charles Sandes Peirce, Georde Herbert Mead, John Dewey, William James e, atualmente, no plano jurídico, Richard A. Posner, que escreveu obras direcionadas a essa temática, por exemplo, “Problemas de Filosofia do Direito” e “Direito, Pragmatismo e Democracia”.131 Em linhas gerais, esse linha filosófica sustenta que há relativismo nas noções de realidade e verdade, rejeita a fundamentação metafísica, questiona a análise 130 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.436. 131 ANDRADE, Fábio Martins. Modulação em matéria tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p.41. 42 lógica e formal da realidade e propõe uma concepção de verdade como concordância. 132 A vertente do antifundacionismo põe-se em oposição ao uso de entidades metafísicas, princípios e dogmas como fundamento estático do conhecimento humano, submetendo os conceitos de certeza, realidade e verdade a uma discussão em função da abertura do conhecimento, sempre sujeito a um processo de verificação e autocorreção, pois a realidade é tomada sob o aspecto prospectivo, em direção ao futuro.133 Por sua vez, na vertente relacionada ao contextualismo,o direito é visto como instrumento para a construção da realidade (interferindo diretamente sobre ela), em virtude de tratar a própria atividade jurídica como ação humana.134 E, por fim, a vertente com viés ético, o consequencialismo, busca a valoração da ação humana (como certo ou errado) a partir das consequências externas a esse ato, sem indagar da correção do ato em si.135 Esse teor ético aplicado às questões jurídicas é proposto por Posner: A busca de objetividade no direito, que até aqui consumiu boa parte de nossa atenção, ainda está por revelar o santo Graal que permitirá que os juízes decidam os casos mais complicados em bases mais sólidas “profissionais” e imperativas, e menos subjetivas “políticas” e (frequentemente) idiossincráticas do que seus valores pessoais e suas preferências éticas e relativas a políticas públicas. Talvez então, em vez de procurar métodos incisivos nos materiais jurídicos – mais concisamente, “raciocínio jurídico” – atrás de respostas para questões jurídicas específicas, devêssemos procurar um princípio abrangente de justiça, uma norma ético-política que pudesse ser usada 136 para fundamentar as obrigações jurídicas. Diante do antagonismo entre formalismo e o pragmatismo, Posner adverte que a rejeição do pragmatismo jurídico ao formalismo legalista no direito não é absoluta, de forma a anular o papel da lei, contudo, sustenta o autor, não se deve sacralizar o aspecto formal, pois o juiz, não raramente, se vê compelido a ponderar sobre as consequências de sua decisão através de métodos não-jurídicos.137 132 ANDRADE, Fábio Martins. Modulação em matéria tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p.43-44. 133 Ibidem, p.46. 134 Ibidem, p.47. 135 Ibidem, p.73-74. 136 POSNER, Richard A. Problemas de Filosofia do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.419. 137 POSNER, Richard A. (2007) apud ANDRADE, Fábio Martins. Modulação em matéria tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p.50. 43 Em razão do caráter antiessencialista ou antimetafísico do pragmatismo jurídico, a dicotomia entre positivismo jurídico e o direito natural perde o sentido 138, pois tanto um como o outro estão permeados de dogmatismo, cada qual a sua modo. Disso decorre a migração do centro do conhecimento jurídico da noção de verdade para a de crença justificada pela necessidade social.139 O consequencialismo do pragmatismo jurídico vincula-se do ponto de vista ético ao utilitarismo, que justifica as ações como corretas à medida em que elas conduzem à maximação do bem-estar. Nesse ponto, cabe analisar as críticas percucientes que John Rawls faz à doutrina utilitarista. Na constituição das sociedades, há duas opções políticas básicas quanto aos seus fundamentos, uma funda-se no princípio da igualdade, a outra, na ideia do bem máximo, como adverte Rawls: Na história do pensamento democrático, duas ideias contrastantes de sociedade têm um lugar proeminente: uma é a ideia de sociedade como sistema equitativo de cooperação social entre cidadãos livres e iguais; a outra é a ideia de sociedade como sistema social organizado com o intuito de produzir o bem máximo considerando-se todos os seus membros, sendo que esse bem é um bem completo especificado por uma doutrina abrangente. A tradição do contrato social elabora a primeira ideia, a tradição utilitarista é um caso especial da segunda. Entre essas duas tradições há uma divergência básica: a definição da ideia de sociedade como sistema equitativo de cooperação social inclui bastante naturalmente as ideias de igualdade (a igualdade de direitos, liberdades e oportunidades equitativas básicos) e de reciprocidade (da qual o princípio de diferença é um exemplo). Em contraposição, a ideia de sociedade organizada como o intuito de produzir o bem máximo expressa um princípio de justiça política maximizador e agregativo. No utilitarismo, as ideias de igualdade e de reciprocidade só são consideradas indiretamente, como aquilo que normalmente é necessário para maximizar o total de bem-estar 140 social. Para Rawls, a virtude mais importante das instituições sociais é a justiça, logo, a organização e eficiência das instituições não são suficientes para justificar as injustiças que praticam. De plano, já é possível situar que a teoria da justiça de Rawls se opõe ao utilitarismo em razão da precedência valorativa que a justiça possui em relação a outros valores (p. ex.: a eficiência). Além do utilitarismo, Rawls combate o intuicionismo, segundo o qual, existe uma pluralidade de princípios de justiça, que podem entrar em conflito um com o outro, e, em caso de dúvida, não há 138 POSNER, Richard A. (2007) apud ANDRADE, Fábio Martins. Modulação em matéria tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: Quartier Latin, 2011.p.51. 139 Ibidem, p.52. 140 RAWLS, John. Justiça com equidade: uma reformulação. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.135. 44 um critério objetivo que indique qual princípio tem prioridade, então, resta a quem vai decidir recorrer à intuição.141 Contudo, Rawls objeta que o intuicionismo é incapaz de elaborar um método para hierarquizar as intuições, e também, de distingui-los de meras impressões ou palpites, sem olvidar que essa doutrina (o intuicionismo) não oferece um critério para segregar intuições corretas e intuições incorretas142. Isso não implica em desconsiderar totalmente a intuição em caso de dúvidas de decisão, mas recorrer a ela na menor medida possível143. Em relação ao utilitarismo, Rawls é bem claro: “Meu objetivo é elaborar uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao pensamento utilitarista em geral e consequentemente a todas as suas diferentes versões.”144 Todavia, a discussão mais interessante é a da crítica ao utilitarismo, em razão de sua influência como regra ética, política e jurídica, disseminando-se no próprio cotidiano atual como um critério razoável para tomar uma decisão qualquer. Rawls define o utilitarismo como “aquela postura que considera um ato como correto quando maximiza a felicidade geral”145. Diversamente do intuicionismo, o utilitarismo possui um ponto de apoio para hierarquizar as diferentes alternativas que entram em conflito no momento de tomar uma decisão: o bem-estar geral. Por conseguinte, entre duas soluções a dar a um problema, a melhor solução será aquela que mais favorecer ao bem-estar geral146. A principal rejeição de Rawls ao utilitarismo está em seu aspecto teleológico ou consequencialista, que justifica a correção moral de uma ação a partir “de suas consequências, de sua capacidade para produzir certo estado de coisas previamente avaliado” 147 . Por outro lado, Rawls defende uma linha de pensamento não-consequencialista (deontológica), fundamentando a correção moral de uma ação em suas qualidades intrínsecas independentemente das consequências que esta ação produzirá, sejam consequências boas ou ruins. Estabelecendo uma comparação entre a abordagem consequencialista e não consequencialista e a 141 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p.2. 142 Ibidem, p.3. 143 GARGARELLA, Roberto, loc. cit. 144 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Claudia Berliner. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.p. 24. 145 RAWLS, John (1971) apud GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins fontes, 2008. p. 3. 146 GARGARELLA, Roberto, op. cit. p.3. 147 Ibidem, p.4. 45 relação entre a teoria do bem (que cuida em definir quais os bens valiosos) e a teoria da correção (que trata do que devemos fazer), pode-se afirmar que na abordagem consequencialista, a teoria da correção está subordinada à teoria do bem (a ação é correta porque produz o bem), e, na abordagem nãoconsequencialista, a teoria do bem é independente da teoria da correção (a correção da ação não depende do bem produzido) 148 . Sobre a relação entre a correção de uma ação e o seu vínculo ao prazer (bem-estar), Anscombe critica: Deveríamos adaptar uma observação de Wittgentein sobre o significado e dizer ‘O prazer não pode ser uma impressão; pois nenhuma impressão poderia ter as consequências do prazer’. Eles [os empiristas britânicos] estavam dizendo que alguma coisa que consideravam como semelhante a uma determinada sensação de cócegas ou coceira era muito obviamente a 149 razão de se praticar qualquer ação que fosse. Além de relacionar as ideias de bem e correção, o utilitarismo também subordina a justiça à noção de bem, de acordo com Rawls: Ora, parece que a maneira mais simples de relacioná-las é a praticada pelas teorias teleológicas: o bem se define independentemente do justo, e então o justo se define como aquilo que maximiza o bem. Mais precisamente, justas são aquelas instituições e ações que das alternativas possíveis retiram o bem maior, ou pelo menos tanto bem quanto quaisquer outras instituições e ações acessíveis como possibilidades reais (uma disposição adicional necessária quando há mais de uma possibilidade de otimização). As teorias teleológicas têm um profundo apelo intuitivo porque parecem incorporar a ideia de racionalidade. É natural pensar que a racionalidade consiste em maximizar algo e que, em questões morais, o que deve ser maximizado é o bem. De fato, é tentador imaginar como evidente a afirmação de que as coisas deveriam ser planejadas de modo a conduzir ao 150 bem maior. A atração que o utilitarismo exerce tem explicação na objetividade na forma de tratar com um conflito de interesses, porquanto, dados certos indivíduos com interesses divergentes, estes são sopesados com a finalidade de buscar qual interesse tem prioridade por produzir ou maximizar o bem-estar geral. A respeito da alegação de objetividade e racionalidade feita pelo utilitarismo, Rawls disserta: Mas o fracasso do hedonismo em fornecer um procedimento racional de escolha não deveria provocar surpresa. Wittgenstein demonstrou que é um erro postular certas experiências determinadas para explicar como distinguimos as lembranças de imaginações, as crenças de suposições, e assim por diante para os outros atos mentais. De forma semelhante, é já de antemão improvável que certos tipos de sentimento agradável possam definir um modelo de explicação cujo uso justifique a possibilidade da 148 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p.3-4. 149 ANSCOMBE, G.E.M. (1957) apud RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Claudia Berliner.2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 700. 150 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Claudia Berliner. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 26. 46 deliberação racional. Nem o prazer nem qualquer outro objetivo 151 determinado podem desempenhar o papel que o hedonista lhes atribuiria. Além disso, o utilitarismo não se interessa pelas diversas teorias de justiça que utilizam princípios abstratos, que olvidam que as suas soluções recairão sobre pessoas reais.152 Este é um ponto interessante no debate jurídico, em especial, quando se trata da insuficiência do positivismo jurídico para resolver situações em que a aplicação generalizada de uma norma jurídica se revele injusta ou inadequada em relação a determinado caso concreto que envolve pessoas reais. De fato, essa insuficiência do positivismo jurídico decorre da própria insuficiência da linguagem humana natural em tratar com a realidade do mundo. Se uma lei editada por um parlamento utiliza-se de conceitos abstratos, há uma abstração muito maior em relação aos princípios, que as distanciam do mundo real, como se pode perceber na dificuldade teórica em relação ao princípio da igualdade. Retornando ao tema do utilitarismo e sua presumida adequação à situação das pessoas reais, Gargarella ilustra essa visão com o seguinte exemplo: Assim, ante a proposta de censurar certos tipos de comportamento – digamos, o consumo de álcool ou a difusão de determinadas ideias -, o utilitarismo nos incitará à pergunta: Por que adotar tal curso de ação? Que pessoa será de fato afetada ou beneficiada com essa decisão? Por que censurar tais condutas, se elas não prejudicam ninguém? Essa visão peculiar –que toma como ponto de referência a condição dos indivíduos “reais”, de “carne e osso” – situa o utilitarismo como uma postura de forma geral interessante, pelo menos ante alternativas que parecem adotar cursos 153 de ação contrários ao descrito. Outro argumento sustentado pelos utilitaristas é a sua neutralidade em relação aos interesses em jogo, quer dizer, não se leva em conta o conteúdo das pretensões154, ou melhor, não há um juízo antecipado sobre a precedência valorativa de um conteúdo sobre outro, colocando em um mesmo patamar, por exemplo, a solicitação de uma comunidade para manter o meio ambiente limpo e a solicitação de um empresário para impulsionar o crescimento industrial, ainda que em prejuízo do meio ambiente, ou, no âmbito tributário, a solicitação de um contribuinte (ainda que fundada em direito fundamental) em ser desonerado de determinado tributo e a pretensão do fisco em ver o tributo cobrado. O utilitarismo, 151 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Claudia Berliner. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 621. 152 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p.4-5. 153 Ibidem, p.5. 154 GARGARELLA, Roberto, loc. cit. 47 assim, seria livre de preconceitos em relação às posições politicas, filosóficas, ideológicas ou jurídicas, não privilegiando nem uma doutrina, nem a outra, assim como, sem qualquer acepção ou diferença em relação aos indivíduos concretos envolvidos no conflito.155Disso decorre que haveria um caráter (prima facie) igualitário no utilitarismo, conforme observa Dworkin 156, pois na balança dos interesses não há um interesse mais valioso que o outro, antes que sejam avaliadas as repercussões de um ou de outro, e, da mesma forma, entre um indivíduo e outro, não há um que seja mais importante que o outro, não se indagando da classe social, cor, raça ou outra qualquer distinção entre indivíduos. Diante disso, o utilitarismo “revela que seu estrito compromisso igualitário: não há ninguém cujas preferências importam mais que as dos demais quando se trata de reconhecer qual preferência consegue centralizar maior respaldo social”157. Aprofundando o exame sobre o utilitarismo, verifica-se o recurso ao cálculo dos custos e benefícios é expandido de um contexto individual para uma escala social, o que pode induzir a soluções não aceitáveis a uma pluralidade de pessoas.158 Por exemplo, alguém pode se abster de comer carne de animal para obter uma saúde melhor, realizando um sacrifício que não poderia ser transferido para a sociedade. Sobre a transferência do que é racional para um único homem, para um grupo de homens, Rawls assim se manifesta: Primeiramente podemos notar que há, de fato, um modo de ver a sociedade que facilita a suposição de que o conceito mais racional de justiça é utilitarista. Pois consideremos: cada homem ao realizar seus interesses é livre para avaliar suas perdas e ganhos. Podemos nos impor um sacrifício agora por uma vantagem mais depois. Uma pessoa age de um modo muito apropriado, pelo menos quando noutros não são afetados, com o intuito de conseguir a maximização de seu bem - estar, ao promover seus objetivos racionais o máximo possível. Ora, por que não deveria uma sociedade agir baseada exatamente no mesmo princípio aplicado ao grupo e, portanto, considerar aquilo que é racional para um único homem como justo para 159 uma associação de seres humanos? Na verdade, o utilitarismo associa a sociedade com o corpo humano, no qual se pode sacrificar determinadas partes em função da totalidade, violando, segundo Rawls, “a independência e dissociabilidade entre as pessoas: o fato de 155 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p.6. 156 DWORKIN (1977) apud GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p.6. 157 GARGARELLA, Roberto, op. cit., p.6. 158 Ibidem, p.7. 159 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Claudia Berliner. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.25. 48 que cada indivíduo deve ser respeitado como um ser autônomo, distinto dos demais e tão digno quanto eles.”160 Rawls acrescenta, ainda, que os indivíduos não podem ser considerados de forma passiva em suas preferências, porque as pessoas possuem alguma responsabilidade por suas preferências, em posição ativa, e, além disso, podem ter as denominadas “preferências ofensivas”161 (p.ex.: uma atitude racista) que seria contabilizada pelo utilitarismo no mesmo patamar de preferências legítimas. Utilizando o argumento ad absurdum contra o utilitarismo, Rawls levanta a questão: Assim se os seres humanos têm certo prazer na discriminação mútua, na sujeição de outrem a um grau inferior de liberdade como um meio de aumentar a sua autoestima, então a satisfação desses desejos deve ser pesada em nossas deliberações de acordo com a sua intensidade, ou 162 qualquer outro parâmetro, em comparação com outros desejos. Dworkin, por sua vez, assevera que o utilitarismo não atende à sua promessa igualitária, em razão de considerar as preferências externas, que são aquelas que não dizem respeito diretamente às pessoas que têm as preferências, mas dirigem-se ao tratamento que as outras pessoas terão em seus direitos e oportunidades, tal qual a hipótese de um certo indivíduo pertencente a um grupo racial ou religioso solicitar que os membros dos outros grupos não tenham um tratamento igualitário, 163 dado que o utilitarismo não faz o prejulgamento do conteúdo das preferências. Essa pretensa neutralidade do utilitarismo poderia até culminar com a violação de direitos das minorias (inclusive, fundamentais), já que o princípio majoritário busca o bem estar geral164. Por fim, outros pontos são colocados como negativos em relação ao utilitarismo: a origem questionável das preferências, o problema da falsa consciência e a falta de informação empírica como base para preferências.165 Sobre a possibilidade de violação de direitos fundamentais, em uma aplicação extrema da doutrina utilitarista, Rawls é incisivo: Cada membro da sociedade é visto como possuidor de uma inviolabilidade fundada na justiça, ou, como dizem alguns, no direito natural, que nem mesmo o bem-estar de todos os outros pode anular. A justiça nega que a perda da liberdade para alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. O raciocínio que equilibra os ganhos e as perdas de diferentes 160 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p.8. 161 RAWLS, J. (1971) apud GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p.9 162 RAWLS, John, op. cit., p. 33. 163 DWORKIN, R. (1977) apud GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p.10. 164 GARGARELLA, Roberto. op.cit., p.11. 165 Ibidem, p.12. 49 pessoas como se elas fossem uma pessoa só fica excluído. Portanto, numa sociedade justa as liberdades básicas são tomadas como pressupostos e os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou 166 ao cálculo dos interesses sociais. Isso não significa que não seja possível restrição a direitos básicos, como afirma Rawls: Nenhuma liberdade básica é absoluta, já que, em casos particulares, essas liberdades podem entrar em conflito entre si e então sias exigências têm de ser ajustadas para se encaixarem num esquema coerente de liberdades. A meta é fazer esses ajustes de tal forma que pele menos as liberdades mais importantes, relacionadas com o desenvolvimento adequado e o pleno exercício das faculdades morais nos dois casos fundamentais, sejam normalmente compatíveis. O véu de ignorância implica que as partes não têm como saber ou estimar se as pessoas que elas representam professam uma dada doutrina religiosa, ou qualquer outra, majoritária ou minoritária. As partes não podem correr o risco de permitir uma menor liberdade de consciência ara, digamos, religiões minoritárias, apostando no fato de que a pessoa que cada uma representa pertence a uma religião majoritária ou dominante e possa, assim, beneficiar-se de uma liberdade maior do que aquela garantida pela 167 liberdade igual de consciência. Apesar dessas críticas bem fundamentadas de Rawls, a influência do utilitarismo persiste no tempo, como acrescenta Sandel: O inglês Jeremy Bentham (1748 - 1832) não deixou dúvidas sobre sua opinião a respeito. Ele desprezava profundamente a ideia dos direitos naturais, considerando-os um “absurdo total”. Seus pressupostos filosóficos exercem até hoje uma poderosa influência sobre o pensamento de 168 legisladores, economistas, executivos e cidadãos comuns. Entretanto, no mesmo sentido de Rawls, Sandel observa a fragilidade do argumento utilitarista: A vulnerabilidade mais flagrante do utilitarismo, muitos argumentam, é que ele não consegue respeitar os direitos individuais. Ao considerar apenas a soma das satisfações, pode ser muito cruel com o indivíduo isolado. Para o utilitarista, os indivíduos têm importância, mas apenas enquanto as preferências de cada um forem consideradas e conjunto com as de todos os demais. E isso significa que a lógica utilitarista, se aplicada de forma consistente, poderia sancionar a violação do que consideramos normas 169 fundamentais da decadência e do respeito no trato humano... Não obstante, há determinadas situações extremas que conduzem a uma perplexidade de fundamento moral, como demonstra Sandel: Uma questão semelhante surge em debates atuais sobre a justificativa da tortura em interrogatórios de suspeitos de terrorismo. Consideremos uma situação na qual uma bomba-relógio está por explodir. Imagine-se no comando de um escritório local da CIA. Você prende um terrorista suspeito 166 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Claudia Berliner. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 30. 167 Idem. Justiça com equidade: uma reformulação. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 147-148. 168 SANDEL, Michael. J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011. p. 48. 169 Ibidem, p.51. 50 e acredita que ele tenha informações sobre um dispositivo nuclear preparado para explodir em Manhattan dentro de algumas horas. Na verdade, você tem razões para suspeitar que ele próprio tenha montado a bomba. O tempo vai passando e ele se recusa a admitir que é um terrorista ou a informar onde a bomba foi colocada. Seria certo torturá-lo até que ele 170 diga onde está a bomba e como fazer para desativá-la? A resolução desse dilema é difícil, pois há determinados detalhes prévios: se há uma relativa certeza quanto à identidade do terrorista ou se existe um outro meio para evitar a explosão da bomba. De qualquer forma, há quem defenda, ainda que em situações extremas, a inviolabilidade dos direitos humanos como revela Sandel: Algumas pessoas repudiam a tortura por princípio. Elas acreditam que esse recurso é uma violação dos direitos humanos, um desrespeito à dignidade intrínseca dos seres humanos. Sua posição contra a tortura não depende de considerações utilitaristas. Elas argumentam que os direitos e a dignidade humana têm uma base moral que transcende a noção de utilidade. Se 171 essas pessoas estiverem certas, a filosofia de Bentham está errada. 170 SANDEL, Michael. J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011. p.52. 171 Ibidem, p.53. 51 5 TEORIA DO ARGUMENTO A lógica formal é aquela baseada predominantemente no raciocínio dedutivo, como explica Popper: A lógica dedutiva é uma teoria da validade das deduções lógicas ou da relação de consequência lógica. Uma condição necessária e decisiva para a validade de uma consequência lógica é a seguinte: se as premissas de uma dedução válida são verdadeira, então a conclusão deve ser verdadeira. Desta forma, a lógica dedutiva torna-se a teoria da crítica racional, pois todo criticismo racional toma a forma de uma tentativa de demonstrar que conclusões inaceitáveis podem se derivar da afirmação que estivemos tentando criticar. Se tivermos sucesso em deduzir, logicamente, conclusões inaceitáveis de uma afirmação, então, a afirmação pode ser colocada como 172 digna de ser recusada. No entanto, o estudo da lógica informal é mais adequado ao direito, permitindo uma flexibilidade maior no raciocínio. 5.1 ARGUMENTO NA LÓGICA INFORMAL E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO Depois de examinar o paradigma do pragmatismo jurídico, no qual o argumento consequencialista está inserido, passa-se ao estudo do argumento, com a finalidade de esclarecer e analisar a estrutura do argumento consequencialista e averiguar o tipo de argumento mais adequado ao direito. Toulmin orienta como dar o primeiro passo para resolver qualquer problema proposto: Para começar pelo primeiro estágio: quando lidamos com qualquer espécie de problema, há um estágio inicial em que temos de admitir que uma série de diferentes sugestões merecem ser consideradas. Todas estas, no primeiro estágio, têm de ser admitidas como candidatas ao título de “solução”; para marcar esta possibilidade, dizermos de cada uma de nossas soluções “potenciais”: “pode (ou podia) ser o caso que...” Nesse estágio, a “possibilidade” está corretamente bem colocada, junto com seus verbos, adjetivos e advérbios; falar de uma específica sugestão como uma 173 possibilidade é admitir que ela “merece” ser considerada. O que é um argumento e quais seus requisitos de validade? Essas questões são objeto de estudo da lógica formal que propõe uma análise argumentativa 172 POPPER, Karl Raymund. Lógica das ciências sociais. Tradução Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3.ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2004.p. 26. 173 TOULMIN, Stephen. Os usos do argumento. Tradução Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes. 2001. p. 25. 52 baseada em regras lógicas formais, onde não há preocupação com o conteúdo das proposições (daí o caráter formal), tornando-se assim um instrumento insuficiente para lidar com situações complexas, onde se indaga sobre a verdade factual. Por isso, tem-se recorrido nestas situações à lógica informal e à teoria da argumentação.174 Argumento, segundo o Dicionário de Filosofia de Cambridge, é “uma sequência de afirmações de tal natureza que algumas delas (as premissas) pretendem fornecer uma razão para aceitar outra delas, a conclusão.”175 De acordo com Copi, há uma diferença entre argumento e explicação: Se estamos interessados em estabelecer a verdade de Q, e se P é oferecido como prova dela, então “Q porque P” formula um argumento. Contudo, se considerarmos a verdade de Q não-problemática, tão bem estabelecida, pelo menos, quanto a verdade de P, e se estivermos interessados em explicar o porque Q é o caso, então “Q porque P” não é um argumento mas uma explicação. Mas nem todos os exemplos são tão facilmente classificados. Em cada caso, o contexto pode ajudar a esclarecer a intenção de escritor ou de locutor. Se seu propósito for estabelecer a verdade de uma de suas proposições, ele formula um argumento. Se seu 176 propósito é explicar, então formula uma explicação. Um argumento é válido quando a verdade das premissas garante a verdade da conclusão, ou, dito de outra forma, é impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. Dessa forma a validade ocupa-se apenas com a bem-ordenada articulação entre premissas e conclusão, mas não é suficiente para garantir a verdade factual das premissas, porque a verdade das premissas é tomada apenas hipoteticamente, como no exemplo: “todas as aranhas têm dez pernas, ora, todas as criaturas de dez pernas têm asas; logo, todas as aranhas têm asas”, no qual a conclusão não corresponde com a verdade factual descrita pela biologia, mas é um argumento perfeitamente válido do ponto de vista formal.177 Além disso, é possível visualizar uma relação de consequência entre as premissas e a conclusão, em sendo válido o argumento, explicitando uma relação interna entre proposições, que é importante para o raciocínio científico, não 174 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p. 253, ago. 2012. 175 ARGUMENTO. In: AUDI, Robert. Dicionário de filosofia de Cambridge. Tradução Edwino Aloysius Royer et al. São Paulo: Paulus, 2006. p. 37. 176 COPI, Irving M. Introdução à lógica. Tradução Álvaro Cabral. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978. p. 32-33. 177 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, op. cit., p. 255-256. 53 obstante, insuficiente para as situações complexas da vida.178 Essa relação interna é bem explorada por Popper na seguinte passagem que trata sobre a derivação lógica: Um problema puramente teórico – um problema de ciência pura – consiste sempre na tarefa de achar uma explicação, a explicação de um fato ou de um fenômeno ou de uma regularidade destacada ou de uma notável exceção à regra. Aquilo que pretendemos explicar pode ser chamado de “explicandum”. A solução tentada do problema, isto é, a explicação, consiste sempre numa teoria, em um sistema dedutivo que nos permite explicar o “explicandum” relacionando-o a outros fatos (as assim chamadas condições iniciais). Uma explicação integralmente explícita consiste em demonstrar a derivação lógica (ou derivabilidade) do “explicandum” da teoria reforçada 179 por algumas condições iniciais. Além da validade do argumento, há uma outra instância para avaliá-lo: a correção. Um argumento válido, ou melhor, a estrutura formal da validade argumentativa garante apenas a bem-ordenada conexão entre premissas e conclusão, pois consiste em considerar hipoteticamente dados premissas como verdadeiras, e em sendo verdadeiras, concluir pela impossibilidade que a conclusão seja falsa, em confirmação de expressão: “ex vero, verum sequitur” (do verdadeiro segue-se o verdadeiro).180 Apesar da importante função da análise da validade do argumento, a ciência não pode subsistir sem considerar a questão da verdade ou falsidade do conteúdo das próprias premissas, pois um de seus principais objetivos é alcançar a verdade, ou, ao menos, a verossimilhança. Diante disso, faz-se necessário verificar a verdade das premissas, no sentido de sua correspondência com a realidade, para que um argumento alcance o status de correto. Desidério Murcho denomina o argumento correto de sólido, pois além de válido, não é possível que sua conclusão seja falsa181, diversamente do argumento apenas válido que pode ter uma conclusão falsa. 178 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p. 255256, ago. 2012. 179 POPPER, Karl Raymund. Lógica das ciências sociais. Tradução Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho Vilma de Oliveira Moraes e Silva. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2004, 3.ed.p. 28. 180 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, op. cit. p. 255-256. 181 MURCHO, Desidério (2006) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p. 256-257, ago. 2012. 54 O argumento válido e correto possui poder persuasório, pois sua força é derivada da própria justificação da conclusão, que é verdadeira, garantida por premissas verdadeiras. Contudo, nem sempre um argumento válido e correto é um bom argumento, pois é possível que um argumento válido e correto não tenha o valor instrumental do convencimento, enquanto que um argumento mau possui a capacidade de convencer um grande número de pessoas.182 Os argumentos dedutivos são bem avaliados pelos critérios da validade e correção, entretanto, há outras espécies de argumentos e cânones relevantes para criticá-los, como salienta Toulmin: Há casos do direito penal em que um homem é acusado por algum delito contra o direito comum ou contra um estatuto; casos civis em que um homem reivindica que outro lhe pague indenização por algum dano, difamação ou coisa semelhante; há casos em que se pede ao juiz que declare legal algum direito ou situação, em questões de legitimidade (para fazer ou falar, ou de um título de nobreza); casos em que um homem pede a um tribunal uma ordem formal para impedir outro de fazer algo que possa vir a prejudicar seus interesses. Acusações criminais, processos civis, pedidos de declarações ou injunções; é claro que os modos como argumentamos até chegar a conclusões legais, nesses ou em outros contextos, podem variar muito. Assim, pode-se perguntar - em relação a casos legais, assim como na relação a qualquer tipo de argumento – até que ponto são invariáveis a forma dos argumentos e os cânones relevantes para criticar os argumentos (os mesmos, para todos os tipos de casos), e até que ponto a forma e os cânones dependem do tipo de caso que esteja 183 sob consideração. Essas soluções potenciais deverão ser propostas sob forma de argumento. Em outra passagem, Toulmin explica distinções relevantes entre a argumentação dedutiva submetida à validade e argumentação na lógica informal: (i) A diferença entre argumentos necessários e argumentos prováveis; isto é, entre argumentos em que a garantia nos dá direito de argumentar inequivocamente até a conclusão (e que se rotulam com o qualificador modal “necessariamente”), e argumentos em que a garantia só nos dá direito a conclusões provisórias (que se qualificam com um “provavelmente”), a conclusões sujeitas a exceções (que se marcam com “presumivelmente”) ou a conclusões condicionadas (que se marcam com “desde que...”). (ii) A diferença entre argumentos que são formalmente válidos e argumentos que não se pode esperar que sejam formalmente válidos; qualquer argumento é formalmente válidos se for exposto de tal modo que se possa chegar à conclusão mediante uma adequada disposição dos termos nos dados e na garantia. (Um dos atrativos da lógica formal sempre 182 MURCHO, Desidério (2006) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p. 256-257, ago. 2012. 183 TOULMIN, Stephen. Os usos do argumento. Tradução Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes. 2001. p. 22-23. 55 foi a possibilidade da análise de validade, neste sentido, depender exclusivamente de questões de forma.) (iii) A diferença entre os argumentos, inclusive os silogismos ordinários, em que se conta com uma garantia cuja adequação e aplicabilidade foram previamente estabelecidas, e os argumentos que visam a estabelecer a adequação de uma garantia. (iv) A diferença entre argumentos expressos em termos de “conectivos lógicos” ou quantificadores e argumentos não expressos deste modo. As palavras lógicas aceitáveis incluem “todos”, “alguns”, “ou” e algumas outras, que são firmemente arrastadas para longe das cabras não-lógicas, isto é, para longe da generalidade de substantivos, adjetivos e coisas semelhantes, e de conectivos e quantificadores desregrados como “a maioria”, “alguns poucos”, “exceto”. Dado que a validade dos silogismos está intimamente ligada à adequação da distribuição das palavras lógicas dentro das sentenças que os compõem, lá vamos nós outra vez, incluindo os silogismos válidos na primeira das nossas duas classes. (v) A diferença fundamental entre argumentos analíticos e argumentos substanciais, que só pode ser mitigada se nossas garantias de inferência forem afirmadas sob a forma tradicional – “todos os (ou nenhum) A’s ou 184 B’s”. Os argumentos jurídicos são eminentemente substanciais por tratarem de direitos e em razão do conteúdo ético neles implícitos, não podendo ser tratado de modo puramente formal. A respeito dos argumentos substanciais, pontifica Toulmin: Os únicos argumentos que podemos julgar com justiça por padrões “dedutivos” são os que se apresentam e visam a ser analíticos, necessários e formalmente válidos. Todos os argumentos que sejam confessadamente substanciais serão “não-dedutivos ” e, como consequência, não formalmente válidos. Mas para o silogismo analítico, a validade pode ser identificada com a validade formal, e é isto que os lógicos querem que seja universalmente possível. Mas – pode-se concluir imediatamente –, para os argumentos substanciais, cujo poder de convicção não pode ser demonstrado de modo puramente formal, até a validade fica fora de nosso 185 alcance e não pode ser obtida. Os argumentos indutivos, abdutivos e argumentos do tipo soft usados em ética186 são considerados não dedutivos. Nesta espécie, em razão de sua própria conformação lógica, não é possível garantir o mesmo grau de verdade (ou verossimilhança) que há nos argumentos dedutivos, ou seja, a conexão lógica nos argumento dedutivos é mais segura que a dos argumentos não dedutivos. Por exemplo: quando encontramos por vários dias seguidos e em diversos lugares cisnes em cor preta, somos levados a concluir, indutivamente que todo cisne tem cor preta. Ora, não é impossível que algum dia em algum lugar seja encontrado um cisne em cor branca. A relativa fragilidade nesse tipo argumentativo decorre 184 TOULMIN, Stephen. Os usos do argumento. Tradução Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 212-213. 185 Ibidem, p. 221. 186 MILLGRAM, Alijah (2005) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.260, ago. 2012. 56 exatamente da contingência de suas premissas, já que o que se afirma nelas poderia ser de outro modo, ou até mesmo, não existir. Em razão disso, os argumentos não dedutivos “podem ser derrotados ou superados à vista de outros elementos”.187 Dado que os argumentos dedutivos podem ser avaliados a partir dos critérios da validade e correção, paralelamente, os argumentos não dedutivos submetem-se aos critérios da força e cogência. Imputa-se a qualidade de forte ao argumento em que, a partir de dadas premissas, é altamente improvável que a conclusão seja falsa, e, atribui-se a qualidade de cogente ao argumento que possua premissas verdadeiras efetivamente188. Observa-se neste ponto, a importante distinção entre a correção e cogência, porque, se na correção a verdade das premissas garante a verdade da conclusão, não ocorre da mesma forma em relação à instância de cogência, onde pode acontecer de premissas efetivamente verdadeiras derivar uma conclusão falsa. 189 As razões que sustentam uma conclusão devem ser, além de verdadeiras, boas190. Quando se indaga se o argumento é bom ou ruim, leva-se em conta sua capacidade de persuasão em relação aos destinatários, pois um argumento dedutivo válido e correto (ou um argumento não dedutivo forte e cogente) pode ser ruim e não convencer a assembleia, assim como um argumento dedutivo inválido e incorreto (ou um argumento fraco e não cogente) pode ser bom, pois é adequado à função de fazer crer naquilo que é enunciado por ele.191 Até agora, utilizou-se de critérios objetivos par avaliar um argumento, posto que, tanto a validade e correção como a força e a cogência não se referem, subjetivamente, nem àquele que argumenta, nem aos destinatários da argumentação. Tais critérios são limitados a uma análise de forma (sintaxe) e de conteúdo (semântica), sem uma referência aos elementos subjetivos. A análise pragmática, por sua vez, sem retirar totalmente a atuação de critérios objetivos, ocupa-se de identificar o bom argumento, a partir dos agentes da argumentação, operando com duas correntes: a primeira, a lógica da plausibilidade 187 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.259, ago. 2012. 188 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, loc. cit. 189 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, loc. cit. 190 BICKENBACH, Jerome; DAVIES, Jacqueline (1997) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.922. p.261, ago. 2012. 191 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, op. cit., p. 260. 57 (plausibility logic), e a segunda, a abordagem ARS (aceitabilidade - relevância suficiência). Consoante Murcho, um argumento bom seria aquela que, além de válido, possuísse premissas mais plausíveis que a conclusão, dado que muitos erros de argumentação ocorrem porque se parte do menos plausível para o mais plausível, carecendo a conclusão de um suporte consistente que garante sua eficiência persuasiva.192 Para Douglas Walton, a plausibilidade requer que algo pareça ser verdadeiro para alguém, daí a união entre o caráter objetivo e subjetivo.193Primeiramente, parecer verdadeiro não significa necessariamente ser verdadeiro, consistindo em algo que diante do contexto, das crenças de dado público e com base em aparências (o modo como algo se manifesta diante de alguém) tenha semelhança com a verdade, muito embora possa ser falso em seu conteúdo. Além disso, a plausibilidade retorna seu foco diretamente sobre o destinatário do argumento, porque um argumento é plausível quando é plausível para uma pessoa 194 de modo que um argumento hermético, elaborado como um ato privado, embora racionalmente justificado, não será um bom argumento por não permitir o compartilhamento daquilo que enuncia. No âmbito jurídico, é ilustrativo o “[...]caso jurídico da briga entre o homem fraco e o forte [em que um homem mais fraco foi absolvido da acusação de ter agredido outro, maior e mais forte, somente com base na inferência de implausibilidade feita pelo juiz]”.195 De acordo com Hamblin, a própria verdade, diante de determinado público, contexto e situação pode ser um critério inadequado, como nos tribunais, onde a 192 MURCHO, Desidério (2006) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p. 263, ago. 2012. 193 WALTON, Douglas (2011) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p 264, ago. 2012. 194 WALTON, Douglas (2011) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, loc.cit. 195 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p. 264, ago. 2012. 58 verdade é um ativo raro, enfatizando-se a justificação das decisões na própria argumentação.196 Bickenbach e Davies entendem que o argumento deve ser “transparentemente persuasivo”, ou seja, “quando dadas razões em favor de uma conclusão são boas, são razões que por seus próprios méritos devem persuadir qualquer pessoa racional capaz de compreender o argumento.”197 Nesse sentido, os autores propõem três critérios para determinar o que seja um bom argumento: a aceitabilidade, a relevância das premissas e a suficiência do conjunto das premissas, havendo, no entanto, dissenso quanto à ordem das etapas de avaliação, como se pode observar no caso da British Columbia Society for Skeptical Enquiry, que prefere adotar a ordem RAS: relevância, aceitabilidade e suficiência. 198 Não obstante, é razoável, ao menos, que o critério de aceitabilidade seja utilizado em primeiro lugar, porque uma premissa inaceitável não poderia ser considerada relevante, devendo ser excluída ab initio, ao passo que uma premissa aceitável pode ser considerada irrelevante.199 De acordo com Johnson e Blair, enquanto que na lógica formal, os argumentos dedutivos são corretos quando suas premissas são verdadeiras, na lógica informal, os argumentos são bons quando são aceitáveis, no sentido de que devem ser aceitos pelos destinatários ou, dito de outra forma, que mereçam aceitação.200 Bickenbach e Davies esclarecem que uma premissa aceitável é aquela que é razoável tratá-la como verdadeira, assim, existindo premissas que são certamente verdadeiras, elas são aceitáveis, por outro lado, se as premissas não são certamente verdadeiras, nem por isso devem ser consideradas como inaceitáveis, a não ser que seja o caso de premissas que possuem uma dúvida razoável, justificando considera-las inaceitáveis.201 196 HAMBLIN (1970) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p. 265, ago. 2012. 197 BICKENBACH, Jerome; DAVIES, Jacqueline (1997) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.265-266, ago. 2012. 198 Ibidem, p. 266. 199 Ibidem, p. 267. 200 JOHNSON, Ralf; BLAIR, Anthony (2002) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.267, ago. 2012. 201 BICKENBACH, Jerome; DAVIES, Jacqueline (1997) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, op. cit., p.268. 59 Há uma tipologia de premissas elaborada por alguns autores como auxílio na distinção entre premissas aceitáveis e inaceitáveis. Trudy Govier estabelece como aceitáveis as premissas “que sejam, alternativamente: (a) justificadas por subargumentos cogentes; (b)fundamentadas por fontes confiáveis, com premissas externas ao argumento; (c) verdades apriorísticas; (d) baseadas no sendo comum; (e) testemunhos pessoais; (f) argumentos de autoridade apropriados ou (g) aceitas provisoriamente (satisfeitas R e S, pressupõe-se a aceitabilidade)”202. São aceitáveis para Bickenbach e Davies as seguintes premissas: a) As verdades necessárias, que são aquelas em que há impossibilidade em sua negação ou que são verdadeiras por definição; b) As verdades contingentes, que podem ser negadas (possibilidade), embora seja improvável sua falsidade. c) As proposições controversas ou contrafáticas, que são aceitas provisoriamente como verdadeiras ad argumentundum tantum, isto é, apenas com a finalidade de argumentar (argumentação contrafactual). 203 Há, também, premissas que podem ser consideradas inaceitáveis, segundo Govier: “(a) facilmente refutáveis, por contraexemplos, experiência, testemunhos, etc.; (b) sabidamente falsas, a priori; (c) inconsistentes com outras premissas; (d) vagas ou ambíguas; (e) dependentes de presunções falhas; (f) que não sejam mais aceitáveis do que a conclusão; ou (g) que assumam a verdade da conclusão, incidindo na falácia da petição de princípio.”204 Não basta que uma premissa seja aceitável. A relevância da premissa é também um exame a ser feito. Ao tratar do tema da relevância, Popper assim expõe: Há aqui um ponto que, segundo creio, caberá especificamente ao lógico analisar. A “relevância” ou “interesse”, no sentido aqui visado, pode ser objetivamente analisada; é relativa aos nossos problemas, e depende do poder explicativo e, nessa medida, do conteúdo, ou improbabilidade, da informação. As medidas anteriormente mencionadas (e desenvolvidas na Adenda deste volume) são precisamente medidas que levam em linha de conta um dado conteúdo relativo da informação – o seu conteúdo 205 relativamente a uma hipótese ou a um problema. 202 GOVIER, Trudy (2005) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.267, ago. 2012. 203 BICKENBACH, Jerome; DAVIES, Jacqueline (1997) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.270, ago. 2012. 204 GOVIER, Trudy (2005) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, op. cit., p.270. 205 POPPER, Karl Raymund. Conjecturas e refutações. Tradução Benedita Bettencourt.Coimbra: Almedina, 2006. p.313. 60 A relevância das premissas é um critério relacional, que articula premissas e conclusão e questiona se entre as premissas e a conclusão existe uma pertinência temática ou um valor probante que ofereça razões para sustentar a conclusão.206Além disso, sustenta Sperber, que a relevância deve “conduzir o ouvinte até o significado daquilo que foi proferido pelo falante [...] porque a busca pela relevância é uma característica básica da cognição humana.”207 Por sua vez, Govier traz a seguinte classificação em relação à situações de relevância: a) Relevância positiva - ocorre quando a veracidade das premissas corroborarem a veracidade da conclusão. b) Relevância negativa - é o caso da veracidade das premissas subtraírem a veracidade da conclusão. c) Irrelevância - acontece quando a veracidade das premissas não influi nem positivamente, nem negativamente em relação à veracidade da conclusão.208 Bickenbach e Davies afirmam, ainda, que há situação em que apesar da conclusão não possuir uma decorrência direta das premissas, existe um subargumento que faz a mediação, ocorrendo a denominada relevância indireta que se diferencia da mera relevância, onde as premissas contam a favor da conclusão de maneira fraca.209 Walton recorda, outrossim, a existência de relevância efetiva/real ou relevância condicional, consistindo esta em uma relevância hic et nunc (aqui e agora), diante do estado de coisas atual, e aquela, em uma relevância potencial, que pode se tornar atual em algum ponto do futuro.210 206 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.271, ago. 2012. 207 SPERBER, Dan; WILSON, Deirdre (2007) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.271, ago. 2012. 208 GOVIER, Trudy (2005) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p. 272, ago. 2012. 209 BICKENBACH, Jerome; DAVIES, Jacqueline (1997) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.272, ago. 2012. 210 WALTON, Douglas (2003) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.273, ago. 2012. 61 O último critério do sistema ARS para avaliar um bom argumento é o da suficiência, que, segundo, Jonh e Blair, tem três dimensões: a) Verificar se todos os tipos de provas possíveis foram apresentadas; b) Verificar se de cada tipo, apresentou-se provas o bastante; c) Verificar se se respondeu devidamente à objeções conhecidas ou potenciais.211 Portanto, a análise da suficiência não ocorre de forma isolada, em relação à cada premissa, mas tomando todas como um conjunto, de forma a oferecer um suporte suficiente, resistente e estável para a conclusão.212 A ideia prevalente no critério da suficiência é alcançar um esgotamento da discussão, em um processo dialético com os argumentos contrários.213 A dicotomia existe entre a corrente que propõe a plausibilidade e a outra, que defende a aplicação da tríade aceitabilidade, relevância e suficiência poderia ser aplainada da seguinte forma: considerando um argumento que tenha premissas que satisfaçam os requisitos ARS (aceitabilidade, relevância e suficiência), este argumento será plausível e conveniente em relação ao destinatário.214 Vorobej faz a aproximação entre a corrente da plausibilidade e a abordagem ARS, dessa forma: Dizemos que um argumento ‘A’ é cogente para você apenas no caso de, relativamente ao seu estado epistêmico e ao contexto argumentativo mais amplo, ser racional, para você, acreditar que: (i) Cada proposição no conjunto de premissas ‘S’ do argumento ‘A’ é verdadeira – esta é a condição T [True]; (ii) ‘S’ é relevante para a conclusão de ‘A’ – esta é a condição R [Relevant] (iii) ‘S fundamenta [suficientemente] a conclusão de ‘A’ – esta é a condição G [Grounds] (iv) ‘A’ é compacto [sem informações irrelevantes ou redundantes] – esta é a 215 condição C [Compact]. No mesmo sentido, Cederblom e Paulsen denominaram bons argumentos os que são legitimamente persuasivos e maus argumentos aqueles que persuadem ilegitimamente (falácias) ou que não possuem qualquer força persuasiva.216 211 JOHNSON, Ralf; BLAIR, Anthony (2002) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.273, ago. 2012. 212 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.274, ago. 2012. 213 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, loc. cit. 214 Ibidem, p.275. 215 VOROBEJ, Marc (2006) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.275, ago. 2012. 62 Prova, demonstração, persuasão e convencimento são conceitos que o senso comum confunde, porém, é possível fazer uma distinção. Demonstração, afirma Alves, trata de uma explicitação lógica da decorrência de uma conclusão das premissas verdadeiras, muito utilizada nas ciências naturais, como a matemática.217 Diversamente, prova, conforme Patrick Shaw, é um argumento que possui premissas verdadeiras, aptas a serem aceitas pelo destinatário, que, a princípio, estava em posição de discordância.218 Em relação à diferença entre persuasão e convencimento, Perelman & Olbrechts-Tyteca esclarecem que a persuasão tem por objetivo a aceitação do argumento por parte de um auditório específico, já o conceito de convencimento está vinculado à capacidade que o argumento possui para ser aceito por qualquer ser racional em qualquer auditório.219 Patrick Shaw, tratando dos argumentos éticos morais e políticos, sustenta que, ao contrário das ciências empíricas em que é possível “olhar e ver”, nesses casos não é possível fazer testes empíricos para comprovar a verdade de premissas éticas, morais ou políticas, conduzindo a desacordos persistentes, ainda que as pessoas envolvidas tenham compromisso com a razão.220 Sobre isso, Silva Neto assim se expressa: Este parece ser o caso de discussões que envolvem profundas divergências e julgamentos de valor – citem-se, por exemplo, os casos de aborto, da pena de morte, do desarmamento, das cotas étnico-raciais, das pesquisas com células-tronco embrionárias, do casamento homossexual, da legalização das drogas, da eutanásia, das operações militares norteamericanas no Oriente Médio, dentre outros temas igualmente polêmicos. Embora não sejam apresentados em temas exclusivamente morais, mas também jurídicos, históricos, sociais, econômicos, religiosos, morais, estratégicos, geopolíticos, dentre outros prismas, esses debates exibem, em comum, o mesmo tipo de dificuldade: em tais casos é impossível, à primeira vista, descobrir um princípio geral aceitável para ambas as partes, do qual decorra a plausibilidade ao desacerto completo de uma das posições... 216 CEDERBLOM, Jerry; PAULSEN, David (1996) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.276, ago. 2012. 217 ALVES, Alaôr Caffé (2000) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.276, ago. 2012. 218 SHAW, Patrick (1997) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.277, ago. 2012. 219 PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie (2005) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.278, ago. 2012. 220 SHAW, Patrick (1997) apud SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, op.cit., p.279. 63 Pode-se configurar, assim, o que Jonh Raws denomina de desacordo ou 221 conflito razoável. Não obstante as abordagens relativas à plausibilisade e ao sistema ARS (aceitabilidade – relevância – suficiência), ficaria incompleto o estudo sobre argumento se não se tratasse de seu aspecto dialógico. Na vida prática não trabalhamos como o argumento à maneira de um solipsismo, ao contrário, o argumento é usado no debate, frente a frente com os contra-argumentos do adversário. A lógica dialógica ou da refutabilidade (defeasibility) toma em consideração as objeções, contra-argumentos e posições alternativas em relação ao debatedor.222 Stuber propõe os seguintes estágios de uma argumentação dialética: a) Dogmatismo ou ausência de argumento – ocorre quando se afirma algo sem fundamentar. b) Argumento positivo ou negativo – é o início da argumentação, porém, de forma unilateral. c) Argumentos favoráveis e desfavoráveis - nesse ponto, a argumentação torna-se bilateral ou multilateral. d) Responsabilidade – nessa última fase, quem argumenta antecipa-se às possíveis objeções que serão oferecidas e as responde.223 Walton, por sua vez, tenta ser mais preciso ao estabelecer orientação para um debate dialético: Estágio inicial 1. Não são permitidas mudanças injustificadas de um tipo de diálogo para outro. Estágio de confrontação 1. Não são permitidas tentativas injustificadas de modificar a pauta. 2. A recusa a aceitar uma pauta de diálogo específica impede a passagem ao estágio de argumentação. Estágio de argumentação 1. Deixar de fazer um esforço sério para cumprir uma obrigação é uma estratégia ruim. Por exemplo, ignorar o ônus da prova ou deixar de defender um comprometimento em caso de contestação. 2. Não é permitido tentar transferir o ônus da prova para a outra parte ou alterá-lo ilicitamente. 3. Não é permitido tentar produzir uma prova interna usando premissas que não foram admitidas pela outra parte. 221 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria. Cogência, plausibilidade, condições “ARS” (aceitabilidade, relevância e suficiência) e conceitos correlatos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p.279 280, ago. 2012. 222 Ibidem, p.283-284. 223 SILVA NETO, Paulo Penteado de Faria, loc.cit. 64 4. Recorrer a fontes externas de provas sem justificar adequadamente seu argumento pode ser motivo de objeção. 5. As falhas de pertinência incluem: apresentar a tese errada, desviar-se do ponto a ser provado, responder à pergunta errada num diálogo. 6. Deixar de fazer as perguntas cabíveis num determinado estágio do diálogo deve ser, assim como fazer perguntas inadequadas. 7. Deixar de dar respostas apropriadas às perguntas deve ser proibido, incluindo aí respostas indevidamente evasivas. 8. Deixar de definir, esclarecer ou justificar o significado ou definição de um termo usado um argumento, de acordo com os padrões de precisão adequados à discussão, é uma violação, caso uso desse termo seja questionado por outro participante. Estágio final 1. O participante não deve tentar forçar o fim prematuro de um diálogo antes que ele seja corretamente encerrado, seja por acordo mútuo, seja por seu objetivo ter sido atingindo. No âmbito jurídico, a teoria tradicional sempre defendeu a ideia de que o raciocínio seria silogístico, tendo por premissa maior a norma jurídica. Posner, diante do abuso do raciocínio silogístico no direito, assim se manifesta: O raciocínio silogístico é tão convincente e conhecido que os advogados e juízes, sempre ávidos por fazer sua atividade parece o mais objetiva possível, tentando fazer com que o raciocínio lógico pareça o mais silogístico possível. O uso excessivo do silogismo é o traço definidor da 224 vertente do formalismo jurídico atacado por Holmes. Em aplicação da teoria do argumento, ao argumento consequencialista, podese dizer que ele tem caráter predominantemente indutivo, com premissas vinculadas a fatos concretos e contingentes, de forma que os critérios da validade e da correção não são os adequados ao contexto argumentativo. Nesse caso, em vez de verdade, utilizar-se-á verossimilhança, obtida através da análise da força e da cogência. Em vez de necessidade (no sentido lógico – algo que não poderia deixar de ser da forma que é), será uma ferramenta mais útil a probabilidade. E por fim, no plano subjetivo, no lugar da certeza formal, incompatível com o erro, uma certeza subjetiva, que promove uma adesão firme a uma tese.225 224 POSNER, Richard A. Problemas de Filosofia do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 52. 225 CASAUBON, Juan Alfredo. Nociones generalis de lógica e filosofia. Buenos Aires: Educa, 2006. p. 323 65 5.2 A CONSEQUÊNCIA EXAMINADA A PARTIR DA CAUSA Um elemento essencial no argumento consequencialista é o conceito de consequência, que pode ser entendido melhor se for estudado a partir de seu contraponto: a causa. Determinar o que é “consequência” de uma ação ou fato requer, antes, examinar o conceito de relação de causalidade, dado que a consequência corresponde ao efeito produzido por uma causa. É certo que o estudo da relação de causalidade está mais voltado para a noção de causa que a de efeito, de forma que influenciou a própria denominação do princípio da causa eficiente. David Hume usou o termo “cimento do universo” para demonstrar a importância da causalidade, que está difundinda tanto no meio científico como no discurso cotidiano, quando utilizamos, por exemplo, os seguintes verbos: produzir, provocar, resultar, etc.226 O conceito de causa está associado a outros conceitos importantes para a ciência em geral (inclusive o direito), conforme o trecho a seguir: O conceito de ação, ou de fazer, envolve a ideia de que o agente (intencionalmente) cauda mudança neste ou naquele objeto, do mesmo modo, o conceito de percepção envolve a ideia de que o objeto percebido causa no observador uma experiência perceptiva apropriada. O conceito físico de força, também parece envolver a causalidade como ingrediente essencial: a força é o agente causal de mudanças no movimento. Além disso, a causalidade está intimamente relacionada com explicação: perguntar pela explicação de um evento é, muitas vezes, perguntar pela sua causa... finalmente, os conceitos causais exercem papel decisivo no raciocínio moral e legal, por exemplo, na avaliação de responsabilidades e 227 obrigações. Uma primeira classificação descreve a causalidade do evento e a causalidade do agente. Esta põe em foco o ato de um agente que produz qualquer mudança; aquela trata de forma mais objetiva e impessoal a cadeia causal, pois será formada por eventos (fatos, acontecimentos ou estados) ligados entre si, podendo-se, inclusive, reduzir a causalidade do agente a uma causalidade de evento.228 Há quatro tipos de abordagens para analisar a causação de um evento: 226 CAUSALIDADE. In: AUDI, Robert. Dicionário de filosofia de Crambridge. Tradução Edwino Aloysius Royer et al. São Paulo: Paulus, 2006. p. 123-126. 227 CAUSALIDADE. In: AUDI, Robert, loc. cit. 228 CAUSALIDADE. In: AUDI, Robert, loc. cit. 66 a) Análise de regularidade – busca entre os eventos uma regularidade geral, que consiste em uma conjunção constante de eventos relacionados, podendo ser definida através de uma lei de cobertura ou inclusiva (necessidade nomológica); b) Análise contrafactual – defende que se o evento-causa não tivesse ocorrido, o evento-efeito também não ocorreria, considerando, então, a causa como condicio sine qua non para a produção do efeito; c) Análise de manipulação – põe em destaque a ação como causa para ocorrência de eventos, ressaltando a importância do conhecimento das conexões causais para a manipulação da natureza; d) Análise probabilística – de acordo com esta espécie de análise, “pode-se dizer que um evento, X, é causa probabilística de um evento Y, contato que a probabilidade da ocorrência de Y, dado que X tenha ocorrido, é maior que a probabilidade anterior de Y.”229 Há menção a outras classificações de causas, além das já descritas, que possuem utilidade: a sobredeterminação causal ocorre quando há duas causas independentes, e, por si só, suficientes para a produção do efeito; causa peremptiva ou superveniente é uma causa que vem após outra, causando, o efeito; causa sustentante é aquela utilizada par conservar algo da forma como está (causa de não-mudança); causalidade retroativa é o caso de uma causa que vem depois (temporalmente) do efeito; causalidade concorrente acontece quando a causa e o efeito existem simultaneamente; e a causalidade contígua: quando o efeito vem posteriormente à causa, no tempo e no espaço.230 A palavra causa possuía no grego um sentido originariamente jurídico, significando “acusação ou imputação”, mas, com o passar do tempo, foi adquirindo a noção de “algo que passa a ser algo”, sob determinada lei ou princípio que regeria esta mudança.231 Platão faz a distinção entre causas primeiras e causas secundárias. As causas primeiras seriam as ideias, tidas por causas exemplares, que atuam não pela 229 CAUSALIDADE. In: AUDI, Robert. Dicionário de filosofia de Crambridge. Tradução Edwino Aloysius Royer et al. São Paulo: Paulus, 2006. p. 123-126. 230 CAUSALIDADE. In: AUDI, Robert, loc. cit. 231 CAUSA. In: MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. Tradução Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyimi Campanário. 2 .ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 423-432. v.1. 67 ação, mas pela perfeição; as causas segundas seriam as causas materiais propriamente ditas, que atuam por meio da ação.232 A doutrina de Aristóteles aprofundou a noção de causa, classificando-a em quatro tipos: a) Causa eficiente – é o princípio da mudança; b) Causa material – é a matéria de que algo surge; c) Causa formal – é a ideia ou paradigma; d) Causa final – é aquilo para o qual a coisa tende a ser.233 No seguinte trecho da Metafísica de Aristóteles, o autor oferece alguns exemplos ilustrativos de sua classificação: Causa, num sentido, significa a matéria de que são ditas as coisas: por exemplo, o bronze da estátua, a prata da taça e seus respectivos gêneros. Em outro sentido, causa significa a forma e o modelo, ou seja, a noção da essência e seus gêneros; por exemplo, na oitava, o número. E <causa neste sentido> são também as partes que entram na noção da essência. Ademais, causa significa o princípio primeiro da mudança ou do repouso; por exemplo, quem tomou uma decisão é causa, o pai é causa do filho e, em geral, quem faz é a causa do que é feito e o que é capaz de produzir mudança é causa do que sofre mudança. Além disso, a causa significa o fim, quer dizer, o propósito da coisa: por exemplo, o propósito de caminhar é a saúde. De fato, por que motivo se caminha? Respondemos: para ser saudável. E dizendo isso consideramos ter dado a causa do caminhar. E o mesmo vale para todas as coisas que são movidas por outro e são intermediárias entre o motor e o fim; por exemplo, o emagrecimento, a purgação, os remédios, os instrumentos médicos são todos causas da saúde. Com efeito, todos estão em função do 234 fim e diferem entre si enquanto alguns são instrumentos e outros ações. Nesse sentido, pode-se dizer que os antigos gregos sustentavam basicamente dois princípios: o princípio da razão suficiente, que afirma que tudo tem uma causa (causa efficiens); e o princípio de que todo movimento (mudança) ocorre a partir de algo (omnia quod movetur ab alia movetur).235 Os racionalistas acrescentam o princípio de que toda causa é igual ao efeito (causa aequar effectum), significando que o efeito deve estar incluído na causa.236 São Tomás segue a classificação aristotélica dos quatro tipos de causas (causa per modum materiae; causa formalis; causa movens, vel efficiens; causa finis), acrescentando a diferença entre princípio e causa: princípio é aquilo de onde 232 CAUSA. In: MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. Tradução Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyimi Campanário. 2 .ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 423-432. v.1. 233 CAUSA. In: MORA, J. Ferrater, loc. cit. 234 ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002, p.191. v.2. 235 CAUSA. In: MORA, J. Ferrater, op.cit., p. 423-432. 236 CAUSA. In: MORA, J. Ferrater, loc. cit. 68 algo procede de um modo qualquer, segundo o intelecto; causa é aquilo de onde procede algo de um modo específico, segundo a coisa ou realidade.237 Hume, posteriormente, questionará que haja alguma ligação ontológica e necessária entre a causa e o efeito, pois quando observamos a sucessão entre dia e noite, e predizemos que amanhã ocorrerá da mesma forma, formando uma regularidade geral, na verdade, isso não passa de mero hábito ao qual o pensamento está acostumado, não havendo necessidade entre fatos, dado que são contingentes, exceto se a relação for entre ideias, onde é possível uma relação necessária.238 Kant concorda com Hume na sentido de que a causalidade não existe no mundo real, entretanto, ela situa a causa entre as categorias do entendimento (na subjetividade), permitindo, assim, a universalização e necessidade das leis científicas, como se pode notar da seguinte passagem, quando trata das analogias da experiência:239 Schelling defende que o problema da causa e da liberdade estão relacionados.240 De fato, se concebermos o mundo por um prisma unicamente determinista, considerando que entre fatos humanos há uma relação de causalidade necessária, não haverá espaço para a liberdade dos atos humanos. Mário Bunge distingue três significados para a causalidade: a) Causação – refere-se à relação causal e tipos de nexo causal. b) O princípio causal – relaciona-se com um enunciado da lei causal do tipo “as mesmas produzem os mesmos efeitos”. c) Determinismo causal – é a causalidade propriamente dita, no sentido de uma validade universal do princípio causal do tipo “tudo tem uma causa”.241 Bunge acrescenta , ainda, que a noção de determinação é mais ampla que a de causalidade, porque a causação não é a única relação que expressa mudança e 237 CAUSA. In: MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. Tradução Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyimi Campanário. 2 .ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 423-432. v.1. 238 CAUSA. In: MORA, J. Ferrater, loc. cit. 239 CAUSA. In: MORA, J. Ferrater, loc. cit. 240 CAUSA. In: MORA, J. Ferrater, loc. cit. 241 CAUSA. In: BUNGE, Mario (1971) apud MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. Tradução Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyimi Campanário. 2 .ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 423-432. v.1. 69 novidade, dados que a determinação pode ser causal e não causal, tal como a determinação estatística, estrutural, teleológica e a dialética.242 Leibniz é um representante da metafísica tradicional, defendendo a existência de verdades necessárias e de uma relação necessária entre causa e efeito, como se deduz da seguinte passagem: Nossos raciocínios estão fundados em dois grandes princípios, o da contradição, em virtude do qual julgamos que é falso o que ele implica, e verdadeiro o que é oposto ou contraditório ao falso. Teodicéia, §§ 44 e 169. E o de razão suficiente, em virtude do qual consideramos que nenhum fato pode ser verdadeiro ou existente, sem que haja uma razão suficiente para que seja assim e não de outro modo, ainda que com muita frequência estas razões não possam ser conhecidas por nós. Teodicéia, §§ 44 e 169. Há dois tipos de verdades, as de raciocínio e as de fato. As verdades de razão são necessárias e seu oposto é impossível; e as de fato são contingentes e seu oposto é possível. Quando uma verdade é necessária pode-se encontrar sua razão pela análise, resolvendo-a em ideias e em verdades mais simples até se chegar às primitivas. Teodicéia, §§ 170, 174, 243 189,0280-202, 367; Resumo, 3ª Objeção. Hume, entretanto, questiona o postulado da metafísica tradicional, afirmando que não há uma relação de necessidade entre causa e efeito, como se percebe na seguinte passagem: Parece então que essa idéia de uma conexão necessária entre acontecimentos surge de uma multiplicidade de casos assemelhados de ocorrência desses acontecimentos em constante conjunção, e essa idéia nunca poderia ter sido sugerida por nenhum desses casos em particular, ainda que examinado sob todos os possíveis ângulos e perspectivas. Mas não há, numa multiplicidade de casos, nada que difira de cada um dos casos individuais, os quais se supõe serem exatamente semelhantes, a não ser que após uma repetição de casos semelhantes, a mente é levada pelo hábito, quando um dos acontecimentos tem lugar, a esperar seu acompanhante habitual e a acreditar que ele existirá. Essa conexão, portanto, que nós sentimos na mente, essa transição habitual da imaginação que passa de um objeto para seu acompanhante usual, é o sentimento ou impressão a partir da qual formamos a ideia de poder ou conexão necessária. Nada mais está presente na situação. Examine-se o assunto sob todos os ângulos; não se poderá descobrir qualquer outra origem para aquela ideia. Essa é a única diferença entre um caso único, do qual nunca se obtém a ideia de conexão, e uma multiplicidade de casos assemelhados, pelos quais essa ideia é sugerida. Na primeira vez que um homem viu a comunicação de movimento por impulso, como no choque de duas bolas de bilhar, ele não poderia declarar que um acontecimento estava conectado ao outro, apenas que estava conjugado. Depois de observar diversos casos dessa natureza, ele então os declara conectados. Que alteração ocorreu para dar origem a essa nova ideia de conexão? Nada, senão o fato de que ele agora sente que esses acontecimentos estão 242 CAUSA. In: BUNGE, Mario (1971) apud MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. Tradução Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyimi Campanário. 2 .ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 423-432. v.1 243 LEIBNIZ, G.W. Discurso de metafísica e outros textos. Tradução Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.136-137. 70 conectados em sua imaginação, e pode prontamente prever a existência de 244 um a partir do aparecimento de outro. Na norma jurídica, a relação entre o descumprimento do comando e a sanção é uma relação de imputação, não se podendo dizer que é necessária, em razão da possibilidade da revogação da lei que contém a norma. Em relação aos fatos da natureza, Kant afirmou que a causalidade não está inserida na própria realidade, mas é uma categoria do entendimento. Quanto aos fatos humanos, percebe-se um enfraquecimento enorme no elo de causalidade que ligaria esses fatos. Imagine o argumento do Fisco no sentido de que determinada decisão judicial teria por consequência a “quebra de erário” ou produziria um efeito multiplicador de ações de contribuintes. São consequências possíveis ou, no máximo, prováveis, mas não restam dúvidas de que são contingentes. A questão é que, muitas vezes, há mera correlação entre fatos e não causalidade, como adverte Walton: “Nos argumentos que vão da correlação à causalidade, o principal problema é que, às vezes, a correlação se deve apenas a uma coincidência ou a uma relação que não é a causal.” 245 Sobre essa falsa argumentação sustentada com base na causalidade, Taleb nos adverte: Nós gostamos de histórias, gostamos de resumir e gostamos de simplificar, ou seja, de deduzir a dimensão das questões. O primeiro dos problemas da natureza humana que examinamos nesta seção, o que acabamos de ilustrar anteriormente, é o que chamo de falácia narrativa. (na verdade, é uma fraude, mas para ser mais educado irei chama-la de falácia.) A falácia está associada à uma vulnerabilidade em relação à interpretação excessiva e à nossa predileção por histórias compactas sobre verdades cruas. Ela distorce gravemente nossa representação mental do mundo, e é particularmente aguda quando se trata de evento raro. A falácia narrativa aborda nossa capacidade limitada de olhar para sequencias de fatos sem costurar uma explicação nelas, ou equivalentemente, forçar uma ligação lógica, uma flecha de relacionamento, sobre elas, explicações unem fatos. E tornam os fatos mais fáceis de se lembrar; e os ajudam a fazer mais sentido. Essa propensão pode dar errado 246 quando aumenta nossa impressão de entendimento. 244 HUME, David. Investigação sobre entendimento humano e sobre os princípios da moral. Tradução José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Unesp, 2004. p. 113-114. 245 WALTON, Douglas N. Lógica informal: manual de argumentação crítica. Tradução Ana Lúcia R. Franco, Carlos A. L. Salum. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.333. 246 TALEB, Nassim Nicholas. A lógica do cisne negro: o impacto do altamente improvável. Tradução Marcelo Schild. 4.ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. p. 100-101. 71 5.3 O ARGUMENTO CONSEQUENCIALISTA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA O pensamento humano possui várias motivações e processos para chegar a uma conclusão. Há, porém, uma forma de raciocínio que é guiada por regras formais racionais, que desprezam as motivações internas do sujeito: a inferência. Esta é “um processo pelo qual se chega a uma proposição, afirmada na base de uma ou outras mais proposições aceitas como ponto de partida do processo.” 247 Proposições são enunciados afirmativos ou negativos dos quais pode-se extrair um juízo de valor relativo à verdade ou falsidade.248 Por sua vez, argumento é “qualquer grupo de proposições tal que se afirme ser uma delas derivada das outras, as quais são consideradas provas evidentes da verdade da primeira”. 249 Das proposições posso dizer que são verdadeiras ou falsas, mas não dos argumentos. Em razão da natureza argumentativa representar um complexo de proposições relacionadas entre si, o juízo de valor reside exatamente na correção da relação entre as diversas proposições, e, por isso, julgamos um argumento como válido ou inválido. 250 Porém, “há raciocínios perfeitamente válidos que têm conclusões falsas – mas devem ter, pelo menos, uma premissa falsa. O termo ‘sólido’ é introduzido para caracterizar um argumento válido cujas premissas são todas verdadeiras. Evidentemente, a conclusão de um argumento sólido é verdadeira”.251 Por conseguinte, é necessário ter uma atenção vigilante sobre as premissas, pois são elas as bases do edifício argumentativo. “Uma das mais complexas questões concernentes às premissas está no problema das proposições implícitas, isto é, em muitos argumentos, premissas capitais não estão explicitamente enunciadas, mas permanecem embutidas ou ocultas em outras sentenças” 252 Assim, se digo que Sócrates é homem, logo, Sócrates é mortal, implicitamente, aceito a premissa de que todo homem é mortal. No direito, as normas jurídicas não são proposições, nem argumentos. São comandos que expressam uma determinada vontade, então, não podem ser classificadas como falsas ou verdadeiras. No entanto, utiliza-se proposições e 247 COPI, Irving. M. Introdução à lógica. Tradução Álvaro Cabral .2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 21. 248 Ibidem, p.22. 249 Ibidem, p.23. 250 Ibidem, p.38. 251 Ibidem, p.39. 252 FOSL, Peter. S.;BAGGINI, Julian. As ferramentas dos filósofos: um compêndio sobre conceitos e métodos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2008, p. 16. 72 argumentos quando se elabora uma teoria, ou em uma decisão judicial (ao menos em sua motivação). Dessa forma, das proposições que demonstram uma teoria ou decisão podese diz de sua falsidade ou veracidade. Outrossim, dos argumentos formados a partir dessas proposições julga-se como argumentos válidos ou inválidos. Em uma decisão judicial, o juiz, além de demonstrar por argumentos que sua decisão “não é contraditória com o sistema jurídico (teste de consistência) e, de outro lado, razões segundo as quais a decisão realiza os fins e valores perpetrados pelo sistema (teste de coerência)... o juiz deve apresentar as razões pelas quais a decisão possui consequências jurídicas aceitáveis”. 253 Em regra, os argumento jurídicos partem de um base normativa para a tomada de decisão. Todavia, há argumentos que se distanciam do normativo para aproximarem-se do factual. O argumento consequencialista opera dessa forma quando se utiliza das consequências de uma determinada decisão judicial para avaliar tal decisão como boa ou má. O argumento consequencialista pode ser ilustrado da seguinte forma: 1. Decisão x produz consequências y. 2. Consequências y são ruins. 3. Logo, decisão x é ruim. Argumentar pelas consequências é uma atitude pragmática, pois revela uma preocupação maior com a ação prática do que com estrutura conceituais e sistemas normativos. Do ponto de vista ético, o consequencialismo vincula-se ao utilitarismo, que tem Jeremy Bentham e John Stuart Mill como seus principais expoentes. O utilitarismo identifica o bem com o útil, e a utilidade de um ato depende de suas consequências. Assim, “um ato será bom se tem boas consequências, independentemente do motivo que levou a fazê-lo ou da intenção que se pretende concretizar”. 254 São Tomás de Aquino, em sua teoria do duplo efeito, já levava em conta as consequências ruins dos atos que, em si mesmos, seriam obrigatórios ou permitidos, afirmando que se o bem visado levar vantagem em relação às 253 PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentando pelas consequências no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011/2012, p.21. 254 VÁZQUEZ, Adolfo Sánches. Ética. Tradução João Dell’ Anna. 23. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 2002, p.169. 73 consequências ruins, este ato poderia ser praticado.255 Para o direito, porém, há um questionamento importante: qual a classe de consequências que poderia integrar a justificação de uma decisão judicial? Neil MacCormick defende que apenas as consequências lógicas de uma decisão podem ser utilizadas como justificação, pois as consequências fáticas seriam contingentes e imprevisíveis. 256 Essas consequências lógicas que são relevantes para a tomada de decisão serão tãosomente aquelas universalizáveis, que são aceitáveis independentemente da posição que os sujeitos ocupem na relação jurídica.257 Andrade admite o uso do argumento consequencialista, desde que haja a devida ponderação e ele não seja exclusivo na motivação judicial, devendo ser usado como reforço de teses jurídicas: Caso a decisão judicial seja baseada exclusiva ou predominantemente nos argumentos pragmáticos ou consequencialistas de cunho econômico em matéria tributária, podem ocorrer potenciais violações aos direitos fundamentais prescritos no art. 5º da Constituição da República, além daquelas possíveis afrontas já descritas anteriormente (ao princípio republicano, democrático e da separação dos poderes). A sua utilização legítima deve ser parcimoniosa e sujeita a um maior ônus argumentativo para corroborar os argumentos jurídicos centrais que o magistrado explicita 258 com fundamento em sua decisão. Em outra passagem, Andrade deixa mais claro sua convicção na insuficiência no uso exclusivo do argumento consequencialista: No atual estado de coisas, é absolutamente temerário e contrário a qualquer lógica razoável permitir que um ou mais argumentos pragmáticos ou consequencialistas de cunho econômico prevaleçam ou sejam dados como suficientes para determinar o rumo da decisão final que deve ser prolatada. Caso contrário, teríamos a violação frontal aos princípios da moralidade, da responsabilidade objetiva do Estado e do locupletamento ilícito, agravado ainda mais pelo prejuízo causado sobre os contribuintes, que são 259 protegidos de modo claro pelo estatuo previsto na Constituição. Haveria, então, um roteiro ou manual para o uso do argumento consequencialista? Andrade sugere as seguintes regras: Regra A: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico não deve ser computado sozinho na decisão judicial em matéria tributária, sob pena de sua manifesta ilegitimidade. Regra B: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico pode ser legitimamente computado na decisão judicial em 255 DUPLO EFEITO. In: SPERBER, Monique Canto (Org.). Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p.488, v.2. 256 MACCORMICK, Neil (1983) apud PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentando pelas consequências no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011/2012. p. 22. 257 Ibidem, p. 27. 258 ANDRADE, Fábio Martins. Modulação em matéria tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 187. 259 Ibidem, p. 196. 74 matéria tributária, desde que seja considerado de modo explícito, seja capaz de corroborar os argumentos jurídicos que a sustentam e seja fundamentado em sede constitucional de maneira clara. Regra C: em nenhuma hipótese deve ser admitido na decisão judicial o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico em matéria tributária sustentado de maneira implícita, camuflada ou de modo que não seja fundamentado em sede constitucional, sob pena de sua 260 flagrante ilegitimidade. No Recurso Extraordinário nº 363.852/MG, onde se decidiu pela inconstitucionalidade da contribuição sindical sobre a receita bruta proveniente da comercialização da produção devida por empregadores rurais (FUNRURAL), argumentos consequencialistas foram utilizados tanto para negar quanto para conceder eficácia ex nunc à decisão (modulação de efeitos). Por exemplo, o Ministro Marco Aurélio afirmou que a decisão pela inconstitucionalidade e sua eficácia ex tunc teriam a consequência de desestimular a elaboração de leis inquinadas de vícios. 261 Em outro ponto, a Ministra Ellen Graice, favorável à modulação de efeitos em prol da Fazenda Pública, assentou que o indeferimento da concessão de eficácia ex nunc incentivaria a multiplicação de processos de repetição de indébito tributário (efeito multiplicador). 262 Porém, segundo MacCormick, “o raciocínio consequencialista [...] não é focado na estimada mudança comportamental por conta da decisão - ainda que, de fato, o posicionamento do judiciário atue como causa para a escolha das pessoas, com destaque ao direito tributário [...]”263 Na verdade, os efeitos indutores de comportamento são contingentes e imprevisíveis, não sendo, pois, adequados para figurar como razão para decidir. Além disso, in casu, a modulação de efeitos violaria direito fundamental dos contribuinte à propriedade, pois restaria inviabilizada todas as ações de repetição de indébito. Nesse sentido, assevera Carrazza que “os direitos fundamentais, evidentemente, também amparam o contribuinte contra os Poderes do Estado, inclusive o Legislativo. Deveras, todo o Capítulo I do Título II da Constituição Brasileira delimita o exercício de competências tributárias das pessoas políticas, impedindo-as de ingressarem nas áreas 260 ANDRADE, Fábio Martins. Modulação em matéria tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: Quartier Latin, 2011.p. 204-205. 261 GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat, Modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade em matéria tributária. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19799/modulacao-de-efeitos-da-declaracao-de-inconstitucionalidadeem-materia-tributaria>. Acesso em: 03 set. 2012. 262 Ibidem. 263 PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentando pelas consequências no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011/2012. p.22. 75 reservadas aos direitos ‘à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade’ dos contribuintes”264 É certo que, atualmente, em doutrina e jurisprudência, aceita-se restrições a direitos fundamentais baseados no sopesamento diante de uma colisão de princípios265, partindo-se da premissa de que o “direito em si” existe e é ontologicamente diverso de suas restrições (teoria externa). 266 Essa concepção a respeito dos direitos subjetivos e do seu exercício é questionada pela teoria interna que entende a estrutura de um direito subjetivo compõe-se de limites imanentes, ou seja, que fazem parte da própria configuração do direito. 267 Dessa forma, a fixação desses limites, por ser um processo interno, não é definido nem influenciado por aspectos externos, sobretudo, por colisões com outros direitos.268Tanto a alegada insegurança jurídica causada pelo impacto econômico-financeiro ao erário, quanto o efeito multiplicador da decisão judicial são aspecto externos aos direitos subjetivos tratados, não se podendo especular nem sequer uma colisão de direitos, pois em relação à Fazenda Pública não existe um direito subjetivo ao não pagamento do indébito, ao contrário, há uma obrigação jurídica confirmada pelo princípio da legalidade, tão importante ao direito tributário. Outro aspecto a considerar é que o argumento consequencialista está vinculado ao utilitarismo, o qual sofre severa crítica por ser incompatível com o ideal de justiça (em especial, com relação ao princípio da igualdade), e, ademais, “a noção dos direitos de uma pessoa não é uma noção utilitarista. É bem o oposto: é uma noção que estipula limites de como um indivíduo deve ser tratado, independentemente dos bons propósitos, que podem ser alcançados”269 Para finalizar a análise, deve-se, ainda, considerar que a afirmativa de que modular efeitos em favor da Fazenda produziria efeito multiplicador de ações de repetição de débito incide em falácia da falsa causa. A falácia informal pode ser definida como “[...] um erro de raciocínio ou uma tática de argumento que pode ser 264 CARRAZZZA, Curso de direito constitucional tributário. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.420. 265 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p.143. 266 Ibidem, p. 138. 267 Ibidem, p. 128. 268 BOROWSKI, Martin (1998) apud SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p.128. 269 RACHELS, James. Os elementos da filosofia moral. 4.ed. Barueri, São Paulo: Manole, 2006, p.109. 76 usada para persuadir alguém com o qual estamos discutindo de que nosso raciocínio é correto, quando na realidade não o é”. 270 A falácia da falsa causa (post hoc, erga proter hoc) “[...]consiste em inferir, a partir da simples existência de uma correlação ou variação sistemática entre dois acontecimentos, a conclusão de que um deles é causa do outro”271. De fato, pois a verdadeira causa das ações em número elevado reside na incúria do legislador em elaborar leis tributárias inconstitucionais. 270 FALÁCIA INFORMAL. In: AUDI, Robert .Dicionário de filosofia de Cambridge. Tradução Edwino Aloysius Royer et al. São Paulo: Paulus, 2006., p. 321. 271 POST HOC, ERGO PROPTER HOC. In: BRANQUINHO, J.;MURCHO, D.; GOMES, N.G. Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 607. 77 6 CONCLUSÃO A presente dissertação abordou o tema do argumento consequencialista no direito tributário sem restringir o discurso a um ambiente puramente jurídico. Nos dias atuais, em que há uma aumento progressivo do fenômeno da globalização em todos os sentidos, em especial, na ciência, não se pode adentrar em um problema sem um olhar extradisciplinar. Morin faz uma crítica severa ao isolamento disciplinar que pode desaguar em uma mentalidade hiperdisciplinar na qual se “proíbe qualquer incursão estranha em sua parcela de saber”.272 Iniciou-se pela teoria da ciência, verificando-se que quanto mais avança-se na ciência, mais descobre-se que suas bases não são tão seguras e que há um estado de alteração contínua.273 Apesar disso, a teoria da ciência fornece instrumentos valiosos para a discussão teórica jurídica, como os conceitos de paradigma, falsificação e incomensurabilidade. A principal conclusão do capítulo sobre a teoria da ciência é que a rivalidade entre os paradigmas do positivismo do positivismo jurídico e o pragmatismo jurídico, acrescida da insuficiência do positivismo jurídico para solucionar os casos difíceis, não é bastante para uma falsificação do paradigma positivista. No segundo momento, este trabalho procurou aproximar a teoria do conhecimento da teoria ética, isto é, relacionar a verdade e o valor. De certa forma, o pragmatismo utilitarista promove essa articulação quando relaciona a teoria econômica, a ideia do útil e a ideia do justo, identificando as duas últimas. Esse vínculo entre conhecimento e ética não é novo, como adverte Popper: “O homem pode conhecer: por isso pode ser livre. É essa a fórmula que explica a conexão entre optimismo epistemológico e as ideias do liberalismo.”274 Da mesma forma, as Escrituras Sagradas dizem: “conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres.” 275 No quarto capítulo, a teoria do direito foi desenvolvida tomando como ponto de partida o paradigma do pragmatismo filosófico, no qual está inserida a questão do 272 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma reformar o pensamento. 14. ed. Tradução Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 106. 273 POPPER, Karl Raymund. A lógica da pesquisa científica. Tradução Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mata. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 13. 274 Idem. Conjecturas e refutações. Tradução Benedita Bettencourt.Coimbra: Almedina, 2006.p. 20. 275 JOÃO 8,32. In: Bíblia Sagrada. 5.ed. rev. Lisboa/Fátima: Difusora Bíblica, 2006.p. 1742. 78 retorno aos fatos e da rejeição ao essencialismo, para alcançar como ponto de chegada o pragmatismo jurídico e sua estreita relação com o utilitarismo ético. Conclui-se que, de fato, o pragmatismo jurídico concebe a justiça identificando ao bem-estar, estabelecendo um vínculo entre o direito e a ética. No quinto e último capítulo, investigou-se a estrutura argumentativa na lógica informal, por ser mais adequada ao direito do que a lógica formal. Além disso, foi examinado o conceito de consequência a partir de sua noção antecedente, a causa, estabelecendo-se a discussão a respeito da causalidade e sua limitação no âmbito da razão prática, pois segundo Posner, os métodos da razão prática são diferentes dos métodos de investigação exata, trabalhando não com uma regularidade causal, mas apenas com uma expectativa de regularidade: Em contraste com os métodos de investigação exata existem aqueles de “razão prática”. Infelizmente, o termo carece de um significado-padrão. É mais comumente usado para designar os métodos (“deliberação” e “silogismo prático” são, expressões-chave) que as pessoas usam para fazer uma opção prática ou ética, como, por exemplo, se devem ou não ir ao teatro ou mentir para um conhecido. A razão prática nesse sentido não é um método analítico único, nem mesmo uma família de métodos afins. É uma caixa de surpresas que inclui relatos de fatos isolados, introspecção, imaginação, senso comum, empatia, atribuição de motivos, a autoridade do locutor, metáfora, analogia, precedente, costume, memória, “experiência”, intuição e indução (a expectativa de regularidades, uma disposição associada tanto à intuição 276 quanto à analogia). E por fim, trata-se do argumento consequencialista e de sua limitação quando utilizado em matéria tributária, tendo em conta o cuidado de examinar se não se incide na falácia da falsa causa, se há apenas mera correlação entre causa e consequência, se há violação frontal à direitos fundamentais e se o argumento consequencialista não é utilizado de forma exclusiva na motivação judicial. 276 POSNER, Richard A. Problemas de Filosofia do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 97 79 REFERÊNCIAS AFORISMO. In: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 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